RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. Trad. Heci Regina Can-
diani. São Paulo: Boitempo, 2022. 349 p.
Luiz Felipe Osório *
A crise econômica de 1929, com as transformações no capitalismo, e os desfechos da Segunda Guerra, com a respectiva vitória da União Soviética, marcaram a inflexão no sistema capitalista de Estados1. Os resquícios da amplitude do colonialismo e os impactos da guerra em todos os quadrantes do globo, além do enfraquecimento do continente europeu, que perdeu sua proeminência de outrora, permitiram que as relações de produção capitalistas se expandissem por todo o mundo, esgarçando o tecido social das formações socioeconômicas também em América, África e Ásia. Em outras palavras, é nesse momento que o capitalismo se torna, de fato, mundia-lizado, o que, de pronto, abre a primeira e mais estruturante fratura, o abismo entre centro e periferia2. O novo contexto descortinou novos horizontes e abriu uma série de possibilidades nas relações internacionais.
Se, no centro, a perda da proeminência europeia foi compensada com um arranjo que lhe garantiu ainda uma posição metropolitana, ainda que subordinada aos Estados Unidos, bem como uma dinâmica fordista, que lhe permitiu anos de reconstrução e de crescimento econômico; na periferia, as ruínas do colonialismo europeu em meio à transição de poder no bloco capitalista e à expansão das experiências de socialismo real, abriram brechas e margens de manobra para processos de autonomia nessas regiões periféricas, os quais se manifestaram das mais variadas formas, como fomento à industrialização, modernização, descolonização, independência e revoluções socialistas. Ligando centro e periferia estava a preocupação com o desenvolvimento, ainda que com ênfases bem distintas3.
* Professor de Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da UFRRJ e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) da UFRJ. Vice-Diretor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS/UFRRJ). Pós-Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Macken-zie/SP (2016). Doutor e Mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ.
Enfatiza-se aqui a leitura dos processos históricos pela lente da teoria materialista do Estado de Hirsch (2010).
Não que os termos e a discrepância não fossem apontados anteriormente. Sim, já o eram desde os pioneiros do imperialismo. No entanto, a fissura fica evidente e se transforma em um elemento incontornável das análises internacionais, agregando novos elementos e aspectos ao debate. Para mais ver Osório (2018).
Basta revisitar toda a literatura que defendia o gradualismo e o etapismo dos processos de desenvolvimento no centro, como Rostow e Lewis, a deterioração dos meios de troca, como o âmago da doutrina cepalina e as explicações marxistas e suas distintas ênfases em processos econômicos e políticos.
A discrepância entre centro e periferia tornou-se incontornável não apenas pela expansão do capitalismo no mundo, mas pela relativa prosperidade que o centro go-zava em relação às mazelas que assombravam as regiões marginais. O engajamento e as lutas revolucionárias foram fermentos importantes na construção de um pensamento crítico autóctone. O eurocentrismo4 requeria ser rompido, uma vez que havia demandas específicas das periferias que se colocavam como prementes, não sendo mais o capitalismo e seus desdobramentos exclusividade de uma região. É a partir da origem europeia que o imperialismo se torna assunto dos intelectuais das mais diversas nacionalidades nos quatro cantos do mundo.
Os temas da relação entre centro e periferia voltam também seus holofotes para questões inexoráveis, particulares da realidade periférica, como trocas desiguais, dependência, desenvolvimento e subdesenvolvimento, divisão internacional do trabalho e sistema-mundo. O imperialismo insere-se e articula-se nessa lógica desigual. A unidade de análise não é a formação social nacional e a correlação de classes, mas o sistema mundial, como um conjunto, tendo áreas geográficas distintas, e sendo partes os Estados desse todo. O imperialismo deixa de ser apontado como consequência da expansão e do desenvolvimento do capitalismo, como o era anteriormente, para ser lido também como elemento das relações de exploração dos países avançados no tocante aos atrasados.
