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ARTIGOS (DOSSIÊ)
O Estado de Contrainsurgência: uma Alternativa ao Conceito de Fascismo
Dependente
Gabriel Magalhães Beltrão * e Adriano Nascimento Silva **
RESUMO: Durante as décadas de 1960 e 1970, a América Latina (AL) foi acometida por golpes de
Estado que suplantaram as frágeis democracias existentes, instalando regimes políticos de exceção. As
ditaduras emergentes tinham como traço constitutivo a violência sistemática contra seus opositores,
além de operarem mudanças signicativas no padrão de reprodução do capitalismo dependente da
região. A caracterização desses regimes despertou uma fecunda divergência no seio dos intelectuais
marxistas e progressistas da AL, inclusive entre os autores da teoria marxista da dependência. Neste
artigo serão apresentadas as propostas analíticas por eles levantadas, com destaque à de Marini em torno
do Estado de contrainsurgência, alternativa ao uso do conceito de fascismo dependente e que guarda
raízes com as formulações de Nicos Poulantzas acerca da natureza do fascismo.
Palavras-chave: Golpe de Estado. Fascismo dependente. Estado de contrainsurgência. Capitalismo
dependente.
ABSTRACT: During the 1960s and 1970s, Latin America (LA) was plagued by coups d’état that
supplanted the fragile existing democracies, installing political regimes of exception. e emerging
dictatorships had as a constitutive feature systematic violence against their opponents, in addition to
operating signicant changes in the pattern of reproduction of dependent capitalism in the region. e
characterization of these regimes gave rise to a fruitful divergence among Latin American Marxist and
progressive intellectuals, including among the authors of the Marxist theory of dependency. In this
article we will present the analytical proposals raised by them, with emphasis on Marinis concept of the
counterinsurgency state, an alternative to the concept of dependent fascism, which is rooted in Nicos
Poulantzas’ formulations about the nature of fascism.
Keywords: Coup détat. Dependent fascism. Counterinsurgency State. Dependent capitalism.
RESUMEN: Durante las décadas de 1960 y 1970, América Latina (AL) fue azotada por golpes de Estado
que derrocaron las frágiles democracias existentes, instalando regímenes políticos de excepción. Las
dictaduras emergentes tuvieron como rasgo constitutivo la violencia sistemática contra sus opositores,
además de operar cambios signicativos en el patrón de reproducción del capitalismo dependiente
en la región. La caracterización de estos regímenes dio lugar a una fructífera divergencia entre los
intelectuales marxistas y progresistas latinoamericanos, incluso entre los autores de la teoría marxista
de la dependencia. En este artículo presentaremos las propuestas analíticas planteadas por ellos, con
énfasis en el concepto de Estado contrainsurgente de Marini, una alternativa al concepto de fascismo
dependiente, que hunde sus raíces en las formulaciones de Nicos Poulantzas sobre la naturaleza del
fascismo.
Palabras clave: Golpe de Estado. Fascismo dependiente. Estado contrainsurgente. Capitalismo
dependiente.
* Mestre em Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (2013). É
membro do Grupo de Pesquisa Estado, Direito e Capitalismo Dependente (FSSO/UFAL).
** Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (2018). É corregedor seccional
da UFAL. Foi assessor de Direitos Humanos e Segurança Pública da UFAL. Membro do Conselho
Editorial da Editora da Universidade Federal de Alagoas
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Introdução
Os anos 1960, com o impulso da Revolução Cubana, foram marcados por uma agu-
dização crescente da luta de classes em nosso subcontinente. No campo político da
esquerda, seja por meio dos movimentos nacional-populares, seja por meio dos mo-
vimentos socialistas, houve uma forte e contínua contestação ao poder da burguesia
imperialista, da burguesia interna associada e dos latifundiários ao seu projeto de
exploração econômica e dominação política. Esse intenso processo de agudização da
luta de classes alcança sua máxima expressão durante o governo da Unidade Popular
no Chile e culmina com o golpe de Estado de 1973. A ditadura militar chilena ins-
talada por Pinochet fortalece a vaga de ditaduras que se estendia por outros países,
completando o movimento prévio inaugurado com o golpe de Estado no Brasil em
1964. Ao nal da década de 1970, o Cone Sul encontrava-se, assim, completamente
tomado por regimes ditatoriais contrarrevolucionários.
No campo teórico, esse contexto de crescente autoritarismo concitou a intelec-
tualidade crítica latino-americana à necessidade de explicar a dinâmica política e
econômica da região. No âmbito econômico, era necessário compreender a natureza
sui generis do capitalismo dependente, a sua forma de constituição particular, suas
características fundamentais, a conguração especíca do bloco no poder em cada
formação social e a dinâmica concreta da luta de classes. No âmbito político, cum-
pria investigar a instabilidade dos regimes democráticos, a natureza de classe das
emergentes ditaduras militares e as estratégias que os movimentos democráticos e
populares deveriam adotar para superar os regimes autoritários e criar condições
para transformações sociais.
Abriu-se, assim, no seio das ciências sociais latino-americanas, especialmente en-
tre os intelectuais de esquerda e socialistas, uma fecunda reexão acerca da caracte-
rização dos regimes políticos instalados no Cone Sul. Enquanto a intelectualidade
democrático-liberal valia-se, em regra, da chave analítica dos tipos ideais que opunha
em abstrato democracia e autoritarismo (CARDOSO, 1975), os marxistas se viram
envoltos no debate sobre a aderência, ou não, ao conceito de fascismo para caracteri-
zar o terrorismo de Estado instalado na região
1
.
Ruy Mauro Marini, após experienciar dois golpes de Estado – no Brasil (1964) e
1 A ideia não é negligenciar a distinção entre as formas de Estado (exceção e democrático), mas distin-
guir o debate da teoria marxista da dependência, que segue as premissas do marxismo e do leninismo,
em relação aos autores liberal-democráticos de inspiração weberiana. Enquanto para os primeiros o
autoritarismo é parte inerente do tipo capitalista de Estado, variando de intensidade conforme causali-
dades econômicas, políticas e ideológicas, para os segundos o autoritarismo é um desvio, uma externa-
lidade, que contraria a mítica democracia.
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no Chile (1973) – que o conduziram denitivamente ao exílio no México, na década
de 1970 intervém na discussão, distanciando-se das análises dos seus parceiros in-
telectuais da teoria marxista da dependência (TMD), eotonio dos Santos, Vania
Bambirra, Álvaro Briones e Orlando Caputo.
Marini se recusa a qualicar as ditaduras militares da América Latina (AL) como
fascistas, pois, segundo ele, “a palavra fascismo” teria, no máximo, um “caráter agita-
dor, tratando-se, em verdade, de uma “análise incorreta da situação atual” que deve
ser abandonada pela esquerda e pelo movimento popular, sob pena destes permane-
cerem “desarmados para poder enfrentá-las” (MARINI, 2020, p. 42). Apresentare-
mos nas linhas abaixo: a) as principais posições dos intelectuais do campo da teoria
marxista da dependência a favor da tese de existência de um fascismo dependente;
b) em seguida, abordaremos as razões que levam Marini a refutar, na contracorrente
dos demais membros da TMD, a caracterização das ditaduras das décadas de 1960 e
1970 na AL como fascistas; c) por m e em simultâneo, discorreremos acerca da sua
proposta alternativa, o chamado Estado de contrainsurgência.
A especificidade da contrarrevolução latino-americana e o conceito de fascismo
dependente
As duas obras mais expressivas que desenvolveram o conceito de fascismo depen-
dente para classicar os regimes autocráticos que surgiram com os golpes de Estado
em nosso continente são: Socialismo o fascismo: el nuevo cacter de la dependencia
y el dilema latinoamericano, de eotonio dos Santos, lançado pela primeira vez no
Chile, em 1971, e Economía y política del fascismo dependiente, de Álvaro Briones,
publicado pela primeira vez em 1978, no México.
Nessas obras observa-se a forte inuência do comunista búlgaro Georgi Dimi-
trov, destacado dirigente da III Internacional. A Dimitrov se atribui o “novo curso
dado à política de enfrentamento ao fascismo da Internacional Comunista, que
passava a adotar a linha de frente popular antifascista, no quadro da aliança entre
comunistas e social-democratas. Da análise de Dimitrov é importante colocar em
relevo duas noções que inuenciaram as teorizações dessa corrente da TMD. O
primeiro ponto a se observar é a caracterização do fascismo como “[...] a dita-
dura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais
imperialistas do capital nanceiro” (DIMITROV, 1935). O segundo ponto, como
escreveu Dimitrov em seu Informe ao VI Congresso da Internacional, em 1935, diz
respeito ao fato de que “[...] o desenvolvimento do fascismo e a própria ditadura
fascista – adotam nos distintos países formas diferentes, segundo as condições his-
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tóricas, sociais e econômicas, as particularidades nacionais e a posição internacio-
nal de cada país” (DIMITROV, 1935).
A partir dessas duas noções, os autores aqui abordados irão caracterizar os regimes
instaurados no Cone Sul da América Latina como de tipo neofascista. Ambos levam
em consideração que tais regimes representam, de um lado, a instauração de uma
ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários do capital monopolista,
exercida contra a classe trabalhadora e os setores revolucionários do campesinato e
da intelectualidade; e, de outro, que, a partir da caracterização do conteúdo de classe
e da forma de exercício da dominação política, é lícito questionar as particularidades
nacionais de concretização do fascismo em cada formação social latino-americana.
Nesse diapasão, ainda em 1965, eotonio dos Santos, depois de instaurada a di-
tatura empresarial militar no Brasil, publica na Revista Civilização Brasileira (DOS
SANTOS, 1965) um importante artigo em que alertava para a necessidade de se com-
preender o golpe de Estado como parte de um movimento mais amplo, no qual se in-
troduzia a ideologia fascista no processo de conformação de uma nova etapa histórica
do capitalismo no subcontinente. Nesse artigo, Dos Santos está mais interessado em
compreender as condições sociais de surgimento e fortalecimento da ideologia fascista
no país do que o processo de instauração de um regime político dessa natureza.
