Giovanni Alves*
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Em seu último trabalho publicado (Processo e Tendências da Globalização Capitalista, 1996), Rui Mauro Marini discerniu com lucidez importantes elementos para uma economia política da globalização. Neste texto, o economista brasileiro salientou a difusão da indústria com a economia globalizada, a nova divisão do trabalho e a mundialização da lei do valor com a generalização da superexploração do trabalho aos países capitalismo centrais. Em 1997, Marini faleceu de câncer linfático, deixando, “[...] uma obra composta por seis livros de sua autoria, mais de 200 artigos, sete livros que dirigiu e coordenou e alguns inéditos, inclusive poesias da juventude, de rara beleza” (MARTINS, 2008, p. 14). Nosso objetivo neste ensaio é apresentar, num primeiro momento, uma periodização histórica do capitalismo mundial que nos permita situar a globalização capitalista e as reflexões de Ruy Mauro Marini. Depois, iremos expor, a partir do texto de Marini de 1996, as características da nova economia globalizada do capital. Para concluir, faremos considerações críticas a respeito da processualidade histórica qualitativamente nova do capital global. A nova era da mundialização da lei do valor operou mutações nas relações de dependência entre os países capitalistas e explicitou globalmente a superexploração enquanto produção destrutiva do trabalho vivo (a “superexploração destrutiva”).
Marini teve o senso da radicalidade do novo tempo histórico da globalização capitalista. Ele percebeu que o “porvir” da globalização não seria a mera continuidade do passado do capitalismo em desenvolvimento desde o século XVI. É interessante o jogo semântico das duas palavras que existem para o “futuro”: futuro e porvir. Assim, futuro diz respeito ao futuro como a continuação do presente, como a plena atualização das tendências que já estão presentes, enquanto porvir aponta para uma ruptura radical, uma descontinuidade com o presente. “Porvir” é o que está por chegar (por vir), não apenas o que será. Assim, o capitalismo global não seria mais o mesmo do desenvolvimento capitalista desde o século XVI. O porvir da globalização capitalista exposta por Marini abriu uma nova etapa histórica do capital, com impactos qualitativamente novos, não apenas no que se refere à estrutura de produção, circulação e consumo de bens e serviços, mas de mudanças na geopolítica do imperialismo e nas relações internacionais; e ainda, na organização social, na escala de valores e nas configurações ideológicas das classes em cada país.
A mundialização da lei do valor e a generalização da superexploração do trabalho representam a presença do “futuro” catastrófico do capital em sua etapa de crise estrutural. Elas representam o “ponto fixo” distópico (DUPUY, 2011), o ponto zero do “colapso” civilizatório no sentido do agravamento das relações de dependência; a
crise das instituições defensivas do trabalho (sindicatos e partidos operários); e a generalização da superexploração; e, para além disso, as profundas mudanças sociome-tabólicas do homem com a Natureza por conta do porvir do “capitalismo quântico”; e da nova economia psíquica do capital (o sociometabolismo da barbárie) por conta do “hipnocapitalismo” (ALVES, 2023a).
Marini não vislumbrou a complexidade do “porvir” da globalização capitalista. O “porvir” é o ponto zero, o “atrator” virtual para o qual nossa realidade, entregue a si mesma, tenderia. É por isso que, no final do texto de 1996, o economista brasileiro ressaltou o “imperativo categórico” da política como forma de ação humana necessária para evitar o desastre futuro. Na verdade, a política, para Marini, representou a processualidade da luta de classes capaz de interromper nossa deriva em direção ao “ponto fixo” distópico da globalização capitalista. A valorização da ação política, esvaziada pelo neoliberalismo (OLIVEIRA; RIZEK, 2007), designa a possibilidade de mudança capaz de quebrar o domínio que o “futuro” catastrófico tem sobre nós e, assim, abrir espaço para algo novo “por vir”.
De acordo com István Mészáros (2009, p. 464), o período histórico atual – desde meados da década de 1960 – é o período histórico em que a ordem sociometabólica do capital se defrontou com a “[...] ativação dos seus limites absolutos enquanto sistema de reprodução plausível”. Diferentemente da época de ascensão histórica do capital, em que havia (e foram aproveitadas) as possibilidades de deslocamento das contradições estruturais do capital, no presente, diz Mészáros (2011, p. 794), “[...] o desenvolvimento da reprodução sociometabólica do capital teria alcançado seus limites intrínsecos ou absolutos, que não podem ser transcendidos sem que o modo de controle prevalecente mude para um modo qualitativamente diferente”.
O conceito de “crise estrutural”, na perspectiva meszariana, refere-se a uma condição que “[...] afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada” (MÉSZÁROS, 2011, p. 795). Por isso mesmo, a crise estrutural
[...] põe em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo. [...] uma crise estrutural não está relacionada aos limites imediatos, mas aos limites últimos de uma estrutura global. (MÉSZÁROS, 2011, p.795).
A ideia de “crise estrutural” não diz respeito a um “dia do Juízo Final”, mas seu significado seria “mais modesto”: ela implicaria que a “[...] tripla dimensão interna da auto-expansão do capital [produção, consumo e circulação/distribuição/realização] exibe perturbações cada vez maiores”; ao mesmo tempo em que falha a “[...] função vital de deslocar as contradições acumuladas do sistema” (MÉSZÁROS, 2011, p. 465). As contradições e disfunções do sistema “[...] tendem a se tornar cumulativas e, portanto, estruturais, trazendo com elas um perigoso bloqueio ao complexo mecanismo de deslocamento das contradições” (MÉSZÁROS, 2011, p. 795, grifos nossos). A crise não é restrita à esfera socioeconômica, mas afeta “[...] toda a sociedade de um modo nunca antes experimentado. Realmente, a crise estrutural do capital se revela como uma verdadeira crise de dominação em geral” (MÉSZÁROS, 2011, p. 796, grifos nossos). Portanto, o conceito de “crise estrutural do capital” faz ressaltar a radicalidade do nosso tempo histórico – de um modo nunca antes experimentado.
A globalização capitalista da década de 1990 foi o coroamento da primeira etapa do período histórico da crise estrutural do capital iniciado na década de 1960. Por exemplo, a trajetória da vida intelectual-política de Ruy Mauro Marini (1932-1997) transcorreu nesse período histórico. Ainda que não se possa localizar o começo da nova fase histórica em torno de alguma data ou evento preciso, podemos indicar o marco histórico de conclusão dessa primeira etapa da periodização histórica da crise estrutural do capital, com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1991 – o fim de uma etapa histórica e começo de outra: o início da ascensão do capitalismo global e da nova etapa do globalismo neoliberal (a segunda etapa da temporalidade histórica da crise estrutural do capital)1. Eric Hobsbawn considerou 1989 como sendo o marco histórico do fim do “curto século XX” (iniciado em 1914). Robert Kurz fez uma leitura reversa do fim da URSS, considerando-o sinal do “colapso da modernização”. Para ele, a derrocada dos países capitalistas representou, nada mais e nada menos, que o início da crise do próprio sistema capitalista.
“É sempre difícil estabelecer com precisão as grandes linhas de demarcação histórica e o início de uma nova fase histórica, porque as raízes das novas tendências fundamentais remontam inevitavelmente ao fundo das determinações passadas e porque demora muito a que se manifestem em as suas dimensões. e afirmar-se plenamente em todos os níveis da vida social. Mesmo terremotos históricos gigantescos como os de 1789 e 1917 - dos quais agora contamos a origem de algumas das maiores mudanças históricas subsequentes - são apenas inteligíveis em termos de suas raízes no passado e suas longas e dramáticas consequências tiveram que superar resistências. formidavelmente forte no propósito de sustentar a reivindicação de sua importância como eventos históricos seminais” (MÉSZÁROS, 2009, p. 81).
As manifestações do início da crise estrutural do capital ocorreram, de acordo com Mészáros (2009), por volta do final da década de 1960, com três grandes enfrenta-mentos sociais: (1) a Guerra do Vietnã (as relações de exploração dos países capitalistas metropolitanos com os países subdesenvolvidos e o colapso da forma de intervenção mais abertamente agressiva do intervencionismo norte-americano); (2) o Maio de 1968 na França (os problemas e contradições dos países capitalistas centrais tomados em si e na conjunção de uns com os outros); e (3) a repressão das tentativas de reforma na Tchecoslováquia e na Polônia (as contradições das experiências nos países pós-capitalistas ou países do “socialismo real”). Entretanto, faremos um recuo na linha de demarcação histórica e início da nova fase histórica para o começo da década de 1960, utilizando como marco histórico de início da nova temporalidade de crise estrutural do capital, o alinhamento de Cuba com a URSS em 1º de janeiro de 1960. A Revolução Cubana, tanto quanto a Guerra do Vietnã, o Maio de 1968 na França e a invasão da Tchecoslováquia e da Polônia pela URSS, tornou-se expressão da crise de dominação do capital, ao lado dos movimentos de contestação da contracultura e de luta de classes (a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, o movimento operário na Europa Ocidental – Itália, França, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos).
