Renda da terra e dependência em Carrera: análise crítica e elementos para a formulação de uma visão alternativa


Patrick Galba de Paula*

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a relação entre as categorias “renda da terra” e “dependência”, tendo como referencial, por um lado, a teoria marxista da renda e os trabalhos de J. I. Carrera, e, por outro, a formulação marxista sobre a dependência conforme apresentada por Ruy Mauro Marini. Após uma análise crítica da visão de Carrera do ponto de vista teórico e metodológico, propõe-se uma forma de integração alternativa da categoria renda da terra na análise da dependência/subdesenvolvimento. Palavras-chave: Renda da terra. Dependência. Teoria marxista do valor.

Abstract: The purpose of this work is to analyze the relationship between the categories “land rent” and “dependency”, having as references, on the one hand, the Marxist theory of land rent and the works of

J. I. Carrera, and, on the other hand, the Marxist formulation about dependency as presented by Ruy Mauro Marini. After a critical analysis of Carrera’s vision from a theoretical and methodological point of view, an alternative form of integration of the category “land rent” in the analysis of dependency/ underdevelopment is proposed.

Keywords: Land rent. Dependency. Marxist theory of value.


Resumen: El objetivo de este trabajo es analizar la relación entre las categorías “renta de la tierra” y “dependencia”, teniendo como referencia, por un lado, la teoría marxista de la renta y los trabajos de J. I. Carrera, y, por otro lado, la formulación marxista de la dependencia presentada por Ruy Mauro Marini. Luego de un análisis crítico de la visión de Carrera desde el punto de vista teórico y metodológico, se propone una forma alternativa de integrar la categoría de renta de la tierra en el análisis de la dependencia/subdesarrollo.

Palabras llave: Renta de la tierra. Dependencia. Teoría marxista del valor.


* Patrick Galba de Paula é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense. Possui também títulos em “Políticas Públicas e Desenvolvimento” e em “Ciências Jurídicas e Sociais” pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-Marx). Endereço eletrônico: patrickgalba@gm--ail.com

  1. Introdução

    O objetivo deste trabalho é analisar a relação entre as categorias “renda da terra” e “dependência”, tendo como referencial, por um lado, a teoria marxista da renda e os trabalhos de J. I. Carrera (2006, 2008, 2017), e, por outro, a formulação marxista sobre a dependência conforme apresentada por Marini (1973a, 1973b). Em seus trabalhos recentes, Carrera propõe uma relação direta entre a apropriação de renda na América Latina e o tipo de desenvolvimento ocorrido nessa região do planeta, caracterizado como “não-clássico”, no qual “[...] a acumulação se baseia na produção de mercadorias portadoras de renda fundiária” (CARRERA, 2008, p. 3-4; 2017, p. 37). Nessa visão, a apropriação de um excedente econômico através dessa forma de rendimento e sua redistribuição nas economias latino-americanas estariam na base da especificidade de sua forma de desenvolvimento.

    É possível traçar a origem dos estudos que relacionam a questão do desenvolvimento e subdesenvolvimento na economia mundial e a renda fundiária até os anos 1920, com os trabalhos do economista soviético Isaak Dashkovsky (1891-1972). Dashkovsky publicou na revista Pod Zramenem Marxizma1, vinculada ao Partido Comunista da URSS, três artigos em série nos quais busca deduzir uma concretização internacional das teorias do valor e da acumulação de Marx, intitulados “Sobre a teoria do desenvolvimento do mercado mundial e da economia mundial”, e “Intercâmbio internacional e lei do valor” (partes 1 e 2), todos de 1927. Partindo de uma teorização sobre as relações desiguais (do ponto de vista do valor-trabalho) de intercâmbio no mercado mundial, bem como dos reflexos das exportações de capitais, Dashkovsky apontava em suas conclusões para uma tendência de estratificação da economia mundial capitalista decorrente de uma tendência de aumento da renda fundiária agrária em detrimento dos lucros industriais nos países “atrasados” (DASHKOVSKY, [1927] 2012).

    A ideia de que haveria um papel importante da renda fundiária na determinação do “atraso” dos países periféricos (latino-americanos) também foi sugerida por Laclau (1969). Segundo esse autor, a renda diferencial apropriada pelo setor agrário teria sua origem no mais-valor produzido nos países industriais (principalmente Europa e EUA) e constituiria um tipo de lucro excedente (sobrelucro ou mais-valia extraordinária), que contribuiria negativamente para o desenvolvimento dos países latino-americanos (LACLAU, 1969, p. 37). Não há, entretanto, na obra de Laclau, um desenvolvimento aprofundado dessa temática (para além desta sugestão) no sentido de qualquer tentativa de demonstração de como a renda poderia influenciar


    1. “Sob a bandeira do marxismo”.

      o “atraso” do desenvolvimento dos países latino-americanos, nem tampouco uma demonstração de como essa forma de rendimento poderia ter origem no mais-valor produzido nos países industriais2.

      Embora diversos autores tenham buscado desenvolver de alguma forma essas sugestões presentes na obra de Laclau3, os trabalhos que parecem ter alcançado o maior reconhecimento nesse intento são os de Carrera (2006, 2017).


    2. – Carrera e a renda da terra como ponto de partida da especificidade do “de-senvolvimento não-clássico”

Carrera (2006) identifica que o atraso do desenvolvimento capitalista nos países da América Latina, e da Argentina em particular, estaria na base de sua pequena escala da produção, que, por sua vez, levaria a um crescimento da produtividade do trabalho mais lento do que aquele observado nos países capitalistas desenvolvidos. O crescimento mais lento da produtividade impossibilitaria que estes capitais empregados na indústria e que produzem em escala reduzida pudessem obter a taxa geral de lucros se não houvesse algumas formas de compensação (CARRERA, 2006). Essas formas de compensação seriam principalmente três: a) remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor (um tanto similar à noção de superexploração, de Marini); b) transferências internas vindas de capitais nacionais cuja acumulação é determinada pela taxa de juros, e não pela taxa de lucros (algo como uma transferência de setores “financeiros” ou de parte das companhias de capital aberto de menor porte para a grande indústria); c) transferências direcionadas à indústria originadas da renda diferencial obtida pela produção agrária (principalmente), mas também de hidrocarbonetos e da mineração. Esta última origem seria a mais importante forma de compensação pela lentidão da evolução da indústria e estaria na base da particularidade do processo de acumulação de capital argentino (e de outros países da América Latina) (CARRERA, 2006).

Ao aprofundar a análise das transferências de renda fundiária para a indústria, Carrera aponta os seguintes mecanismos através dos quais esta poderia ocorrer: a) apropriação via Estado, com impostos e preços controlados e depois transferência via subsídios para a indústria, compras estatais etc.; b) déficit fiscal coberto por emissão de moeda inflacionária, que levaria a uma taxa de juros real negativa; c) sobrevaloração do câmbio, o que permitiria uma retenção de parte da renda fundiária, que


  1. Uma leitura crítica desse aspecto da obra de Laclau pode ser vista em Carrera (2017).

  2. Uma revisão mais ampla dos debates sobre a relação entre renda da terra e dependência pode ser vista em De Paula (2020).

    poderia ser apropriada pelos industriais ao comprar equipamentos mais baratos em moeda estrangeira, além de permitir uma sobrevaloração dos lucros ao serem convertidos e emitidos em moeda estrangeira. Este terceiro, segundo Carrera, seria o método preferido na Argentina (CARRERA, 2006).

    Desta forma, a principal conclusão de Carrera é que o ponto de partida de uma teorização sobre a “forma particular do processo de acumulação capitalista” nos países latino-americanos, ou do desenvolvimento da “lei do valor” na particularidade das esferas nacionais latino-americanas, reside no papel desempenhado pela apropriação e redistribuição da renda da terra. Essa conclusão justificaria todo o foco da teorização sobre a particularidade do desenvolvimento dos países subdesenvolvidos nessa forma particular de apropriação do mais-valor dentro destas economias nacionais onde “a acumulação se baseia na produção de mercadorias portadoras de renda fundiária”, em contraposição à “forma nacional clássica” de acumulação observada nos países industriais desenvolvidos (CARRERA, 2008, p. 3-4, 2017, p. 37). A própria unidade da economia mundial (cujo desenvolvimento seria global no conteúdo, e nacional na forma) se basearia fundamentalmente na diferenciação entre esses dois tipos de processos de acumulação (CARRERA, 2008).