Porém, apesar de não caracterizar o regime como de tipo fascista atípico, com
elementos próprios dados pela condição de inserção subordinada na divisão interna-
cional do trabalho, o autor vislumbra-o como um movimento de caráter mais abran-
gente. Nesse sentido. Para ele, o golpe de 1964 não era apenas uma reação das forças
sociais reacionárias vinculadas aos interesses do setor primário-exportador, mas sim
uma nova etapa da dominação imperialista sobre nossa economia. Essa nova do-
minação impunha um modelo de desenvolvimento modernizador capitaneado pelo
grande capital internacional e que se sustentava nas elites modernizadoras internas e
nas forças militares, como ramo mais organizado e disciplinado dessas elites.
Segundo Dos Santos, esse projeto de desenvolvimento aprofundava a concen-
tração econômica e ampliava profundamente a exclusão social, colocando para as
burguesias internacional e interna-associada a diculdade adicional de conciliar um
modelo econômico antipopular com uma forma política democrática. A ideologia
fascista surgia, assim, no Brasil, pela necessidade de se organizar a vontade popular
para a repressão das manifestações populares, que tendiam a se avolumar à medida
que se mostrassem mais expressivos e evidentes os efeitos mais deletérios do novo
padrão de dominação política e econômica.
Em seus escritos posteriores, como no clássico Socialismo o fascismo: el nuevo
carácter de la dependencia y el dilema latino-americano (1971 [1978b]), e nos artigos
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Socialismo y fascismo en América Latina hoy (1977) e La cuestión del fascismo en
América Latina (1978a), essa análise exordial ganhará contornos mais claros, e Dos
Santos avançará na caracterização da forma atípica do fascismo na periferia e semi-
periferia do capitalismo. O sociólogo brasileiro desenvolve, com base numa com-
preensão mais aprofundada sobre o novo caráter da dependência latino-americana,
a noção de que se congurava, com as instaurações das ditaduras militares no Cone
Sul, a primeira etapa de um processo de fascistização dependente, no sentido de ins-
tauração de um regime político com contornos fascistas. Em suas palavras:
[...] as opções que vão se congurando neste processo oscilam, por um lado, entre uma pro-
funda revolução social que estabeleça as bases de uma nova sociedade sobre as ruínas da velha
ordem decadente e ofereça à América Latina um papel de grande importância na criação do
mundo do futuro, e, por outro, a alternativa da vitória das forças mais retrógradas e bárbaras
do nosso tempo, a qual só poderá ocorrer através da destruição física das lideranças populares
e da grande massa de seus militantes.
Como se concretizaria esta segunda e terrível alternativa na América Latina? Somente através
do surgimento de um movimento de massas pequeno-burguês com o apoio de setores mar-
ginalizados da população e do latifúndio decadente, e sustentado em uma ideologia profun-
damente irracionalista que fundamentasse tal carga de barbárie e atraso. Este seria o nosso
fascismo colonial ou dependente. (DOS SANTOS, 1978b, p. 49, grifos nossos).
Para compreender o processo de fascistização dependente, era necessário, de acor-
do com Dos Santos, levar em consideração a conjuntura anterior à instauração das
ditaduras. Em sua análise, a situação conjuntural pré-golpes era marcada por intensa
radicalização da luta de classes na região. De um lado, no seio do operariado, com a
decadência das correntes nacionalistas e democrático-burguesas, ganhavam cada vez
mais expressão os grupos políticos de tendência socialista, que tendiam a radicalizar
a luta em direção ao socialismo. De outro, ocorria uma radicalização à direita, com
o liberalismo conservador assumindo posições cada vez mais autoritárias ou aber-
tamente fascistas. Era essa radicalização que apontava para a ampliação dos golpes
fascistas na América Latina, com a burguesia monopólica disseminando a repressão.
Todavia, esses elementos internos das conjunturas políticas de cada país de nosso
subcontinente não eram ainda sucientes para se compreender a dimensão depen-
dente do fascismo. É da análise da reconguração do imperialismo após a Segunda
Guerra Mundial (movimento de centralização, concentração e internacionalização
do capital) e de sua crise nos anos 1970 que se retirava a possibilidade de emergência
de um novo ciclo político fascista.
Considero que são estas situações de crise a longo prazo que obrigam a classe dominante, e,
no caso especíco da época imperialista, o capital nanceiro, a procurar um regime de exce-
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ção para impedir a resolução revolucionária que as conjunturas de crise colocam. Ao mesmo
tempo, é necessário ter em conta que a contrarrevolução só pode triunfar se se aproveitar do
enfraquecimento que a crise provoca nas classes populares, levando-as a tentativas revolu-
cionárias fracassadas ou ao desgaste político, na medida em que não conseguem manter uma
política de autodefesa que impeça a crise de transformar a situação das classes trabalhadoras
em geral, e do operariado em particular, numa política totalmente defensiva. A permanência
por longos períodos de desemprego, derivados das crises, leva a uma grande competitividade
dentro da classe e facilita o triunfo das políticas contrarrevolucionárias [...].
Neste sentido, gostaria também de salientar que as tendências contrarrevolucionárias do ca-
pital nanceiro tendem a ocorrer muito mais nos países de desenvolvimento médio ou de
imperialismo tardio do que nos países mais avançados do imperialismo, porque é nos países
onde esta situação revolucionária se combina com situações de luta nacional que forçam a
classe dominante a um grande esforço ideológico de identicação nacional e esforço político
de centralização do poder, a m de responder às tendências revolucionárias.(DOS SANTOS
et al., 1978a).
É, portanto, o capitalismo em crise que cria a disjuntiva fascismo ou socialismo.
O fascismo se congura como solução imediata e desesperada, como último recurso
de sobrevivência do grande capital frente à possibilidade de revolução socialista na
periferia do sistema. A disjuntiva se resolve no sentido do triunfo do regime de tipo
fascista; por consequência, este se transforma em um regime permanente quando
algumas condições históricas são alcançadas, tais como:
1. existência de uma ameaça aberta ou próxima de uma revolução proletária sem
que a classe operária tenha condições sucientes para alcançar o poder;
2. existência de uma necessidade de uma unidade nacional que impele a grande
burguesia a se valer de elementos marginais da sociedade, como o lumpem-
proletariado, para garantir seu poder;
3. existência de Estados democrático-liberais ou mesmo Estados de exceção que
não possuem legitimidade social suciente para pacicar a sociedade e am-
pliar as condições de acumulação do grande capital.
Os regimes passam a apresentar características fascistas, segundo Dos Santos,
quando se instaura um Estado de exceção permanente com ampliação constante
da intervenção sobre a sociedade civil; quando o terror contrarrevolucionário se
transforma em operação típica do Estado, uma vez que se opera o fortalecimento do
Executivo, com debilitamento ou fechamento do Legislativo e ampliação do poder
repressivo do Estado, pelo compromisso entre setores conservadores e fascistas na
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busca de uma solução política autoritária; e, por m, pelo crescimento da interven-
ção estatal na economia.
No fascismo dependente, no entanto, diferentemente do fascismo clássico,
a elite tecnocrática militar e civil substitui a gura do chefe, e as Forças Armadas
desempenham o papel antes a cargo do partido fascista clássico. Ademais, o Estado
fascista dependente foi imposto desde cima, por preferir uma repressão de elite antes
que mobilizar as bases. As manifestações de base fascista até existem antes do golpe,
mas apenas como fator de desestabilização do regime anterior, sem constituir uma
força política à semelhança do fascismo clássico. E, por último, Estados fascistas
dependentes apoiam-se na simples ação repressiva por falta de condição material para
uma legitimação ideológica suportada no consenso ativo das massas, sobrevivendo,
assim, da apatia política, diferentemente do fascismo clássico, que ostentava apoio
ativo da base fascistizada.
Vale insistir nesse último ponto, pois parece ser um dos elementos fundamentais
que fazem com que o regime fascista dependente, para Dos Santos, tenha sua imple-
mentação pelo alto, via golpes de força. Com efeito, por mais que o fascismo clássico
não prescinda do uso sistemático da violência, contava também com amplo suporte
na sociedade civil. Já nas formações sociais dependentes, a construção de um Estado
corporativo fascista enfrenta um pesado obstáculo
[...] dado o caráter altamente impopular das medidas econômicas que são adotadas para
favorecer o grande capital e destruir a capacidade de reação política das grandes maiorias
democráticas, inclusive dos setores pequeno-burgueses que apoiaram o golpe, mas não se
sentem contentes com o processo de concentração econômica e centralização de capitais que
o governo gerado pelo golpe patrocina. Apesar de se sentirem atraídos por um governo cor-
porativista, os setores pequeno-burgueses não atraem suciente conança do grande capital,
nem dispõem da força necessária para impor, sobretudo, ao capital internacional, seu ponto
de vista e sua participação institucional no Estado pela via do corporativismo. Apesar dessas
diferenças, no entanto, há um acordo geral de fortalecer o Executivo, de debilitar ou extinguir
o parlamento e aumentar o poder repressivo do Estado. (DOS SANTOS, 1977, p. 178).
Em outras palavras, ao serem impostos de cima para baixo e não como resultado
de fortes mobilizações de massa, os Estados fascistas dependentes ancoram-se, so-
bretudo, na repressão antes que em um movimento político robusto e com forte base
social. Desse modo, Dos Santos defende que a mobilização do movimento fascista
por tais Estados somente se fez necessária como instrumento de desestabilização do
poder das massas.