Podemos identificar na primeira etapa da nova fase histórica de crise estrutural do capital, dois movimentos de conjuntura:
O primeiro movimento da conjuntura foi a fase de erupção e explosão da crise do capitalismo mundial e da crise de hegemonia do imperialismo dos EUA com a derrota estadunidense na Guerra do Vietnã em 1975. Do início da década de 1960 à primeira metade da década de 1970, tivemos o movimento de formação e explosão da crise capitalista, com a recessão mundial de 1973-1975 ocasionada pela queda da taxa de lucratividade, ocorrendo pelo menos desde meados da década de 1960 (o livro de Michael Harrington, Twilight Capitalism, de 1976, traduziu a profundidade da primeira crise da nova era do capital). A crise capitalista de meados da década de 1970 foi o marco histórico do fim da era do capitalismo fordista-keynesiano e o início do processo de transição para o novo regime de acumulação flexível (HARVEY, 1992). A teoria marxista da dependência surgiu como produto no plano teórico-po-lítico e intelectual nesse primeiro movimento da conjuntura da primeira etapa histórica da crise estrutural do capital;
O segundo movimento da conjuntura foi a ofensiva reestruturativa do capital à primeira etapa histórica de crise. Na medida em que a crise do sistema global
do capital foi uma crise sistêmica, a contraofensiva capitalista foi, do mesmo modo, sistêmica, não se restringindo apenas à esfera socioeconômica e esfera política, mas afetou “toda a sociedade de um modo nunca antes experimentado” (MÉSZÁROS, 2011: p. 216). A reestruturação capitalista das condições históricas de produção e reprodução social provocou mudanças diruptivas na base tecnológica, organização social, na cultura e escala de valores e nas configurações ideológicas do capitalismo. Sob a direção do capital financeiro, foram criadas as condições estruturais – objetivas e subjetivas – para a segunda etapa da crise estrutural do capital, com a ascensão e desenvolvimento do capitalismo global (o que aconteceu na década de 1990).
Portanto, a primeira etapa da crise estrutural do capital (1960-1991) teve dois movimentos de conjuntura, constituídos pelo movimento de crise e, depois, pelo movimento de reestruturação ou contraofensiva do capital. Essa primeira etapa da crise estrutural do capital durou cerca de 30 anos (da Revolução Cubana ao fim da URSS).
A segunda etapa histórica da crise estrutural do capital teve – do mesmo modo que o período histórico anterior – dois movimentos de conjuntura:
O movimento de ascensão da globalização capitalista neoliberal (1991-2008), que alterou os referentes estruturais da economia política e da geopolítica do imperialismo estadunidense: a organização social e da luta de classes; da configuração ideológica, política ideológica nas sociedades capitalistas centrais e sociedades do capitalismo periférico e dependente;
O movimento de crise do capitalismo global (a partir de 2008), no qual tivemos a manifestação da crise da economia do capitalismo predominantemente financei-rizado e de hegemonia do globalismo neoliberal. Foram repostas às profundas contradições abertas pela financeirização da riqueza capitalista por conta da crise de lucratividade que persiste pelo menos desde a metade da década de 1960. Mesmo a ascensão do capitalismo neoliberal e o movimento contratendencial à queda da taxa de lucro operado pelo aumento da taxa de exploração e de desvalorização do capital constante, não conseguiram recuperar de forma sustentável a taxa de lucratividade na principal economia capitalista do mundo (os EUA). A crise do capitalismo global fez o sistema do capital impulsionar uma nova contraofensiva – tal como fez na década de 1980 – visando restaurar o poder hegemônico mundial. Como elemento de novo tipo, tem-se a ascensão da China na década de 2000 e o protagonismo da Rússia na geopolítica global.
Embora Ruy Mauro Marini tenha vislumbrado o período de ascensão do capita-
lismo global, ele não viveu para ver os dois fatos históricos de maior relevância do começo do século XXI: a crise capitalista de 2008 e a “primeira depressão” da economia capitalista no século XXI, e a ascensão da economia da China no mercado mundial (em aliança estratégica com a Federação Russa a partir de 2022).
Após contextualizar historicamente o processo de crise estrutural do capital, buscando destacar a radicalidade da nova temporalidade capitalista, o objetivo deste ensaio é analisar o que Marini (2008) caracterizou como o processo e as tendências da globalização capitalista. Nesse texto, o economista marxista brasileiro nos apresentou as determinações fundantes (e fundamentais) da nova ordem do capital sob a fase histórica do capitalismo global: a (1) nova divisão do trabalho, (2) a mundialização da lei do valor e (3) a generalização da superexploração do trabalho enquanto processo qualitativamente novo da economia política da globalização.
No seu texto Marini tratou da globalização da lei do valor como resultado do largo período de crise imperialista, reestruturação capitalista e de reação do capital global. Ele vislumbrou a afirmação do mercado mundial num cenário histórico nunca antes visto, ou seja, a etapa histórica de pleno restabelecimento da lei do valor. Trata-se de um processo qualitativamente novo, com profundas implicações no modo de entendimento de operação do capitalismo. Marini contestou autores que afirmaram que a globalização da década de 1990 não é novidade pois o capitalismo sempre teve globalização (por exemplo, as Grandes Navegações no século XVI; ou o colonialis-mo e imperialismo do começo do século XX). Para Marini, o fim da União Soviética e a abertura dos novos mercados no Leste Europeu, e a liberalização comercial na América Latina na década de 1990, incrementaram a circulação e o consumo de bens e serviços numa escala nunca antes vista em termos de magnitude da população envolvida. O capitalismo tornou-se genuinamente global, e essa constatação possui implicações significativas para a compreensão do sistema mundial do capital.
Marini salientou a aceleração do tempo histórico por conta da difusão numa escala inédita das economias urbanas e industriais. Para ele, é inédita a enorme capacidade produtiva de bens e serviços por conta do salto da produtividade do trabalho, que cresceu numa dimensão nunca antes vista. Diz ele: “O crescimento da produção em uma só década (a de 1980) superou o que havia se verificado até a metade do século XX. E entre os 100 principais produtores, 47 são corporações transnacionais” (MARINI, 2008, p. 249-250). Por fim – e eis o aspecto inédito – ele ressalta a “profun-didade e rapidez destas transformações”:
Isso se deve, em grande parte, ao crescente grau de urbanização que caracteriza as sociedades contemporâneas: a concentração demográfica acelera a transmissão do conhecimento, padroniza os comportamentos, homogeneíza as formas de pensar. Mas, sobretudo, é fruto da revolução que se está a fazer ao nível das comunicações, que aumenta a velocidade de circulação de bens, serviços, ideias e, sobretudo, dinheiro, com o qual quase tudo se compra. O mercado financeiro único que está sendo criado e que funciona praticamente sem interrupção, mo-bilizando - apenas na categoria do chamado “capital errante” ou, mais precisamente, capital especulativo - 13 trilhões de dólares, é um bom exemplo do alto grau de internacionalização do capitalismo contemporâneo. (MARINI, 2008, p. 250).
O que Marini descreveu foram mudanças disruptivas. Não se trata apenas de considerar que o capitalismo sempre foi assim, mas sim de tirar conclusões dessa ruptura radical e do salto histórico qualitativamente novo que caracteriza a globalização capitalista. As mudanças incrementais ocorridas na primeira etapa de crise estrutural do capital (1960-1990) produziram mudanças qualitativamente novas, identificadas como sendo a globalização capitalista, que representa, assim, “a transição para uma nova etapa histórica” (MARINI, 2008, p. 248).
É importante destacar uma observação de Marini a respeito da dinâmica da nova economia política da globalização e da nova divisão do trabalho: “É particularmente notável o fato de que, nestas novas condições, o crescimento econômico deixou de corresponder à ampliação do emprego” (MARINI, 2008, p. 255). Com a globalização capitalista, manifestou-se efetivamente a desconexão entre crescimento e emprego; e isto significa o aumento do desemprego de massa e o debilitamento dos sindicatos. Ao constatar isso, Marini identificou uma das principais causas da crise do sindicalismo na era da globalização capitalista. Não apenas devido ao fato do aumento do desemprego massivo, mas, como ele percebeu, pela rendição ideológica (e política) do sindicalismo de classe: “Os trabalhadores não conseguem resistir às pressões patronais, e fazem concessões atrás de concessões” (MARINI, 2008, p. 256).
Com a globalização capitalista, o mundo do trabalho encontrou-se face à ofensiva do capital, que não diz respeito apenas à dinâmica do mercado de trabalho desconec-tado do crescimento da economia, mas à reestruturação produtiva: as empresas re-correm à terceirização, demitindo trabalhadores e contratando-os a partir de pequenas empresas prestadoras de serviços, evitando assim encargos trabalhistas. Marini percebeu, assim, a constituição da “sociedade neoliberal”, definida mais tarde, por Pierre Dardot e Christian Laval (2016), como “a sociedade que aparece como ‘uma empresa constituída de empresas’”.
A nova divisão do trabalho, a flexibilização e a diferenciação crescente entre os mercados de força de trabalho, contribuíram para aumentar a hierarquização entre
forças de trabalho, de acordo com o grau de qualificação, remuneração e emprego. Portanto, o conjunto de tais determinações indicou uma profunda crise do sindicalismo, a mais importante instituição de defesa do mundo do trabalho organizado.
As mudanças tecnológicas explicam a nova divisão do trabalho. Cada vez mais, o conhecimento é um importante requerimento do processo de produção do capital. Citando Reich, Marini observou que, em 1980, 80% do custo de um computador correspondia ao hardware e 20% correspondia ao software e suas aplicações do sistema operacional. Em 1990, dez anos depois, a proporção se inverteu: só 10% de custo de um computador da IBM diz respeito ao processo físico de produção (MARINI, 2008, p. 257-258). As mudanças tecnológicas e a nova divisão de trabalho tiveram importantes impactos nas relações de dependência entre países capitalistas.
Em primeiro lugar, o processo de difusão mundial da indústria manufatureira é desenfreado e irreversível, e deve ocorrer levando em consideração os níveis salariais entre operários diaristas – e não apenas eles, mas técnicos de nível alto e médio. Na medida em que uma fábrica e sua maquinaria podem ser instaladas em qualquer lugar do mundo, deve se acirrar a concorrência entre os operários de diversos países – centrais e periféricos. A concorrência da nova divisão internacional do trabalho ocorre no plano da mesma força de trabalho em função do grau de qualificação, cultura e qualificação produtiva de cada operário. Assim, pela primeira vez, o capital criou um “verdadeiro exército industrial globalizado” (MARINI, 2008, p. 259).