    Carrera vê o elo constitutivo fundamental da unidade entre “países onde a acumulação se baseia na produção da generalidade de mercadorias” (“forma nacional clássica”, ou países industriais) e os “países onde a acumulação se baseia na produção de mercadorias portadoras de renda fundiária” (subdesenvolvidos) justamente no fluxo de mais-valor a ser apropriado como renda, redistribuído ou não para a indústria dos países subdesenvolvidos, um fluxo no sentido centro-periferia (ou nos termos de Carrera, dos países industriais para os países subdesenvolvidos). Esse fluxo, e sua redistribuição para a indústria dos países subdesenvolvidos, contribuiria para a perenização da baixa produtividade e do caráter parasitário desses capitais. Com isso, para Carrera, ficariam rejeitadas não só toda a abordagem da teoria marxista da dependência (TMD) e as teorias do intercâmbio desigual (CARRERA, 2008), mas também das teorias do imperialismo, como na formulação clássica de Lênin, todas estas vistas pelo autor como formas de consciência pequeno-burguesas que substituiriam determinação material do processo de desenvolvimento capitalista pelas aparências de relações políticas e militares diretas estabelecidas entre processos nacionais de acumulação de capital (CARRERA, 2008).

    Em outro trabalho (CARRERA, 2017), o autor desenvolve de forma minuciosa a análise das condições e determinantes para a apropriação da renda da terra, suas origens, bem como as condições de sua redistribuição. Seu principal objetivo é desenvolver certas determinações gerais sobre a relação entre renda da terra e subde-

    senvolvimento, determinações estruturais que não dependeriam das flutuações mo-mentâneas dos preços de mercado das mercadorias “portadoras de renda”. Segundo o autor, o mais-valor apropriado como renda teria origem nos países industriais (nos quais prevaleceria a “forma nacional clássica de acumulação”), e sua redistribuição e apropriação pelos capitais latino-americanos (em especial pela indústria) seria o aspecto fundamental da condição à qual corresponde sua forma peculiar de acumulação.


    1. Considerações críticas sobre a abordagem de Carrera sobre o papel da renda da terra na periferia capitalista


      Como visto acima, a abordagem de Carrera toma como ponto de partida para a análise da especificidade dos países periféricos a questão da renda da terra. Por um lado, é fato que os setores produtores de alimentos e matérias-primas são, em geral, setores geradores de renda da terra4. Isso parece ter alguma relação mais estrutural com as tendencialidades subjacentes ao processo de dependência (enquanto aspecto do processo de formação da economia mundial capitalista). De outro modo, seria uma grande coincidência que a generalização de uma periferia dependente de países primário-exportadores seja acompanhada pela virtual inexistência de uma periferia dependente constituída por países exportadores de mercadorias industriais ou, ao menos, dotados de uma pauta de exportações diversificada.

      Levando isso em consideração, parece adequado pensar a relação entre renda da terra e dependência enquanto uma relação que envolve certas tendencialidades estruturais do modo de produção capitalista quando observado desde o ponto de vista da economia mundial. A principal contribuição de um tipo de formulação como a de Carrera (mas presente em toda uma série de autores latino-americanos e que, como visto, remonta a debates soviéticos dos anos 1920), que confere à questão da renda da terra uma posição estrutural no processo de dependência, talvez seja justamente esta: a de ressaltar a existência de uma tendência de crescimento dos SGR (Setores Geradores de Renda) na periferia dependente, e de que estes setores tenham uma importância relativa nos países dependentes mais significativa do que a importância que observam nas economias industriais.


  3. Marini (1973b), ao considerar o processo de constituição da dependência latino-americana, afirma que a oferta de matérias primas e alimentos da AL não apenas permitiu a constituição da grande indústria europeia, mas também foi condição para o deslocamento do eixo de acumulação da produção de mais-valor absoluto para o mais-valor relativo, centrado no aumento da capacidade produtiva. Por outro lado, do ponto de vista das economias latino-americanas, esse mesmo movimento vai resultar num tipo de acumulação marcado pela superexploração do trabalho e da expansão horizontal, quantitativa, com baixo crescimento da produtividade do trabalho.

    Entretanto, mesmo admitindo a possibilidade de que a expansão mais significativa dos SGR nas economias dependentes tenha um caráter tendencial dentro do processo de formação do mercado mundial capitalista, isso não significa que esse caráter seja aquele proposto por visões que lhe atribuem o caráter de ponto de partida da análise da periferia dependente, ou de cerne de sua especificidade. Uma coisa é que exista uma determinação tendencial oferecida pela apropriação da renda da terra para o movimento de acumulação na periferia dependente, outra coisa é que essa determinação seja a única (ou a principal determinação) a lhe conferir seu caráter específico, como ocorre na visão de Carrera.

    No que diz respeito à relação que o tipo de visão desenvolvido por Carrera estabelece entre a questão da renda da terra e a dependência, percebemos que seu objetivo é estabelecer uma teorização que se situa num nível de abstração alto, que diz respeito à própria legalidade do modo de produção capitalista em sua unidade mundial (mercado mundial), considerada sua expansão e a constituição de distintas formas de integração à economia mundial, ou distintos padrões de acumulação. Padrões determinados, de qualquer forma, pelas relações mútuas estabelecidas entre os países industriais e uma periferia produtora de “mercadorias portadoras de renda”. Entretanto, afora os aspectos específicos da leitura de Carrera da teoria da renda da terra (que analisaremos adiante), a adoção da renda apropriada nos países periféricos (ou “ricos em recursos”) como ponto de partida para a teorização sobre esse tipo de relação na economia mundial já expressa, a nosso ver, um problema metodológico fundamental: nesse tipo de análise, pressupõe-se que um aspecto da apropriação de mais-valor seja fundamental para determinar a peculiaridade da forma de acumulação nas economias periféricas sem antes ter compreendido como ocorre o movimento da sua produção em escala mundial, ou seja, considerando a existência de distintos países, com distintas condições de suas economias nacionais, num mercado mundial (aspectos abstraídos no nível de abstração d’O Capital, de Marx, ainda que pressupostos). Uma vez tendo teorizado sobre essa forma peculiar de apropriação, a análise de Carrera busca então explicar as particularidades da produção e da acumulação nesses países “ricos em recursos”, e sua especificidade frente ao “caso nacional clássico” de acumulação. De qualquer forma, a análise de Carrera não busca, em momento algum, demonstrar, a partir da teoria marxista do valor-trabalho e do movimento do valor-capital, a peculiaridade das economias nacionais não-clássicas, ou seja, demonstrar a validade de seu ponto de partida. Carrera adota a renda da terra como ponto de partida da análise da peculiaridade em questão e afirma em seguida, peremptoriamente, ser essa a “manifestação global da lei do valor”. Desta forma, a análise pressupõe tudo aquilo que deveria demonstrar.

    Em termos mais específicos, Carrera entende que a renda da terra, uma vez tendo origem fora dos SGR, teria origem também fora dos países periféricos. Mas como afirmar isso sem uma teorização sobre a operação do valor (da “lei do valor”) em escala internacional, que considere níveis de abstração mais concretos, como a existência de distintos países, o papel das distintas moedas na economia mundial, da exportação de capitais etc. (como se busca realizar no âmbito da TMD)? Antes de afirmar a renda da terra enquanto aspecto fundamental da especificidade periférica, seria necessário este desenvolvimento, no qual esse papel da renda na diferenciação das formas de acumulação seja resultado e não ponto de partida. Esse caminho é o único que expressaria uma visão do capitalismo enquanto um sistema mundial. De outra forma, estar-se-ia partindo de um pressuposto (explícito ou implícito) da existência de distintos “capitalismos nacionais”, ou formações sociais nacionais particulares cujo movimento se basearia em legalidades próprias.