Para eotonio dos Santos, na ditadura brasileira, esses elementos aparecem com
traços bastante nítidos. Em 1978, em ensaio escrito com Vania Bambirra, sob o título
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Dictadura militar y fascismo en Brasil, o regime brasileiro é apresentado como dotado
de características fascistas básicas. Dos Santos e Bambirra advertem, porém, que o
fascismo brasileiro se aproxima muito mais do espanhol e do português salazarista,
isso porque é um regime de tipo fascista “[...] que se constitui numa época em que
suas expressões mais elaboradas [alemã e italiana] já foram derrotadas ou estão em
decadência” (1978, p. 174)
2
. O fascismo brasileiro possuiria, além disso, característi-
cas nacionais próprias que advinham de sua “[...] condição de um país dependente,
cujo sistema de dominação está permeado e mediatizado pelo domínio imperialista
(BAMBIRRA e DOS SANTOS, 1988, p. 139). Para os autores, até o aparecimento
do movimento de massas de 1968, a ala fascista do regime, apesar de possuir força
considerável, não determinava a política e a ideologia do Estado brasileiro. Até esse
momento, o regime podia ser denido como “uma ditadura militar de tendências
fascistizantes.
Entre 1969 e 1973, uma vez que a radicalização do caráter repressivo se fará mais
necessária para paralisar a ascensão do movimento de massas e para liquidar as or-
ganizações operárias, camponesas e estudantis, as tendências fascistizantes vão se
atualizar e chegarão ao seu ponto culminante. Na impossibilidade de atrair a pequena
burguesia, que se afastava do regime por já sofrer as consequências econômicas
regressivas da política econômica, os grupos fascistas que cresceram na contraposição
ao avanço do movimento popular são assimilados pelo aparato repressivo como
colaboradores, e outros grupos serão integrados ao aparato ideológico, sobretudo no
setor educacional e cultural.
A operação fascista buscava tanto quebrar a espinha dorsal do movimento po-
lítico, através da perseguição das organizações operárias, camponesas e estudantis,
quanto eliminar a mais autêntica cultura popular brasileira, “[...] através da perse-
guição e censura às obras teatrais, às canções, ao cinema, tratando de fazer de cada
indivíduo um policial, um delator, ou um covarde, temeroso de suas próprias ideias
(BAMBIRRA e DOS SANTOS, 1988, p. 140). Para tanto, a ideologia fascista era re-
forçada pelo Estado brasileiro com o patriotismo chauvinista estimulado pela “[...]
mística da unidade nacional, da ‘pátria grande, do ‘milagre brasileiro, que se apoia-
va basicamente na recuperação econômica que nalmente parecia abrir uma era de
progresso’ para o país” (BAMBIRRA e DOS SANTOS, 1988, p. 140).
À ideologia de unidade nacional, o fascismo dependente acoplou, segundo Dos
2 O artigo foi publicado originalmente em espanhol em 1978, pela editora Siglo XXI, no livro coletivo
El control político en el cono sur. A tradução brasileira foi publicada em 1988, com título modicado e
com algumas alterações em seu corpo, Brasil: nacionalismo, populismo e ditadura. Cinquenta anos de
crise social, no livro organizado por Pablo Casanova: América Latina: história de meio século. Brasília,
Editora da UnB, 1988, p. 139.
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Santos, a doutrina de segurança nacional
3
. Em contraposição aos regimes populistas
latino-americanos que buscaram urdir um projeto nacionalista com base em uma
aliança de classe com hegemonia da burguesia nacional, as novas ditaduras militares
que surgiram com o fracasso daquelas experiências intentam impor o modelo fascis-
ta-dependente articulando um bloco de dominação diverso, com hegemonia do ca-
pital internacional, centrado na doutrina de segurança nacional como um elemento
articulador da exceção e do terrorismo de Estado. Porém, apesar de ver relevância na
contrainsurgência, isto é, na doutrina de segurança nacional, Dos Santos lhe atribui
uma dimensão epidica ou secundária, o que o distancia de Marini, que confere,
como veremos, centralidade à doutrina como forma assumida pelo Estado de exce-
ção dependente instaurado com as ditaduras:
Aqui creio que é necessário fazer uma observação sobre a tendência de Ruy Mauro Marini
para caracterizar a questão do Estado de segurança nacional como o aspecto central da es-
pecicidade do período atual. Esta caracterização parece-me ser muito perigosa, porque nos
desvia para um aspecto secundário: para mim o aspecto central é a luta do grande capital para
impor sua hegemonia e a necessidade de recorrer ao estado de excepção e terror.
As formas que utiliza o grande capital me parecem um aspecto secundário. Podem ser impor-
tantes em certos períodos históricos que tem que ser analisados, porém são secundárias desde
o ponto de vista conceitual. (DOS SANTOS, 1978a, p. 33).
Os argumentos de Álvaro Briones e de Orlando Caputo em defesa da existência
do fascismo latino-americano inscrevem-se na mesma perspectiva de eotonio do
Santos e de Vania Bambirra. Os autores chilenos sustentam a tese de que os regi-
mes de exceção permanentes do subcontinente seriam neofascistas, distintos efeti-
vamente do clássico, já que, enquanto este último se desenvolve como imperialista,
os primeiros resultariam das condições derivadas do avanço imperialista. Em suas
interpretações, Briones e Caputo (1975) buscam fugir de explicações monocausais
e caracterizam o fascismo dependente como forma política da nova modalidade de
acumulação capitalista no interior dos países latino-americanos.
O fascismo latino-americano será compreendido assim, nos termos de Briones,
3 A doutrina de segurança nacional, fundamentalmente, cria a noção de inimigo interno, que é identi-
cado como o comunismo, obviamente baseado em elementos da realidade como o regime cubano, a in-
uência da União Soviética e a disseminação das organizações guerrilheiras, bem como o surgimento de
diversas frentes de esquerda no território latino-americano. Porém, como arma Patrick Veiga (2021),
havia uma superestimação da ameaça, posto que “[...] se é verdade que havia muitos movimentos desse
tipo, também se evidencia que muitos não tinham conexão entre si e até mesmo divergiam em questões
táticas e estratégicas. Enquanto os PCs apostavam no desenvolvimento nacional e até mesmo na aliança
com as burguesias nacionais, outros consideram a luta armada a tática principal. Ainda uma terceira via
era possível, a chamada ‘via chilena ao socialismo’ de Allende, a qual considerava possível uma transição
pacíca do capitalismo ao socialismo por meio de reformas estruturais após a vitória eleitoral”.
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em Economía y política del fascismo dependiente, como “[...] a forma natural de gover-
no nas condições da fase de aplicação da política econômica de transição para novas
modalidades de acumulação e provavelmente também logo depois que estas estejam
já consolidadas” (1978b, p. 261).
Segundo a interpretação de Álvaro Briones, a crise econômica mundial surgida
nos anos 1960 provoca uma crise política no sistema de dominação imperialista, com
sérios reexos na periferia do sistema, especialmente nos países dependentes latino-
-americanos. Findo o apogeu econômico do pós-guerra, a partir dos anos 1960, o ca-
pitalismo estadunidense passa a apresentar sinais de recessão, o que é explicado pela
“[...] contradição fundamental de um sistema que ao socializar crescentemente seus
processos produtivos, é incapaz de evitar uma contração relativa dos mercados expli-
cada pela apropriação e distribuição dessa produção por parte de um grupo cada vez
mais reduzido” (BRIONES, 1975, p. 26).
Diante dessa crise de realização do mais-valor produzido, os EUA recrudescem o
receituário keynesiano de décits scais como forma de alavancar a demanda agre-
gada, fundamentalmente no complexo industrial-militar. Esta iniciativa não logra
impulsionar a taxa de investimento no conjunto do sistema produtivo, ocasionando
desequilíbrio na relação oferta-demanda, estando esta última articialmente alavan-
cada, sem a contrapartida dos investimentos produtivos. Produz-se, então, uma si-
tuação inacionária nos EUA, que entre 1971 e 1973 destroem o ordenamento mone-
tário erigido em Breton-Woods e recorrem à desvalorização do dólar com o objetivo
de ampliar seu mercado internacional. A crise se alastra sobre a Europa e o Japão.
Nessas circunstâncias, o sistema de dominação internacional entra em crise. Segun-
do Briones (1975, p. 27),
Esta crise se expressa no fortalecimento relativo da capacidade negociadora (econômica e po-
lítica) que, ante a debilidade das potências imperialistas, experimentam os países dependentes
submetidos a seu domínio. Esta situação, expressa no manejo dos preços das matérias-primas
exercido pelos países produtores, simultaneamente à capacidade destes países, em associação
com o bloco socialista, de conformar uma sólida frente de impugnação das potências impe-
rialistas nas organizações internacionais, não representa senão o auge do nacionalismo nas
relações internacionais atuais.
O nacionalismo emergente na AL se expressa em duas versões, que emanam dos
conitos interburgueses típicos do capitalismo dependente. De um lado, “[...] fortale-
cida pela conjuntura internacional, o já conhecido nacionalismo desenvolvimentista
e populista”; de outro, “[...] uma forma nova que, a m de não cair na expressão con-
traditória de ‘nacionalismo imperialista, preferimos chamar de neofascismo” (BRIO-
NES, 1975, p. 28). Venezuela e México expressariam a continuidade do nacionalismo
84
ARTIGOS (DOSSIÊ)
populista, enquanto o Chile seria a versão mais acabada do neofascismo na região.
Para Briones, as duas versões do nacionalismo seguem estritamente vinculadas ao
desenvolvimento do capitalismo dependente latino-americano, desta maneira, “[...]
deve denir-se qual delas cumpre objetivamente o papel de mecanismo de manuten-
ção [...], no seu desenvolvimento, desse ordenamento social, e qual representa so-
mente um elemento de relevância exclusivamente conjuntural, incapaz de satisfazer
esses requerimentos” (BRIONES, 1975, p. 29).
A crise econômica do capitalismo e a consequente reestruturação da divisão
internacional do trabalho provocam, nos países dependentes, um agudo processo
de concentração de capital e de exclusão/marginalização. O empobrecimento afetará
não somente as classes populares; pelo contrário, atingirá sensivelmente os setores da
própria burguesia não monopolista. Desta forma,
[...] a partir do momento que a estrutura de poder vai se concentrando, para ser mantida
se fazem cada vez mais necessárias formas autoritárias e repressivas de controle social, que
permitam sustentar na cúspide do sistema de dominação, o grande capital controlado pelo
imperialismo. (BRIONES, 1975, p. 33).