Essa é uma importante constatação de Marini sobre a nova dinâmica de desenvolvimento do capitalismo global: a concorrência tornou-se entre operários e não mais entre economias nacionais nas quais os operários trabalham e a posição ocupada por essas economias no mercado mundial. Isso explica, de certo modo, a generalização da superexploração do trabalho como categoria do capitalismo global e não apenas dos países dependentes.
A produção do capital – e a formação de lucros extraordinários – deve levar cada vez mais em consideração o nível de qualificação da força de trabalho, o que remete à importância da questão da educação – desde o nível pré-escolar até o nível superior –e a formação de quadros altamente qualificados (“analistas simbólicos”).
Os países desenvolvidos, por conta do privilégio do monopólio tecnológico descrito acima, têm o controle das transferências das atividades industriais. Na medida em que se colocam na dianteira dos países dependentes na questão da inovação tecnológica, da pesquisa e desenvolvimento (P&D), eles deixam para trás os países mais atrasados, com indústrias menos intensivas em conhecimento. Além disso, as grandes empresas dispersam entre diferentes países as etapas da produção de mercadorias, impedindo o surgimento de economias nacionalmente integradas.
Essas duas faculdades dos países desenvolvidos (monopólio tecnológico e dispersão das etapas de produção de mercadorias) afetam a divisão internacional do trabalho no nível da produção. Para Marini, isso altera de modo significativo as relações de dependência. O aumento da produtividade do trabalho ou a mudança do capital fixo faz crescer nos centros desenvolvidos as necessidades em matéria de insumos (capital circulante). Ele observou: “Um de seus resultados visíveis [disso], é o retorno dos países à forma simples de divisão internacional do trabalho que vigorava no século XIX e que significava a troca de bens primários por bens manufaturados” (MARINI, 2008, p. 260).
É claro que não se trata exatamente de uma regressão às economias extrativistas do século XIX, pois Marini reconhece que os métodos de gestão dos países dependentes são extremamente capitalistas, ao contrário da forma simples de divisão internacional do trabalho que prevalecia no século XIX e implicava a troca de mercadorias. Marini deu como exemplo o Chile, “[...] cujas exportações consistem basicamente em cobre e outros minerais, moluscos, farinha de peixe, madeira e celulose, enquanto as importações cobrem a maior parte das necessidades do país em termos de bens de capital e de consumo [...]” (MARINI, 2008, p. 259).
Com respeito ao Brasil, o país de maior desenvolvimento industrial da região, Marini verificou, naquela época, tendências de desindustrialização que se afirmaram nas décadas seguintes. Disse ele que o Brasil “[...] começa a apresentar tendências que constituem motivos de preocupação entre empresários e economistas” (MARINI, 2008, p. 260).
Portanto, a nova divisão do trabalho, impulsionada pela globalização capitalista, intensificou as relações de dependência entre os países capitalistas. Nesse contexto, os países dependentes não têm mais acesso a conhecimentos tecnológicos estáveis, como os disponíveis no final da Segunda Guerra Mundial, e enfrentam o desenvolvimento acelerado de tecnologias de ponta, que exigem investimentos e conhecimentos significativos. Dessa forma, a distância entre os países dependentes e os centros avançados tem se ampliado, destacando a relevância atual da teoria marxista da dependência no século XXI.
O Estado neoliberal, a forma do Estado capitalista que opera nos países dependentes a nova divisão do trabalho, não aumenta o gasto exigido pela educação, agra-vando, assim, as relações de dependência, fazendo reproduzir – numa escala planetária – a divisão do trabalho que a grande indústria da Revolução Industrial criou no passado, embora, diz Marini, “[...] os novos operários sejam obrigados a ter uma qualificação muito superior à que vigorava no século XIX”. Marini reconhece que a questão da dependência se coloca efetivamente no plano da política: “[...] a economia
torna-se um problema que deve ser resolvido principalmente no nível das políticas” (MARINI, 2008, p. 261).
O sujeito da mundialização da lei do valor são as firmas transnacionais e suas cadeias de produção global. A nova revolução tecnológica impulsionada por elas proporcionou um alto grau de padronização na produção de peças e componentes, implicando a difusão em larga escala de equipamentos e métodos de produção, bem como a utilização de matérias-primas de qualidade.
Em outras palavras, com a globalização capitalista, a produção mundial caracteriza-se por uma crescente homogeneização em termos de capital constante fixo e circulante. No passado, no processo de internacionalização do capital industrial ocorrido no pós-guerra e que se estendeu até a década de 1970, não havia tal homogeneização em termos de capital constante e capital fixo. Além disso, ocorreu – como vimos acima – uma transferência de tecnologia que proporcionou os processos nacionais de industrialização.
Portanto, os elementos destacados por Marini que restabeleceram a plenitude da lei do valor e agravam as relações de dependência entre os países capitalistas do centro e da periferia, foram a (1) difusão (e monopólio) tecnológica e dispersão das etapas de produção de mercadorias; (2) homogeneização em termos de capital constante (fixo e circulante); (3) e a supressão das barreiras que fragmentavam o mercado mundial e punham obstáculos ao fluxo de reprodução do capital. Com a globalização capitalista, tais obstáculos foram suprimidos. Outro elemento é que os notáveis avanços alcançados na área de informação e comunicação fornecem uma base muito mais sólida do que antes para a compreensão das condições de produção e, consequentemente, para (4) o estabelecimento de preços relativos (MARINI, 2008). Assim, o mercado mundial, pelo menos em seus setores produtivos mais integrados, avança para o nivelamento de valores de forma cada vez mais efetiva e, conforme a tendência, suprimindo as diferenças nacionais que afetam a vigência da lei do valor.
As palavras utilizadas por Marini para descrever o tempo histórico do capital global são padronização, difusão, homogeneização, nivelamento, dissolução das fronteiras nacionais e supressão de barreiras. Tudo isso supõe um novo espaço da concorrência global que não havia antes, um espaço qualitativamente novo para o fluxo da reprodução do capital, que altera os termos da produtividade do trabalho e de fixação dos preços relativos de mercadorias.
Marini retomou – de modo sintético – a discussão feita no texto “Mais-Valia Ex-
traordinária e Acumulação de Capital” (1979). Diz ele que, no nível do capital social (num país ou num setor produtivo internacionalizado), o grau de produtividade do trabalho corresponde a uma intensidade média (o ritmo de trabalho alcançado pelo trabalhador médio, dependendo desse grau de produtividade). O valor de uma mercadoria é dado pelo tempo médio de trabalho socialmente necessário para sua produção (resulta daí uma produtividade média e uma intensidade média de trabalho). É a partir do tempo médio que será fixado seu preço relativo. No âmbito do mercado mundial, os bens são comparados para estabelecer seu preço relativo (compara-se objetos que requerem diferentes tempos de trabalho para serem produzidos). O aumento da produtividade média do trabalho faz com que se produza uma massa maior de valores de uso que o capitalista se encarregará de converter em mercadoria. Mas a lei do valor numa economia globalizada opera uma forma peculiar de concorrência, que visa (ela – a concorrência) a obtenção pelos capitalistas individuais – unilateralmente – da mais-valia e do lucro extraordinário por meio do aumento da base técnica e/ou a intensidade de trabalho de seus trabalhadores2.
Com a globalização capitalista surgem diferenças com respeito ao “lucro extraor-dinário”, que se torna um esforço permanente das grandes empresas. Por exemplo, numa economia nacional, “o lucro extraordinário tende a ser transitório” (MARINI, 1979: p. 32 – grifos do autor (a concorrência – dado o nível de qualificação do trabalhador médio e o acesso mais fácil ou intensivo dos capitalistas às novas tecnologias – nivela o tempo médio de produção e fixa assim o preço relativo da mercadoria).
O mesmo não ocorre no mercado mundial, ou ocorre de forma muito diferente, tendo em vista as “[...] dificuldades da obtenção de informações relacionadas aos processos produtivos e às transferências de tecnologia, além da diversidade dos graus de qualificação dos operários (o país que tem maior capacidade produtiva faz passar como idêntico o valor dos bens que produz)” (MARINI, 2008, p. 265).
Com a globalização capitalista, a progressiva dissolução das fronteiras nacionais
Marini distinguiu no texto o “trabalho mais produtivo” e o “trabalho mais intensivo”, formas de extração de mais-valia relativa e de mais-valia absoluta, respectivamente. Diz ele: “O trabalho mais produtivo é aquele que, em base técnica superior, permite ao trabalhador, sem muito esforço, produzir mais bens no mesmo período de tempo, o que implica, em princípio, uma redução do valor dos bens; porém, enquanto essa superioridade técnica não for generalizada, seu valor individual continuará sendo determinado pelo seu valor social (conforme as condições médias de produção do ramo) e, portanto, estará acima de seu valor real”. E prossegue: “O trabalho mais intensivo, embora também leve o trabalhador a produzir maior quantidade de mercadoria ao mesmo tempo, não resulta de um avanço técnico, mas de um maior esforço, o que acarreta maior desgaste a força de trabalho, sendo que seu efeito é, portanto, semelhante ao do prolongamento da jornada de trabalho, e, assim, implica a produção de uma maior massa de valor; somente se o novo grau de intensidade for generalizado ao ramo, o valor da mercadoria assim produzida se tornará valor social, ou seja, será determinado em função da nova intensidade média do ramo em questão” (MARINI, 1979, p. 25).
e o aumento da produção destinada a abranger mercados cada vez mais vastos, levam ao acirramento da concorrência entre as grandes empresas, e põe-se de modo pleno o esforço permanente delas para obter lucros extraordinários em comparação com seus concorrentes. A utilização de procedimentos para obter lucros extraordinários é acentuada, não apenas por meio de mecanismos tecnológicos, mas também pelo aumento da intensidade do trabalho e pela manutenção das diferenças salariais nacionais.
