Wanderley de Souza*
Minha convivência com Darcy Ribeiro foi curta, porém intensa. No primeiro momento, fui convidado para ajudar na instalação da Universidade Estadual no Norte Fluminense (UENF) e, nela, a pensar em um modelo inovador e voltado para a pesquisa científica. Simultaneamente, começamos a discutir mudanças conceituais em uma proposta inicial para a Lei de Diretrizes e Bases para a educação no Brasil. Logo em seguida, pensamos em um modelo de educação a distância. Neste pequeno ensaio, pretendo tecer alguns comentários sobre duas dessas iniciativas.
Em 1990 eu atuava como Diretor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quando fui contactado pelo colega Antônio Cordeiro, professor de genética do Instituto de Biologia da UFRJ. Ele havia sido colaborador de Darcy na criação da Universidade de Brasília, e me chamou para um encontro com Darcy Ribeiro e Gilka Weinstein. O primeiro contato foi realizado na sede da Secretaria Extraordinária para Projetos Especiais, localizada em São Cristóvão, Rio de Janeiro. O foco da reunião era a missão de pensar e implantar, em tempo recorde, uma nova universidade, hoje UENF, incumbência dada a Darcy pelo então governador Leonel Brizola. Impossível não aceitar esse convite, em função do entusiasmo com que Darcy apresentava a proposta. Logo na primeira reunião, foi com surpresa e alegria que ouvi a recomendação de que procurasse nomes importantes da ciência brasileira com capacidade e entusiasmo para organizar equipes de pesquisadores atuando nas áreas de fronteira. Importante lembrar que Darcy Ribeiro teve uma formação baseada sobretudo no seu esforço pessoal. Iniciou sua carreira universitária em 1939 como aluno do curso de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Não sentindo atração pela área, desistiu do curso em 1942 e migrou para São Paulo para fazer o curso de graduação da então Escola de Sociologia e Política de São Paulo, que foi criada em 1933 como uma escola isolada e só posteriormente
* Professor titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ e pesquisador do Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem da mesma universidade, foi secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro, Foi Diretor e Presidente da Finep. Membro das academias Nacional de Medicina, Brasileira de Ciências e de Ciências do Terceiro Mundo.
incorporada à Universidade de São Paulo (USP). Era um curso de excelência, e por essa escola passaram nomes importantes como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen, Luiza Erundina, Salomão Schwartzman e Ricardo Lewandowski, para mencionar alguns. Darcy finalizou o curso em 1946 e já em 1947 se incorporou, como etnólogo, ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Foi atuar na região Amazônica e no Brasil Central, assumiu a direção do SPI e criou o Museu do Índio em 1952. Em 1950 publicou seu primeiro livro, intitulado Religião e Mitologia Kadiweu. Em 1953 ingressou como professor de etnologia brasileira na Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas e, em 1958, como professor de etnologia brasileira e tupi-guarani da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje UFRJ). Tornou-se um eminente professor de antropologia e, em 1959, foi convidado pelo presidente Juscelino Kubitscheck para planejar com Anísio Teixeira a Universidade de Brasília, que iniciou suas atividades em 1961, da qual foi o primeiro reitor. Na montagem da Universidade de Brasília, Darcy e equipe procuraram atrair grandes nomes da ciência brasileira. Darcy ficou pouco tempo como reitor, pois o presidente logo o chamou para assumir o Ministério da Educação e Cultura e, logo em seguida, no governo João Goulart, assumiu o Gabinete Civil da Presidência da República. Em função do golpe militar de 1964, teve que sair do Brasil e se dedicou ao longo de vários anos como docente e inspirador de mudanças importantes em universidades no Uruguai, Peru, Costa Rica, México e Argélia.