O corolário necessário da política econômica do capital monopolista não é outro
senão o fascismo dependente.
No artigo intitulado Acumulación y fascismo dependiente, Alvaro Briones e Orlan-
do Caputo (1978, p. 251) armam:
Este isolamento social do bloco dominante, cuja política em consequência se opõe não so-
mente aos setores assalariados, mas também às frações da própria burguesia, implica que
sua ação exploradora das grandes maiorias, que pretende levar até os últimos limites, e a
marginalização de setores até ontem privilegiados, deve traduzir-se, inevitavelmente, em uma
ditadura centralizada, autoritária e altamente repressiva como forma de governo.
As exigências do grande capital interno subordinado ao capital estrangeiro en-
tram em rota de colisão não somente com os interesses da classe trabalhadora, mas
também com os da pequena burguesia e das frações burguesas marginalizadas. A
“[...] conciliação de classes para sustentar o desenvolvimento foi superada pela evolu-
ção do grande capital e pela denição de objetivos políticos do movimento popular”
(BRIONES e CAPUTO, 1978, p. 252).
No escrito de 1975, El neofascismo en América Latina, Briones ainda detectava a
resistência das frações burguesas não monopolistas em aderir aos desígnios do gran-
de capital e do seu sistema de dominação neofascista. A reiteração do desenvolvimen-
tismo e do populismo atuava nas margens abertas pela crise do sistema de domina-
ção imperialista como uma alternativa burguesa ao socialismo, à cata de
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“[...] redenir os termos presentes da dependência do imperialismo, em termos de uma nego-
ciação que permita, de uma parte, reivindicar a propriedade nacional das fontes de riquezas
básicas e, de outra, a limitação e participação estrangeira nos setores secundário e terciário da
economia” (BRIONES, 1975, p. 34).
Tais alternativas burguesas, entretanto, “[...] se veem limitadas pela mesma condi-
ção de dependência já vigente. [...] os intentos independentistas iniciados não podem
passar de um plano superestrutural, não ligados com a realidade da base econômica
do sistema” (BRIONES, 1975, p. 34). A dependência tecnológica desses países reve-
lará a inviabilidade histórica da superação da condição dependente nos marcos do
capitalismo tal como proposta pelo desenvolvimentismo, abrindo-se uma “disjuntiva
de ter que abandonar seu esquema populista” (BRIONES, 1975, p. 34) na perspectiva
do socialismo ou trilhar os rumos da fascistização.
Conforme asseveram Briones e Caputo (1978, p. 253): “Em denitivo, criou-se
sem ambiguidades os termos da contradição principal da nossa sociedade: ou a po-
lítica do grande capital, de inequívoco caráter fascista, ou a política do movimento
popular guiado pelo proletariado rumo à construção do socialismo.
O capital monopolista interno associado ao imperialismo busca neutralizar a
recalcitrância da pequena e da média burguesias à ruptura institucional com o Esta-
do populista, “[...] enfatizando o perigo para o capitalismo em geral que representa o
desenvolvimento político das forças do povo” (BRIONES e CAPUTO, 1978, p. 254).
O temor burguês diante do avanço do movimento popular confere à ditadura do
grande capital, nos seus primeiros momentos, um certo apoio da pequena e média
burguesia, “[...] apesar de todas as manifestações de caráter opressor de seu regime
contra esses mesmos setores” (BRIONES e CAPUTO, 1978, p. 254).
A resistência dessas frações à ruptura do grande capital não é fortuita: o objetivo é
“[...] proporcionar o marco político para o desenvolvimento de uma nova modalidade
interna de acumulação, funcional à integração da economia nas novas formas da di-
visão social do trabalho em escala internacional”, o que passa pela “[...] destruição de
praticamente todo o vestígio da velha institucionalidade e a exaltação sem dissimulação
do caráter repressivo do Estado capitalista” (BRIONES e CAPUTO, 1978, p. 254).
Na perspectiva de Briones e Caputo (1978, p. 254), o neofascismo não é um fenô-
meno casual nem transitório, visto que expressa “[...] os traços dominantes da única
alternativa ao socialismo [...], da única forma de regime que pode assumir o Estado
capitalista para sobreviver desenvolvendo as novas modalidades de acumulação in-
ternas que o capitalismo, considerando como sistema internacional, demanda.
Na passagem abaixo, os autores explicitam a leitura que têm para as condições de
emergência do neofascismo ou fascismo dependente:
86
ARTIGOS (DOSSIÊ)
É justamente esta característica, que o apresenta [o neofascismo] como um esquema político
cujo objetivo fundamental é garantir a sobrevivência do capitalismo em condições de uma
crise econômica aguda, geradora por sua vez de uma crise política que ameaça a destruição do
sistema, o que nos permite estabelecer uma similitude essencial entre este tipo de regime e a
forma fascista do Estado capitalista. As mesmas condições geraram o nascimento do fascismo
na Europa de entreguerras e esse fascismo, como hoje os regimes latino-americanos, permitiu
a evolução do capitalismo rumo a formas econômicas superiores. (BRIONES e CAPUTO,
1978, p. 254, grifos nossos).
Sinteticamente, para Briones e Caputo (1978), as similitudes essenciais das ditadu-
ras latino-americanas com o fascismo europeu dos anos 1930 são as seguintes: 1) am-
bas têm origem numa situação dramática de crises econômica e política profundas
que põem em risco o conjunto do sistema; 2) deagrado o golpe, erige-se um Estado
de brutal repressão contra os trabalhadores e todas as forças políticas que ousem
questionar o novo regime político; 3) por m, a ditadura instalada não se restringe a
reprimir e aniquilar o movimento popular, nem se reduz ao papel contrarrevolucio-
nário. Além disso e até primordialmente, as ditaduras latino-americanas represen-
tam os interesses do capital monopolista, da grande burguesia interna associada ao
grande capital estrangeiro, operando uma substancial alteração no padrão de repro-
dução do capital e no sistema de dominação política.
Quanto aos elementos particularizadores do fascismo dependente, Briones e
Caputo (1978, p. 255) mencionam os seguintes “aspectos formais” – ou seja, as dife-
renças secundárias entre as experiências histórico-concretas do fascismo: 1) “caráter
não nacionalista e, ao contrário, a subordinação a interesses forâneos dos regimes
latino-americanos”; 2) “o fato de que eles não se apoiam em uma organização ou
partido civil para apoderar-se do poder, senão que o façam diretamente pelas Forças
Armadas e o fato de que não contam sequer no momento inicial [...] com um autên-
tico apoio de massas [...]”. Ora, na mesma toada de Bambirra e Dos Santos, Caputo
e Briones avaliam que a existência de um movimento de massas não é um elemento
inerente ao fascismo, convertendo-o em algo secundário cuja inexistência não inva-
lida a caracterização das ditaduras da AL como fascistas.
Trata-se, mais uma vez, a nosso ver, de uma interpretação tributária da III Inter-
nacional, visto que esta negligenciava a base de massas do fascismo como um traço
peculiar desse fenômeno político. Marini se distancia dessa démarche, como veremos
a seguir, e, ao fazê-lo, oferece uma visão mais precisa sobre a especicidade do Estado
e do regime político surgidos no contexto das ditaduras militares.
A especificidade da contrarrevolução latino-americana e a contrainsurgência
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Em conferência ministrada em 1978 que se converteu em artigo de revista no mes-
mo ano, intitulado O Estado de contra-insurgência
4
, Marini constata que a América
Latina atravessa “um período contrarrevolucionário” que impacta a estrutura e fun-
cionamento do Estado. Considera legítimo o recurso ao fascismo como “ponto de
referência” para analisar o processo contrarrevolucionário latino-americano, desde
que não se defenda “que se trata de fenômenos idênticos” (MARINI, 2020). Trata-se,
portanto, de capturar a especicidade da contrarrevolução vigente, partindo-se do
pressuposto de que “[...] ambos [ditadura fascista e ditadura militar] constituem for-
mas particulares da contrarrevolução burguesa, condição para o enriquecimento da
teoria política marxista” (MARINI, 2020, p. 26)
5
.
No entendimento de Marini, as ditaduras latino-americanas são vistas como produto
de três fatores, a saber:
1. Mudança da estratégia global dos EUA a partir do nal da década de 1950
em razão da sucessão de ameaças e derrotas impostas pelas forças anti-impe-
rialistas na periferia do sistema (Cuba, Vietnã, Congo, Argélia), acarretando
a adoção da estratégia de “resposta exível” (MARINI, 2020, p. 27), que, se-
gundo o imperialismo estadunidense, seria mais apta ao combate das forças
revolucionárias nos países dependentes, coloniais e semicoloniais. A doutri-
na que norteia a nova estratégia é a chamada doutrina de contrainsurgência,
que se converteu em base ideológica para a formação das Forças Armadas na
América Latina. Essa doutrina está assentada, segundo Marini, nos seguintes
aspectos:
a) aniquilamento: de forma muito semelhante ao fascismo, trata-se de
não só derrotar o inimigo, mas de aniquilá-lo. Aplica-se um “enfoque
militar à luta política”;
b) as forças anti-imperialistas e revolucionárias são vistas como inl-
tração estrangeira, como um “câncer” que deve ser extirpado pela con-
trarrevolução, muito semelhantemente ao fascismo;
c) por m, na doutrina de contrainsurgência, o Estado ditatorial é en-
4 Cf. texto em castelhano no link: http://www.marini-escritos.unam.mx/055_estado_contrainsurgencia.
html. O artigo foi traduzido para o português por Rodrigo Castelo (Professor da Escola de Serviço So-
cial da Unirio) e pode ser acessado no seguinte link: https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/
view/20985. O texto foi recentemente publicado no livro Economia, política e dependência, Edufal, 2020.
5 “Estaremos, assim, seguindo os ensinamentos dos marxistas europeus que utilizaram, para a análise
do fascismo, o ponto de referência que tinham em relação à contrarrevolução burguesa – o bonapar-
tismo –, sem assumir que se trata de fenômenos idênticos; na verdade se preocuparam em estabelecer
a especicidade do processo fascista e das formas de dominação e do Estado a que este dava lugar”
(MARINI, 2020, p. 26).