Entretanto, a obsessão das grandes empresas pelo lucro extraordinário se depara com dificuldades para que ele se prolongue no tempo. Essa é uma contradição da globalização capitalista: torna-se cada vez mais difícil para as grandes empresas estabelecerem monopólios tecnológicos por períodos prolongados.
A mesma necessidade que a concorrência impõe de recorrer a novas formas de redução de custos de circulação (como o sistema just-in-time, que procura evitar a formação de estoques) e a descentralização produtiva (como, por exemplo, o outsour-cing), não apenas aumentam o grau de centralização do capital, mas forçam a difusão da tecnologia, particularmente em relação aos métodos diretos de produção (embora não, obviamente, em relação à sua concepção).
Isso quer dizer que a mundialização do valor permite a obtenção de mais-valia e lucros extraordinários, mas, ao mesmo tempo, com a difusão tecnológica e a padronização (e intercambialidade) dos bens de produção que tende, no longo prazo, a homogeneizar os processos produtivos e equalizar a produtividade do trabalho e, consequentemente, sua intensidade, dificulta a obtenção da mais-valia e dos lucros extraordinários, de forma duradoura, pelos capitalistas individuais – unilateralmente.
Eis as contradições da economia política da globalização capitalista: por um lado, no mercado mundial, tem-se “[...] dificuldades da obtenção de informações relacionadas aos processos produtivos e às transferências de tecnologia, além da diversidade dos graus de qualificação dos operários” (MARINI, 2008, p. 265), mas, por outro lado, com a globalização capitalista, temos “[...] um notável avanço em matéria de informação e comunicação, proporcionando uma base muito mais firme que antes para se conhecer as condições de produção e, por consequência, o estabelecimento dos preços relativos” (p. 266, grifo nosso). Marini (2008, p. 266, grifo nosso) diz: “O mercado mundial, ao menos em seus setores produtivos mais integrados, avança assim para o nivelamento de valores de forma cada vez mais efetiva e, conforme a tendência, suprimindo diferenças nacionais que afetem a validade da lei do valor”.
A globalização capitalista tende a reproduzir, no plano mundial, as condições de concorrência da economia nacional, no sentido de termos – na economia globalizada –o nivelamento do tempo médio de produção e a fixação do preço relativo da mercadoria. Com a economia globalizada, observamos um avanço da obtenção de informa-
ções relacionadas aos processos produtivos e às transferências de tecnologia, apesar da diversidade dos graus de qualificação dos operários. Marini (2008, p. 265) salienta que, com a mundialização da lei do valor, temos a “dissolução progressiva das fronteiras nacionais”. Entretanto, é preciso ver isso, como diria Marx, cum grano salis, tendo em vista que a globalização das estruturas reprodutivas do capital opera uma disso-nância com respeito às formações dos Estados nacionais que efetivamente não podem ser abolidas. Existe efetivamente uma dialética entre “supressão das diferenças na-cionais” e o “agravamento das relações de dependência”. Isto é expressão daquilo que Mészáros (2011, p. 127) caracterizou como sendo a “dissonância estrutural entre as estruturas reprodutivas materiais do capital e sua formação estatal”:
Aqui encontramos uma grande contradição que objetivamente se intensifica entre os imperativos materiais do capital e sua capacidade de manter o controle sobre o que mais importa: o próprio processo de produção. A base dessa contradição é a tendência a uma crescente socialização da produção no terreno global do capital. Esse processo transfere objetivamente o controle potencial para os produtores (embora, dentro da ordem sociometabólica estabelecida, apenas em sentido negativo), abrindo algumas possibilidades para exacerbar ainda mais a incontrolabilidade do sistema do capital [...]. Isso porque o Estado - apesar de sua grande força repressiva - é totalmente impotente para remediar a situação, qualquer que seja o grau de autoritarismo da intervenção prevista. Nesse sentido, não é concebível uma ação política corretiva em relação à base socioeconômica do capital. As complicações e contradições incontroláveis do capital, devido à crescente socialização da própria produção, atingem o núcleo mais central do capital como sistema reprodutivo. Paradoxalmente, derivam do maior recurso do sistema do capital: um processo de avanço produtivo dinâmico do qual o capital não pode abrir mão sem enfraquecer sua força produtiva e sua concomitante legitimidade. (MÉSZÁROS, 2011, p. 127, grifos nossos).
A corrida pela internacionalização dos processos produtivos e a constante difusão da indústria para outras nações visam – deste modo – não apenas explorar as vantagens criadas pelo protecionismo comercial, como no passado, mas acirrar a concorrência mundial e a corrida pela mais-valia e lucros extraordinários.
É a partir daí que Marini realçou a importância do conceito de “superexploração do trabalho” nas condições da economia globalizada. Para ele, ela teria um “papel de destaque, embora não exclusivo”3 (MARINI, 2008: p.267). É o acirramento da
Adrián Sotelo Valencia (2022) desenvolveu a percepção de Ruy Mauro Marini, tornando o conceito
concorrência mundial e a corrida pela mais-valia e lucros extraordinários que faz com que a superexploração do trabalho se generalize na economia globalizada, deixando de ser apenas uma característica distintiva dos países dependentes. A teoria da generalização da superexploração do trabalho baseia-se, assim, na nova teoria da concorrência e da corrida pela mais-valia e lucros extraordinários na economia globalizada.
É próprio do capitalismo privilegiar o aumento da extração da mais-valia e buscar a maximização da massa de lucros, utilizando, para isso, tanto o aumento da jornada de trabalho quanto a intensificação do trabalho, bem como, mais grosseiramente, a redução dos salários, sem respeitar o valor real da força de trabalho. Com a globalização capitalista e a mudança qualitativamente nova da concorrência no nível mundial, a superexploração do trabalho – diz ele – “[...] generaliza-se a todo o sistema, inclusive aos centros avançados, o que era um traço distintivo – embora não exclusivo da economia dependente” (MARINI, 2008, p. 266).
Na nova etapa histórica do capital global, a superexploração do trabalho deixou de ser uma característica exclusiva dos países dependentes, expandindo-se por todo o sistema do capital global. Dessa forma, a teoria da dependência, que tem como elemento fundamental a teoria da superexploração do trabalho, passou a contribuir efetivamente para a compreensão das novas formas de exploração do capital global, não apenas nos países dependentes, mas também nos centros avançados do capitalismo global. O mesmo movimento que intensificou a relação de dependência entre os países capitalistas também generalizou a superexploração do trabalho em todo o sistema global do capital. O agravamento da desigualdade entre os países centrais e periféricos no sistema capitalista mundial e a ampliação do escopo da teoria da superexploração do trabalho tornaram, mais do que nunca, a teoria da dependência um instrumento valioso para a crítica do capital no século XXI.
O texto de Marini expõe um conjunto de contradições da economia globalizada. Vamos ressaltar mais uma delas: a generalização da superexploração do trabalho, que faz acentuar o aumento da massa de trabalhadores pobres, ocorre no preciso momento em que “[...] o desenvolvimento das forças produtivas abre aos povos, perspectivas ilimitadas de bem-estar material e espiritual e capitais” (MARINI, 2008, p. 269). A economia globalizada, na perspectiva de Marini, opera um movimento de “regressividade” que obriga à luta de classe incorporar demandas pretéritas, isto é,
de superexploração do trabalho o ponto axial a partir do qual ele refletiu sobre as transformações do mundo do trabalho no século XXI.
demandas da luta de classe no século XIX. Diz Marini (2008, p. 268) que a questão central da luta dos trabalhadores deve “[...] colocar limites à orgia a que o capital é entregue [...], [colocando] sob seu controle, as novas condições sociais e técnicas nas quais podem desenvolver sua atividade produtiva”. Portanto, não se trata de frear o aumento da produtividade do trabalho, nem mesmo de seu corolário natural (o aumento da intensidade); mas – diz ele – de “[...] distribuir mais equitativamente o esforço produtivo” (2008, p. 268), ou seja, conquistar a redução proporcional da jornada de trabalho, compatível com o avanço da capacidade produtiva em geral4. Assim, em seu texto, Marini acredita que se possa colocar “limites à orgia do capital” (a superexploração do trabalho) por meio de políticas distributivas “mais equitativas”. Mas a luta para se colocar “limites à orgia do capital” só teria sucesso se tivesse como pressuposto a luta pelo “desenvolvimento econômico mundial sob bases radicalmente diferentes” (MARINI, 2008, p. 268).
Marini conclui o texto “O Processo e as Tendências da Globalização Capitalista” destacando o “imperativo categórico” da política. Para ele, como já salientado, “[...] a economia torna-se um problema que deve ser resolvido principalmente no nível das políticas” (MARINI, 2008, p. 261). Os problemas devem ser enfrentados necessariamente pela luta de classes e, em particular, por sua disposição de tomar as rédeas da política em suas próprias mãos, direção do Estado. Marini não faz referência à necessidade da “revolução socialista”, mas sim à necessidade da “revolução democrática radical”, ou seja,
[...] a intervenção ativa dos trabalhadores na formulação e implementação de políticas públicas e o amplo uso de instrumentos de democracia direta, participação popular e vigilância cidadã. [...] É neste sentido que a questão econômica se tornou hoje, mais do que nunca, uma questão política ou, o que dá no mesmo, que a luta contra a dependência não pode ser disso-ciada da luta pela democracia. (MARINI, 2008, p. 261 – grifos meus).