    Além disso, essa adoção discricionária do papel da renda da terra como ponto de partida para a especificidade dos países dependentes termina por naturalizar o fato de que certos recursos naturais tenham se tornado valiosos do ponto de vista da economia mundial capitalista, passando a ideia de que certas mercadorias, como o açúcar, o café, a soja, a carne bovina etc., são “naturalmente” valiosas, e, por isso, sua abundância (ou a abundância de condições para sua produção) na periferia teria determinado a especificidade do tipo de desenvolvimento capitalista ali ocorrido (daí falar-se em “países ricos em recursos”). Quase todas as regiões habitáveis do planeta apresentam condições próprias para a produção de algum tipo de mercadoria primária, mas isso não determinou que todas essas regiões tenham necessariamente se especializado na produção desse tipo de mercadoria, integrando-se assim à economia mundial na condição de fornecedoras de mercadorias primárias. Uma análise a partir da teoria social marxista deve, ao contrário, buscar compreender o processo social pelo qual se tornou necessário à periferia capitalista especializar-se na produção desse tipo de mercadoria, como foi o caso da América Latina.

    Ademais, se falamos da categoria renda da terra conforme descrita por Marx, parece também relevante levar em conta que, do ponto de vista do seu método de exposição, Marx colocou a questão da renda da terra numa posição posterior (do ponto de vista do grau de abstração – considerado mais concreto) dentro da análise do valor-capital, em relação a questões da produção do valor, da formação do valor social, da formação da taxa geral de lucros, dos preços de produção, do valor de mercado, e mesmo de formas de redistribuição social do valor ou de sua circulação, como as questões do lucro comercial e dos juros. Se for seguido o método de exposição de Marx para a reconstrução teórica do funcionamento da economia mundial

    e da formação do mercado mundial capitalista, deve ser também refeito esse trajeto no qual a questão da renda da terra, cuja principal modificação posta ao movimento do valor-capital reside no aspecto de sua apropriação (embora exista também alguma relevância para a produção do valor). Seu desenvolvimento teórico deve ser considerado após as modificações postas pela existência de uma economia mundial (existência de países, moedas distintas, taxas de lucros e de mais-valor nacionais distintas etc.) tenham sido devidamente consideradas.

    Assim, uma primeira conclusão que podemos apontar aqui é que a aceitação de que a expansão mais significativa da renda da terra tem um caráter tendencial dentro do processo de formação da periferia dependente dentro da economia mundial capitalista, não implica na rejeição das formulações da teoria marxista da dependência. É possível compreender essa relação entre renda da terra e dependência, e mesmo conferir-lhe um caráter mais estrutural, mantendo ao mesmo tempo a análise metodológica proposta por Marini, na Dialética da Dependência, e pelos demais autores da TMD, ou seja, é possível pensar as determinações postas pela expansão mais significativa dos SGR na periferia dependente enquanto um nível de abstração adicional da representação teórica da dependência, ou, em outros termos, da descrição do processo no qual o movimento do valor-capital dá origem a um mercado mundial capitalista com todas as suas contradições.

    Aqui alcançamos então o problema que será objeto de análise no restante deste trabalho: é possível, dentro de um quadro de reconstrução teórica do mercado mundial capitalista a partir do movimento do valor-capital, inferir quaisquer determinações tendenciais da importância relativa mais alta da apropriação de renda da terra na periferia dependente para o processo de acumulação capitalista (e para o próprio movimento de constituição desse mercado mundial)? Se existe(m), que tendência(s) seria(m) essa(s)? É possível que sejam aquelas propostas por Carrera?

    Para começar a responder essas perguntas, o seguinte procedimento será adotado: primeiro, os aspectos fundamentais da análise de Carrera (2017) sobre a origem do mais-valor apropriado como renda da terra serão objeto de uma análise crítica. O objetivo aqui será determinar em que medida essa análise pode ser considerada adequada, do ponto de vista da teoria social marxiana, para apontar a origem do mais-

    -valor apropriado como renda nos países da periferia dependente, além de analisar a possibilidade de que a visão de Carrera seja integrada de alguma forma ao quadro teórico da reconstrução do processo de constituição do mercado mundial capitalista.

      1. – A questão da origem do mais-valor apropriado como renda da terra: análise crítica

        Como visto anteriormente, grande parte da discussão sobre a relação entre a apropriação de formas de rendimento originadas ou relacionadas com a renda da terra – seja a renda em si ou formas transmutadas dela originadas – e a condição da periferia dependente dentro da economia mundial, tem como ponto crucial a questão da origem do mais-valor que permite tais rendimentos. Portanto, antes de inferir quaisquer determinações relacionadas ao papel da renda da terra nos países dependentes, precisaremos revisitar esta questão.

        Os rendimentos apropriados na forma de renda da terra, seguindo a descrição feita por Marx n’O Capital, podem ser divididos em quatro modalidades, cada uma com características específicas em relação ao mais-valor que os origina:

        1. Renda absoluta (forma fundamental derivada da propriedade da terra, relativa aos capitais que operam nas piores condições, menos produtivas, mas que obtêm ainda a taxa média de lucros);

        2. Renda diferencial (relativa a diferenciais de produtividade/fertilidade) – apenas essas duas primeiras modalidades compõem o que Marx considera como renda da terra “strictu sensu”;

        3. Rendas decorrentes de preços monopolistas, ou rendas de monopólio (no sentido smithiano – usado na economia), ou seja, a renda obtida por capitais que conseguem vender as mercadorias que produzem por preços acima do seu valor;

        4. Rendas decorrentes de situações perenes de elevação da demanda acima da oferta, que forçam os preços de produção de mercado a níveis mais elevados do que o valor por um tempo suficiente para que estes sejam fixados na forma de renda (renda de monopólio especial5);


        Na formulação de Carrera (2017) toda a análise das determinações oferecidas pelo papel da renda da terra para os países dependentes (de desenvolvimento “não-clássi-co”) depende das seguintes proposições: 1) que a renda absoluta não tem relevância na agricultura capitalista contemporânea, dado que a composição do capital na agricultura teria ultrapassado a composição do capital social médio e que, no lugar da renda absoluta, teria lugar uma forma de renda monopolista resultante da elevação dos preços de produção acima dos valores (que chamamos aqui de renda de mono-



  4. Essa modalidade é semelhante àquelas descritas por Ball (1986) como “renda de monopólio II” e por Carrera (2017) como “renda de monopólio simples”. Uma análise mais aprofundada dessa modalidade de renda pode ser vista em De Paula (2020).

    pólio especial); 2) que a maior relevância do ponto de vista quantitativo, entretanto, estaria na renda diferencial, e que a renda diferencial teria origem externa aos SGR. Esses dois pontos constituiriam uma situação na qual a apropriação de renda nos países da periferia dependente geraria um recebimento de um influxo de mais-valor originado dos países industriais, e que esse processo invalidaria as proposições da TMD. Vejamos com atenção cada uma dessas proposições.

    Em toda a literatura sobre a temática da renda da terra (no quadro da teoria social marxista), a modalidade 1 (renda absoluta) é vista como originada do mais-valor produzido internamente no SGR em questão (pela força de trabalho empregada pelos capitais que operam no próprio setor). Essa modalidade constitui um “excedente do valor sobre o preço de produção”, em outras palavras, um excedente do mais-valor gerado internamente sobre os lucros agrários (MARX, 1983, p. 300)6. Não importa, para tanto, nem mesmo que ocorram eventuais altas dos preços acima dos preços de produção, dado que, enquanto os preços reguladores não superam o valor, a renda absoluta permanece gerada internamente (e no caso de superarem o valor, o tipo de sobrelucro teria sua natureza modificada).

    No outro extremo, fica a renda decorrente de preços de monopólio, ou renda de monopólio (modalidade 3), ou seja, a renda obtida em decorrência de uma elevação dos preços acima do valor (valor de mercado). No setor agrário, isso só pode ocorrer quando existe forte preponderância da demanda sobre a oferta, quando um controle monopolista da produção permite aos capitais que produzem determinada mercadoria exercer um controle intencional das quantidades totais produzidas de forma a forçar a oferta para níveis abaixo da demanda, forçando assim também uma alta dos preços; ou então no caso especial no qual o sobrelucro oriundo de preços monopolistas é fixado enquanto renda da terra, fazendo com que os preços de produção de mercado superem o valor de mercado em situações nas quais a disponibilidade de terras que permitam a produção de determinada mercadoria seja muito reduzida e a demanda por esse tipo de mercadoria não se contraia com a elevação dos preços.

