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ARTIGOS (DOSSIÊ)
Brasil e América do Sul: Subimperialismo e Semiperiferia em Perspectiva
Histórica
Carlos Eduardo Vidigal *
Resumo: O conceito de subimperialismo de Ruy Mauro Marini ocupa lugar marginal na academia,
mesmo em cursos de Ciências Sociais e áreas ans. A subárea de História das Relações Internacionais
pode contribuir para ampliar a compreensão do conceito, como formulado por Marini e analisado por
Mathias Seibel Luce, em sua aplicação a determinados períodos da história das relações internacionais
do Brasil. A integração regional foi analisada em quatro períodos distintos – à época da política externa
independente, sob o governo do general-presidente Castelo Branco, no contexto da criação do Merco-
sul e sob os governos Lula (2003-2010) – para avaliar em que medida o conceito pode ser aplicado em
diferentes contextos. Foram identicadas linhas de continuidade que sustentaram o uso do conceito
nesses períodos, tendo como contraponto a condição semiperiférica do Brasil e os projetos brasileiros
(ou conjuntos) de integração regional.
Palavras-chave: Ruy Mauro Marini. Subimperialismo. Semiperiferia.
Resumen: El concepto de subimperialismo de Ruy Mauro Marini ocupa un lugar marginal en la aca-
demia, incluso en cursos de Ciencias Sociales y áreas anes. La subárea de Historia de las Relaciones
Internacionales puede contribuir a ampliar la comprensión del concepto, como formulado por Marini
y analizado por Mathias Seibel Luce, en su aplicación a determinados períodos de la historia de las
relaciones internacionales en Brasil. La integración regional fue analizada en cuatro periodos distintos
– en la fase de la política externa independiente, en el gobierno del general-presidente Castelo Branco,
en el contexto de la creación del Mercosur y bajo los gobiernos Lula (2003-2010) – para evaluar en q
medida el concepto puede ser aplicado en diferentes contextos. Se identicaron líneas de continuidad
que sustentaron el uso del concepto en esos períodos, tomando como contrapunto la condición semipe-
riférica de Brasil y los proyectos brasileños (o conjuntos) de integración regional.
Palabras clave: Ruy Mauro Marini. Subimperialismo. Semiperiferia.
Abstract: Ruy Mauro Marini’s concept of sub-imperialism occupies a marginal place in the academia,
even in Social Sciences courses and related areas. e subarea of History of International Relations can
contribute to broadening the understanding of the concept, as formulated by Marini and analyzed by
Mathias Seibel Luce, in its application to certain periods in the history of international relations in Bra-
zil. Regional integration was analyzed in four distinct periods – at the time of the independent foreign
policy, in the government of General-President Castelo Branco, in the context of the creation of Mercos-
ul and under Lulas governments (2003-2010) – to assess the extent to which the concept can be applied
in dierent contexts. Lines of continuity were identied that supported the use of the concept in these
periods, taking as a counterpoint the semi-peripheral condition of Brazil and the Brazilian projects (or
sets) of regional integration.
Keywords: Ruy Mauro Marini. Sub-imperialism. Semiperiphery.
* Doutor em Relações Internacionais e professor do Departamento de História da UnB.
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Introdução
A História, diferentemente de outras ciências sociais, tem na teoria e no conceito seu
ponto de chegada e não de partida. Nela prevalece a força da narrativa, o reconheci-
mento da diversidade e complexidade do acontecimento histórico, a consciência da
impossibilidade de reduzir a termos simples toda a riqueza das escolhas humanas e
das possibilidades não realizadas. Não signica que a História possa prescindir do
conceito ou desdenhar teorias, porquanto teorias e conceitos são elementos consti-
tuintes do conhecimento e do diálogo (HELLER, 2016; EAGLETON, 1998; ANSAL-
DI e GIORDANO, 2012). O conceito de subimperialismo, como formulado por Ruy
Mauro Marini (1969), possuía inequívoco arcabouço histórico e profundo conheci-
mento das sociedades latino-americanas e suas relações de força.
Em sua interpretação, o capitalismo latino-americano reproduziu as leis gerais
que regem o sistema capitalista e as acentuou até seu limite, em sua especicidade
própria: a superexploração do trabalho, que propiciou a concentração da riqueza em
um polo da sociedade e a pauperização das massas trabalhadoras em outro, o que
impediu o desenvolvimento de áreas rurais e mesmo urbanas. A integração regional
pleiteada à época pelos regimes tecnocráticos-militares se dava por meio da trans-
ferência para os países latino-americanos de certas etapas inferiores do processo de
produção, enquanto as etapas mais avançadas eram reservadas aos centros imperia-
listas (MARINI, 1969). O avanço da industrialização na América Latina levava, por-
tanto, a um aprofundamento de sua dependência econômica e tecnológica e criava
uma hierarquia entre países em desenvolvimento e aqueles que se mantinham como
meros mercados consumidores.
A integração latino-americana, abordada com o instrumental analítico da His-
tória das Relações Internacionais (HRI), permite divisar aspectos que podem con-
tribuir para uma melhor compreensão desse conceito, construído na interface da
superexploração do trabalho, da industrialização de certos países da região e de sua
inserção na economia mundial. Marini considerava que a política externa do governo
do general Castelo Branco, autointitulada “política de interdependência continental,
tinha suas raízes na dinâmica da economia mundial, ou seja, nas mudanças ocorri-
das na economia norte-americana e nas suas relações com os países periféricos. A
acumulação capitalista e a concentração crescente da riqueza nos Estados Unidos
incrementaram os investimentos no exterior, ampliando as fronteiras econômicas do
país e intensicando “[...] o amálgama de interesses nos países contidos nelas e se
torna cada vez mais necessário que, de distintas maneiras, o governo de Washington
estenda mais além dos limites territoriais a proteção que dispensa a seus nacionais
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(MARINI, 2000, p. 49-50). O Brasil se tornava, cada vez mais, território propício à
expansão do capital norte-americano, para o que exigia elites dirigentes locais abertas
à sua inuência.
A economia brasileira havia passado por um crescimento signicativo nas décadas
anteriores, resultando no acirramento das contradições de classe, o que João Goulart
tentou equacionar por meio de uma política de dinamização e diversicação do mer-
cado interno com políticas sociais de viés distributivo. O subimperialismo, naquele
contexto, era uma estratégia para enfrentar a crise e que contemplava a exportação
de capitais – bens de consumo duráveis e não-duráveis – e o aumento da capacidade
de compra do Estado, o que daria com uma consistente política de desenvolvimento
da infraestrutura nas áreas de transporte, geração e distribuição de energia, além do
reequipamento das forças armadas, como destacado por Mathias Seibel Luce (2011).
A essas duas políticas, Luce acrescentou “a sociedade de consumo ‘à moda da casa,
possibilitada pela transferência de renda das camadas mais pobres para os setores
médios e de alta renda, com a nalidade de criar um ambiente econômico favorável
à indústria tecnologicamente avançada. Complementava-se, assim, o esquema pelo
qual o subimperialismo se realizava.