Nas franjas sistêmicas também se produziu, e com enorme sofisticação, reflexões de vanguarda sobre os rumos do capitalismo no pós-guerra. Surge um conjunto de pensadores da periferia, atrelados à sua realidade sistêmica, que vivenciam intensamente e diretamente as sobreposições entre colonialismo e imperialismo e a chegada das relações de produção capitalistas nos territórios formalmente autônomos ou em luta pela independência, esgarçando por completo o tecido social e evidenciando as estruturas de dominação. Esse universo de intelectuais militantes constituiu-se em torno da leitura da realidade que enfatiza o desenvolvimento do capitalismo em âmbito mundial, logo, no imperialismo. O foco era, portanto, o imperialismo, mas não como um fenômeno externo, mas parte de sua realidade histórica e cotidiana. Em suma, diferentemente do que ocorreu no centro, em que o pensamento crítico e o marxismo foram caminhando para a diluição em alternativas da socialdemocracia e optando pelas transformações graduais; na periferia, teoria e prática revolucionária
Não que se afirme aqui que os autores pioneiros eram propositalmente excludentes. Por exemplo, o próprio Lênin, com mais ênfase, já denunciara a desigualdade existente. O viés europeísta foi natural daquele ínterim e inerente aos limites do capitalismo à época. O adjetivo em questão aborda a inevitável centralidade do pensamento europeu sobre o imperialismo naquele momento, ainda restrito aos ciclos políticos daquele continente. Ainda assim, esse traço do imperialismo pioneiro foi alvo de críticas, como as de Amin (2021).
se mesclavam para dar radicalidade e inovação ao pensamento crítico.
Aqueles que se debruçaram sobre a questão africana vão buscar as raízes das misérias e mazelas do continente perante o globo. Não coincidentemente, ainda que em espaços cronológicos e geográficos distintos, outros importantes pensadores marxistas emergem preocupados com a situação e a transformação da África, como Kwa-me N’Krumah, Patrice Lumumba, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Aimé Césaire, Ahmed Ben Bella, Samora Machel, Frantz Fanon e, mais adiante, Thomas Sankara, dentre outros.
É nesse contexto que Walter Rodney está imerso. Ou seja, nascido em Georgetown, na antiga Guiana Britânica, atual Guiana, em 23 de março de 1942, em meio aos escombros do colonialismo europeu pelo mundo, vindo de uma família militante, ele obteve reconhecimento pelo brilhantismo e possibilidades de estudo em reno-madas instituições dentro e fora do país, como na Jamaica. Formou-se em História, tendo como objeto de estudo a história africana. Inspirou-se em outros autores afroa-mericanos, como C. R. L. James, de Trinidad, Frantz Fanon, da Martinica, e W. E. B. Du Bois, dos Estados Unidos, além de ter dialogado diretamente com importantes pensadores afroestadunidenses, como a própria Angela Davis, dentre outros. Passou por vários países e lecionou na Universidade de Dar Es Salaam, na Tanzânia. Na militância, constituiu um quadro importante da Aliança da População Trabalhadora (cuja sigla em inglês é WPA) em sua terra natal. Seu destaque e agitação geraram consequências, como privações, perseguições e ameaças, até culminar no atentado a bomba que levou à sua morte em junho de 1980.
Deixou o legado de comprometimento com o combate das injustiças sociais e a defesa dos trabalhadores, com um viés panafricanista e antirracista, voltado ao horizonte do socialismo. Sua ênfase em África não o impediu de estudar outros temas, ao contrário, foi o ponto de partida para uma ampla investigação de importantes questões internacionais. De inspiração marxista, Rodney escreveu livros e artigos de opinião que abordam desde assuntos locais na África e na América Caribenha, até a influência de Marx nos processos de descolonização, passando ainda pela análise da Revolução Russa. No entanto, em 1972, antes dos 30 anos de idade, ele ganhou ainda mais notoriedade com o lançamento da obra em tela, Como a Europa subdesenvolveu a África5. Ela é o ápice6 de uma trajetória dedicada aos estudos sobre a história, desenvolvimento e imperialismo.
Três anos depois, o livro ganha uma tradução para o português, por meio da edi-
Para os autores da introdução, Vincent Harding, Robert Hill e William Strickland, a obra teria causado o mesmo impacto que Os condenados da Terra, de Frantz Fanon, publicado quase uma década antes.