    Para Marx estas duas últimas formas de renda têm uma natureza distinta das duas primeiras modalidades por decorrerem de posições de “força” dos vendedores em relação aos compradores no mercado e, portanto, seriam objeto de estudo de uma


  5. Recapitulando: o valor das mercadorias agrárias (valor de mercado – Vm) pode ser expresso pela fórmula Vm = cr + vr + m’vr, onde cr e vr são os gastos com capital constante e capital variável dos capitais reguladores de cada setor, e m’ é a taxa de mais-valia (nacional). Esta categoria expressa a produção, ou seja, quanto valor foi produzido com o emprego de determinado capital ou em determinado setor. Os preços de mercado nos SGR, por outro lado, oscilam em torno dos chamados preços de produção de mercado (PPm), que podem ser descritos pela fórmula: PPm = cr + vr + l’(cr+vr) + rA, onde, além das variáveis já mencionadas, l’ representa a taxa geral de lucros, e rA é a renda absoluta. Esta categoria expressa a apropriação nos SGR. Uma explicação mais detalhada pode ser vista em De Paula (2020).

    teoria da concorrência, ou seja, das circunstâncias concretas do funcionamento do modo de produção capitalista, e não da análise que busca estabelecer o movimento geral desse modo de produção, ou seja, suas leis internas (MARX, 1983). Em ambos os casos, as rendas de monopólio originam-se de mais-valor produzido externamente ao setor onde este excedente é apropriado7. O mecanismo dessa “transferência” é o seguinte: se essas mercadorias entram no consumo dos trabalhadores, então o gasto a mais que os trabalhadores fazem para adquiri-las reduz sua capacidade de consumo, ou seja, funciona como se reduzisse os salários abaixo do valor da força de trabalho. Essa redução implica uma redução proporcional no consumo das mercadorias produzidas pelos capitais que participam da formação da taxa geral de lucros, o que impacta seu nível desta taxa. Deste modo, os excedentes que tem origem nessas modalidades monopolistas de renda têm sua origem no aprovisionamento (pool) comum da taxa geral de lucros, ou seja, na massa de mais-valor extraído de todos os trabalhadores empregados pelos capitais que participam da formação da taxa geral de lucros. Assim, embora essas modalidades não estejam diretamente limitadas pelo valor das mercadorias, elas ainda são limitadas pelo mais-valor global extraído pelo capital do trabalho, de modo que segue existindo (não é abolida) a regulação dos preços das mercadorias pelo valor (MARX, 1983).

        1. – Possibilidade da existência da renda absoluta na agricultura moderna versus sua substituição pela renda de monopólio especial

          O tipo de crítica à teoria da renda absoluta feito por Carrera (2017) não questiona que a origem dessa modalidade de renda seja interna aos SGR, mas a própria existência dessa forma de renda na agricultura capitalista contemporânea. Carrera afirma que, ainda que a renda absoluta pudesse ter existido num período inicial da agricultura capitalista (quando a composição do capital agrário era mais baixa), o desenvolvimento técnico da produção agrária teria eliminado as condições para que a composição do capital na agricultura seja inferior à composição social média. Como o capital agrário teria composição acima da média social, então a renda apropriada a partir da produção nos piores terrenos não poderia ser explicada pela renda abso-


  6. Existe uma exceção possível para a origem do mais-valor apropriado enquanto renda de monopólio especial. A origem da renda, nesta modalidade 4, pode ser parcialmente interna ao setor em questão, e apenas parcialmente externa a depender da relação entre os PPm descontados os sobrelucros (preço de produção direto) e o valor de mercado. Se o PP direto for superior ao valor de mercado, então todos os sobrelucros terão origem externa ao setor em questão. Se o PP direto for inferior ao valor de mercado, então uma parcela da renda terá sua origem no próprio mais-valor produzido internamente. Para mais detalhes sobre este ponto, ver De Paula (2020).

    luta, o que leva Carrera (assim como levou em geral os críticos da teoria da renda de Marx8) a uma reafirmação da teoria da renda monopolista como forma de explicar a renda paga aos proprietários dos piores terrenos (aqueles reguladores dos preços). Esse tipo de crítica aparece já na obra de Kautsky em 1905 (KAUTSKY, 1972), mas na obra de Carrera assume a função de justificar sua visão, segundo a qual a renda da terra teria origem externa aos SGR, sendo originada do mais-valor produzido nos países industriais.

    Para sustentar sua posição, Carrera tenta mostrar através de dados estatísticos que a renda absoluta seria inviável no capitalismo contemporâneo porque a composição do capital na agricultura seria mais alta do que a composição do capital na indústria e, logo, deveria ser mais alta do que composição do capital social médio. Carrera analisa dados dos EUA e da Argentina, além de dois casos de estudo adicionais, sobre a produção de soja nos EUA e sobre o mercado mundial de petróleo. Em ambos os casos, os dados apresentados por Carrera ou não confirmam suas proposições, ou são mal interpretados pelo autor9. Essa tentativa de mostrar que a composição do capital na agricultura seria mais alta do que a composição do capital na indústria, entretanto, é completamente irrelevante para determinar a possibilidade da existência da renda absolta. A comparação relevante, neste caso, seria entre a composição dos capitais reguladores dos setores geradores de renda versus o capital social médio, comparação que sequer é analisada pelo autor. Deste modo, sua posição sobre a inviabilidade da existência da renda absoluta no capitalismo contemporâneo, em linhas gerais, não parece se sustentar.

    De todo modo, existem aqui dois aspectos dignos de nota: os casos da renda da terra de certas mercadorias especiais, que exigem condições naturais raras para sua produção ou extração (como os vinhos de certas uvas que só crescem em regiões específicas ou mesmo, talvez, do petróleo), para as quais as condições de restrição de oferta e rigidez da demanda podem permitir o surgimento de uma renda de monopólio especial; e a questão da localização internacional dos capitais reguladores de cada setor.


  7. Uma das principais linhas de ataque à teoria da renda da terra elaborada por Marx apoia-se justamente neste aspecto da composição do capital agrário, identificado como o mais frágil pelos críticos. Em geral essa crítica se baseia numa confusão (que Carrera também comete): os críticos de Marx entendem como uma conclusão da sua teoria da renda absoluta que todo capital agrário precisaria ter sua composição (relação entre capital constante e capital variável – c/v) mais baixa do que a composição do capital social médio para que essa modalidade possa existir. Na verdade, a conclusão da teoria da renda absoluta de Marx é que os capitais reguladores dos preços (aqueles que operam nas piores condições e que pagam a renda absoluta) precisam ter sua composição abaixo da composição média. Para uma discussão aprofundada desse ponto e uma demonstração da validade da conclusão da teoria da renda absoluta de Marx, ver De Paula (2020).

  8. Uma discussão aprofundada das dificuldades de Carrera nesse tema pode ser vista em De Paula (2020).

    No primeiro aspecto, a possibilidade de surgimento de uma renda de monopólio especial refere-se a situações excepcionais em que um predomínio de longa duração da demanda sobre a oferta permite a fixação dos sobrelucros adicionais nos contratos de arrendamento de terras, de modo a fazer com que os preços de produção se ele-vem acima dos valores das mercadorias. Carrera, entretanto, comete o erro de gene-ralizar essa situação para toda a agricultura, considerando que toda a renda agrária nos piores terrenos teria origem monopolista – mesmo sendo a agricultura um dos setores menos monopolizados de toda a economia capitalista. Uma demonstração de que a agricultura apresenta preços monopolistas dependeria de uma comparação entre os preços de produção agrários e o valor das mercadorias agrárias, algo que não é apresentado em nenhum lugar da obra de Carrera.

    Em relação ao segundo aspecto, é necessário fazer uma mediação: embora Carrera não pareça ter razão quanto à impossibilidade da existência em geral da renda absoluta, se analisarmos a constituição dos preços no mercado mundial percebere-mos que apenas nos países onde se localizam os capitais reguladores de cada setor existirão as condições para o surgimento da renda absoluta. Nos países onde a produtividade agrária é de nível mais alto, a maior parte da renda da terra terá o caráter de renda diferencial.