Coerente com seus objetivos de evidenciar a existência de uma teoria sobre o
subimperialismo na obra de Marini, com as devidas ênfases na superexploração do
trabalho e em sua perspectiva revolucionária, Luce (2011) concentrou-se no debate
sobre os sentidos do conceito. Deniu o subimperialismo como uma forma particu-
lar do padrão de reprodução do capital, situada na conuência, histórica e geogra-
camente denida, das seguintes categorias: superexploração do trabalho, transfe-
rência de valor, composição orgânica média do capital/etapa dos monopólios e do
capitalismo nanceiro, cooperação antagônica e hegemonia regional. Essa variável
explicava a ascensão do Brasil à condição de potência hegemônica regional, exporta-
dora de manufaturados, em um padrão industrial diversicado, diferenciando-o de
outras nações latino-americanas. É nesse sentido que, com o advento da Associação
Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC), países vizinhos tornaram-se mer-
cados de manufaturados do Brasil. A condição de potência regional pretensamente
hegemônica permite ultrapassar o conceito essencialista de Luce, que, ao procurar os
elementos centrais do conceito de subimperialismo, relegou a um segundo plano ou
mesmo negligenciou aspectos que, na perspectiva da História das Relações Interna-
cionais, podem contribuir para a compreensão do conceito: a relação entre subimpe-
rialismo e semiperiferia; e sua dimensão geopolítica.
A hipótese de trabalho é que o subimperialismo pode ser compreendido como
parte da condição semiperiférica – na forma como foi denida por Immanuel
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Wallerstein (1974) – e que o país que alcança a condição de potência hegemôni-
ca regional ou mesmo a condição de potência regional traz consigo um novo tipo
de relações internacionais de incontornável conteúdo geopolítico. A semiperiferia
refere-se ao país ou conjunto de países que ocupam uma posição intermediária na
estrutura “núcleo orgânico-periferia” da economia capitalista mundial. Estados se-
miperiféricos colhem apenas benefícios marginais em suas relações com o núcleo or-
gânico; mas reservam para si a maioria dos benefícios em suas relações com Estados
periféricos. Em contrapartida, a divisão de tarefas na economia-mundo estabelece
uma hierarquia na qual os países centrais se beneciam da concentração de capital,
do controle da tecnologia de ponta e da formação de mão-de-obra qualicada. A dis-
tribuição geográca assimétrica desses recursos assegura a tendência à manutenção
do sistema (WALLERSTEIN, 1974).
Marini, ao analisar a tendência integracionista do capitalismo no segundo pós-
-guerra, identicou a diferenciação da economia mundial com o aparecimento de
subcentros econômicos e políticos, dotados de certa autonomia em relação ao impe-
rialismo dominante. A hierarquização dos países capitalistas teria se dado de forma
piramidal, com centros médios de acumulação, as potências capitalistas médias. Foi
essa percepção que o levou à concepção do subimperialismo. Na interpretação de
Luce (2011), a internacionalização do capital, com investimentos diretos na indús-
tria, teria resultado na integração dos sistemas de produção e na composição das
burguesias locais com as burguesias dominantes, incluindo a ascensão do Brasil à
condição de potência intermediária.
A ascensão à condição de potência regional de perl subimperialista, por sua vez,
representa, para os vizinhos periféricos e semiperiféricos, e mesmo para a potência
ou potências vinculadas ao país emergente – estas últimas em razão da cooperação
antagônica, um dos elementos do conceito de subimperialismo – questões, demandas
e desaos anteriormente inexistentes ou mitigados. O subimperialismo, embora não
se confunda com a semiperiferia, com ela se relaciona, ou melhor, pode ser interpre-
tado como parte dela.
Para avaliar essas questões, o texto se encontra dividido em quatro seções, que
abordam as relações Brasil-Estados Unidos e o advento do conceito de subimperia-
lismo; a Operação Amazônia, um episódio da política brasileira de integração sul-a-
mericana; a criação do Mercosul e seu signicado à luz da expansão econômica do
Brasil; e a integração da América do Sul sob o governo de Lula/PT. A escolha desses
acontecimentos deu-se em razão de pesquisas desenvolvidas nos últimos anos sobre
a história das relações internacionais do Brasil (DORATIOTO e VIDIGAL, 2021).
Na primeira seção, destaca-se a presença dos Estados Unidos no Brasil, perpassando
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as relações de comércio, investimentos e cultura, para a compreensão das relações
bilaterais no segundo pós-guerra e do processo de integração econômica assimétrica.
Nas três seguintes, a integração regional sul-americana e as políticas brasileiras para
a região são analisadas na perspectiva do papel que o Brasil cumpre na região como
país semiperiférico subimperialista. Nas considerações nais, é retomada parte da
reexão inicial sobre o subimperalismo, vinculando-o com a noção de semiperiferia
e com a dimensão geopolítica regional. Espera-se que, ao nal da leitura, seja possível
uma compreensão mais abrangente do subimperialismo brasileiro, à luz da trajetória
de suas relações internacionais e de algumas iniciativas de integração.
1. Relações Brasil-Estados Unidos e subimperialismo
As relações do Brasil com os Estados Unidos se constituíram historicamente em um
dos mais importantes laços bilaterais do país, ao lado da Argentina, adquirindo uma
dimensão estrutural entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século
XX. A partir da grande depressão dos anos 1930, essas relações assumiram novo
perl, diante das diculdades de Washington em atender as principais demandas
brasileiras e de outros países da região, além das necessidades de o país avançar no
que se denominava desenvolvimento industrial autônomo. Desde a americanização
da política externa brasileira na primeira década de República e do estabelecimento
da embaixada brasileira em Washington, em 1905, suas relações se diversicaram
e, a partir da Segunda Guerra Mundial, ganharam maior densidade. O Brasil, que
trazia entre suas prioridades em política externa a busca de recursos para o desen-
volvimento, apoiou a política norte-americana no plano internacional e regional.
A participação brasileira nas conferências de Bretton Woods, São Francisco, Hava-
na, Chapultepec, Rio de Janeiro e Bogotá se deu em consonância com Washington,
tendo como contraponto os esforços que, em conjunto com países latino-americanos
e caribenhos, resultaram na criação da Cepal.
A política exterior brasileira de aproximação com os Estados Unidos, que procu-
rava conciliar a atitude cooperativa nos foros internacionais com as ambições econô-
micas, enfrentou certa resistência por parte do Departamento de Estado, resultando
em uma série de frustrações. Nem as comissões mistas sob os governos de Dutra e
Perón, nem a acolhida da Operação Pan-Americana ou a Aliança para o Progresso
atenderam às reivindicações brasileiras em termos de nanciamento ou transferência
de tecnologia. Para Marini (2000), essas dissonâncias se davam em contexto mais
amplo, pois entre as décadas de 1930 e 1950 o setor industrial cresceu de forma ace-
lerada, ainda mais que a desnacionalização resultante dos investimentos externos,
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resultando em agravamento das tensões entre os setores interno e externo, em meio
a que as demandas crescentes de importações entravam em conito na área cambial
com as pressões do setor externo para exportar seus lucros. Esse conito de interesses
esteve presente na crise política de 1954 e na crise dos anos 1961-1964, cenário no
qual se formulou o conceito de subimperialismo.
A historiograa brasileira em HRI converge na interpretação de que o período
de 1945 a 1964, à exceção do governo João Goulart, foi caracterizado pela manuten-
ção da “tradicional política de amizade e aproximação entre os dois países, o que
tornava os desentendimentos conjunturais secundários. Os Estados Unidos eram os
principais parceiros comerciais e os maiores investidores, elementos que, ao lado da
inuência cultural de longa data e da similaridade de instituições criadas à época
da Guerra Fria na área da defesa, facilitavam o entendimento bilateral (BUENO e
CERVO, 2015). A linguagem do historiador internacionalista às vezes obnubila o
fato de que os desentendimentos entre Rio de Janeiro e Washington se conguram
sob a presidência de Goulart em algo mais profundo do que o desentendimento ou a
desconança. Como observou Clodoaldo Bueno, as divergências se deram em torno
da expropriação da lial da ITT, por decisão do governador do Rio Grande do Sul,
Leonel Brizola; das exigências do governo norte-americano e do FMI na liberação
de recursos; da lei de remessa de lucros votada no Congresso Nacional; da presen-
ça de comunistas no governo; e da política econômica de viés nacionalista e desen-
volvimentista. Ao lado dessas questões, suscitava preocupações no Departamento
de Estado a desenvoltura – autonomia – com a qual a diplomacia brasileira atuava
nos organismos multilaterais, a aprofundar o abandono do compasso de Washing-
ton (BUENO e CERVO, 2015). Bueno e Cervo e Marini apresentam em comum a
marcada distância ou diferenciação entre o interno e externo, embora de forma mais
acentuada nos primeiros que no segundo.