A valorização da política ocorreria pela afirmação do espaço nacional como centro de projetos de desenvolvimento que levassem em consideração os interesses do povo. Interessa aos países capitalistas centrais imperialistas minar as fronteiras nacionais a fim de abrir caminho para a circulação de seus bens e capitais. Entretanto, o globalismo neoliberal gera resultados diferentes em diferentes regiões do planeta. Por
Em 1866, Karl Marx afirmou nas “Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório da I Internacional”: “Uma condição preliminar, sem a qual todas as outras tentativas de melhoria e emancipação da classe trabalhadora devem ser abortadas, é a limitação do dia de trabalho. É necessário restaurar a saúde e as energias físicas da classe trabalhadora, ou seja, o grande corpo de cada nação, bem como garantir a possibilidade de desenvolvimento intelectual, relações sociáveis, ação social e política. Propomos 8 horas de trabalho como o limite legal do dia de trabalho […]” (apud SASAKI, 2021, p. 87).
exemplo, Marini contrastou o modelo adotado pelos países latino-americanos para garantir sua inserção na economia globalizada (o modelo neoliberal), com o modelo que os países asiáticos vêm adotando5, o modelo de Estados capitalistas desenvolvi-mentistas, como, por exemplo, a Coréia do Sul. A Coréia do Sul, diferentemente do modelo neoliberal, tem adotado um modelo em que o Estado subordina a sua abertura ao exterior à proteção da sua economia, formulando políticas de longo prazo, políticas industriais que lhes permite ocupar novos espaços no mercado mundial de forma ordenada (no caso da Coreia do Sul, o Estado controla o sistema financeiro, in-tervém nas atividades produtivas diretas, promove racionalmente a abertura externa, estabelece metas para ramos e setores econômicos, cria incentivos ao desenvolvimento e garante aumento de receitas):
A incompetência [sic] que as classes dirigentes latino-americanas e seus Estados vêm demonstrando em promover a defesa de nossas economias transfere aos trabalhadores a exigência de tomar a iniciativa. A ameaça de desindustrialização que paira sobre a região, o atraso do sistema educacional e a insuficiência das políticas científicas e tecnológicas, juntamente com a falta de políticas voltadas para o desenvolvimento econômico, colocam a América Latina no limiar de uma situação caracterizada pela exclusão de grandes contingentes populacionais. (MARINI, 2008, p. 269).
Mas não se tratou de “incompetência” das classes dirigentes da América Latina e seus Estados capitalistas. A questão é que o projeto de dominação capitalista foi vitorioso no Ocidente neoliberal. As classes dominantes e dirigentes foram competentes na inserção subalterna e dependente à mundialização neoliberal do capital. Fomos derrotados na luta de classes ocorrida a partir da crise e reestruturação capitalista da década de 1970. A globalização capitalista foi impulsionada por isso. O triunfo do Estado neoliberal consolidou-se com a ascensão histórica do globalismo neoliberal depois do fim da URSS na década de 1990. A reestruturação produtiva do capital, a mundialização da lei do valor e a generalização da superexploração do trabalho foram produto da derrota política (e ideológica) da classe operária e o triunfo do neoliberalismo no Ocidente neoliberal.
O que Marini identificou como tendência da globalização capitalista (a ameaça de desindustrialização, o atraso do sistema educacional, a insuficiência das políticas científicas e tecnológicas, aliadas à ausência de políticas voltadas para o desenvolvimento econômico) tornou-se realidade no Brasil durante a era neoliberal. Enquanto tendência, a globalização capitalista tornou-se um sério risco para a América Latina.
Marini não utiliza como modelo de referência a China socialista, na medida em que ela possui grandes vantagens em termos de mercados, população e recursos naturais e que mantém seu processo de inserção na economia sob a direção do Estado.
À medida que não se consiga democratizar o Estado e tirar o controle da economia das mãos da classe dominante, a América Latina pode regressar à situação em que se encontrava no século XIX. Eis o espectro da regressividade histórica presente nas reflexões do último Marini. É por isso que se coloca a necessidade da luta pela redução da jornada de trabalho e a obstaculização da “orgia do capital”. A regressividade histórica se cumpre à medida que persiste a dominação do velho Estado. Para contê-la, Marini salienta a necessidade da “revolução democrática radical”.
A globalização é o futuro do capitalismo – diz Marini no seu texto. A economia globalizada “está em marcha”. Não se pode negar o futuro, mas devemos nos equipar melhor para fazer frente a ele. Marini não via a globalização capitalista em si como fato negativo. Ela apresenta vantagens à medida que os Estados resgatem especificidades étnicas e culturais; e, inclusive, autonomias locais. Mas para isso, como condição sine qua non, tornar-se-ia mais fundamental do que nunca a afirmação da unidade de classe no terreno da luta “lúcida e perseverante” pela democratização do Estado, isto é, a luta pela superação do velho Estado nacional. A disputa pelo Estado tornou-se muito importante, visto que se coloca a necessidade do projeto de desenvolvimento econômico compatível com a nova configuração do mercado mundial globalizado.
A globalização capitalista não diz respeito a um tempo contingente (transitório) do capitalismo histórico, mas, sim, um tempo necessário (futuro) que expõe os limites internos absolutos do capital. Ela opera mudanças qualitativamente novas no sistema. A globalização capitalista é a temporalidade do capitalismo catastrófico. A palavra catástrofe vem do grego katastrophe e significa “fim súbito, virada de expectativas” (de kata-, “para baixo”, mais strophein, “virar”). Portanto, o capitalismo catastrófico é o capitalismo da “virada de expectativas ‘para baixo’”. A mundialização do capital é o espaço de plenitude da lei do valor em que o ocorre o “salto mortal” da produtividade do trabalho (OLIVEIRA, 2013). Portanto, destacamos que a globalização capitalista promoveu um salto qualitativamente novo na forma de funcionamento do sistema de economia globalizada, não apenas nos âmbitos econômico, social e político, mas também no plano da subjetividade e na configuração das classes sociais.
No texto de publicação póstumo “O Conceito de Trabalho Produtivo: Nota Metodológica (1992-1997)”, Marini expôs o conceito de classe social e, portanto, de classe social do proletariado:
Para definir uma classe social em um dado momento histórico, portanto, não basta considerar
a posição que os homens objetivamente ocupam na reprodução material da sociedade. Além disso, é necessário considerar os fatores sociais e ideológicos que determinam sua consciência do papel que acreditam desempenhar nela. Tendo em conta as críticas que esta afirmação tem sofrido, só em última instância é que a base económica determina a consciência. E isso por meio de dinâmicas sociais concretas, ou seja, por meio da luta de classes. Para que, em determinadas circunstâncias, trabalhadores que não pertençam diretamente à classe trabalhadora ou que, por sua posição na reprodução econômica, se sintam alienados, possam se identificar com suas aspirações e ingressar no movimento operário.” (MARINI, 2005, p. 204, grifos nossos).
Assim, para pertencer à classe trabalhadora não basta levar em consideração a posição que os homens ocupam objetivamente na reprodução material da sociedade. Como observou Marini, “[...] só em última instância é que a base econômica determina a consciência”. A identidade de classe é determinada pelos fatores sociais e ideológicos e pela luta de classes. Inclusive, mesmo aqueles que não são diretamente trabalhadores, podem – por meio dos fatores sociais e ideológicos – identificar-se com as aspirações e ingressar no movimento operário. A questão é que os fatores sociais e ideológicos que determinam a identidade de classe e a própria luta de classes têm sofrido mudanças qualitativamente novas com a globalização capitalista. O poder de manipulação do capital exacerbou-se (ALVES, 2023a). A globalização capitalista não gerou somente transformações econômicas e sociais, mas, sobretudo, mudanças ideológicas e políticas. A mundialização da lei do valor é resultado também da nova organização da configuração ideológica da sociedade neoliberal no que diz respeito à subjetivação da classe.
Na década de 1980, o capital fez uma verdadeira “revolução cultural”. A crise do sindicalismo e a crise dos partidos comunistas e socialistas por conta da globalização capitalista, aprofundaram a crise da consciência de classe. O debilitamento dos sindicatos foi também um debilitamento político-ideológico. Como já salientamos, Marini observou: “[...] face às pressões patronais, os sindicatos têm feito concessões atrás de concessões” (MARINI, 2008, p. 256). Na nota de rodapé 18 do texto de 1996 citado acima, ele destacou a fala do chefe do Departamento Internacional da TUC (Trade Union Congress), a central sindical inglesa que contava com 7,7 milhões de filiados no II Simpósio sobre o Futuro do Sindicalismo, realizado em São Paulo em agosto de 1992. O líder sindicalista admitiu que a central sindical inglesa havia perdido força após a ascensão de Thatcher ao governo, e declarou: “Passamos da luta de classes para a colaboração de classe [aparceria no trabajo]”. Por sua vez, Robbie Gilbert, diretor da Confederation of British in Industry, organização patronal inglesa, observou que, em comparação com a média de 3.000 reclamações trabalhistas registradas na década de 1970, 500 foram registradas em 1991. E Bruno Rossi, do Departamento Internacional
da CGIL, a maior e mais importante das três centrais sindicais italianas, com 5 milhões de filiados, confirmou: “A colaboração de classe [aparceria] não só é possível, mas necessária para ambas as partes”.
Um detalhe: traduzimos o termo aparceria (em espanhol) por “colaboração de classe”. Mas “aparceria” significa o contrato de parceria pelo qual – por exemplo – o proprietário de uma fazenda confia a um trabalhador dessa fazenda uma porcentagem nos resultados. Mas a “parceria” (ou a participação em lucros e resultados),
[...] é um procedimento tão antigo quanto o capital. Por exemplo, ao estudar o salário por peça, Marx observou: “[...] esse sistema de salário [o salário por peça], forma a base [...] de todo um sistema hierarquicamente graduado de exploração e opressão. [...] o trabalho por peça facilita a intervenção parasitária entre os capitalistas e o trabalhador, com o sistema de sublocação do trabalho (sublocação do trabalho)” (MARINI, 2008, p. 256).6
Embora o salário por peça seja, de fato, tão antigo quanto o capital, a colaboração de classe do sindicalismo europeu com uma larga tradição de luta de classe demonstra efetivamente que o capitalismo (e a luta de classes) não são mais como antes. Ao alterar a materialidade do capital, a globalização capitalista alterou a configuração ideológica (e política) do trabalho organizado. Não se trata de um fato contingencial, mas de mudanças estruturais na dinâmica de produção (objetiva e subjetiva) da identidade de classe provocadas pela nova ofensiva do capital: a globalização neoliberal.