    Em suma, Carrera parece estar errado quanto à impossibilidade de existência da renda absoluta no capitalismo contemporâneo, mas a relevância dessa questão para a periferia capitalista pode não ser tão significativa, dado que essa modalidade de renda no mercado mundial é mais presente nos países onde se encontram os capitais reguladores de cada setor, que em geral são aqueles onde se localizam os principais mercados consumidores. De todo modo, o fundamental aqui é que Carrera não é capaz de demonstrar que os preços na agricultura são, em geral, preços de monopólio. Apenas essa demonstração permitiria ao autor chegar à conclusão de que nos SGR predomina a forma de renda de monopólio especial, de modo que a origem dessa renda precisaria ser externa ao setor agrário.


        1. – A questão da origem do mais-valor apropriado como renda diferencial

          Resta então ainda por examinar a questão da origem da renda diferencial, que é mais polêmica e encerra maior complexidade. Marx não analisou de forma direta em nenhum de seus trabalhos qual seria a origem dessa forma de sobrelucros. Entretanto, a partir da leitura da teoria da renda marxiana, entendemos que existem duas possibilidades para a explicação da origem desses sobrelucros: a primeira, que chamamos de “qualitativa” (que, por sua vez, divide-se em duas variantes), e a segunda, “quantitativa”.

          A primeira variante da abordagem qualitativa seria a seguinte: parte-se da análise da constituição da renda diferencial no mesmo quadro teórico dos sobrelucros (ou superlucros) originários de diferenças de produtividade em geral (como nos setores não geradores de renda – os “NGR”), ou seja, das diferenças entre os preços de produção individuais do capital em questão e aqueles que regulam os preços de mercado (correspondentes aos capitais de produtividade média nos ramos), similares aos sobrelucros que correspondem à chamada transferência de valor intrasetorial (MARX, 1983). Nesta variante, da mesma forma que ocorre na indústria (na formulação mais geral da teoria marxiana do valor e dos preços), todos esses sobrelucros correspon-deriam a parcelas do mais-valor gerado internamente no setor em questão, produzidos pelos capitais menos produtivos e apropriados pelos mais produtivos. Em outras palavras: a renda diferencial teria origem no mais-valor produzido no próprio setor onde ela é apropriada.

          O problema dessa visão é que existe uma diferença fundamental entre as transferências intrasetoriais da indústria e a renda diferencial nos SGR: no caso primeiro caso, os preços são determinados pela média dos valores individuais, o que permite a possibilidade de que os desvios em relação à média se compensem. No segundo caso, como os preços são determinados pelos capitais que operam nas piores condições, não é possível que os desvios da média se compensem. Em termos mais simples: todas as distintas produtividades do trabalho já estão acima daquela que estabelece os preços, de modo que não há como alguns ganharem para outros perderem; é necessário que quase todos ganhem. Desta forma, essa primeira variante da chamada qualitativa depende de uma possibilidade de compensação de desvios que não pode ocorrer nas condições dos SGR.

          Um segundo tipo de abordagem qualitativa (segunda variante) é o que aparece na obra de Carrera (2017). Carrera busca diferenciar a determinação quantitativa do valor (do ponto de vista da produção) nos NGR daquela existente nos setores onde convivem distintas produtividades do trabalho postas por condicionamentos naturais não-controláveis (os SGR). Segundo Carrera, no primeiro caso (NGR), a determinação quantitativa do valor pelo trabalho socialmente necessário se dá pela produtividade normal do trabalho empregado em sua produção, e essa normalidade tem sua expressão mais simples na média dos valores individuais (CARRERA, 2017). Entretanto, no caso dos SGR, o que passa a existir não é mais um valor social determinado pela média de produtividade, mas “diversos valores sociais baseados em distintas produtividades”, já que não haveria mais “uma normalidade, mas uma multiplicidade de normalidades” (CARRERA, 2017, p. 89-90, 104). Dada a complexidade da determinação do valor de mercado nos SGR, para Carrera não existiria

          “um valor social”, mas múltiplos “valores sociais” na agricultura (e nos SGR em geral). Com isso, Carrera termina por eliminar a possibilidade do estabelecimento de uma determinação quantitativa do valor-trabalho correspondente ao produto obtido pelo trabalho empregado pelo capital agrário. Ou seja, Carrera termina por rejeitar a determinação dos preços agrários pelo valor-trabalho no sentido de uma relação quantitativa (e quantificável), ainda que através de mediações diversas.

          Isso o levará a uma posição peculiar sobre a origem dos sobrelucros apropriados enquanto renda diferencial. Carrera aponta que dada a “multiplicidade de valores so-ciais” existentes nos SGR, o valor de mercado (valor comercial) maior na agricultura (determinado nas piores condições) deveria necessariamente ter sua origem externa ao setor gerador de renda:

          El valor comercial de las mercancías agrarias no se encuentra regido de manera general por las condiciones medias de producción, sino por las condiciones correspondientes al trabajo agrario menos productivo que es necesario para poner en acción para satisfacer la demanda social. Luego, este mayor valor comercial es pagado por los capitales que compran las mercancías agrarias como materias primas para su proprio producto y, en consecuencia, se projecta sobre el precio de costo de éste. (CARRERA, 2017, p. 106).

          Para Carrera, dada a (suposta) indeterminação do valor social agrário, o valor de

          mercado mais alto na agricultura não corresponderia a um mais-valor produzido internamente, mas a uma transferência de mais-valor originada fora da agricultura (dos setores que compram os produtos agrários como matérias-primas). Com isso, não apenas ele aceita uma indeterminação do valor social para o setor gerador de renda, como também compreende o valor de mercado como algo que não poderia ser explicado pela teoria do valor-trabalho, mas apenas enquanto uma anomalia.

          De qualquer forma, a conclusão de Carrera aqui carece de fundamento lógico. Ele diz algo assim: como os SGR apresentam uma multiplicidade de normalidades, então não é possível estabelecer o valor social na agricultura. A implicação lógica imediata aqui seria a conclusão de que não é possível estabelecer a origem dos sobrelucros apropriados como renda diferencial. Se a régua está quebrada e não há como conser-tá-la, então não é possível fazer qualquer medição. Carrera, entretanto, tira a conclusão de que os sobrelucros apropriados tem sua origem externa ao setor em questão, recorrendo a um non sequitur, uma conclusão que não seria permitida nem mesmo pela sua própria leitura da determinação do valor social na agricultura.

          Olhando mais atentamente à luz da teoria do valor de Marx, percebemos que Carrera confunde as categorias valor social e valor individual ao apontar uma “mul-tiplicidade de valores sociais” nos setores geradores de renda. Na realidade, o que existe é uma multiplicidade de valores individuais, mas apenas um deles (aquele correspondente aos capitais reguladores, que operam nos piores terrenos) é relevante

          para o estabelecimento do valor de mercado. Em segundo lugar, temos a diferença categorial entre o valor de mercado e o valor social. O valor de mercado é o valor social num nível de abstração mais baixo, que considera a possibilidade de que a determinação quantitativa do valor não se dê apenas pela média dos valores individuais (como é o caso geral), mas também pelas condições extremas (como é o caso dos SGR, onde o valor é determinado pelas piores condições). É, portanto, uma categoria da produção que permite a quantificação da massa de valor-trabalho produzida num setor gerador de renda10. Carrera, entretanto, assim como parte dos autores que compartilham de uma leitura fisiológica11 da teoria do valor-trabalho, não entende o valor de mercado como uma categoria da produção que expressa o valor social num nível de abstração mais concreto, mas enquanto uma categoria da apropriação. Esse erro gera para Carrera um “beco sem saída” teórico: não há em sua leitura nenhuma forma de comparar a produção com a apropriação nos SGR, um problema que poderia ser evitado apenas compreendendo corretamente o valor de mercado como uma categoria da produção.