O que queremos destacar é que a presença comercial, nanceira, administrava
e cultural dos Estados Unidos no Brasil era ainda mais forte do que o sugerido aci-
ma. Essa percepção era compartilhada por muitos intelectuais à época, em diferen-
tes perspectivas. Para Andre Gunder Frank (1969), o desenvolvimento na América
Latina deveria ser compreendido na totalidade, o conjunto do sistema econômico
mundial, em que o todo determina a constituição das partes, conforme a tendência
do centro do capitalismo, a metrópole. Os países periféricos – ou satélites, como os
denominava – não deveriam ser estudados em si mesmos, porque a periferia é deter-
minada pelo centro. “É a metrópole que gera a periferia” (apud VASCONCELLOS,
2014, p. 116). Nesse ponto é que retornamos à observação de Luce, para quem
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[...] o subimperialismo é um fenômeno possível de acontecer nos países semiperiféricos,
como sugeriu Frank. Porém, não é um conceito equivalente ou intercambiável com o de
semiperiferia, como querem eotonio dos Santos em seus escritos mais recentes, entre ou-
tros autores. (LUCE, 2011, p. 187).
Sem dúvida, os conceitos de semiperiferia e subimperialismo não se confun-
dem, mas se sobrepõem, tanto no tocante às relações da semiperiferia com a peri-
feria quanto às relações com o centro. Para Marini, a internacionalização da pro-
dução capitalista propiciou o surgimento de subcentros econômicos e políticos que,
dotados de autonomia relativa, passavam a apresentar tendências expansionistas e
subimperialistas, a partir do momento que alcançassem certo grau de monopoli-
zação e de presença de capital nanceiro. O subimperialismo, concebido, como se
viu acima, como “[...] uma forma particular ao padrão de reprodução do capital,
situada na conuência, histórica e geogracamente denidas” (apud LUCE, 2011),
pressupõe a semiperiferia.
Os dois conceitos trazem em comum a superexploração do trabalho, a transfe-
rência de valor e a composição orgânica média do capital/etapa dos monopólios e do
capitalismo nanceiro, podendo se diferenciar em termos da cooperação antagônica
e da hegemonia regional. Marini (1974), ao analisar o conceito de interdependência
do governo de Castelo Branco, avaliava que, embora o país pudesse aceitar a premis-
sa de que sua posição geográca o colocava sob a inuência norte-americana, com
o reconhecimento do “quase-monopólio” de domínio do Brasil na América do Sul
atlântica, em uma referência às pretensões argentinas, havia um grau signicativo
de autonomia por parte do Brasil. Estados Unidos, Brasil e Argentina tiveram papel
relevante na geopolítica sul-americana naquele período, como analisado por Moniz
Bandeira, para quem a integração entre os dois países platinos sempre permeou a
rivalidade, prevalecendo, enm, as forças aglutinadoras (BANDEIRA, 2003). Antes
de avançarmos, porém, no tema da integração regional e seus vínculos com o subim-
perialismo, duas observações se fazem necessárias: uma sobre a integração do capi-
talismo brasileiro com o norte-americano e outra sobre as relações Brasil-Argentina.
A economia brasileira tornou-se palco da disputa hegemônica entre Grã-Breta-
nha e Estados Unidos entre 1808 e 1850, ou melhor, do desao norte-americano à
preponderância britânica no Brasil (WRIGHT, 1972). Ao tornar-se, em meados da-
quele século, o principal destino das exportações de café, posição que sustentaria
até a década de 1960, possibilitando ao Império do Brasil equilibrar suas nanças e
promover a modernização do país – industrialização, urbanização, crescimento po-
pulacional –, criou as condições necessárias para moldar a economia brasileira ao
feitio de seus interesses. Durante a Primeira República, aprofundou-se a dependência
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em relação ao café, a industrialização beneciou-se dos investimentos diretos dos
Estados Unidos em serviços urbanos e infraestrutura, e o Brasil se tornou um dos
principais receptores de produtos culturais daquele país. Embora a grande depres-
são e a Segunda Guerra Mundial tenham despertado autoridades políticas brasileiras
para a diversicação econômica e a industrialização, ao nal do conito, a construção
da Companhia Siderúrgica Nacional, com capitais e tecnologia norte-americanos,
aprofundou ainda mais os laços econômicos entre os dois países. O capitalismo nor-
te-americano se expandira no território brasileiro, constituíra parte incontornável
da indústria nacional e passara a deter forte poder de inuência no âmbito político
nacional.
Como observou Aristóteles Moura (1959), no nal da década de 1950, a depen-
dência brasileira em relação à política exterior norte-americana não advinha somen-
te de suas empresas e empréstimos. O Brasil havia se constituído no segundo pós-
-guerra em um dos principais parceiros comerciais dos Estados Unidos e destino
de investimentos diretos de empresas norte-americanas, cujo volume de capitais era
superior ao total das empresas dos países europeus. Comércio e investimentos eram
aspectos estruturantes de um sistema que incluía “[...] acordos diversos, como o de
assistência militar, os acordos amicos, o administrativo (estudos de reservas mine-
rais e de seu aproveitamento), e missões militares e de assistência técnica de outras
espécies” (MOURA, 1959, p. 8-9). É nesse sentido que a análise dos vínculos entre
o capitalismo norte-americano e o brasileiro não pode prescindir da ideia de que
o primeiro se enraizara, em boa medida, no território nacional, concorrendo para
inuenciar, direcionar, moldar as legislações nacionais em matéria de comércio, in-
vestimento estrangeiro e exploração de recursos naturais.
Nesse sentido, nas décadas iniciais do segundo pós-guerra, à medida que o
Brasil armou sua condição semiperiférica (e não mais periférica), passou a atuar
como país subimperialista, disposto a uma política de cooperação antagônica com
os Estados Unidos, nos termos propostos por Ruy Mauro Marini e identicados
por Mathias Seibel Luce. Além de buscar algum grau de autonomia tecnológica
e nanceira, o Brasil passou a disputar com a Argentina a liderança regional, em
um período de declínio da parceria histórica de Buenos Aires com Londres e de
crise do modelo agroexportador local. Deve-se observar, porém, que a Argentina
estava distante de secundar o Brasil na região da Bacia do Prata, pois Perón (1946-
1955) manteve em seus dois mandatos uma política proativa na região, e o Itama-
raty tinha entre suas principais preocupações o expansionismo argentino, objeto
de inúmeras comunicações entre a embaixada em Buenos Aires e o Ministério das
Relações Exteriores. Brasil e Argentina se apresentavam, na primeira metade dos
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anos 1950, como potências regionais, que disputavam a primazia cultural e em
setores como o da energia nuclear e que seriam considerados posteriormente, pela
historiograa regional, como países semiperiféricos.
Um dossiê preparado pela embaixada argentina no Rio de Janeiro analisava a po-
lítica externa do governo Vargas (1951-1954) de forma aprofundada, enfatizando a
forte inuência norte-americana no país e a rivalidade com a Argentina (ARGENTI-
NA, 1954). Para a diplomacia argentina, existia no Brasil uma linha de conduta per-
manente na área de relações exteriores que havia possibilitado transformar o Itama-
raty em uma instância poderosa na estrutura do Estado brasileiro. Essa linha seria a
luta permanente com a Argentina pela supremacia ou liderança no sul do continente.