A ofensiva neoliberal (e do imperialismo) adquiriu força renovada não apenas na economia política e geopolítica, mas na esfera da cultura e da colonização ideológica e mental das massas. Em 30 anos de neoliberalismo – pelo menos desde a década de 1990 – aprofundou-se a manipulação com o capitalismo digital e a “plataformização” da vida social. Marini não viveu para ver a devastação ideológico-cultural provocada pelo capital, levando na enxurrada ideológica a perspectiva de classe. O debilitamento dos sindicatos e a corrosão da consciência de classe colocam de forma concreta dificuldades para a “revolução democrática radical” indicada por Marini, tendo em vista que lhes falta o sujeito de classe. O capital globalizado alterou o processo de subjetivação da classe, na medida em que se modificaram os referentes materiais objetivos e subjetivos (incluindo a dinâmica da luta de classe). Ao alterar a procedência
Minha tese de doutorado de 1997, intitulada O Novo e Precário Mundo do Trabalho: Reestruturação Produtiva e Crise do Sindicalismo (Boitempo, 2020), fez a crítica do sindicalismo propositivo, que consideramos expressão da crise do sindicalismo (ALVES, 2000).
social (a composição de classe), os mecanismos de mobilidade a que estão sujeitos os proletários, a educação, o ambiente familiar e de trabalho dos indivíduos, alterou-se seu comportamento e, mais do que isso, transformou-se sua visão de mundo e a percepção que eles têm de si mesmos. Na verdade, foram tais processos – que definem a classe social – que o capital global alterou de modo radical. A posição que os homens ocupam não apenas objetivamente na produção e na reprodução material da sociedade, mas a consciência que os homens e as mulheres têm em relação ao papel que nela creem desempenhar, isso o neoliberalismo nos países centrais, como nos países dependentes, alterou de forma qualitativamente nova.
Marini observou que tais processos de mutação da classe e da consciência de classe ocorrem necessariamente “fora da economia”. Mas não é verdade que a nova subjetivação de classe ocorre “fora da economia”. Ela ocorre enquanto economia psíquica do capital. Reconhecemos que Marini se posiciona no plano da economia política do capital, e as questões da subjetividade (ou do metabolismo social) estão “para além da economia política” propriamente dita. Mas esses são os limites do “eco-nomicismo científico” para a crítica do capital enquanto processo sociometabólico estranhado.
A economia política da globalização capitalista contesta em si e para si o território da política. A crise da política é a crise da economia política. Existem, dentro da materialidade da globalização capitalista, os pressupostos materiais da crise do sujeito de classe. Portanto, a corrosão da política (e do sujeito da política) deve ser vista como elemento endógeno da mundialização da lei do valor, e não como algo exterior a ela. O “imperativo categórico” da política destacada por Marini é – num primeiro momento – problemático em si e para si, o que não impede que seja colocado enquanto “imperativo categórico” – isto é, um imperativo posto no plano do “dever ser”.
Além da dirupção da subjetividade de classe, a globalização capitalista alterou de forma qualitativamente nova as relações de dependência. Com a economia globalizada, ocorreu o aprofundamento das relações de dependência, o que deve ser entendido numa perspectiva dialética: não se trata apenas de diferenças quantitativas nas relações de dependência - os países periféricos dependentes estão mais dependentes do que antes - mas sim de diferenças qualitativamente novas nas relações de dependência, as quais, devido à nova divisão internacional do trabalho e à inserção dos países na economia globalizada, restabeleceram-se em um plano superior, formas de dependência similares àquelas do século XIX. A questão do regreso dos países às formas
simples de divisão internacional do trabalho, mas “com métodos de gestão plenamente capitalistas”, significa que o “regresso” não seria propriamente um “regresso”, mas uma forma de dependência qualitativamente nova. Assim, o regresso dos países dependentes às formas arcaicas de atraso e do subdesenvolvimento (o predomínio da troca de bens primários por bens manufaturados) não seria propriamente um regreso, mas, sim, a manifestação das relações entre centro e periferia sob a forma hipermoderna da globalização capitalista. Do mesmo modo, a generalização da superexploração do trabalho, constitutiva nas formações capitalistas dependentes e operativa no âmbito dos países capitalistas industrializados (VALENCIA, 2022), é a manifestação do regreso que diz respeito não apenas às relações de troca comercial entre centro e periferia, mas às formas de exploração do trabalho no sistema global do capital (o que torna explicito – numa dimensão inédita – que a dependência ou o suposto “atraso” e “subdesenvolvimento” históricos não podem ser superados dentro dos limites do capitalismo) (SOARES, 2022).
A forma de regreso histórico dos países capitalistas dependentes – tornados ex-portadores de bens primários (a desindustrialização) –; e a forma de regreso do sistema do capitalismo global – que tornou operativa a superexploração do trabalho – são manifestações de mutações qualitativamente novas que expõem a crise estrutural do capital. A nova divisão do trabalho e a generalização da superexploração do trabalho têm impactos na configuração da luta de classe e frações de classes interna a cada país dependente e a cada país do capitalismo central.
A globalização da lei do valor explica as mutações das relações de dependência da periferia capitalista e da generalização operativa da superexploração do trabalho nos países capitalistas centrais. O último tópico do texto de Marini intitulou-se “A Lei do Valor numa Economia Globalizada”. A operatividade do valor sofre mudanças estruturais numa economia globalizada. Existe uma dialética entre afirmação global da lei do valor e a natureza da crise estrutural do capital. À medida que se expõe a crise da produção de mais-valor por conta do “salto mortal” da produtividade do trabalho provocado pela terceira revolução tecnológica, o valor se expande – intenso e extensivamente – na economia globalizada.
Caracterizamos o processo dialético do “salto mortal” do capital globalizado pela figura da “expansão-colapso” do valor. O “colapso” da forma-valor ocorre no plano da temporalidade historicamente alongada – extensa e intensivamente. As formas de regresso no modo de ser das relações de dependência indicadas acima são manifestações da lógica dialética da “expansão-colapso” do valor. Temos outras manifestações da nova operatividade da lei do valor “afetada de negação”. Por exemplo, a (1) disseminação das “formas derivadas” de valor, isto é, formas de valor “fictício” que im-
pregnam o trabalho social, ou seja, a presença da forma-valor nos setores exteriores à produção do capital onde não se produz mais-valor (a expansão do “improdutivo” na ordem do capital). Identificamos também como produto da globalização da lei do valor, (2) a presença de movimentos do anti-valor, que compõem as formas de afirmação/negação do valor (ALVES, 2022).
O conceito de “desmedida do valor” é – do mesmo modo – a dialética da “nega-ção” do valor no interior de sua afirmação plena. Negação é afirmação pelo “excesso”. A globalização capitalista, enquanto operatividade global da lei do valor, é a afirmação do capital-valor pelo “excesso”. Dessa forma, o aprofundamento das relações de dependência entre países capitalistas centrais e periféricos, bem como a generalização da superexploração do trabalho – inerente (ou constitutiva) aos países dependentes e operacional nos países capitalistas centrais – são manifestações da “desmedida do valor” e da afirmação do capital-valor pelo “excesso”. Na primeira explicação da crise capitalista (de 1848), Karl Marx e Friedrich Engels destacaram a contradição entre civilização e barbárie social ou progresso do capital e destrutividade capitalista. Com a crise capitalista,
[...] há muita civilização, muita subsistência, muita indústria, muito comércio. As forças produtivas à disposição da sociedade não tendem mais a promover o desenvolvimento das condições de propriedade burguesas. Ao contrário, eles se tornaram poderosos demais para essas condições que os restringem. [...] As condições da sociedade burguesa são muito estreitas para abranger toda a riqueza que ela criou. E como a burguesia supera essas crises? Por um lado, reforçando a destruição massiva das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e por uma exploração mais completa dos antigos. (MARX; ENGELS, 1998, p. 45).
Portanto, a resposta do capital à sua crise é, por um lado, a formação do mercado mundial; e, por outro lado, a destruição massiva das forças produtivas – entre elas, o trabalho vivo. Isso tem caracterizado o desenvolvimento do capitalismo industrial – pelo menos desde fins do século XVIII, com a Revolução Industrial. Portanto, a expansão mundial do capital e a destruição massiva das forças produtivas são modos de desenvolvimento do sistema no interior do qual ele – o capital - opera suas contradições. A globalização da lei do valor, nas condições históricas da terceira revolução tecnológica – no patamar elevado da produtividade do trabalho (mais-valia relativa) – faz com que se exponham novas formas de relações de dependência e novas formas da superexploração do trabalho, formas características da fase histórica do capitalismo senilizado.
Com a globalização capitalista, generalizou-se a superexploração destrutiva do trabalho, que diz respeito não apenas ao debilitamento da força de trabalho por conta do seu consumo destrutivo no processo de produção do capital, mas à degradação das condições de produção (e reprodução) do trabalho vivo e, portanto, a degradação das forças produtivas vivas da sociedade. A superexploração destrutiva do trabalho vivo significa a degradação da saúde – física e mental – do trabalho vivo, não apenas enquanto força de trabalho como mercadoria consumida no processo de produção do capital (o consumo destrutivo da força de trabalho), mas por conta da degradação das condições de reprodução social do trabalho vivo (a precarização da vida das pessoas que trabalham). É a questão da saúde pública que evidencia a superexploração destrutiva do trabalho como mecanismo sistêmico de produzir a destruição do trabalho vivo redundante e excedente às necessidades de acumulação do capital.