Darcy nos deu liberdade total para a organização da UENF e para convidar professores, desde que fossem doutores com excelente atividade acadêmica, atuando em pesquisa científica e formação de mestres e doutores, de forma a apoiar a ideia de a universidade começar com cursos de pós-graduação. Procuramos atrair pesquisadores da Rússia e de Cuba. Em relação à Cuba, junto com outros colegas, acompanhei Darcy em uma viagem quando visitamos várias instituições, entre as quais destaco o Centro de Biotecnologia. Com Fidel Castro, discutimos uma maior cooperação entre instituições cubanas e a nova universidade. A recomendação explícita de Darcy era no sentido de que todos os professores deveriam ser doutores e que o comando dos laboratórios, dos centros e da universidade deveria estar sempre nas mãos dos pesquisadores mais seniores. Assim, conforme explicitado no Plano Orientador da Universidade, o núcleo formador da UENF cresceu. Além de mim e de Antônio Cordeiro, vários colegas foram sendo envolvidos para pensar as diferentes áreas, tendo o comando executivo eficiente da professora Gilka Weinstein. Ao grupo foram se incorporando pessoas como Nilton Rocha Leal, com grande experiência no setor agropecuário, Paulo Alcântara Gomes e Pedricto Rocha Filho na área
das engenharias, Gilson Nunes na área de física, e Carlos Alberto Dias na área da engenharia de exploração de petróleo, entre outros. Por indicação de Darcy, que era o chanceler da UENF, fui nomeado reitor da UENF em 1993 e iniciei a estruturação dos colegiados acadêmicos. Com o tempo defendi cada vez mais a independência acadêmica e administrativa da UENF em relação à sua fundação mantenedora (Fundação Estadual do Norte Fluminense). Tal posição foi levada ao conhecimento do Darcy como uma posição pessoal de independência, o que fez com que rompesse comigo e solicitasse a minha substituição. No início de 1995 fui exonerado do cargo de reitor pelo então governador Marcelo Alencar. Tal fato gerou uma série de protestos na universidade, pois foi entendido como uma intervenção do governo em uma instituição que goza de autonomia, como previsto na Constituição do país. Os fatos foram esclarecidos e voltamos a ter uma boa convivência. Houve problemas no governo de Marcelo Alencar, e a situação só foi normalizada com a eleição do governador Anthony Garotinho e a minha designação como secretário de Estado de Ciência e Tecnologia, órgão ao qual a UENF estava vinculada. Rapidamente designamos o professor Adilson Gonçalves como reitor pro-tempore, com a missão de elaborar os estatutos da UENF e proceder à primeira eleição comunitária do seu reitor. A partir daí a universidade se desenvolveu, tornou-se independente da fundação e seguiu o seu destino.
Desde a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Darcy antevia o importante papel da modalidade de educação a distância para a ampliação do ensino superior em várias áreas do conhecimento. Em um primeiro momento, seria importante enfatizar a formação de professores nas várias disciplinas para ampliar a educação básica de qualidade em todo o país. Pensou então na criação do que chamou de Universidade Aberta do Brasil e conseguiu o apoio do então presidente Fernando Henrique Cardoso e de seu ministro da Educação, Paulo Renato. Convidou-me para integrar a comissão de elaboração do projeto e, principalmente, do componente das ciências da vida. Entre setembro de 1996 e fevereiro de 1997, me dediquei a esse projeto, aproveitando um período de dois meses que passei como professor visitante no campus de Urbana-Champaign, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. O rigoroso inverno propiciava as condições para me dedicar à escrita, e a cada 48 horas enviava para Darcy via fax o que tinha escrito, e ele respondia prontamente. O retorno da correspondência foi diminuindo a partir de janeiro devido ao agravamento da sua saúde, e devido a isso Darcy precisou se internar no Hospital Sarah Kubitscheck em
Brasília. Tinha vencido um câncer de pulmão em 1974, mas não resistiu à metástase generalizada de um câncer de próstata e faleceu com falência múltipla de órgãos no dia 17 de fevereiro de 1997. Em uma correspondência de dezembro havia me dito que tinha acertado tudo com o ministro Paulo Renato para a implantação do projeto. Ao regressar ao Brasil, o ministro não demonstrou muito entusiasmo e, com isso, o projeto não foi implementado. No entanto, não me esqueci da proposta. Quando assumi a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, resolvi retomar a ideia e implantar o projeto. Organizei uma equipe na secretaria com a participação dos professores Adilson Gonçalves e Carlos Bielschowsky, da UFRJ, para retomar o projeto. Carlos Bielschowsky se dedicou intensamente a analisar todos os projetos de educação a distância em vários países e finalmente chegamos a um modelo envolvendo a criação de um consórcio de várias universidades públicas federais e estaduais atuando no Rio de Janeiro e que iriam oferecer os cursos. Levei o projeto ao governador Anthony Garotinho, que, após realizar uma visita à Universidade Nacional de Educação a Distância da Espanha (UNED), se empolgou com o projeto. Assinou, ainda em Madrid, o projeto de lei para a criação do programa, que foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Lei Complementar nº 103, de 18 de fevereiro de 2002) e assim ficou criado o Centro de Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro (CEDERJ). O CEDERJ conta hoje com 16 cursos oferecidos em 34 polos distribuídos por todas as regiões do estado, com cerca de 26 mil alunos. Em 2006 o projeto foi usado como modelo para o então ministro da Educação, Fernando Haddad, lançar as bases nacionais do programa de educação a distância no ensino superior. Foi criada, através do Decreto nº 5.800, de 8 de junho de 2006, a Universidade Aberta do Brasil, que hoje conta com 121.000 alunos em 139 instituições e 967 polos presentes em 850 municípios.
Finalizo com a constatação de que Darcy Ribeiro constitui uma das personalidades mais importantes da vida pública brasileira, tendo sido responsável por avanços significativos na área da educação no Brasil. O campus da Universidade de Brasília recebeu o seu nome. A UENF é hoje UENF Darcy Ribeiro. Dá ainda nome à Usina de Biodiesel de Montes Claros, Minas Gerais, sua terra natal. Em 1993 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras (1993-1997), tendo sido substituído, após seu falecimento, por Celso Furtado. Em 1978 recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Sorbonne, França. Recebeu ainda o mesmo título das universidades de Copenhagen, Venezuela e Uruguai.