88
ARTIGOS (DOSSIÊ)
carado como um período de guerra para se aniquilar o inimigo, deven-
do posteriormente sair de cena para o restabelecimento da democracia
burguesa. Diferentemente do fascismo, diz Marini (2020, p. 29), o Es-
tado de contrainsurgência “[...] não questiona em nenhum momento a
validade da democracia burguesa, tão somente estabelece sua limitação
ou suspensão durante a campanha de aniquilamento.
2. As alterações ocorridas no capitalismo mundial sob a hegemonia estaduni-
dense no pós-guerra modicaram a dinâmica do imperialismo, impulsionan-
do a integração dos sistemas de produção dos países periféricos ao imperia-
lismo pela via do investimento direto do grande capital monopolista. Esse
processo emerge nos anos 1950 e se aprofunda nos anos 1960, produzindo
modicações no “bloco político dominante, especialmente o surgimento de
uma “[...] burguesia monopolista [interna] estreitamente vinculada à burgue-
sia imperialista” (MARINI, 2020, p. 29). A articulação do grande capital na-
cional e estrangeiro elide o “[...] esquema de alianças adotado até então pela
burguesia, cujo desfecho será a “ruptura” com o “Estado populista” – o Esta-
do, segundo Marini, “de toda a burguesia” – e a refuncionalização do Estado
ao sabor dos interesses das frações monopolistas;
3. Por m, o último fator apontado por Marini para explicar a emergência da
contrarrevolução na América Latina é o ascenso do movimento de massas,
especialmente o tensionamento que o proletariado urbano, o campesinato e
a parcela radicalizada da pequena burguesia passam a fazer nos marcos dos
regimes populistas
6
, aspecto que eleva a contradição no interior do bloco no
poder e arrasta o conjunto da classe dominante para a alternativa golpista.
É na análise da dinâmica anterior ao golpe de Estado, durante o processo de
desestabilização, e da natureza do Estado que se instaura com as ditaduras que,
na perspectiva de Marini, ca mais nítida a especicidade da contrarrevolução
latino-americana. O recurso ao terrorismo de Estado contra o movimento popular
6 Em escrito de 1967, intitulado Subdesenvolvimento e revolução, Marini enxerga o populismo como um
“jogo político” em que a burguesia industrial lança mão da pressão das massas urbanas para garantir o
seu “predomínio dentro da coalizão dominante, ou seja, trata-se de um “jogo político” interno ao bloco
no poder, um conito intraburguês, entre a burguesia industrial e a burguesia agroexportadora. O “jogo
político” populista tem como fruto “o estabelecimento de regimes de tipo bonapartista” (MARINI, 2012,
p. 57), cujo exemplo mais claro seria o governo de Perón na Argentina. “O bonapartismo se apresenta,
nesta perspectiva, como o recurso político utilizado pela burguesia para enfrentar seus adversários
(MARINI, 2012, p. 58). Ao m e ao cabo, populismo e bonapartismo parecem se constituir enquanto
sinônimos para Marini, perfazendo os governos na região que vigoraram até os golpes militares e a ins-
tauração do Estado de contrainsurgência, entre as décadas de 1960 e 1970.
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e mesmo contra determinadas frações burguesas recalcitrantes não particulariza o
fascismo, tratando-se, pois, de uma característica geral de toda contrarrevolução,
seja ela fascista, bonapartista ou militar. Identicar as ditaduras latino-americanas
ao fascismo por esse aspecto seria, segundo Marini, uma impostação mecanicista do
analista político. Nesse sentido, alerta ele: “As sociedades concretas latino-america-
nas imem a cada um desses momentos um traço particular” (MARINI, 2020, p.
31), não redutível à contrarrevolução de tipo fascista.
Os caminhos particulares para o golpe de Estado na AL
Na nossa leitura, Marini é muito tributário da interpretação de Nicos Poulantzas
(1972) a respeito das condições de emergência e da natureza do fascismo, o que o faz
recusar a aderência do conceito às ditaduras da América Latina. Cumpre frisar que
Marini não bloqueia o conceito com os mesmos argumentos, por exemplo, de Atilio
Borón (1977, p. 499), para quem “[...] o fascismo se situa historicamente no período
de amadurecimento e crise da fase clássica do imperialismo [...]. O fascismo pertence
a esse período particular na história do capitalismo monopolista que se delimita com
as duas guerras mundiais. Parece-nos que Marini aproxima-se mais de Poulantzas
(1972, p. 57, grifos nossos) quando este arma que
[...] o fascismo não é, de forma alguma, um fenômeno ligado a este ‘período’ [entreguerras].
Este ‘período’ só tem importância na medida em que circunscreve conjunturas de luta de clas-
ses, nas quais contribui para a emergência das crises políticas a que corresponde o fascismo:
crises políticas que não são exaustivamente determinadas pelo caráter do período e que podem
muito bem surgir em períodos diferentes.
Marini, seguindo Poulantzas, em nossa interpretação, em nenhum momento re-
cusa o conceito de fascismo por considerá-lo uma categoria histórica, restrita a um
determinado período marcado por características econômicas irrepetíveis. Os moti-
vos para sua rejeição são, portanto, de natureza diversa.
Em primeiro lugar, o aspecto de maior profundidade para o rechaço da tese do
fascismo na América Latina reside na natureza do capitalismo dependente, que, por
estar assentado na superexploração da força de trabalho, não conseguiria reunir con-
dições para a conformação de um movimento fascista de massas capaz de derrotar
politicamente o movimento popular. Segundo Marini (2020, p. 31, grifo nosso), “[...]
em nenhum caso ela tem condições para reunir forças sucientes para derrotar o mo-
vimento popular, e não chega sequer à estruturação de um partido político. Isso nos
permite concluir que, para Marini, o fascismo é um fenômeno político contrarrevo-
lucionário que só teria condições de possibilidade para se constituir enquanto forma
90
ARTIGOS (DOSSIÊ)
de Estado nos países centrais. Isso não exclui a possibilidade de o fascismo existir
como movimento fascista, inclusive com relativa força política, como os exemplos
históricos do Integralismo brasileiro dos anos 1930 e o movimento fascista chileno
no período do governo de Salvador Allende. Ainda assim, a superexploração e seus
efeitos sociais no capitalismo dependente impediriam que tais movimentos fascis-
tas se constituíssem enquanto um fenômeno político de massas com força suciente
para derrotar politicamente o movimento popular.
Esta recusa do conceito de fascismo em virtude da natureza dependente do capi-
talismo latino-americano não leva Marini a prescindir da análise concreta da situa-
ção da luta de classes nos países da região. Da análise da tessitura concreta da luta de
classes e da crise política, ele extrai outros argumentos para se afastar do conceito de
fascismo. Assim, busca articular dialeticamente a economia e a política na leitura da
processualidade histórica latino-americana, cujo desfecho será o desenvolvimento
do conceito de Estado de contrainsurgência.
Como já apontado, Marini parte da premissa de que a conjuntura política da
América Latina nos anos 1960 e 1970 é de ascenso do movimento popular, com forte
tensionamento reformista do Estado populista, como no caso do Brasil, ou mesmo
com a radicalização socialista chilena. Essa situação da luta de classes é distinta da-
quela do período precedente à emergência do fascismo ao poder na Europa, segundo
Poulantzas (1972). No início dos anos 1920, os proletariados italiano (1920) e alemão
(1918/19-1923) tinham sofrido duras derrotas, instaurando-se um “período de esta-
bilização relativa” (POULANTZAS, 1972, p. 164) profundamente desvantajoso para
ambos. Segundo o mesmo autor, “[...] a viragem decisiva neste processo coincide
com os inícios do processo de fascistização – que marcam, por um lado, a ofensiva
declarada da burguesia e, por outro, a etapa defensiva, em sentido rigoroso, da classe
operária” (POULANTZAS, 1972, p. 165)
7
.
Marini percebe o contraste da luta de classes nos períodos precedentes aos golpes
lá e cá; e arma que “[...] a burguesia monopolista na AL não pode pretender reunir
forças de massas, que lhe permita enfrentar politicamente, nas urnas e nas ruas, o
movimento popular” (MARINI, 2020, p. 32). A nosso ver, essa distinção na luta de
classes prévia ao golpe é um segundo fator que afasta Marini do conceito de fascismo.
Um terceiro aspecto que parece afastar Marini do conceito de fascismo reside na
questão da crise política burguesa anterior ao golpe de Estado. Segundo Poulantzas
7 A interpretação de Poulantzas acerca das condições de emergência do fascismo contradiz as teses da
Internacional Comunista (IC) expressas entre o 4º e o 6º congressos. Sinteticamente, a leitura da IC era
a seguinte, segundo o autor grego: “[...] a fascismo como estratégia unicamente defensiva do capitalismo,
como fenômeno exclusivamente redutível à fraqueza da burguesia e como sinal infalível da iminência da
sua última hora [...]” (POULANTZAS, 1972, p. 53).
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(1972, p. 77, grifo nosso): “O processo de fascistização e a instauração do fascismo
correspondem a uma situação de aprofundamento e de aguda exacerbação das con-
tradições internas entre as classes e frações de classe dominantes: é este um elemen-
to importante da crise política em questão. É justamente essa grave crise política e
ideológica burguesa que permite a emergência com força do partido fascista na cena
política
8
, galvanizando a pequena burguesia que, em massa, se afasta dos partidos
burgueses tradicionais. Pois bem, apesar da crise política do populismo, da “fratura
no bloco no poder” (MARINI, 2020, p. 30), Marini parece detectar a qualidade dis-
tinta da crise política que serve de base para o golpe e para a instauração do Estado
de contrainsurgência em relação à ditadura fascista. Diz ele:
[Diante do ascenso do movimento popular] se coloca como meta o reestabelecimento das
condições de funcionamento do aparato estatal, mesmo que temporariamente, para poder
acioná-lo em seu proveito. Isso implica em ressoldar
9
a unidade burguesa, refazendo o bloco no
poder tal como se encontrava antes da sua fratura [...] (MARINI, 2020, p. 32, grifos nossos).