A política sul-americana do Brasil seria uma orientação dos Estados Unidos para
conter a inuência argentina, uma política de um país que se encontrava sem orien-
tação, que tinha perdido a iniciativa e que agia por contragolpe (VIDIGAL, 2009).
Independentemente da interpretação da diplomacia argentina, era evidente o estreito
vínculo que o governo Vargas mantinha com os Estados Unidos e sua relevância para
a geopolítica platina.
Portanto, as relações Brasil-Estados Unidos na década de 1950 e no início da dé-
cada seguinte já revelavam os vínculos estruturais assumidos ao longo do tempo e as
condições que propiciaram ao Brasil exercer, sob o regime militar, o subimperialismo
em todas as suas dimensões. Nas seções seguintes serão analisados alguns aspectos
do subimperialismo brasileiro na América do Sul, sem nos determos em iniciativas
conjuntas como a criação da ALALC. A ideia é sinalizar para a diversidade de condi-
cionantes e de aspectos que informaram as iniciativas brasileiras de integração, possi-
bilitando uma leitura mais abrangente e exível da presença do capitalismo brasileiro
na região e da autonomia com que o país atuou no âmbito regional.
2. A integração amazônica em clave autoritária
As políticas de aproximação, concertação e integração que Brasil e Argentina adota-
ram nos anos 1950 apontavam na direção de uma alternativa à presença econômica
dos Estados Unidos e de outros países industrializados na região. A ideia do desen-
volvimento econômico autônomo, alavancada pelas ideias industrializantes da Cepal
e sentido de autonomia, conceito formulado por intelectuais como Hélio Jaguaribe e
Juan Carlos Puig, indicava a possibilidade de superação da condição de dependência
e do advento de um capitalismo com forte coordenação estatal em favor da industria-
lização e da busca de melhores condições socioeconômicas. Os golpes militares de
1962, na Argentina, e de 1964, no Brasil, interromperam esse processo e promoveram
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um reposicionamento dos Estados Unidos junto aos governos dos dois países.
A partir daqueles golpes de Estado, Brasil e Argentina passaram por um certo
distanciamento, em razão da trajetória política errática do segundo e do regime au-
toritário do primeiro, simpático à Doutrina de Segurança Nacional proveniente de
Washington. Por exemplo, entre 1962 e 1963, enquanto o Brasil era governado por
João Goulart, que procurava contornar a crise econômica por meio de um ambicioso
programa de reformas; na Argentina, o governo de José Maria Guido adotava uma
política externa de viés pró-estadunidense e “ocidentalista. Nos anos seguintes, en-
quanto o país vizinho passou a ser governado democraticamente por Arturo Illia, o
Brasil iniciava a ditadura que duraria cerca de 20 anos. O governo do general Caste-
lo Branco, enfrentando diculdades no diálogo com os vizinhos platinos, voltou-se
para os países da Bacia Amazônica, em um projeto de integração aparentemente au-
tônomo, autodenominado Operação Amazônica.
A autonomia político diplotica no tratamento dispensado aos vizinhos sul-a-
mericanos pelo Itamaraty não signicava oposição ou confrontação. Ao incorporar
a integração regional entre os objetivos de sua política externa, a ditadura militar
avançou na cooperação antagônica com os Estados Unidos pois, além de buscar jun-
to ao governo de Washington melhores condições para o bom desempenho do setor
industrial do país, abria uma nova frente na expansão dos negócios desse empresa-
riado, fortalecida com a consolidação da posição brasileira no subsistema regional de
poder. Contudo, o regime militar brasileiro atuaria no âmbito da Organização dos
Estados Americanos (OEA) em favor da intervenção na República Dominicana, cuja
justicativa, sustentada por Washington, era a possibilidade de o país cair nas mãos
de comunistas; e, no debate sobre as intervenções de Cuba em países sul-americanos,
a diplomacia brasileira defendeu a criação de um dispositivo de segurança para a
defesa das instituições do continente (VISENTINI, 2004).
A integração amazônica, concebida como parte da “integração hemisférica, de-
veria estar em sintonia com a herança comum do Ocidente, não obstante a diferença
econômica entre Norte e Sul. A integração deveria ocorrer sob a égide da Aliança
para o Progresso e da OEA, e, como expressou o chanceler Juracy Magalhães, o Brasil
não deveria incentivar cisões na unidade panamericana, nem por razões políticas
nem sob o pretexto das disparidades econômicas. Coube ao ministro das Relações
Exteriores visitar os países andinos para propor o debate sobre a integração amazô-
nica, nos quais se manifestou contrariamente à formação de blocos econômicos na
América Latina, defendeu a criação de uma força interamericana de paz – no que
foi contestado pela diplomacia chilena – e se mostrou decidido a ampliar a coopera-
ção regional e coordenar posições nos foros regionais. Propôs, junto a esses países, a
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colaboração recíproca no desenvolvimento da Amazônia e a realização de uma con-
ferência com os chanceleres dos países integrantes da bacia. Para Visentini (2004),
a Amazônia foi um dos principais problemas enfrentados pela política interna e ex-
terna brasileira, em razão dos rumores sobre ameaças à soberania do país na região.
Realizada a 3 de dezembro de 1966, em Manaus, a Primeira Reunião de Incentivo
ao Desenvolvimento da Amazônia tinha entre seus objetivos integrar a região na vida
econômica do país e “povoá-la racionalmente, no intuito de promover a “conquis-
ta gradual, progressiva e planicada de seus espaços vazios. A linguagem tecnicista
do presidente brasileiro no discurso de abertura do evento não ocultava a urgência
brasileira em se iniciar “[...] uma política denida, um plano de ação e os meios e me-
canismos indispensáveis para dar realidade aos bons propósitos e intenções” (MRE,
1966). Era evidente a percepção de que o Estado brasileiro não se fazia presente e que
as riquezas minerais da região poderiam atrair o interesse de potências estrangeiras.
As referências à fome, ao desemprego e aos desequilíbrios da região não mitigavam
uma concepção autoritária e excludente em termos sociais e geográcos.
Três anos depois da reunião de Manaus, que pode ser considerada o ponto de par-
tida das negociações que levaram à assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica,
em 1978, o ministro Alarico Silveira Júnior sintetizou o que ele chamou de losoa
sul-americana de cooperação amazônica. Partindo da premissa de que os países ama-
zônicos, mais cedo ou mais tarde, teriam que trilhar o caminho da integração, que o
Brasil deveria assumir a condução do processo associativo e que os acordos bilaterais
sobre projetos especícos eram os instrumentos mais adequados na realização dos
propósitos brasileiros, armava a necessidade de guiar as iniciativas na região pela
losoa brasileira de integração, ou seja, a integração “sob nossa inspiração e lideran-
ça” (VIDIGAL, 2012, p. 72). Eram concepções desse tipo que informavam as noções
de dependência e do subimperialismo brasileiro, pois, sem ferir as suscetibilidades
de Washington, o Brasil procurava direcionar políticas regionais conjuntas para a
Amazônia, que concorriam para aprofundar a presença dos capitais estrangeiros e
seus valores na região.