Como Angela Davis explicita na apresentação, a obra mudaria os rumos da área de histórica africana.
tora Nova Seara, em Portugal. Contudo, somente em 2022, após o reconhecimento e menção de seu legado por importantes expoentes do pensamento socialista e antirracista, é que o livro de Walter Rodney será publicado no Brasil, a partir de um cuidadoso e meticuloso trabalho da editora Boitempo, que confere à obra uma apresentação cunhada por Angela Davis, um prefácio, escrito pelo próprio autor ainda na Tanzânia, uma introdução de Vincent Harding, Robert Hill e William Strickland, e um posfácio assinado por M. Babu.
Tendo como epíteto o excerto de um discurso de Che Guevara, já denotando todo seu compromisso com a luta internacional, principalmente terceiro-mundista, Rodney inaugura sua obra com um debate sobre o conceito de desenvolvimento e o de subdesenvolvimento. Ele particulariza o conteúdo específico que ambos ganham no capitalismo, apontando-os como em uma relação dialética de exploração, ou seja, verso e anverso, sendo que um ajuda a reproduzir o outro. Nesse sentido, estão intimamente ligados ao conceito de imperialismo, o qual ele delineia:
O imperialismo é, em si, uma fase do desenvolvimento capitalista em que os países capitalistas da Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Japão estabeleceram hegemonia política, econômica, militar e cultural sobre outras partes do mundo que estavam em um patamar mais baixo e, portanto, não podiam resistir à dominação. O imperialismo foi, na verdade, a extensão do sistema capitalista que, por muitos anos, abarcou o mundo inteiro- sendo uma parte explo-radora e a outra explorada; uma parte dominada e a outra agindo como senhores supremos; uma parte adotando políticas e a outra permanecendo dependente. (RODNEY, 2022, p. 41)
Como o desenvolvimento do capitalismo está atrelado ao imperialismo, ele também reflete sobre o socialismo, que se coloca em contraposição às premissas capitalistas, manifestando-se nas franjas do e em oposição ao imperialismo.
O socialismo avançou sobre os flancos mais fracos do imperialismo – o setor que é explorado, oprimido, reduzido à dependência. Na Ásia e na Europa Oriental, liberou as energias nacio-nalistas dos povos colonizados; desviou o objetivo da produção do mercado financeiro em direção à satisfação das necessidades humanas; erradicou gargalos como o desemprego permanente e as crises periódicas e tem cumprido algumas promessas implícitas na democracia ocidental ou burguesa ao proporcionar a igualdade de condições econômicas que é necessária antes que se possa fazer uso da igualdade política e da igualdade perante a lei. (RODNEY, 2022, p. 41).
O socialismo, portanto, é um caminho para a superação do subdesenvolvimento, o qual carrega a exploração em sua gênese, o que é comprovado por meio de dados e números que reforçam o argumento do autor. Compreendidas as premissas prin-
cipais da obra, parte-se para, no segundo capítulo, uma releitura da história africana a partir das concepções de África e Europa antes e depois da relação colonial. Aqui ele traça um panorama histórico geral sobre a África antes da chegada dos europeus, a heterogeneidade do desenvolvimento nas mais variadas regiões e a sobreposição de modos de produção, muitos dos quais ainda estavam distantes do capitalismo. Rodney refuta a tese de que a subordinação da África à Europa é fruto de uma pro-pensão natural à estagnação ou mesmo da superioridade europeia. Aliás, muitas das inovações europeias não se mostravam muito sofisticadas se comparadas com outras africanas. Ele debate as particularidades de alguns exemplos concretos de desenvolvimento que influenciaram ou promoveram mudanças em seu entorno, como Egito, Etiópia, Núbia, Marrocos, Sudão Oriental, Zona dos Grandes Lagos, África Oriental e Zimbábue. A dianteira europeia seria, portanto, resultado de um processo político-econômico de transformação das relações sociais concretas antes de outros continentes: “O fato de que a Europa foi a primeira parte do mundo a mover-se do feudalismo ao capitalismo deu ao continente uma vantagem sobre outras localidades em relação à compreensão científica do universo, à produção de ferramentas e à organização eficiente do trabalho” (RODNEY, 2022, p. 105).
A proeminência é refletida nas Grandes Navegações e na exploração de outros continentes. Então, se inicia a relação entre Europa e África a partir do intercâmbio e comércio de mercadorias, quando se inicia o tráfico de mão de obra cativa local, que é facilitado em função das divisões políticas internas, dadas devido à organização comunal de muitas regiões.