          Desta forma, entendemos que é possível uma abordagem diferente, que permita aferir a origem do valor apropriado como renda diferencial, que chamaremos aqui de abordagem quantitativa. Nessa abordagem, busca-se relacionar a massa de mais-

          -valor apropriado no SGR com a massa de mais-valor nele produzida, comparando o valor de mercado setorial agregado (Vm) com os preços de produção de mercado setoriais agregados (PPm). Com isso torna-se possível estabelecer se a origem do valor apropriado pode ter sido interna ou não. Esse é o caso, por exemplo, da abordagem proposta por Carcanholo (1982, 1984) e aparece também em De Paula (2020). Aqui, faremos apenas uma ilustração12 teórica do tipo de desenvolvimento que permitiria essa abordagem.

          Imaginemos que certo capital regulador “A” (aquele que opera nas piores condições capazes de obter a taxa geral de lucros e pagar a renda absoluta) que produz uma determinada mercadoria agrária se divida em $ 5000,00 de capital constante e


  9. A visão segundo a qual o valor de mercado das mercadorias agrárias é uma categoria da produção, ou seja, reflete a produção do valor modificada pelo papel da propriedade da terra, pode ser vista na obra de Marx de forma clara: “Para que uma mercadoria seja vendida por seu valor de mercado, isto é, em proporção ao trabalho socialmente necessário nela contido, o quantum global de trabalho social que é empregado na massa global desta espécie de mercadoria tem de corresponder ao quantum da necessidade social dela, isto é, da necessidade social solvente” (MARX, 1983, p. 148). Ver também: Marx (1983, p. 155-156).

  10. Para uma análise crítica da leitura fisiológica da teoria do valor-trabalho, ver De Paula (2021, p. 161-164).

  11. Essa ilustração segue, em linhas gerais, o exemplo mais sucinto que aparece em De Paula (2020, p. 309-310).

    $ 5000,00 de capital variável (composição 50/50), e que a taxa de mais-valia nesse país seja de 100% (ou =1). Nesse caso, o valor das mercadorias produzidas por esse capital seria de $ 15.000,00 (=c+v+m). Supondo, adicionalmente, que a unidade da mercadoria (saca) em questão tenha seu preço de mercado em $ 41 (a saca), que a produtividade em por hectare seja de 310 sacas, e que a taxa de lucros seja de 20%, o preço de produção de mercado (PPm) total do produto obtido para cada 1 hectare corresponde a $ 12.710,00 (considerando também a renda absoluta de $ 710 por hectare). Portanto, mesmo considerando a renda absoluta, ainda subsistiria no caso do exemplo um excedente do valor sobre o preço de produção, no caso = $ 15.000 –

    $ 12.710 = $ 2.290,00 (para cada 1 Ha). O valor unitário da saca seria, portanto, de aproximadamente $ 48,39 (=15000÷310).

    Agora, consideremos adicionalmente que esse setor produziu um total de 2250 unidades de mercadoria (sacas). Se considerarmos o valor de todo o produto do setor tendo por base seu valor de mercado, que é regulado pelo capital A, temos um valor de mercado total de aproximadamente $ 108.877 (=Vi do capital regulador x total do produto = 48,39 x 2.250). Nesse caso, o valor de mercado total do produto seria superior ao seu preço total ($ 104.960,00), de modo que seria possível afirmar que todo o valor apropriado no setor foi criado internamente pelo trabalho nele empregado (havendo inclusive um excedente de $ 3.917 de valor potencialmente produzido, mas não realizado no setor).

    Agora, seguindo a lógica do exemplo acima, observemos o quadro abaixo, no qual cada linha expressa situações nas quais o capital regulador do setor muda (e o exemplo acima está na linha I), mantendo-se o restante do exemplo constante, e façamos novamente a comparação entre Vm e PPm setoriais:


    Quadro 1. Relação entre valor produzido total e preços totais em quatro situa-

    ções distintas


    Valor total do produto do capital regulador =

    Vm = c+v+m

    Produto p/ Hectare

    ( c apit a l reg.)

    Valor de Mercado

    /saca

    Preço de produção de mercado

    ( P P m = c + -

    v+l’(c+v))

    + RA

    PPm unitário

    (PPm / produto) = preço de mercado

    P r o dut o agregado / PPm agregado

    Vm agregado

    I

    5000+5000+

    5000=15k

    310 sacas

    15k / 310

    = $ 48,39

    =10k+2k=12k

    + $ 710 = 12710

    = 1 2 7 1 0

    / 310 = $ 41,00

    =2250 x

    $ 41 = $ 104960

    = 2250 x

    48,39 =

    $108877


    II

    7000+3000+

    3000=13k

    340 sacas

    13k / 340

    = $ 38,24

    =10k+2k=12k

    + $ 710 = 12710

    = 1 2 7 1 0

    / 340 = $ 37,38

    =2280 x $

    37,37 = $

    85226

    = 2280 x

    38,24 =

    $ 87187

    III

    8000+2000+

    2000=12k

    345 sacas

    12k / 345

    = $ 34,78

    =10k+2k=12k

    + $ 710 = 12710

    = 1 2 7 1 0

    / 350 = $ 36,31

    = 2285 x

    34,78 =

    $ 79472

    = 2285 x

    36,31 =

    $ 82968

    IV

    4000+6000+

    6000=16k

    300 sacas

    16k / 300

    = $ 53,34

    =10k+2k=12k

    + $ 710 = 12710

    = 1 2 7 1 0

    / 300 = $ 42,37

    = 2200 x

    42,37 =

    $ 93214

    = 2200 x

    53,34 =

    $117348

    Fonte: Elaboração do autor.

    No Quadro 1, nas quatro situações apresentadas, que diferem entre si pela composição do capital regulador bem como pelo seu produto total por hectare (que é impactado pela alteração do capital regulador), pode ser observado que, em todas, o valor total produzido é maior do que o preço total do produto do setor – o que indica que todo o valor apropriado foi produzido internamente (o que inclui a renda diferencial).

    A única forma de alterar essa situação, mantendo a magnitude dos capitais analisados, seria imaginar uma taxa de lucro mais alta, ou então uma elevação da renda absoluta, situações que correspondem a circunstâncias de aumentos nos preços.

    Façamos então um novo exercício, agora com as seguintes modificações: taxa de lucros de 40% e renda absoluta (aluguel por hectare nos piores terrenos) de $ 1000. Teríamos então:


    Quadro 2. Relação entre valor produzido total e preços totais com l’= 40% e RA

    = $ 1000


    Valor total do produto do capital regulador

    =

    Vm = c+v+m

    Produto p/ H e c -tare

    ( c apit a l

    reg.)

    Valor de Mercado

    /saca

    Preço de produção de mercado (PPm=

    c+v+l’(c+v))

    + RA

    PPm unitário

    (PPm / produto) = pre-

    ço mercado

    Produto agregado

    / PPm agregado

    V m

    agregado

    V

    5000+5000+

    5000=15k

    310 sacas

    15k / 310

    = $ 48,39

    =10k+4k=14k +

    $ 1000 = 15000

    =15000 / 310

    = $ 48,38

    =2250 x

    $ 48,38 =

    $ 108855

    = 2250

    x 48,39

    =

    $ 108877

    VI

    7000+3000+

    3000=13k

    340 sacas

    13k / 340

    = $ 38,24

    =10k+4k=14k +

    $ 1000 = 15000

    =15000 / 340

    = $ 44,11

    =2280 x

    $ 44,11 =

    $ 100570

    = 2280

    x 38,24

    =

    $ 87187

    VII

    8000+2000+

    2000=12k

    345 sacas

    12k / 345

    = $ 34,78

    =10k+4k=14k +

    $ 1000 = 15000

    =15000 / 350

    = $ 42,85

    = 2285 x

    42,85 =

    $ 97912

    = 2285

    x 36,31

    =

    $ 82968

    VIII

    4000+6000+

    6000=16k

    300 sacas

    16k / 300

    = $ 53,34

    =10k+4k=14k +

    $ 1000 = 15000

    =15000 /

    300 = $ 50

    = 2240 x

    50 =

    $ 112000

    = 2240

    x 53,34

    =

    $ 119481

    Fonte: Elaboração do autor.