Era o desdobramento natural da profunda interligação entre Brasil e Estados
Unidos, consolidada por meio da cooperação no âmbito do Sistema Interamerica-
no, das missões técnicas norte-americanas constituídas para avaliar as possibilidades
do desenvolvimento econômico brasileiro (Missão Abbink, 1948; Comissão Mista
Brasil-Estados Unidos para o desenvolvimento, 1950), da cooperação na área de se-
gurança (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, 1947; criação da Escola
Superior de Guerra, 1949, inspirada na Doutrina de Segurança Nacional norte-a-
mericana), entre outras iniciativas. Como mencionado acima, o território brasileiro
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tornara-se cenário da reprodução do capital norte-americano, que moldou regras,
procedimentos e legislações nacionais. Consolidou-se, simultaneamente, a condição
semiperiférica do país e a política subimperialista, na conuência da presença de
capitais monopolistas estrangeiros, do esquema tripartite da reprodução do capital
(exportação de manufaturados, gastos do Estado, sociedade de consumo), da políti-
ca de liderança regional e da cooperação antagônica com o capitalismo, nos termos
propostos por Luce.
A integração regional, abordada por meio do projeto dos militares castelistas para
a Amazônia, permite identicar de que modo o subimperialismo se realizou histori-
camente. A profunda dependência brasileira e latino-americana de capitais europeus
e norte-americanos ensejou a formação de um empresariado fortemente vinculado
a esses capitais, aplainando as diferenças entre capital nacional e capital estrangeiro.
Em alguns poucos momentos da história brasileira, esses dois segmentos entraram
em conito, como nos debates sobre a remessa de lucros, no governo João Goulart,
com suas consequências conhecidas. Teria o processo de mundialização econômica
dos anos 1970, 1980 e 1990, a crise da dívida externa, a emergência do pensamento
e de políticas neoliberais e as transições para a democracia modicado o quadro
latino-americano?
3. O Mercosul e a liderança brasileira
A assinatura do Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991, constituindo o Mer-
cosul, foi o ponto de chegada de um longo processo que teve início nas respostas
que os países latino-americanos deram diante da grande depressão dos anos 1930.
Ensaios de integração entre Brasil e Argentina se zeram presentes no Tratado de
1941, nos acordos de Uruguaiana (1961), já sob o arcabouço de ideias “desenvol-
vimentistas” da Cepal, nas negociações que permitiram, a partir do nal dos anos
1970, a superação do contencioso de Itaipu, os primeiros acordos na área nuclear e
a aproximação militar no contexto da Guerra das Malvinas. Na década de 1980, no
contexto da crise da dívida externa das maiores economias latino-americanas, da
presença de governos neoliberais e anticomunistas nos Estados Unidos e Reino Uni-
do, da “cruzada” e das transições políticas no Cone Sul, dirigentes latino-americanos
tinham o desao de conciliar democratização e desenvolvimento socioeconômico.
Naquele contexto, os Estados Unidos elevaram acentuadamente os juros, com a
intenção declarada de combater a inação gerada pelo segundo choque do petróleo,
o que resultou no colapso do modelo de desenvolvimento baseado no endividamento
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
externo, adotado por diversos países, entre eles o Brasil. As diculdades levaram o
chanceler Saraiva Guerreiro, em reunião do G-77 ocorrida no Brasil em 1983, a apro-
ximar o discurso diplotico brasileiro, um país que reconhecia suas limitações, da
posição dos países do chamado Terceiro Mundo. Como observou Strange em States
and markets (1988), os Estados Unidos, ao elevarem os juros internos, provocaram o
aumento das taxas internacionais e dos preços em geral, conduzindo a semiperiferia
sistêmica a uma crise profunda (apud MORAES, 2012). Foi naquele cenário que a
internacionalista britânica identicou o poder crescente dos mercados e a instabi-
lidade sistêmica que marcaria a trajetória do capitalismo a partir de então, no que
chamou de Casino capitalismo (1986). E para descrever o poder norte-americano,
que já se mostrava distante das críticas dos anos 1970 quanto ao seu declínio, propôs
o conceito de poder estrutural, descrito de forma alegórica no preâmbulo de States
and markets (1988), concebido como a capacidade de criar regras e procedimentos
econômicos internacionais, de compor as estruturas nas quais os Estados atuam, de
propor a agenda global e a hide agenda mundial, além de manter sua ascendência
sobre os principais organismos internacionais e moldar os regimes de governança
global. O conceito de poder relacional, complementarmente ao poder estrutural, se
referia ao poder relativo de cada Estado em suas relações bilaterais.
Na interpretação de Gloria Moraes (2012), o poder estrutural se distanciava de
concepções marxistas ou neomarxistas ao não priorizar a dimensão produtiva, mas
se apresentava como um aporte relevante na compreensão do poder dos Estados Uni-
dos na política internacional. Strange sugeriu a gura de uma pirâmide de quatro
faces, composta pelas quatro fontes que conformam o poder estrutural: o controle
sobre a segurança, o controle da produção, o controle das nanças e o controle sobre
o conhecimento. Nos anos 1980, a política externa da administração Ronald Reagan,
conhecida como “nova” ou “segunda” Guerra Fria, ditava os parâmetros com os quais
os departamentos de Estado e de Defesa deveriam atuar; estabelecia os termos nos
quais a revolução microeletrônica deveria avançar; potencializava o dólar como moe-
da internacional, pressionando aliados, como o Japão, a valorizar sua moeda como
forma conter sua competitividade; e exaltava a ideologia neoliberal como única alter-
nativa diante das diculdades econômicas do período. Políticas econômicas neolibe-
rais, que seriam sistematizadas no conhecido Consenso de Washington, tornaram-se
moeda de troca para a liberação de recursos para países em desenvolvimento por
parte de instituições internacionais, como o FMI.
As considerações acima não tiveram o intuito de vincular as ideias de Strange
com o debate sobre o subimperialismo, mas descrever, de forma articulada, as for-
ças que atuavam no mercado mundial no período em que as economias dos países
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latino-americanos se defrontavam com a estagnação e com altos índices de inação.
As negociações entre Brasil e Argentina, iniciadas sob as ditaduras militares e poten-
cializadas pela redemocratização, identicaram na integração regional a principal es-
tratégia para o enfrentamento da crise. Era evidente a inuência das ideias cepalinas
dos anos 1950 e 1960 que, atualizadas para a nova conjuntura, foram denominadas de
neoestruturalismo latino-americano por alguns internacionalistas (BERNAL-MEZA,
2013). O neoestruturalismo se pautou pela autonomia de ação dos países latino-ame-
ricanos nos foros internacionais e pelo desenvolvimento a partir de dentro, em uma
concepção que considerava factível o desenvolvimento socioeconômico de países se-
miperiféricos mesmo naquele cenário adverso (FERRER, 2002; LAVAGNA, 2002).
Se diferenciava, assim, do que a Cepal em sua nova fase denominava de regionalismo
aberto, uma forma de conciliar a mundialização econômica e preceitos neoliberais
com a integração regional (CEPAL, 1994).
Na concepção neoestruturalista dos anos 1980, o regionalismo deveria concorrer
para limitar a erosão à qual estava sendo submetido o Estado, por meio da recupera-
ção de sua capacidade de regulação; para recuperar o papel da acumulação capitalista
nacional, pública e privada, em favor do desenvolvimento nacional; para fortalecer o
papel do setor privado nacional com o propósito de convertê-lo em “actor moderni-
zador, dinámico y transformador”; e para reverter as condições estruturais negativas
e as tendências objetivas da mundialização econômica (BERNAL-MEZA, 2000, p.
208). Distante do legado de Marini e de uma leitura realista das condições de época, o
neoestruturalismo sugeria a existência de condições que não se vericavam à época,
como um setor privado nacional disposto a buscar uma alternativa à mundialização
e ao neoliberalismo.