Tomando como exemplo o caso brasileiro, as contradições políticas no seio do
bloco no poder e na cena política no início dos anos 1960 foram temporariamente
contrarrestadas pelo amplo consenso burguês em torno do golpe militar em 31 de
março de 1964. No caso chileno, a agudização da contradição entre a média burgue-
sia em relação ao grande capital nacional e estrangeiro se expressou nitidamente nas
eleições de 1970, quando o primeiro setor apoiou a Democracia Cristã e os últimos
apoiaram o candidato do Partido Nacional, divisão burguesa esta que permitiu a vi-
tória eleitoral da Unidade Popular com 36,3% dos votos – menos de dois pontos per-
centuais à frente do candidato da direita. Diante da ascensão e do vigor do movimen-
to popular, entretanto, as forças burguesas se reunicaram, tendo em vista o golpe de
11 de setembro de 1973. Justamente essa ressoldagem transitória do bloco no poder
inexistiu no processo de ascensão do fascismo europeu, fato este que particulariza a
crise política burguesa latino-americana em relação às crises políticas que criaram
condições objetivas para a emergência do partido fascista.
Por m, o aspecto de maior relevância atribuído por Marini para invalidar a
8Ora, por intermédio do partido fascista, a pequena burguesia intervém na cena política como força
social: [...] ela desempenha nesta aliança [com a burguesia] um papel relativamente autônomo em re-
lação ao grande capital. Agora, a pequena burguesia já não está mais pura e simplesmente ‘a reboque
da burguesia, como quando era representada pelos partidos burgueses tradicionais” (POULANTZAS,
1972b, p. 23).
9 A expressão “ressoldagem” foi a mesma utilizada por Poulantzas para se referir ao efeito que, em regra,
a luta contra o inimigo comum – o proletariado – traz para o bloco no poder, efeito este não detectado
na emergência do fascismo em virtude da “[...] extensão dos efeitos dessa politização [da luta de classes]
às contradições no próprio seio do bloco” (POULANTZAS, 1972a, p. 76).
92
ARTIGOS (DOSSIÊ)
caracterização de fascismo para as ditaduras da América Latina é o fato de que, “[...]
por se tratar de sociedades baseadas na superexploração da força de trabalho, em
nenhum caso ela [a burguesia] tem condições para reunir forças sucientes para der-
rotar politicamente o movimento popular, e não chega sequer à estruturação de um
partido político [fascista]” (MARINI, 2020, p. 31). As expressões fascistas surgidas no
Brasil e, principalmente, no Chile, como o Partido Pátria e Liberdade e o movimen-
to gremialista (MARINI, 2019), foram incapazes de deter o ascenso do movimento
popular, diferentemente do fascismo europeu, que constituiu vigorosas organizações
reacionárias de massa que ainda antes da tomada do poder derrotaram, nas ruas e nas
urnas, o movimento operário.
No caso do fascismo europeu, a tomada do poder é a consumação de uma vitória
política precedente, naquilo que Poulantzas dene como “processo de fascistização,
ao passo que, na América Latina, a tomada do poder é condição necessária para
se deter o movimento popular. Dada essa tibieza do movimento pequeno-burguês
10
em condições de capitalismo dependente, torna-se imprescindível a “[...] interven-
ção aberta do instrumento último de defesa do poder burguês: as Forças Armadas
(MARINI, 2020, p. 32).
Marini reconhece, entretanto, que os movimentos fascistas cumpriram um im-
portante papel de desestabilização no cenário pré-golpe, mesmo sem possuírem força
suciente para derrotar o movimento popular. No caso chileno, Marini (2019, p. 260)
detecta a existência de “ações fascistas de tipo clássico, tais como “[...] manifesta-
ções de rua, o emprego de grupos de choque e do terrorismo branco, que a partir
de dezembro de 1971, na célebre “marcha das panelas vazias, reuniu pela primeira
vez nas ruas de Santiago “uma massa de pequeno-burgueses e lumpemproletários
(MARINI, 2019, p. 266).
O movimento fascista chileno – entre dezembro de 1971 e 11 de setembro de 1973
– foi impulsionado pela especulação levada a cabo pela burguesia contra o governo
de Salvador Allende. Segundo o autor, “[...] a especulação aparece como a política
10 Especicamente em relação ao Chile, Marini detecta uma peculiaridade na situação da pequena
burguesia em relação ao bloco no poder e ao Estado, caso comparado ao Brasil e ao México. A pequena
burguesia chilena, segundo ele, teria se valido dos seus privilégios em relação ao proletariado para con-
formar uma pequena burguesia burocrática que “[...] consegue manter a posição conquistada, sem que
isso acarrete o desprendimento da classe de onde provém e sua incorporação à burguesia” (MARINI,
2019, p. 112). Há uma manutenção da “relação de classe a classe” que permite à pequena burguesia “[...]
valer seu peso e impor à burguesia, necessitada de votos, o respeito à aliança contraída. Assim, “[...] a
pequena burguesia chilena converte-se em uma verdadeira camada política dirigente que, respondendo
aos interesses de sua classe, faz dela, em seu conjunto, uma classe de apoio ativa ao sistema de domi-
nação vigente” (MARINI, 2019, p. 113). Essa aliança da pequena burguesia com a burguesia em torno
do sistema de dominação foi fragilizada com as contradições do bloco no poder em favor do capital
monopolista durante o governo de Eduardo Frei (DC).
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econômica do fascismo na fase de luta pelo poder” (MARINI, 2019, p. 266), pois,
através do açambarcamento e do mercado paralelo, foi se “ressoldando a unidade
burguesa, alimentando a “oposição de amplos setores da pequena burguesia à classe
operária” e, por m, neutralizando e desorganizando setores populares que, “[...] em
condições distintas, seriam aliados seguros do proletariado” (MARINI, 2019, p. 267).
Contudo, o movimento fascista chileno se restringiu ao papel de “[...] criar condições
propícias para [a burguesia] fazer uso daquele que é seu instrumento básico de domi-
nação: as Forças Armadas” (MARINI, 2019, p. 260).
A derrota eleitoral em março de 1973 e, principalmente, a derrota “[d]a tentativa
fascista de promover uma marcha sobre o Palácio La Moneda, ao estilo mussolinia-
no” (MARINI, 2019, p. 260), evidenciou que o papel das hostes fascistas capitaneadas
pela pequena burguesia foi de classe-apoio
11
para o restabelecimento do sistema de
dominação chileno, sob a batuta das Forças Armadas e do grande capital. Em síntese,
a pequena burguesia fascista do capitalismo dependente agrupou-se “[...] ao redor
do grande capital e de seu braço armado, para formar essa massa de manobra que
proporcionou uma base social ao golpe militar” (MARINI, 2019, p. 272).
Diversamente, o fascismo europeu se alimentou da crise econômica e, principal-
mente, da crise política da burguesia para alçar a pequena burguesia à condição de
autêntica força social” (POULANTZAS, 1972b, p. 20) por intermédio do partido
fascista. A pequena burguesia deixa de se posicionar “simplesmente ‘a reboque’ da
burguesia, assumindo um “papel relativamente autônomo em relação ao grande capi-
tal” (POULANTZAS, 1972, p. 23, grifos nossos). A condição de força social conferi-
da pelo fascismo à pequena burguesia não parece ter sido identicada por Marini na
contrarrevolução latino-americana, na qual acabou gurando na mera condição de
classe-apoio. Marini reconhece que a pequena burguesia chilena assumiu uma “ati-
vidade de independência crescente” em relação aos partidos das classes dominantes,
sendo o “[...] surgimento do fascismo – a forma por excelência da autonomização
da pequena burguesia [...] uma expressão parcial desse fenômeno” (MARINI, 2019,
p. 122). Ainda assim, “A função do fascismo como apêndice da reação burguesa [...]
[levou] a pequena burguesia, zelosa de sua autonomia, a transferir seus desejos de
liderança para as Forças Armadas” (MARINI, 2019, p. 123, grifos nossos).
11 Conceito de “classe-apoio” de Nicos Poulantzas – presente na obra Poder político e classes sociais – ao
qual Marini faz referência explícita no seu artigo A pequena burguesia e o problema do poder, de 1973
(MARINI, 2019). Nesses escritos sobre o Chile, Marini (2019, p. 122) arma que a pequena burguesia
chilena – proprietária e não proprietária – era uma “classe ativa de apoio” ao sistema de dominação que
entrou em crise com a nova etapa da dependência. A aliança da pequena burguesia com o bloco no po-
der em torno da preservação do sistema de dominação vigente começa a se esgarçar durante o governo
Eduardo Frei, que adota uma política econômica do interesse do grande capital e em prejuízo à média
e pequena burguesia.
94
ARTIGOS (DOSSIÊ)
Mesmo no Chile, onde o movimento fascista mais se desenvolveu, a função do
fascismo foi apenas a de desestabilizar o governo da esquerda, sem força política
suciente para derrotar politicamente o movimento popular e se impor às classes
dominantes como a classe reinante capaz de dirigir as alterações necessárias no capi-
talismo dependente, no bloco no poder e no aparato de Estado.
A natureza particular do Estado de contrainsurgência
O Estado que emerge do golpe tem como sua “cabeça” as Forças Armadas, que “[...]
tomaram o seu controle e exercem como instituição o poder político” (MARINI,
2020, p. 33). O recurso às Forças Armadas como instituição que efetiva o golpe e
exerce o poder político no novo regime demonstra que “[...] a burguesia monopo-
lista [...] [conferiu] a este aparato especial do Estado a missão de solucionar o pro-
blema; está, pois, passando do terreno da política ao da guerra” (MARINI, 2020, p.
33). Como dissemos acima, isso se deve justamente à força irrefreável do movimento
popular e à incapacidade da burguesia, bem como da pequena burguesia fascista, de
derrotá-lo politicamente anteriormente ao coup d’État.