    No Quadro 2, percebemos que, nos casos V e VIII, o valor total produzido supera o preço do produto total, enquanto nos casos VI e VII ocorre o inverso, e pela primeira vez não existiria valor produzido no setor para cobrir a totalidade da renda diferencial. Desta forma, poder-se-ia concluir que, apenas nos casos VI e VII parte desse valor deveria ter origem no pool comum da formação da taxa geral de lucros (origem externa).

    De todo modo, com os exemplos acima, vemos que ambas as possibilidades existem: tanto o valor total produzido no setor pode ser maior do que o preço do produto total, quanto também pode ocorrer o inverso, e o preço total do produto venha a superar o valor total produzido, de modo que parte da renda diferencial esteja acima do valor (de mercado) produzido no setor. Identificamos também que o último caso pode ocorrer quando a taxa de lucros ou os custos de arrendamento estão muito altos. As chances dos preços superarem os valores totais também são influenciadas pela composição do capital regulador (composições mais baixas favorecem que o valor total seja superior ao preço total, enquanto composições mais altas favorecem o inverso). Com isso, ambas as variantes da abordagem que chamamos aqui de qualitativa, ou seja, a de considerar, por definição, que a renda diferencial é gerada internamente (ou externamente) ao SGR, levam a descrições inadequadas da realidade. No primeiro caso, existiria a possibilidade de que certo quantum de valor seja apropriado sem ter sido produzido13. No segundo caso, torna-se impossível descrever adequadamente situações como as vistas nos casos I-IV, V e VIII, nos quais o valor de mercado agregado do produto supera o seu preço agregado. Na verdade, ao afirmar que toda a


  12. Tratamos aqui da relação entre o valor total produzido e apropriado, e não entre mais-valor total, de um lado, e a soma entre lucros e sobrelucros totais do outro. O segundo tipo de comparação não faria sentido algum no caso da renda diferencial, razão pela qual Marx fala da renda fundiária como um falso valor social, ou seja, um valor que não existiria caso os preços nos SGR fossem regulados da mesma forma que nos NGR. É tratando dessa questão que Carcanholo (1982, 1984) desenvolve a categoria “geração” de mais-valor, que substituiria a noção de produção no que diz respeito à renda diferencial (CARCANHOLO, 1984).

    renda diferencial é produzida externamente ao setor, não se descreve adequadamente nem os casos VI e VII, já que neles a diferença entre o valor total e os preços totais será certamente muito inferior à renda diferencial total.

    Desta forma, a abordagem quantitativa parece ser a mais adequada para estabelecer a origem do mais-valor apropriado como renda diferencial. Assim, entende-se a origem desse mais-valor de acordo com a sua situação concreta: se o valor de mercado total das mercadorias produzidas no setor for superior ao seu preço de mercado total, então toda a renda diferencial terá sido produzida internamente (como em todos os casos analisados acima, exceto os casos VI e VII). Se o preço total superar o valor de mercado total, então ao menos parte da renda diferencial terá sido produzida fora do setor (casos VI e VII). A hipótese de que toda a renda diferencial seja produzida externamente ao setor só poderá ocorrer quando o excedente do valor de mercado sobre o preço de produção de mercado for igual a zero, ou seja, quando preço de mercado = Vm = PPm (lembrando que o PPm aqui inclui a renda absoluta).


    1. Renda da terra e dependência: elementos para uma síntese

      Recapitulando a análise crítica da seção anterior, temos o seguinte:

      1. Não procede o argumento de Carrera segundo o qual a renda absoluta, que tem origem interna nos SGR, não teria existência contemporânea já que os capitais reguladores dos preços agrários podem ter sua composição abaixo da média social (dos capitais que participam da formação da taxa geral de lucros), e além disso parecem estar ausentes, na maior parte dos setores agrários, as condições para o estabelecimento de uma renda monopolista (dada a inexistência de monopólios e das condições para o surgimento da renda de monopólio especial). Ainda que seja possível que a relevância da renda absoluta se restrinja aos países que, em cada setor, abrigam os capitais reguladores setoriais dentro do mercado mundial (que tendem a ser aqueles onde estão os maiores mercados consumidores), isso não significa que a renda agrária nos países periféricos tenha qualquer caráter monopolista;

      2. Também não procede a análise deste autor segundo a qual a renda diferencial teria origem necessariamente externa aos setores agrários. Demonstrou-se que é possível que essa origem seja interna aos SGR, uma vez que os preços do produto agregado de um setor podem ser inferiores ao valor total desse mesmo produto agregado.

      Com isso, ambas as proposições que sustentam a análise estabelecida por Carrera para a relação entre a renda da terra e a especificidade do desenvolvimento capitalista na periferia dependente não se sustentam. Se não é possível afirmar que a renda

      absoluta deu lugar a uma forma de renda monopolista nas condições da agricultura moderna, nem tampouco que a origem da renda diferencial é necessariamente externa ao setor agrário, então a renda da terra pode ter sua origem no mais-valor produzido nos próprios SGR, de modo que o tipo de formulação que centra a especificidade dos países dependentes (caracterizados como “ricos em recursos”) nas decorrências da apropriação e redistribuição de uma renda fundiária com origem no mais-valor produzido nos países industriais, não apresenta fundamentação sólida na teoria marxista da renda.

      A inexistência de uma origem externa necessária da renda da terra tem como implicação mais imediata a impossibilidade de que a renda da terra seja considerada o ponto de partida da análise da especificidade da periferia capitalista, dado que este possível influxo de mais-valor é apenas uma possibilidade eventual, e não uma condição estrutural. Apenas em situações particulares, quando os preços das mercadorias agrárias (ou dos SGR em geral) estão altos de modo que os lucros totais (lucro mais renda) obtidos com sua venda superem o valor produzido internamente nos SGR, pode ocorrer algum tipo de transferência de mais-valor no sentido centro-perife-ria através do comércio dessas mercadorias (mesmo assim, isso seria apenas uma possibilidade entre diversas outras). Portanto, a existência de uma direcionalidade centro-periferia do valor apropriado como renda da terra é apenas eventual, possível, mas sequer algo que pode ser visto como comum, não podendo ser considerada como uma tendência ou algo estrutural. Com isso, além do argumento metodológico apresentado acima (seção 3), temos aqui um argumento teórico segundo o qual a adoção dessa análise da renda da terra como ponto de partida da especificidade da periferia capitalista demonstra-se inadequada.

      Mas a rejeição da renda da terra como ponto de partida da análise da especificidade da periferia dependente, a nosso ver, não implica necessariamente a rejeição da possibilidade de que a apropriação da renda da terra, ou mais precisamente uma tendência de que esta tenha uma maior importância relativa nos países periféricos (o que chamaremos aqui de preferência pela renda), ofereça uma determinação tendencial para a constituição da condição da dependência nos países da periferia capitalista. Em outras palavras: é possível que exista uma relação estrutural entre renda da terra e dependência, mesmo que esta não seja a mesma relação proposta por Carrera. Outra possibilidade é que uma preferência dos capitais que operam na periferia dependente pelos SGR surja, ao lado da superexploração do trabalho, como uma segunda forma através da qual os capitais que operam nas regiões dependentes poderiam compensar (ou mitigar) o movimento de transferência de mais-valor no sentido das

      economias centrais.