O Mercosul, a despeito dos valores democráticos e das preocupações sociais pre-
sentes no Tratado de Assunção, foi antecipado de 1994 para 1991 por governos que,
no âmbito econômico, implementavam políticas neoliberais. Não obstante, o Mer-
cosul se constituía em um espaço econômico e político promissor, com mais de 200
milhões de habitantes e um produto interno comum de US$ 900 bilhões de dólares,
uma iniciativa original, liderada por países em desenvolvimento e criada a partir de
necessidades e aspirações pprias, distintas de quaisquer outros modelos de inte-
gração (MADRID, 2003). Porém, não se pode menosprezar o fato de o bloco ter sido
construído sobre os pilares da Associação Latino-Americana de Desenvolvimento
Industrial (ALADI, 1980), herdeira da ALALC (1960), e de contar com empresas
nacionais e empresas estrangeiras radicadas nos países-membros. Alguns setores da
produção industrial, como o automotivo, interessado em se estabelecer no país vizi-
nho e ampliar seus mercados e com grande poder de inuência junto aos governos
116
ARTIGOS (DOSSIÊ)
nacionais, se destacaram nas negociações iniciais. Como observou Madrid (2003), as
companhias transnacionais do setor, com atuação consolidada nos mercados argen-
tino e brasileiro, ingressaram no Mercosul em um nível avançado de integração, com
forte intercâmbio de partes, peças, componentes e veículos. À indústria automotiva
se somaram companhias nacionais e estrangeiras do setor de alimentação (carnes,
farinhas, lácteos), agrícola, energético e siderúrgico. Altamente dependentes de insu-
mos e recursos nanceiros de corporações mundiais, não seriam essas indústrias que
caminhariam na direção de um desenvolvimento econômico “autônomo. O Merco-
sul, em sua primeira década de existência, foi considerado um sucesso, sendo chama-
do por alguns internacionalistas de Mercosul comercial, em contraponto ao Mercosul
econômico dos anos 1980.
As condições da economia mundial, regional e nacional dos anos 1990 eram mui-
to distintas das que vigoravam no início dos 1960, mas os problemas relacionados à
dependência tecnológica e nanceira, aos limites do Estado na consecução da coo-
peração antagônica e à ausência de uma burguesia industrial com aspirações auto-
nomizantes surgiam como linhas de continuidade entre as duas conjunturas. Para
setores economicamente mais poderosos da indústria brasileira e de transnacionais
radicadas no país, o Mercosul surgia com um mercado ampliado, inclusive para a
exportação de capitais a partir do território nacional. Em seu processo de integração
assimétrica, o bloco não criou mecanismos de superação das desigualdades regionais
e mesmo internas, entre zonas hegemônicas e periféricas, frustrando as expectativas
de elevação do nível social do conjunto (BUENO e CERVO, 2015). Nesse sentido, os
países-membros elegeram o comércio exterior como núcleo da integração, em detri-
mento da concepção neoestruturalista dos anos 1980.
4. Lula e a integração regional, um caso de subimperialismo?
Os anos 2000 foram marcados, na América do Sul, por uma reação à onda neoliberal
dos anos 1990, em distintas direções, e por uma reorientação da integração regio-
nal no sentido do alargamento ou da expansão do Mercosul. A primeira reunião de
cúpula dos países da América do Sul, realizada em Brasília no ano 2000, propiciada
pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, ensejou a inciativa de integração da
infraestrutura regional (IIRSA), e nos anos seguintes foram realizadas ações como
a criação do Parlamento do Mercosul (Parlasul), o nanciamento da convergência
econômica no Mercosul e a preparação de uma comunidade sul-americana de na-
ções. Sob o governo Lula, houve uma congregação de esforços no sentido de dar
realidade à construção da América do Sul, ao tempo em que segmentos organizados
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da economia brasileira procuravam fazer do Mercosul um polo regional adequado à
globalização da economia brasileira.
A política externa brasileira, sob o comando de Lula e de Celso Amorim, esta-
beleceu como a prioridade a integração sul-americana, na qual o aprofundamen-
to das relações com a Argentina e o adensamento do Mercosul eram considerados
condições essenciais. Algumas tendências e questões relacionadas ao regionalismo já
estavam presentes no período anterior e se tornaram ainda mais decisivas a partir de
2003: a liderança brasileira no processo de integração; os investimentos de empresas
brasileiras em países vizinhos, com o apoio do BNDES, o banco de fomento mais
importante do país; as pressões norte-americanas em favor da criação de uma área
de livre-comércio das Américas (Alca); a crescente presença da China no comércio
exterior brasileiro e de outros países da região; o processo de desindustrialização da
economia brasileira, principal contradição com os planos “neodesenvolvimentistas
do governo (DORATIOTO e VIDIGAL, 2021).
A liderança brasileira na América do Sul, que chegou a ser verbalizada por Lula
em discurso sobre a integração regional, se manifestou logo no início de seu gover-
no, no protagonismo brasileiro na criação do Grupo de Amigos do secretário-geral
da OEA para a Venezuela, em razão da crise política no país caribenho, que havia
passado por uma tentativa de golpe de Estado – contra o governo de Hugo Chá-
vez – no ano anterior. Amorim recorda que a crise interna e o processo de adesão
da Venezuela ao Mercosul eram temas recorrentes no início de governo, o que se
concretizaria em 2012 no rastro da crise aberta com a destituição do presidente do
Paraguai, Fernando Lugo. Ainda em 2003, foi assinado o acordo de livre-comércio
entre o Mercosul e o Peru, o acordo de complementação econômica entre o Mercosul
e Colômbia, Equador e Venezuela – que daria lugar ao Acordo de Livre-Comércio
Mercosul-Comunidade Andina, e, com a Argentina, o Consenso de Buenos Aires,
que pretendia sinalizar para um contraponto ao Consenso de Washington. O lança-
mento da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), ao nal de 2004, em Cus-
co, renomeada Unasul três anos depois, como um projeto comum de coordenação
de políticas de integração econômica e de infraestrutura na América do Sul, seria o
ponto alto da integração regional naqueles anos.
A integração econômica sul-americana contava com uma conjuntura interna e
internacional favorável, que se estenderia até que os efeitos da crise nanceira inter-
nacional de 2007-2008 batessem à porta. Havia certa convergência quanto ao acerto
das políticas do governo por parte de setores populares, beneciários de programas
sociais como o Bolsa Família, setores médios, beneciados pela estabilidade, gru-
pos empresariais da área industrial e nanceira. A revista e Economist chegou a
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
colocar o país na condição “grande potência, no que foi acompanhada, com algu-
ma moderação, por outros veículos de imprensa de circulação mundial, enquanto
no âmbito acadêmico latino-americano se discutia se o Brasil já atingira a condição
de potência emergente, um passo além da condição de país emergente (BOSCHI,
2011; BERNAL-MEZA e BIZZOZERO, 2014). Nesse momento de otimismo quanto
às possibilidades de o Brasil ingressar no clube dos países ricos, o BNDES cumpria
papel essencial no processo de integração regional, com apoio às empresas brasileiras
que investiam na região, ou mesmo na exportação de capitais brasileiros para outros
continentes. Para Rodrigo de Almeida, o Brasil, com instituições nanceiras sólidas
e com o BNDES dispondo de recursos em escala no apoio ao investimento e em con-
dições de enfrentar períodos de turbulência internacional, parecia estar ingressando
no “clube” (BOSCHI, 2011).
Adotamos aqui a interpretação de Filgueiras, Pinheiro, Philigret e Balanco (MA-
GALHÃES et al., 2010), que propuseram o conceito de modelo liberal-periférico, a
partir da constatação de que houve uma linha de continuidade na área econômica
dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula que, acrescida de uma conjuntu-
ra internacional favorável, permitiu resultados importantes, como taxas elevadas de
crescimento, redução do desemprego, exibilização da política macroeconômica e
presença decisiva do Estado na coordenação deste processo. Além disso, a cooptação
do sindicalismo e dos movimentos sociais permitiu compatibilizar interesses de se-
tores subalternos com o grande empresariado. Estava em construção a hegemonia,
em sentido gramsciano, das frações nanceiro-exportadoras de capital e dos gran-
des grupos econômicos privados e estatais nacionais. Na nova divisão internacional
do trabalho, o Brasil parecia articular exitosamente, de um lado, a reprimarização
relativa das exportações, com novas bases tecnológicas e nanceiras, mas com uso
intensivo de mão-de-obra e de recursos naturais, e, de outro, o fortalecimento de
segmentos especícos, como a indústria automobilística, petroquímica e aviação. A
internacionalização da economia brasileira se dava com base em um consenso com
distribuição de renda na era do capital nanceiro
1
.