O movimento fascista – útil na desestabilização – é desmobilizado: “[...] a pequena bur-
guesia [...] não encontra nele [governo militar] canais de expressão, não está organizada
para sustentá-lo e não obtém vantagens reais do governo” (MARINI, 2019, p. 63). Esse
aspecto é nevrálgico para a diferenciação do Estado de contrainsurgência em relação ao
Estado fascista; este último “[...] é caracterizado pela mobilização permanente das massas
populares” (POULANTZAS, 1972b, p. 124) e pela conversão da pequena burguesia à
condição de classe reinante
12
, ao menos num primeiro momento.
12 Por classe reinante entende-se a classe ou fração “[...] cujos partidos políticos estão presentes nos
lugares dominantes da cena política” (POULANTZAS, 2019, p. 254), que não necessariamente se con-
funde com a classe ou fração hegemônica no bloco no poder. A classe reinante pode sequer fazer parte
do bloco no poder, como foi o caso do fascismo. Segundo Poulantzas, com o fascismo no poder, a pe-
quena burguesia foi elevada à condição de classe reinante, através da qual os interesses políticos da classe
hegemônica – capital monopolista – se faziam representar. Num primeiro momento, o partido fascista,
exterior ao aparelho de Estado, invade-o, de fora, “[...] domina os ramos do aparelho repressivo de Esta-
do, o exército, a administração, a polícia, a magistratura” (POULANTZAS, 1972b, p. 125). Com a esta-
bilização do regime, os aparelhos devidamente modicados passam a dominar o partido fascista. Nessa
reorganização do aparelho de Estado, a polícia política ganha centralidade, traço peculiar do fascismo,
segundo Poulantzas. O mesmo autor arma que, nessa etapa de estabilização, a pequena burguesia passa
a se limitar à condição de classe detentora do aparelho de Estado, reexo dos interesses do capital mo-
nopolista que o fascismo passou a representar. Ainda assim, o “[...] papel de força social manifesta-se a
partir de agora, principalmente, por efeitos característicos nestes aparelhos” (POULANTZAS, 1972b, p.
24). As formas de que esses aparelhos se revestem não responderiam imediatamente aos interesses do
grande capital, “[...] nem pelo papel ideológico geral do fascismo” (POULANTZAS, 1972b, p. 24), mas
sim ao papel da pequena burguesia enquanto força social ocupante desses aparelhos.
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Aparentemente fazendo uma concessão às teses que qualicavam as ditaduras la-
tino-americanas como fascistas, em escrito de 1974 a respeito do Chile, Marini (2019,
p. 63) en passant chega a dizer que “no máximo” tais regimes poderiam ser conside-
rados como uma “forma particular de fascismo, um “militar-fascismo. Sob “a égide
do grande capital nacional e estrangeiro, as ditaduras se apoiariam “[...] fundamen-
talmente em um setor especíco das classes médias: os militares” (MARINI, 2019, p.
63). A impressão que ca é que essa tímida concessão – que, por sinal, fora abando-
nada por ele nos escritos seguintes – se deve à origem social pequeno-burguesa da
cúpula das Forças Armadas, que foi alçada ao posto de classe reinante na ditadura
de Pinochet. Entretanto, o tom de concessão, a parca problematização e o abandono
da denominação de militar-fascismo nos escritos posteriores nos levam a crer que
Marini não tinha realmente o objetivo de aderir à tese do fascismo dependente, ainda
que de forma matizada.
No Estado de contrainsurgência, as tomadas de decisão recaem sobre as Forças
Armadas e a tecnocracia civil, ambas integrantes do hipertroado Poder Executivo
composto por dois ramos centrais. O ramo militar é “constituído pelo Estado maior
das Forças Armadas, que expressa a instituição nas tomadas de decisão; o ramo eco-
nômico
13
é “[...] representado pelos ministérios econômicos, assim como as empresas
estatais” (MARINI, 2020, p. 34). Os ramos econômico e militar – no seio do hiper-
troado Poder Executivo resultante do esvaziamento, em maior ou menor grau, dos
Poderes Legislativo e Judiciário – entrelaçam-se no Conselho de Segurança Nacional,
“[...] formando no topo o órgão-chave do Estado de contrainsurgência” (MARINI,
2020, p. 34). Este não precisa necessariamente tomar a forma de uma ditadura mi-
litar; pode assumir feições de um regime civil e com um aparente estado de direito,
como na Venezuela desde 1960, que mantém um Conselho de Segurança Nacional
“[...] fora do controle do Congresso e demais órgãos estatais” (MARINI, 2020, p. 34).
As semelhanças desse “Estado corporativo da burguesia monopolista e das Forças
Armadas com o Estado fascista são, segundo Marini, formais, “[...] mas a sua espe-
cicidade está na sua peculiar essência corporativa e na estrutura e funcionamento que
lá se geram. Chamá-lo de fascista não nos faz avançar um passo na compreensão do
seu caráter” (MARINI, 2020, p. 35). Ao que nos parece, o sentido que Marini quer
transmitir com a qualicação de corporativo ao Estado de contrainsurgência se deve
ao monopólio que os tecnocratas civis e militares têm da cena política, garantindo-se
a primazia dos interesses do grande capital monopolista nas políticas econômicas
13 Importante observar que Marini fala em ramo econômico, não em ramo civil, o que denota que o
busílis aqui não é a contraposição entre militar-civil, como impera na literatura liberal-democrática,
mas sim o traço de classe dos elementos civis.
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
implementadas. Eles não são nada além de “representação política do capital”, não
gozando de nenhuma autonomia relativa adicional em relação ao capital monopo-
lista. Como vimos acima, esse Estado corporativo da burguesia monopolista e das
Forças Armadas enquadra desde o primeiro momento a pequena burguesia fascista,
blindando o aparelho de Estado de qualquer sujeito político que não represente os
interesses estratégicos do capital monopolista. Mesmo as frações não hegemônicas
do bloco no poder foram bloqueadas das suas representações políticas, estando seus
interesses – ainda que não excluídos por completo
14
– estrategicamente secundariza-
dos pelos militares e pelos tecnocratas civis.
No Brasil, a expectativa de parcelas das classes dominantes, especialmente aquelas
não monopolistas, de partidos e lideranças políticas expressivas, era de que o golpe
de 1964 operasse uma curtíssima e cirúrgica contrarrevolução, atacando duramente
as entidades sindicais e políticas dos trabalhadores, e que pavimentasse o caminho
para as eleições em 1966. Semelhantemente, no Chile, os recuos do governo Allende
diante da Democracia Cristã e a repressão das Forças Armadas estavam pavimentan-
do uma possível derrota eleitoral
15
da Unidade Popular. Todavia, pergunta Marini,
“Por que, então, o golpe?”:
Porque somente ele permitiria resolver a crise do sistema de dominação em benefício do
grande capital nacional e estrangeiro. Isso implicava, em primeiro lugar, repelir e desorgani-
zar o movimento popular, golpeando seus partidos e eliminando as organização de massas e
quadros avançados que ali tinham se formado; restaurar a unidade do aparato estatal e refor-
çá-lo, situando-o sobre as preses que as diversas classes exerciam sobre ele; assentar sobre
bases sólidas – as Forças Armadas – o poder do grande capital, e não sobre a base de uma
aliança com os estratos burgueses e pequeno-burgueses, pois, se bem haviam sido úteis para
criar as condições para derrotar o governo da UP, eles impediriam que o grande capital triun-
fante impusesse ao país a orientação desejada desde os tempos de Frei. (MARINI, 2019, p. 62).
Além de ser o Estado da contrarrevolução, o Estado de contrainsurgência é visto
14 Em consonância com os conceitos poulantzasianos de bloco no poder e hegemonia, Marini (2020,
p. 33, grifos nossos) arma que “[...] embora o Estado de contrainsurgência seja o Estado do capital
monopolista, cujas frações constituem o bloco no poder, não exclui a participação das demais frações
burguesas, ainda que em condição subordinada. O desdobramento político é o de que “[...] é incorreto
supor que as camadas burguesas não monopolistas podem estar interessadas na supressão” do Estado de
contrainsurgência, o que explicaria o fracasso das frentes antifascistas diante da rejeição delas por parte
da burguesia não monopolista.
15 Na leitura de Marini (2019, p. 62, grifos nossos), “O golpe estava praticamente consumado e tornava-
-se realmente desnecessário recorrer à força das armas para consagrá-lo: o próprio Allende, após oferecer
à DC, sem sucesso, todas as exigências da reação, dispôs-se a anunciar ao país um plebiscito sobre a sua
renúncia. O simples fato de tomar essa atitude signicava a capitulação, levando a DC a estender avida-
mente as mãos para apanhar a faixa presidencial que caía como uma ‘pena madura.
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por Marini como o Estado a serviço do capital monopolista, nacional e estrangeiro,
destinado a superar o “Estado de toda a burguesia. A ressoldagem do bloco no poder
fora temporária, no limite da necessidade para desestabilizar e criar as condições
para o golpe. Após este, as Forças Armadas, embebidas da doutrina de contrainsur-
gência, devem tomar a dianteira do aparato de Estado para, em conjunto com os
tecnocratas civis do grande capital, implementar a política econômica de interesse
do capital monopolista, o que passa pela “[...] obtenção de altas taxas de mais-valia,
à custa da superexploração dos trabalhadores” (MARINI, 2019, p. 262) e de um forte
estímulo à concentração e centralização de capital, em prejuízo do interesse de seto-
res da média e pequena burguesia.
Essas tarefas atribuídas ao Estado de contrainsurgência não lhe conferem um ca-
ráter antagônico em relação à democracia burguesa, característica típica do fascismo
clássico, que se propunha um Estado de superação denitiva do regime democrático.
Diferentemente disso, Marini enfatiza que, desde seu início, o Estado de contrain-
surgência se apresenta como defensor da democracia, uma espécie de regime tran-
sitório e saneador, que, após cumprir sua tarefa de restaurar a dominação burguesa,
deveria se institucionalizar, transmutando-se numa democracia restringida. Em suas
palavras, trata-se de uma “[...] ‘abertura’ política que preserve o essencial do Estado
de contrainsurgência, mediante a “[...] institucionalização da participação direta do
grande capital na gestão econômica e na subordinação dos poderes do Estado às For-
ças Armadas” (MARINI, 2020, p. 41).