      Essa possibilidade de que uma preferência pela renda surja como forma de compensar as transferências de mais-valor na periferia dependente poderia ser descrita, em linhas gerais, da seguinte forma:

      1. Conforme apontado por Marx, os setores geradores de renda (SGR) não entram no processo de formação da taxa geral de lucros. Isso ocorre porque, ao contrário dos demais setores, nos SGR os sobrelucros tendem a ser apropriados na forma de renda (pelos proprietários de terra ou não, mas enquanto renda), e, assim, a redução desses sobrelucros à lucratividade média não ocorre em decorrência do impulso dos capitais em direção ao maior lucro – como ocorre nos setores industriais em geral (NGR) e que seria necessário para que ocorresse a participação dos SGR na formação da taxa média de lucros;

      2. Uma vez que a redução dos sobrelucros à taxa geral nos SGR se dá pela sua apropriação na forma de renda e estes não entram no pool comum de formação da taxa geral de lucros, então, em geral, esses sobrelucros não podem ser transferidos para capitais de composição orgânica mais alta, como ocorre no caso da transferência intersetorial de mais-valor dentro do processo de formação da taxa geral de lucros. Além disso, o próprio mecanismo da renda diferencial (descrito acima) impede que capitais que operam abaixo da produtividade média transfiram valor para os capitais que operam acima da produtividade média, como ocorre nos NGR (transferência intra-setorial de valor). Em ambos os casos, a forma de apropriação de renda induz a uma retenção do mais-valor pelos capitais que os produziram (ou ao menos impede sua transferência para fora do setor), uma espécie de “defesa” contra as duas formas de transferência de valor (intersetorial e intrassetorial) que ocorrem nos NGR;

      3. Considerando agora a existência de fronteiras nacionais dentro do mercado mundial, temos como decorrência que a possibilidade de retenção do mais-valor pelos capitais ou setores onde este foi produzido descrita no ponto anterior, ou seja, o fato de que os sobrelucros apropriados como renda não podem ser transferidos para os capitais de maior composição (intersetorial) ou mais produtividade (intras-setorial) ganha novos contornos. No caso dos países dependentes, esses sobrelucros, ao serem apropriados como renda, ao mesmo tempo deixam de ser transferidos ao exterior (países industriais), onde em geral se localizam os capitais de composição e produtividade mais alta;

      4. Além disso, existe também a possibilidade de que uma parcela da renda da terra não seja apropriada pelos proprietários de terra, mas sim pelos capitalistas dos SGR (o que ocorre sempre que o preço pago pelos arrendamentos é inferior à massa de sobrelucros que excedem a taxa média de lucros), ou mesmo por capitalistas locais que utilizem as mercadorias dos SGR como insumos (o que ocorre sempre que estes

        conseguem comprar esses insumos por preços inferiores aos do mercado mundial). Com isso, o direcionamento da renda para esses setores permitiria aos capitalistas a oportunidade de obtenção de sobrelucros potenciais inexistentes nos demais setores capitalistas (aqui temos uma diferença fundamental com a visão de Carrera: para ele os capitalistas que utilizam as mercadorias do SGR como insumo pagam mais caro e são prejudicados pelos preços monopolistas agrários – aqui, ao contrário, temos a possibilidade de que esses setores da indústria, ao apropriar-se de uma parcela da renda da terra, tenham uma vantagem competitiva – o que parece descrever melhor a realidade latino-americana);

      5. Desta forma, o resultado seria o surgimento de uma preferência pelos SGR na periferia dependente, ou seja, uma tendência de direcionamento dos investimentos dos capitais disponíveis na periferia dependente para os SGR de forma mais significativa do que nas economias centrais. Essa tendência não teria qualquer relação com “vantagens naturais” ou com uma produtividade naturalmente elevada, mas tão somente com o fato de que os investimentos nos SGR permitiriam evitar ou mitigar as transferências de mais-valor que ocorreriam caso os mesmos investimentos fossem realizados em setores que participam do processo de formação da taxa geral de lucros;

      6. Considere-se também todos os aspectos mais específicos decorrentes da possibilidade da transferência da renda da terra nas economias periféricas para outros setores (como os produtores de mercadorias de luxo, o chamado “consumo conspícuo” realizado pelos proprietários de terras, para a indústria que aproveita as matérias primas locais, ou mesmo em setores exportadores da indústria em geral) através de mecanismos diversos de transferência (taxas múltiplas de câmbio, sobrevaloração do câmbio, cobranças de taxas ou confiscos sobre as exportações de produtos primários, proteções alfandegárias para produtos industriais e subsídios para a importação de matérias-primas ou equipamentos para o setor industrial), políticas esporadicamente adotadas em países dependentes. Esses aspectos aparecem enquanto subproduto da preferência pelos SGR na periferia;

      7. Há que se considerar também os aspectos dinâmicos: as mesmas determinações que permitem que uma parcela maior do mais-valor produzido internamente seja apropriado no próprio setor nos SGR (vis-à-vis os NGR na periferia), também levam a uma tendência de crescimento mais lento da composição do capital e maior lentidão no avanço tecnológico. O fato de que os sobrelucros aparecem na forma de renda (logo, muitas vezes apropriados pelos proprietários de terra e não pelos capitalistas), combinado com a necessidade de que nos SGR os capitais reguladores (ao menos) tenham sua composição mais baixa do que a composição do capital social

        médio, levam à tendência descrita por Marx a um atraso relativo da agricultura14 (e, dos SGR em geral15), o que, no caso das economias periféricas dependentes onde existe essa preferência pela renda, aparece como uma tendência de atraso relativo da economia nacional frente aos centros industriais;

      8. A possibilidade de retenção de mais-valor descrita nos pontos anteriores será sempre reduzida ou limitada pela atuação da exportação de capitais dos países centrais, seja na forma de capital comercial aplicado nos setores de distribuição e comércio das mercadorias produzidas pelos SGR, seja nas indústrias que utilizam essas mercadorias como insumos, seja aplicados nos próprios SGR, ou ainda quando a propriedade da terra concentra-se nas mãos de grupos estrangeiros. Alguns desses aspectos foram analisados por Osorio (2017). Além disso, como a preferência pelos SGR tem origem na demanda dos países industriais por alimentos e matérias primas, historicamente ocorrem momentos em que essa tendência se enfraquece, e, junto com esse enfraquecimento, criam-se situações nas quais atenua-se a própria relação de dependência, permitindo provisoriamente certo grau de autonomia;

      9. Apesar disso, essa preferência pela renda na periferia pode ser descrita e analisada mesmo quando abstraídas as rendas de monopólio, de modo que sua existência não depende de quaisquer aspectos conjunturais de predomínio da demanda sobre a oferta, controle de preços etc. Desta forma, ela poderia ser incluída ao lado da superexploração do trabalho enquanto uma forma de compensar ou mitigar as transferências de mais-valor para os centros industriais dentro do mercado mundial capitalista. A apropriação da renda da terra na periferia não seria, portanto, algo que contradiz a TMD, mas, ao contrário, expressaria mais um sintoma da condição de dependência das economias periféricas frente aos centros industriais, ou seja, como mais um aspecto de sua integração subordinada à economia mundial;

      10. Consequências adicionais dessa tendência a uma preferência pelos SGR na periferia podem incluir a concentração da propriedade das terras e de rendimentos, resultando em maior desigualdade social (campo para pesquisas futuras).


    2. Considerações finais

    Neste trabalho buscou-se analisar a relação entre a renda da terra e a especificidade da periferia dependente a partir de uma análise crítica dos trabalhos de Juan Iñigo


  13. Um aprofundamento sobre esse aspecto da teoria de Marx sobre a renda da terra pode ser visto em De Paula (2020) e em Harvey (2007).

  14. As exceções aqui apareceriam justamente naqueles SGR onde a rigidez da demanda permitiria o surgimento de preços de monopólio especial, como possivelmente a exploração de petróleo e certos setores da mineração.

Carrera (2006, 2017).

Desta análise, concluiu-se pela necessidade do reconhecimento da relevância da renda da terra para a reconstrução teórica do movimento do capital na periferia da economia mundial capitalista, bem como para uma teorização sobre a totalidade do mercado mundial, não apenas como um aspecto incidental, mas como um elemento estrutural da especificidade da periferia dependente. Ou seja, identifica-se numa preferência pela renda (ou pelos SGR) uma das características tendenciais do movimento do capital na periferia dependente.

Entretanto, ao mesmo tempo, rejeita-se a visão segundo a qual a apropriação de renda implicaria uma direcionalidade necessária de transferência de mais-valor no sentido centro-periferia (como em Carrera). Ao contrário, o movimento de preferência pela renda na periferia aparece como uma forma adicional através da qual o capital que opera nos países dependentes pode compensar (ou mitigar) as transferências de mais-valor no sentido periferia-centro que ocorreriam caso seus investimentos se direcionassem para setores que participam da formação da taxa geral de lucros.

Com isso, o reconhecimento de uma preferência pelos SGR como um componente da especificidade da periferia dependente surge como mais um aspecto da dependência quando analisada num nível de abstração intermediário, ou seja, como mais um elemento da dialética da dependência, e não como sua negação.


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