A política de integração regional apresentava fragilidade semelhante pois era di-
fícil convencer lideranças dos países vizinhos de que as empresas transnacionais do
1 Na interpretação de Luiz Filgueiras, Bruno Pinheiro, Celeste Philigret e Paulo Balanco o “novo con-
senso, de crescimento com distribuição na era do capital nanceiro, “[...] levou à incorporação marginal
de parcelas da população de menor renda ao consumo, tendo como contrapartida a desmobilização
política dos movimentos sociais e dos sindicatos, a tutela direta do Estado sobre a parte da população
mais pobre, a despolitização da política, a desqualicação maior ainda dos partidos e, como resultado
disso tudo, o surgimento, desenvolvimento e consolidação do ‘lulismo” (MAGALHÃES, 2011, p. 64).
Essa nova forma de dominação só foi possível em razão do transformismo político do Partido dos Tra-
balhadores, com certo viés autoritário, o que não excluía eventual mobilização popular como base apoio.
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Brasil, no que tange aos seus interesses nanceiros e práticas operacionais, seriam
diferentes das transnacionais das grandes economias. Dois exemplos são sucientes
para ilustrar o argumento. No caso da Bolívia, quando o governo Evo Morales enviou
tropas para isolar duas renarias brasileiras da Petrobrás, após decretar a nacionali-
zação do petróleo e gás, medida com repercussões negativas na imprensa e no meio
político brasileiro, o governo agiu no sentido de proceder à venda dos ativos, sob o
argumento, correto ou não, de que a continuidade das operações da empresa na área
de distribuição era o mais importante. Um ano depois, a Petrobrás havia elevado
substancialmente os investimentos na Bolívia, tendo em vista os ganhos no longo
prazo. Já no Equador, a empresa brasileira da área de construção civil Odebrecht, que
já atuara em outros países da região, como na ampliação do metrô de Caracas, teve
seus bens embargados pelo governo local e depois seria expulsa do país, sob denún-
cias de práticas de corrupção. Essa mesma empresa seria, alguns anos depois, uma
das acusadas pela Operação Lava Jato, em um dos maiores escândalos da história
brasileira, com reexos em países da região como Equador, Peru e Argentina. Opera-
ção polêmica do ponto de vista político e jurídico, a Lava Jato não teve as denúncias
de práticas de corrupção em empresas como Petrobrás e Odebrecht contestadas.
No plano internacional, o modelo liberal-periférico foi caracterizado pela libe-
ralização, privatização e desregulação, pela subordinação e vulnerabilidade externa
estrutural e predomínio do capital nanceiro. O conceito foi detalhado por Luiz Fil-
gueiras e Reinaldo Gonçalves (2007) como liberal, por se estruturar a partir da libe-
ralização das relações econômicas internacionais, da realização de reformas no âm-
bito do Estado da privatização de empresas estatais, o que recongurou a intervenção
do Estado, e da desregulação do mercado de trabalho; e periférico, por ser uma forma
especíca de realização da doutrina neoliberal, por meio de políticas próprias de um
país secundário no âmbito internacional, caracterizado pela vulnerabilidade externa
internacional. Ou seja, essa interpretação comporta tanto a condição de país semipe-
riférico quanto o conceito de subimperialismo, pois o Brasil atuou em conformidade
com as regras e procedimentos dos organismos nanceiros e econômicos internacio-
nais e não confrontou – ainda que eventualmente tenha manifestado discordância
por via diplotica – os interesses das grandes economias mundiais.
As relações com os Estados Unidos passaram por alguns atritos pontuais e certo
estranhamento, após um início de diálogo que se apresentava como profícuo, em
razão dos limites ideológicos impostos pelo PT, ao menos na visão do embaixador
Rubens Barbosa (2011). O discurso do governo sinalizava para a busca de uma or-
dem internacional mais democráticas e equitativa, em razão dos profundos abismos
sociais entre países ricos e pobres, das assimetrias entre o mundo desenvolvido e o
120
ARTIGOS (DOSSIÊ)
mundo em desenvolvimento. Indicava, além disso, a intenção de mudar o eixo da po-
lítica comercial do Brasil e atuar no sentido do enfraquecimento da ordem unipolar.
Independentemente da interpretação de Barbosa, esses princípios gerais de política
e de relações internacionais não podem ser compreendidos de forma isolada, pois
Brasil e Estados Unidos apresentavam agrantes diferenças em matéria de política in-
ternacional e divergências pontuais em foros multilaterais. À época das negociações
Brasil-Argentina para a criação do Mercosul, como registrado por Celso Amorim,
o presidente George H. W. Bush lançou a Iniciativa para as Américas, proposta de
criação de uma zona de livre-comércio que iria do Alasca à Terra do Fogo, transfor-
mada posteriormente em Cúpula das Américas, que a partir de 1994 deu início às
conversações sobre a Alca: “[...] foi já na discussão 4+1 (i.e., os quatro que vieram a
constituir o Mercosul mais os Estados Unidos) e, em parte, como resultado da neces-
sidade de coordenar posições frente às demandas de Washigton que a ideia da Tarifa
Externa Comum do Mercosul se consolidou” (AMORIM, 2022, p. 27).
Em seus dois primeiros mandatos, Lula adotou medidas que certamente não con-
templaram as “demandas de Washington, embora seja difícil caracterizá-las como
atitude de confrontação ou de desao. Em março de 2003, quando os Estados Unidos
e aliados invadiram o Iraque sem autorização do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, sob a alegação – que se mostraria falsa – de que o regime de Saddam Hus-
sein abrigava armas de destruição em massa, o Brasil se manifestou contra a guerra,
alegando o desrespeito às normas internacionais por parte dos Estados Unidos. O
anúncio do Consenso de Buenos Aires, logo em seguida, como contraponto ao Con-
senso de Washington, por mais que possa ser interpretado como um arroubo retórico
de Lula e de Néstor Kirchner endereçado às suas bases políticas de apoio, mostrava
desacordo com outro ponto fundamental da política de Washington. As relações de
Brasília com Caracas, ao apoiar politicamente o governo “socialista” de Hugo Chávez
na Venezuela, seguiram o mesmo curso. Sem a necessidade de seguir na citação de
exemplos, as negociações em torno da Alca talvez tenham sido as que mais explicita-
ram os desacordos entre os dois países. O posicionamento brasileiro, contrário a um
acordo que prejudicaria setores da economia nacional e semelhante ao da Argentina
e Venezuela, entre outros, foi de postergação e, quando nem a Casa Branca contava
mais com a maioria para aprovar a Alca junto ao Congresso, de obstrução às preten-
sões dos Estados Unidos.