Denitivamente, essa caraterística contrasta claramente com a ideologia fascista,
a qual enxergava na democracia burguesa a corrupção da nação, a fratura da mítica
unidade originária em virtude de ideologias fragmentadoras que emergem em con-
dições democráticas, tais como a luta de classes do marxismo e o individualismo
liberal. O Estado fascista representaria a superação do socialismo (luta de classes) e
do capitalismo liberal (individualismo), instaurando o corporativismo, que, segundo
Togliatti (1978, p. 102), seria o “meio de eliminar a luta de classes” em favor da cola-
boração entre elas. Para o fascismo, portanto, no futuro não se projeta nada que não
seja o fortalecimento do próprio Estado fascista.
Conclusão
Como vimos, a tendência que predominava na teoria marxista da dependência era a
de caracterizar os Estados de exceção latino-americanos dos anos 1960 e 1970 como
neofascistas ou fascistas dependentes, porquanto, semelhantemente ao fascismo eu-
ropeu dos anos 1920 e 1930, constituíam-se como o último recurso de dominação
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
disponível à burguesia para salvaguardar o capitalismo acossado por profunda crise
econômica e, principalmente, pela crise política revolucionária. Ademais, o fascismo
dependente – tal como o fascismo clássico – não apenas garantia a sobrevivência
do capitalismo, mas também o conduzia a uma nova modalidade de acumulação,
marcada pela dominância econômica do capital monopolista, e uma nova forma de
dominação política, expressa na hegemonia do grande capital no bloco dominante de
cada formação social latino-americana.
Segundo nossa interpretação, os autores da teoria marxista da dependência, ao
seguirem esse caminho, aderiram à leitura da III Internacional Comunista para o en-
tendimento do surgimento e da consolidação do fascismo enquanto forma de Estado
de exceção. O Informe de Dimitrov no VII Congresso da IC dizia o seguinte:
Diante das condições de profunda crise econômica desencadeada, da violenta agudização da
crise geral do capitalismo, da revolucionalização das massas trabalhadoras, o fascismo passou
para a ofensiva. A burguesia dominante busca cada vez mais sua salvação no fascismo para
levar a cabo medidas excepcionais de espoliação contra os trabalhadores [...] e impedir, por
meio de tudo isso, a revolução. (DIMITROV, 1935).
Quanto à interpretação de Dimitrov, é importante ressaltar que esta se mostrou
incapaz de incorporar ao caráter de classe do fascismo – ditadura do capital monopo-
lista – o traço inovador dessa dominação burguesa, marcada primordialmente, mas
não somente, pelo movimento de massas da pequena burguesia. A m de rechaçar
as interpretações social-democratas do fenômeno – para quem o fascismo é o poder
estatal “por cima de ambas as classes, do proletariado e da burguesia” (BAUER apud
DIMITROV, 1935), uma ditadura da pequena burguesia sobre a burguesia –, Dimi-
trov (1935) armou: “O fascismo não é um poder situado por cima das classes, nem
o poder da pequena burguesia ou do lumpumproletariado sobre o capital nanceiro.
O fascismo é o poder do próprio capital nanceiro.
Bambirra, Dos Santos, Briones e Caputo, ao operarem no mesmo registro, secun-
darizaram o movimento de massas e a organização da pequena burguesia no conceito
de fascismo, dando-lhe “aspecto formal” cuja inexistência não invalidaria a qualica-
ção de fascista às ditaduras instauradas no Cone Sul.
Vale mencionar aqui dois autores comunistas que nos anos 1920 e 1930 tinham
leituras mais matizadas do que Dimitrov acerca do fascismo: Evguiéni Pachukanis e
Palmiro Togliatti. O jurista russo nos diz o seguinte a respeito do fascismo, em artigo
de 1926, intitulado Para uma caracterização da ditadura fascista:
Por enquanto, é suciente para nós estabelecer que o regime fascista é um regime de ditadu-
ra partidária e, no que se refere a isso, diferencia-se da ditadura puramente militar, de tipo
bonapartista, que se apoia em um exército. No uso da organização política de massas está a
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fonte da força e a fonte da fraqueza de Mussolini. Fonte de força, porque Mussolini tem aqui
um ponto de apoio, tem à disposição uma força política na qual se apoiar quando é preciso
lutar contra outras forças. Na Itália, tem a monarquia, tem a Igreja católica, tem o exército,
tem o grande capital, que, embora esteja agora entrando em acordo com o fascismo, relacio-
na-se com ele com uma determinada porção de desconança. Mussolini tem a seu dispor
uma organização política de massas, a qual, incluindo as camadas pequeno-burguesas e
até proletárias, pode balançar. (PACHUKANIS, 2020, p. 34, grifos nossos).
Por sua vez, em 1935, mesmo ano do Informe de Dimitrov no VII Congresso da
IC, o líder comunista italiano e então vice-secretário geral da IC proferiu um curso
sobre o fascismo para operários italianos exilados em Moscou, em que buscou in-
tegrar na análise do fenômeno o seu caráter de classe com seu ineditismo político.
Acerca do segundo elemento constitutivo do fascismo, sendo o primeiro seu caráter
de classe, diz Togliatti (1978, p. 05, grifos nossos):
O segundo elemento consiste no caráter das organizações do fascismo, com base de massas.
Muitas vezes o termo “fascismo” é empregado de uma maneira imprecisa, como sinônimo
de reação, terror, etc. Isto não é justo. O fascismo não signica apenas luta contra a demo-
cracia burguesa [...]. Devemos empregá-la apenas quando a luta contra a classe operária
se desenvolve sobre uma nova base de massa de caráter pequeno-burguês [...]. A ditadura
fascista se esforça, assim, por ter um movimento de massa, organizando a burguesia e a pe-
quena burguesia.
As citações acima foram feitas objetivando problematizar a perspectiva segundo a
qual o caráter de classe – capital monopolista – e o terrorismo de Estado são elemen-
tos sucientes para a caracterização de um regime político autoritário como fascista.
No seio da TMD, conforme também buscamos apresentar neste trabalho, ape-
nas Marini discrepou em suas referências no entendimento do fascismo clássico,
valendo-se, mesmo que tacitamente, da formulação de Nicos Poulantzas. Para o
marxista grego, o processo de fascistização ocorre, de início, como avanço político
da burguesia, em seguida à derrota estratégica da classe operária e dos movimentos
populares, porém tal ofensiva burguesa se inscreve em um contexto de crise de
hegemonia que abala as alianças internas ao bloco dominante burguês e fratura
sua organização, permitindo a emergência da pequena burguesia, organizada em
partido, como força social decisiva na cena política, que se radicaliza em defesa de
formas de Estados de exceção.
No primeiro período no poder, ainda segundo Poulantzas, a política do fascismo
para o estabelecimento da hegemonia do grande capital monopolista, de um lado,
realiza conceses às massas populares – “o que não impede, antes pelo contrário, a
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
eliminação da sua vanguarda” –, e, de outro, permite que a pequena burguesia, sem
nunca se tornar classe politicamente dominante, transforme-se em classe reinante e
até mesmo em classe detentora do Estado. Enquanto, no momento de estabilização
no poder, a fração do grande capital monopolista estabelece sua hegemonia, retoma
o estatuto de classe reinante, desalojando a pequena burguesia, mesmo que esta con-
tinue a ser a classe detentora do Estado.
Destaca-se, ainda, que, na análise poulantziana, o Estado fascista possui como
característica uma marcada presença de um partido de massa no interior dos apare-
lhos ideológicos de Estado. O fascismo é, então, exógeno ao aparelho de Estado: “[...]
apesar das conivências entre o partido fascista e os ramos do aparelho de Estado, o
instrumento principal de acesso ao poder é um aparelho exterior ao aparelho repres-
sivo de Estado invadido de ‘fora” (Poulantzas, 1972b, p. 124).
Na América Latina, apesar da derrota e da crise de organização do proletariado
e dos movimentos populares, da ofensiva do grande capital monopolista, da forte
presença da burguesia agrária e do importante peso político que a pequena burgue-
sia assume, sobretudo nos países do Cone Sul, o que se observou foi a conformação
de um bloco no poder que se apoia não em qualquer setor ou partido da pequena
burguesia, mas sim nas Forças Armadas. Não se invade “por fora” o aparelho de Es-
tado, o direciona a partir de mecanismos internos. Ou seja, o instrumento de acesso
ao poder é endógeno ao aparelho repressivo de Estado, e não se observa qualquer
fusão do movimento reacionário pequeno-burguês e suas organizações políticas com
o aparelho de Estado.
A preeminência do argumento de Marini, ao nosso ver, encontra-se neste aspecto
decisivo. O cientista social brasileiro foi capaz de compreender que a crise de hege-
monia burguesa, nos países dependentes, se resolvia a partir de uma organização cor-
porativa existente no aparelho de Estado: as Forças Armadas. O Exército era assim
o principal agente não apenas de repressão e terror, mas também político, desempe-
nhando simultaneamente papel extramilitar e de militarização da política.
A fusão dos interesses corporativos das Forças Armadas e da burguesia monopo-
lista, como adverte Marini, não poderia, assim, obscurecer o fato de que as primeiras
não são senão “[...] um corpo de funcionários cuja vontade econômica e políticas é
rigorosamente da classe a que serve, enquanto aquela se constitui em “fração pro-
priamente capitalista” do bloco dominante nas formações sociais do capitalismo de-
pendente (MARINI, 1978). O fato de que o bloco dominante nos países dependentes
latino-americanos, após derrotar e desarticular o movimento operário, se mantenha
chancelando o regime de exceção permanente e se veja forçado a continuar a repri-
mir pelo terror as organizações políticas e sindicais, não é suciente para qualicar
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um regime como fascista.
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