Costuma-se dizer, em relação ao período colonial, que divisões políticas verticais na África facilitaram a conquista. Isso é ainda mais verdadeiro em relação ao modo como a África su-cumbiu ao comércio escravista. A unificação nacional foi uma consequência do feudalismo maduro e do capitalismo. As divisões políticas na Europa eram muito menores que na África, onde o modo de produção comunal significava fragmentação política, tendo a família como núcleo, e havia apenas alguns Estados que contavam com a verdadeira solidez territorial. (RODNEY, 2022, p. 106).
Ademais, a escravização de africanos vai se tornando peça central dentro da organização colonial europeia, possibilitando o acúmulo de riquezas e os avanços gal-gados posteriormente. Com uma clareza e firmeza impressionantes, Rodney define a questão racial na gênese e no desenvolvimento do modo de produção capitalista.
No entanto, pode-se afirmar que, sem reservas, o racismo branco que passou a permear o mundo era parte integrante do modo de produção capitalista. Não era meramente uma ques-
tão de como o indivíduo branco tratava uma pessoa negra. O racismo da Europa era um conjunto de generalizações e suposições que não tinham base científica, mas eram racionalizadas em todas as esferas, da teologia à biologia.
Às vezes, afirma-se erroneamente que os europeus escravizaram os africanos por motivos racistas. Proprietários de terras e minas europeus escravizaram pessoas africanas por motivos econômicos, de modo que o trabalho delas pudesse ser explorado. Na verdade, teria sido impossível desbravar o Novo Mundo e usá-lo como constante produtor de riqueza não fosse a mão de obra africana. Não havia alternativa: a população das Américas (indígena) havia sido praticamente eliminada, e a população da Europa era muito pequena na época para povoamentos no exterior. Então, tendo se tornado completamente dependentes do trabalho africano dentro e fora da Europa, os europeus consideraram necessário racionalizar essa exploração também em termos racistas. A opressão decorre logicamente da exploração, a fim de garanti-la. A opressão dos povos africanos a partir de bases integralmente raciais acompanhou e fortaleceu a opressão por razões econômicas, dela se tornando indistinguível. (RODNEY, 2022, p. 117).
Com o assentamento dessas bases, o autor caribenho passa a tratar mais especificamente do subdesenvolvimento africano atrelado ao desenvolvimento europeu, como ocorre nos três últimos capítulos, o quarto, o quinto e o sexto. A despeito da colonização ter durado cerca de 70 anos, se considerarmos o final do século XIX até o período de descolonização dos anos 1960, um período histórico relativamente curto, ela permitiu mudanças gigantescas e paradigmáticas no globo, mas fundamentalmente na África. Rodney ressalta alguns efeitos do subdesenvolvimento: o aspecto demográfico, que ficou emperrado, ou seja, o crescimento da população africana foi simplesmente contido, se comparado com o de outros continentes; a destruição de povos e identidades locais, como os reinos de Oió e Benin; a estagnação técnica; a expatriação de excedentes, mediante a espoliação de riquezas; o esmagamento do camponês africano; a opressão da administração colonial local; e a imposição de uma ideologia de subordinação aos europeus na educação. Todas essas consequências são acompanhadas pela sua contraface no desenvolvimento europeu, ilustrando e refor-çando a tese do autor.
Em suma, Como a Europa subdesenvolveu a África é um monumento, um libelo instigante, militante e denso em favor da liberdade dos povos do mundo que, a partir da compreensão e do conhecimento de uma história simplesmente ocultada e da realidade do continente africano, consegue desvendar o cerne do sistema internacional contemporâneo, trazendo à baila as discussões centrais de nosso tempo, como desenvolvimento (e subdesenvolvimento), imperialismo (e colonialismo) e questão racial na dinâmica do modo de produção capitalista. Viva Walter Rodney!
AMIN, Samir. O eurocentrismo: crítica de uma ideologia. São Paulo: Lavrapalavra, 2021.
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estados. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
OSÓRIO, Luiz Felipe. Imperialismo, Estado e relações internacionais. São Paulo: Ideias & Letras, 2018. RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2022.
RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. Lisboa: Nova Seara, 1975. (Coleção de Leste a Oeste).