Teria sido a política internacional do governo Lula sucientemente forte como
que para apontar na direção da superação da dependência, para ir além da condição
semiperiférica e para sublimar a política subimperialista? Não nos parece. Mesmo
que na V Conferência Ministerial da OMC, realizada em Cancún, no mês de setem-
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bro de 2003, o Brasil tenha atuado em prol da criação do G-20 comercial e questiona-
do as regras pelas quais se pautavam as grandes economias mundiais, não houve um
questionamento em relação a este e outros organismos internacionais. Ao contrário, a
internacionalização da economia brasileira se deu por meio da exportação de capitais
nos marcos já existentes, com o Estado adotando a controversa política das empresas
campeãs nacionais” – Petrobrás, Vale, Embraer, WEG, JBS, Brazil Foods, Odebrecht
– em declarada tentativa de emular o caso coreano. Com efeito, a forte presença de
empresas do setor de mineração e de alimentos denunciava o grau de vulnerabilidade
estrutural do país, que passou por um processo de desindustrialização e que revelava
diculdades no setor externo. A estrutura das exportações brasileiras, na leitura Fil-
gueiras e Gonçalves (2007), era caracterizada por reduzida presença de produtos de
maior densidade tecnológica e pelo predomínio de produtos intensivos em trabalho
e recursos naturais, de baixo conteúdo tecnológico, portanto sensíveis às oscilações
dos preços internacionais.
No mesmo sentido, a presença crescente da República Popular da China como
parceira comercial e fonte de investimentos não signicou mudanças quanto ao per-
l do setor externo brasileiro. Com a elevação diplomática da China à condição de
parceira estratégica, o comércio com esse país reproduziu o clássico perl das rela-
ções centro-periferia, aprofundando a vulnerabilidade estrutural do Brasil. A forte
demanda por petróleo e derivados, aço bruto e laminados, soja e carnes fortaleceu o
agronegócio do país, um setor que não é conhecido pelo apreço ao Estado do bem-
-estar social e pela democracia.
Enm, a política sul-americana do governo Lula agregou princípios da política
externa de Jânio Quadros e João Goulart, como a autonomia de ação e o universalis-
mo, compreendido como diversicação dos laços internacionais para diminuir a vul-
nerabilidade externa, da política integracionista do regime militar e do governo FHC,
na promoção da integração física regional, e agregou o apoio decidido à expansão de
empresas de capital nacional, juntamente com um discurso em favor da superação
das desigualdades e assimetrias. O Brasil preservou o substancial das relações com
Washington, com as economias da Europa ocidental e com o Japão e intensicou as
relações com a China, a Índia e outros países “emergentes, estas últimas fortalecidas
politicamente com a criação conjunta dos Brics. Visto, porém, de Caracas, Quito,
Lima, Buenos Aires ou outra capital dos países vizinhos, ainda existia a possibilidade
de ter sua política sul-americana interpretada como imperialista ou subimperialista,
da mesma forma que o foi nos anos 1960 ou 1970.
122
ARTIGOS (DOSSIÊ)
Considerações finais
Ruy Mauro Marini foi um intelectual e militante político que, ao lado de muitos ou-
tros, como Andre Gunder Frank, etônio dos Santos, Vânia Bambirra e Celso Fur-
tado, procurou compreender o subdesenvolvimento dos países latino-americanos e
propor alternativas para sua superação. Diferentemente da maioria desses intelec-
tuais, Marini se sobressaiu por aliar a reexão teórica à prática política – a práxis
tornando-se uma referência obrigatória entre os e as militantes políticos(as) da Amé-
rica Latina dos anos 1960 e 1970, como observaram Roberta Traspadini e João Pedro
Stédile (2011). O propósito deste artigo não foi resgatar o personagem Marini, mas
apresentar uma possibilidade de interpretação e aplicação na interpretação histórica
de uma de suas contribuições mais importantes, o conceito de subimperialismo. O
ponto de partida foi a tese de doutorado de Mathias Seibel Luce sobre o tema.
Marini dedicou grande parte de seu trabalho ao estudo sobre as diferentes formas
de extração da mais-valia e suas combinações, sendo que, na América Latina, dife-
rentemente de outras experiências, se utilizam distintos métodos de trabalho, que
possibilitam que a mais-valia gere um maior valor agregado. Isso é determinante para
a formulação do conceito de subimperialismo, uma forma especíca de reprodução
do capital que se realiza na conuência de variáveis como sua dimensão internacio-
nalista, a presença de monopólios e do capital nanceiro, o esquema tripartite de
realização do capital e as relações antagônicas com o imperialismo. Sem adentrar no
debate teórico mais profundo sobre essa forma de reprodução do capital, procura-
mos ilustrar a condição semiperiférica do Brasil e seu subimperialismo no contexto
de iniciativas brasileiras e/ou conjuntas de integração regional.
Procuramos ao longo do texto fazer uso do argumento de Marini de que a reprodu-
ção do capital em países medianamente industrializados é parte integrante da reprodu-
ção do capital em termos mundiais, mas que dela se diferencia, em razão das condições
socioeconômicas locais. As iniciativas brasileiras de integração a partir do golpe de
1964 – seja na Operação Amazônia, na criação conjunta do Mercosul ou sob os go-
vernos Lula (2003-2010) – se deram em consonância com a integração ao capitalismo
mundial (norte-americano, europeu ocidental, japonês, chinês), mas foram formuladas
a partir de interesses empresariais, militares e políticos internos. Como parte integrante
do capitalismo mundial, por mais consistente que seja a cooperação antagônica e a
atuação aunoma nas relações internacionais, os países semiperiféricos subimperialis-
tas não conseguem escapar de sua lógica intrínseca, como preconizava Marini. A histó-
ria das relações internacionais vem em nosso auxílio no sentido de fornecer elementos
materiais para a análise, ampliando as possibilidades de interpretação.
Reoriente • vol.3, n.1 jan/jun 2023 • DOI: 10.54833/issn2764-104X.v3i1p102-125
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De qualquer modo, seja sob regimes democráticos ou autoritários, sob governos
liberais ou social-democratas, a economia brasileira – seus dirigentes, na verdade,
tanto na área pública quanto na privada – respondeu da mesma forma. O país atuou
em favor da integração regional fazendo uso de suas características geo-históricas
– território, população, fronteiras, produção – para exercer mais ou menos explicita-
mente sua liderança. Para tanto, aliou-se aos principais centros capitalistas mundiais,
inicialmente aos Estados Unidos, aos quais se somariam grandes economias da Euro-
pa ocidental e Japão – o grupo de países que, nos anos 1970, formou a chamada Tri-
lateral – credenciando-se como parceiro estratégico dessas economias e angariando
parte (menor) dos resultados.
Cada caso analisado, ainda que não mencionado no texto, contou uma ideologia na
realização de seus objetivos de desenvolvimento socioeconômico: o desenvolvimen-
to para todos do início dos anos 1960, a integração da Amazônia, como equivalente
da integração (e bem-estar) da sociedade brasileira, a integração do Mercosul como
contraponto aos constrangimentos internacionais, a integração como instrumento de
integração social, a emular o slogan doméstico Brasil, país de todos. Ao longo dessas
décadas o país não conseguiu superar sua condição de país semiperiférico, com sua
economia integrada aos principais centros capitalistas e com a reprodução do capital
pertinente às suas condições socioeconômicas ditando os contornos da integração.
Distanciamo-nos de Marini nos propósitos mais imediatos de sua reexão teóri-
ca, ou seja, de suas preocupações com o subimperialismo e a revolução latino-ame-
ricana, mas sem menosprezar a relevância de seu pensamento para a compreensão
do Brasil, da América do Sul e da América Latina dos dias de hoje, assim como para
nosso cotidiano acadêmico. Mesmo na Universidade de Brasília, instituição à qual
foi vinculado nas origens da universidade e à qual retornou após a redemocratização,
Marini não é um dos nomes mais lembrados quando de debates e conferências sobre
dependência, subdesenvolvimento, imperialismo e outros aspectos que o destacaram
como intelectual. Esperamos ter contribuído, mesmo que minimamente, para o de-
bate sobre o subimperialismo.
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