A superexploração do trabalho e a “nova precariedade salarial”, caracterizada pelo trabalho intensivo, são mecanismos da produção destrutiva do trabalho vivo. Ao mesmo tempo, a degradação das condições da existência social do trabalho vivo produz o aumento de adoecimentos físicos e mentais. Por exemplo, as doenças crônicas não-transmissíveis (ou DCNT), doenças cardiovasculares, câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas e violências têm gerado, todo ano, elevado número de mortes prematuras (em 2014, no Brasil, elas foram responsáveis por 72% da mortalidade no país, sendo mais prevalentes no contingente empobrecido da classe trabalhado-ra)7. À medida que as condições de produção e reprodução da existência social do trabalho vivo se degradam, produz-se doenças que debilitam (e destroem) a capacidade viva da força de trabalho. Ao mesmo tempo, têm crescido nas últimas décadas a mercantilização da medicina e a degradação dos serviços públicos de saúde por conta do neoliberalismo. A conjunção perversa da produção social das doenças e do debilitamento das instituições de saúde pública opera como um modo de produção destrutiva da força de trabalho ou a “superexploração destrutiva” do trabalho vivo.
Ao expor a população trabalhadora mais velha e idosa (a força de trabalho ativa ou inativa) aos riscos das doenças físicas e mentais, o Estado capitalista tornou-se o operador da superexploração destrutiva do trabalho vivo. Na verdade, a crise estrutural do capital em sua etapa histórica superior tornou obsoleta a saúde pública. Por exemplo, desde 2020, a forma de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus pelo Estado capitalista explicitou sua função social de operador da “necropolítica” do
Vide o dossiê “Doenças e Agravos Associados ao Estilo de Vida”, da revista Ciência & Saúde Coletiva (2014).
capital: por um lado, negando a pandemia (a política da “nova direita”); e, por outro, enfrentando a covid-19 apenas com campanhas de vacinação e incentivando a circulação das pessoas sem a proteção sanitária (a política da esquerda liberal). Entramos na era dos adoecimentos. Mesmo com a queda da taxa de letalidade da covid-19, infecções e reinfecções têm causado “covid longa” e ocasionado mortes não-notificadas como covid-19. Em 2022, a maioria dos países do mundo continua a apresentar uma mortalidade maior do que o esperado (ROUGERIE, 2022). Existe um movimento de destruir o trabalho vivo mais fragilizado. Nas condições da transição climática (ondas de calor extremo) e do envelhecimento demográfico global, a destruição do trabalho vivo deve se agravar. Por conta do excesso de óbitos, deve cair pela primeira vez desde 1958-1961 o índice de expectativa de vida global.
Outro exemplo de produção destrutiva do trabalho vivo são as deaths of despair nos EUA. “Mortes por desespero” é uma expressão usada para descrever um fenômeno no qual indivíduos morrem prematuramente devido a fatores como overdose de drogas, abuso de álcool e suicídio, muitas vezes como resultado de dificuldades econômicas, isolamento social e sensação de desesperança (de abril de 2020 a abril de 2021, 100.000 mortes por overdose de drogas ocorreram nos EUA, um aumento de 28,5% em comparação com o ano anterior. O termo ganhou destaque nos Estados Unidos nos últimos anos, quando os pesquisadores observaram um aumento nas taxas de mortalidade por essas causas, principalmente entre indivíduos brancos de meia-idade sem educação superior, o contingente da classe operária atingido pela desindustrialização e emprego precário nos EUA (CASE; DEATON, 2020; INTROCASO, 2021). Portanto, o contingente da classe operária incapaz de adaptar-se à nova divisão social do trabalho tornou-se “refugo” (ou “resto”) da produção do capital. Interessa-lhe, ao capital, destruir os ditos “inúteis”, a população operária que “sobra”, os “improdutivos” redundantes.
O “desastre” da saúde pública tornou-se funcional à reprodução autodestrutiva do capital. A manipulação midiática cumpre o papel de “naturalizar” (ou fetichizar) a catástrofe sanitária, “individualizando” as tragédias pessoais. O fetichismo social opera pela manipulação dos desejos e afetos mais profundos da alma humana (o medo da morte e a paixão pela normalidade social).
Diante da crise estrutural do capital, aumentou a pressão do sistema produtor de mercadorias sobre o trabalho vivo, obrigando-o a comprovar a sua “viabilidade produtiva” ou, pelo contrário, perecer. “Os mais fracos não têm vez” – diz o lema da produção destrutiva do trabalho vivo. A lei do valor na economia globalizada representou a maior imposição do sistema “totalitário” do capital globalmente dominante e seu critério de viabilidade a tudo, “[...] desde as menores unidades de seu ‘micro-
cosmo’ até as maiores empresas transnacionais, das relações pessoais mais íntimas aos processos decisórios mais complexos em consórcios monopolistas industriais, sempre favorecendo o mais forte contra o mais fraco” (MESZÁROS, 2011, p. 465).
A globalização capitalista e a generalização da superexploração do trabalho representam a efetividade da lógica destrutiva do capital por meio da degradação da subjetividade (corpo e mente) do trabalho, reduzindo-o à condição de uma objetividade reificada – um mero “fator material de produção descartável, ‘sem valor’ [...]” (MÉSZÁROS, 2011: p. 685). Essa é a tendência que vem se acentuando no capitalismo global e que diz respeito àquilo que Mészáros (2011, p. 634) identificou como sendo a “taxa de utilização decrescente do valor de uso”.
Taxa de utilidade decrescente e autorreprodução destrutiva
O capital não trata separadamente o valor de uso (que corresponde diretamente à necessidade) e o valor de troca, mas de uma forma que subordina radicalmente o primeiro ao segundo. A efetividade plena da obsolescência planejada e da lei do valor na economia globalizada faz com que a “taxa de utilização decrescente” se aplique a todas as mercadorias, incluindo a força de trabalho como mercadoria, ao reduzir sua vida útil. E quanto mais se exacerba a “desmedida do valor”, mais se agrava a destruição e/ou precariedade da força humana que trabalha subordinada aos padrões do capital.
A taxa de utilização decrescente diz respeito não apenas à descartabilidade das coisas e ao desperdício que caracteriza o padrão irracional de consumo, mas diz respeito também à descartabilidade do trabalho vivo enquanto “força de trabalho qua mercadoria” (PIQUERAS, 2018). Na superexploração destrutiva do trabalho vivo, consumo e destruição são funcionalmente equivalentes. O componente de destrutividade se realiza à medida que o consumo produtivo é efetuado, mas não apenas no ato do consumo produtivo – que é consumo destrutivo do corpo e mente do trabalho vivo. A destrutividade opera, por exemplo, por meio da necropolítica do Estado capitalista omisso face à crise sanitária permanente. Assim, não apenas se eliminou literalmente a distinção vital entre “consumo” e “destruição”, mas se transformou a reprodução social em autorreprodução destrutiva na medida da disfuncionalidade da “superpopulação relativa do capital” (MARX, 2013).
Para entender a característica desconcertante do capitalismo global é importante fazer uma distinção vital entre produção e autorreprodução. Essa distinção é muito importante porque o capital não está preocupado com a produção como tal, mas apenas com a autorreprodução. Como observou Mészáros (2014, p. 296), do mesmo modo, o “movimento irresistível do capital em direção ao universalismo” (destacado
por Marx) só se preocupa com os interesses de autorreprodução, não com os da própria produção. Nas circunstâncias históricas em que a superexploração do trabalho era exclusivamente uma característica dos países dependentes, produção e autorreprodução podiam coincidir positivamente; e, quando isso ocorria, o capital podia aumentar as forças produtivas da sociedade e encorajar, na medida determinada e permitida por seus próprios interesses, o surgimento da “indústria geral”. No entanto, sob a economia globalizada, produção e autorreprodução se tornaram diametral-mente opostas. Como observou Mészáros (2014), a disjunção radical entre produção capaz de aumentar a força produtiva da sociedade e autorreprodução do capital, não é mais uma possibilidade remota, mas um fato histórico, com consequências devas-tadoras para o futuro.
Atualmente, as barreiras à produção capitalista são superadas pelo próprio capital, com o objetivo de assegurar sua própria reprodução – em uma extensão já ampla e cada vez maior – na forma de autorreprodução destrutiva, em oposição antagônica à produção genuína, capaz de aumentar a força produtiva da sociedade. Por exemplo, a generalização da superexploração do trabalho na forma da superexploração destrutiva é a manifestação de que os limites do capital não podem mais ser definidos meramente como obstáculos materiais a um maior aumento da produtividade e da riqueza social e, portanto, como um freio ao desenvolvimento, mas como “um desafio direto à sobrevivência da humanidade” (MESZÁROS, 2014, p. 300).
A superexploração destrutiva do trabalho pode fazer com que os limites do capital se voltem contra ele, como controlador do metabolismo social, à medida que o capital não for mais capaz de garantir, com os meios de que dispõe, as condições para sua autorreprodução destrutiva e – diz Mészáros (2014, p. 298) – “por isso, provocar o colapso de todo o metabolismo social”.
Superexploração destrutiva como estranhamento social
A destrutividade generalizada do trabalho vivo por meio da tendência da remuneração do trabalho abaixo do valor da força de trabalho8 e da degradação progressiva das condições de vida (objetiva e subjetiva) do trabalho vivo, exigem o entendimento da categoria “força de trabalho” como sendo uma mercadoria “de exceção”, ou seja, a
“A superexploração do trabalho não constitui uma ‘violação’ da lei do valor, na medida em que o valor se encontra em um nível de abstração superior. A lei do valor em Marx opera em outro nível de abstração lógico-dialética, acima do nível de exposição em que ele tratou mais do preço da força de trabalho. É o nível de exposição lógico-dialético em que se encontra a categoria de superexploração do trabalho” (ALVES, 2019, p. xx).
força de trabalho é mercadoria – e não é mercadoria. Isto é, a força de trabalho é uma mercadoria cujo valor de uso (o trabalho vivo) não se reduz àquilo que se tornou valor de troca (a força de trabalho). O trabalho vivo diz respeito à pessoa humana que trabalha – que não pode ser reduzida à força de trabalho como mercadoria. É por ser trabalho vivo que a força de trabalho utilizada como mercadoria pelo capital, é capaz de produzir mais-valor. A superexploração destrutiva degrada o trabalho vivo, sendo, portanto, “superexploração do trabalho” e não apenas “da força de trabalho”. É uma forma de degradação da natureza na medida em que o trabalho vivo é parte compositiva da natureza.
Entretanto, a economia política reduziu a força de trabalho a mercadoria, discutindo-a apenas como fator de produção. Ao discutir a superexploração do trabalho, a economia política incorporou o entendimento reificado do trabalho apenas como fator de produção, e a força de trabalho como mercadoria. A discussão da superexploração do trabalho fica no plano da economia política e, portanto, daquilo que Karl Polanyi denominou “economicismo científico”9. Entretanto, devemos lembrar que Marx – por exemplo – elaborou uma crítica da economia política (o que muitos economistas marxistas esquecem).
O conceito de “superexploração” – tanto quanto o conceito de “exploração” – tem sido comumente utilizado na perspectiva da economia política do capital. O trabalho diz respeito à força de trabalho como mercadoria, fator reificado de produção capaz de produzir o mais-valor. No caso da superexploração força de trabalho, ela aparece como mecanismo de aumento da exploração e/ou compensação para elevar a taxa de acumulação do capitalismo dependente (NOGUEIRA, 2021; LUCE, 2018). Do mesmo modo, ao fazer a distinção entre “superexploração constitutiva” e “superexplora-ção operativa”, Valencia (2022) permanece no horizonte da economia política. Nossa hipótese é que existe uma determinação “oculta” do conceito de superexploração do trabalho vivo que diz respeito ao capital entendido não apenas como movimento do “valor em expansão”, mas como modo de controle estranhado do metabolismo social.
Segundo o pensador húngaro Karl Polanyi, o “economicismo científico” é uma visão de mundo que se baseia na crença de que os fenômenos econômicos podem ser analisados e compreendidos de forma objetiva e científica, independentemente das relações sociais, políticas e culturais em que estão inseridos. Essa visão de mundo considera a economia como um sistema autônomo e autorregulado, que segue leis universais e que pode ser estudado de maneira objetiva, sem a interferência de fatores externos. O economicismo científico desconsidera, portanto, a influência das relações sociais, culturais e políticas na dinâmica econômica. Para Polanyi, essa visão de mundo é perigosa e pode levar a uma mercantilização completa da sociedade, em que todas as relações sociais são reduzidas a transações comerciais. Ele argumenta que a economia deve ser vista como uma atividade humana, que está intrinsecamente ligada às relações sociais, políticas e culturais em que está inserida (POLANYI, 2000).
Nesse caso, o trabalho não se reduz à determinidade10 da mercadoria-força de trabalho.
É claro que a “exploração” (e a “superexploração”) degrada objetiva e subjetiva-mente o trabalho vivo, visto que a força de trabalho é consumida – intensiva e extensivamente – pelo capital (no capítulo 13 – “Maquinaria e Grande Indústria” de O Capital, Karl Marx destacou os impactos da exploração capitalista na saúde da força de trabalho nas fábricas do século XIX). A produção da mais-valia (absoluta e relativa), o consumo intensivo e extensivo da força de trabalho, danificam o organismo vivo da força de trabalho (a saúde física e mental do trabalho vivo). Entretanto, a “destrutividade do trabalho vivo” enquanto determinação da “exploração” e da “su-perexploração do trabalho” aparece no discurso da economia política como determinação acessória ou faux frais (custos indiretos ou ocultos) da produção capitalista11. A superexploração destrutiva do trabalho vivo diz respeito à dilapidação das energias vitais da força de trabalho enquanto subjetividade (corpo e mente) do trabalho vivo, manifestando-se principalmente pela degradação da saúde pública como resultado das condições de autorreprodução destrutiva das pessoas humanas, inclusive aquelas que não fazem parte da PEA (população economicamente ativa). O escopo da superexploração do capital amplia-se pois diz respeito à sociedade do trabalho vivo – que não se reduz apenas à sociedade da força de trabalho ativa, mas sim, à totalidade viva do trabalho enquanto objeto de desefetivação humana ou de adoecimento
– físico e mental12.
“Determinidade” (em alemão, Bestimmtheit) é, de acordo com G.W.F. Hegel, o processo pelo qual algo adquire uma identidade particular ou se torna um objeto específico. Esse conceito está relacionado à dialética hegeliana e à filosofia do devir, na qual ele explora como as coisas se desenvolvem e evoluem através de contradições e sínteses. O movimento da “determinidade” envolve três etapas: tese, antítese e síntese. A tese representa um estado inicial, a antítese é a negação ou contradição da tese, e a síntese é a resolução ou superação dessa contradição, resultando em uma nova determinidade. A diferença entre Bestimmtheit (determinidade) e Bestimmung (determinação) reside no fato de que o primeiro está relacionado à identidade e especificidade de um conceito ou objeto; enquanto o segundo se refere ao objetivo ou propósito final de um processo dialético ou histórico (INWOOD, 1997; BARBIERI, 2009). 11 Faux frais é um termo francês que se refere aos custos indiretos ou ocultos associados à produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Esses custos são muitas vezes negligenciados nas análises econômicas, uma vez que não são diretamente visíveis ou mensuráveis.
“A realização efetiva do trabalho, tanto aparece como desefetivação que o trabalhador é desefetivado
a ponto de morrer de fome” (MARX, 1984, p. 154). A “desefetivação” (entwirklich) é o estranhamento, entendido como a forma de “privar de realidade e/ou desefetivar” o trabalho vivo. O adoecimento das pessoas que trabalham – por exemplo – é a forma característica do “estranhamento” (Entfremdung). A “superexploração destrutiva” é a manifestação do estranhamento do capital enquanto modo de controle do metabolismo social.
Ao lado das superexplorações “constitutiva” e “operativa” abordadas por Valencia (2012), ressaltamos aqui a superexploração “destrutiva”. Essa determinação substancial da superexploração do trabalho enquanto produção destrutiva do trabalho vivo é expressão da dessubstacialização do capital. Por conta do aumento da composição orgânica do capital, a substituição de trabalho vivo por trabalho morto, a força histórico-social mais potente do capital global, sobra cada vez mais gente (SHAIK, 2023). Na era da Quarta Revolução Industrial, com a robotização e automatização utilizando a Inteligência Artificial nos setores da indústria e dos serviços – inclusive público – a redundância do trabalho vivo deve aumentar. Ela se manifestou com a disseminação do trabalho precário, que emergiu como o centro das preocupações sociais não apenas nos países dependentes, mas nos países do capitalismo central, como nos Estados Unidos e em todo o mundo desde a década de 1970 (por “trabalho precário” entende-se a relação de emprego incerta, imprevisível e na qual os riscos vinculados a ele pesam mais por conta da informalidade e da falta de cobertura de direitos trabalhistas, previdenciários e sanitários). Na verdade, trata-se da “nova precariedade sala-rial” (ALVES, 2022), que diz respeito não apenas à contratação precária, mas às novas formas de organização do trabalho formal, que degradam a subjetividade (corpo e mente) do trabalho vivo por meio – por exemplo – de formas de intensificação do trabalho (a superexploração do trabalho). Ulrich Beck descreveu no livro “Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade”, o surgimento da nova “sociedade do ris-co” (2011); e, mais tarde, referiu-se à precariedade do trabalho na era da globalização como sendo a “brasilianização do Ocidente” (BECK, 2000: p. 9).
Mas para além da dimensão salarial, a superexploração do trabalho vivo na forma da superexploração destrutiva é operada pela degradação das condições de reprodução social, com destaque da crise ecológica; e pelo debilitamento dos sistemas de saúde pública e de previdência pública (com as aposentadorias abaixo do valor de reprodução do trabalho vivo). Portanto, o capital precariza não apenas o trabalho assalariado, mas as condições de existência do trabalho vivo. Ressaltemos: isso deve agravar-se com as mudanças ecológicas (aquecimento global), epidemiológicas (pandemia) e demográficas (envelhecimento e a expansão da camada social do geronta-riado13). Deste modo, com a superexploração destrutiva, é o trabalho vivo que está sendo degradado pelo capital, entendido não apenas como valor em expansão, mas
Por “gerontariado” deve-se entender a camada social do proletariado constituída pelos trabalhadores “mais velhos” e idosos, altamente escolarizados, inseridos em situações de trabalho precário. Alienados dos direitos trabalhistas e da previdência social pública, devem ter prematuramente envelhecimento (a “inutilidade social” – na perspectiva da lei do capital) e morte precoce (ALVES, 2023b).
como modo de controle estranhado do metabolismo social.
A superexploração destrutiva é o sinal de crise do processo civilizatório e de afirmação da barbárie social (ALVES, 2023a). A superexploração do trabalho tem um sentido oculto para além da economia política e que diz respeito à problemática atual de maior relevância histórica: a produção destrutiva do trabalho vivo enquanto manifestação da natureza viva do homem. O sociometabolismo da barbárie enquanto território da subjetividade viva da luta de classes no século XXI, é o tema candente da crítica do capital, exigindo, deste modo, a crítica da economia política. A economia globalizada do capital não nos aprisiona efetivamente numa forma de regresso histórico – a volta ao passado do século XIX – mas sim nos projetos para o futuro de um sistema incapaz do porvir.
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