Mais-valia extraordinária e acumulação de capital* **

Ruy Mauro Marini ***


“A produtividade particular do trabalho numa esfera particular ou num negócio em particular no interior dessa esfera interessa unicamente aos capitalistas que deles participam diretamente, na medida em que possibilita a essa esfera particular a obtenção de um lucro extraordinário com relação ao capital total ou ao capitalista individual um lucro extraordinário com relação a sua esfera.” (MARX, 2017b, p. 233).


“A essa confusão – determinação dos preços por oferta e demanda e, ao mesmo tempo, determinação da oferta e demanda pelos preços – devemos acrescentar que a demanda determina a oferta e esta, por sua vez, a demanda, ou, o que dá no mesmo, que a produção determina o mercado, e este, a produção.” (MARX, 2017b, p. 266).


Ao longo desta década, e em aberto contraste com a política repressiva que, com raras exceções, os Estados adotaram no campo científico e cultural, o marxismo teve uma notável difusão nos meios intelectuais e acadêmicos latino-americanos. Isso levou a que estudos realizados sobre a realidade de nossos países, do ponto de vista de diferentes disciplinas, incorporassem o instrumental de análise marxista com maior ou menor grau de ortodoxia. Essa incorporação é um processo que apresenta, progressivamente, um caráter duplo: por um lado, um melhor conhecimento da obra


* Tradução de Leonardo Laurindo do Nascimento do original MARINI, Ruy Mauro. Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital. Cuadernos Políticos, n. 20, p. 18-39, abr./jun. 1979. Revisão de Carlos Eduardo Martins e Talissa Barcelos.

Disponível em: http://www.cuadernospoliticos.unam.mx/cuadernos/contenido/CP.20/CP20.4.RuyMauro.pdf. Acesso em: 15 out. 2022.

** Nota do Tradutor: Optei pela utilização do termo “mais-valia” ao invés de “mais-valor” por se aproximar mais da escrita original de plusvalía.

*** Nota do editor: Ruy Mauro Marini (1932-1997) foi um dos principais cientistas sociais latino-americanos e fundador da teoria marxista da dependência. Bacharelou-se na FGV/EBAP, fez o mestrado em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB), e curso de especialização na Sciences Po, em Paris. Destacou-se por sua obra diversificada, publicada em diversos idiomas, e sua atuação acadêmica em espaços como o Centro de Estudios Socioeconómicos (CESO) da Universidade do Chile, a Faculdade de Ciências Políticas e Sociais e o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Autónoma do México (UNAM), a UnB e o Instituto Max Planck. Destacou-se ainda por sua militância política na POLOP e no MIR chileno. Sofreu dois exílios ao ter seus direitos políticos e civis violados e ser perseguido pelas ditaduras militares do grande capital no Brasil e no Chile. O artigo “Mais-valia extraordinária e acumulação de capital” que aqui se publica é considerado pelo autor, em sua Memória, um complemento indispensável à sua obra clássica, Dialética da Dependência, e permanecia inédito em português.

de Karl Marx e das correntes dela derivadas e, por outro, um enriquecimento da representação formal da realidade latino-americana, na medida em que, por obra de seu próprio desenvolvimento, as características e tendências que lhe são inerentes tornam-

-se mais destacadas. Assim, na economia, após uma rejeição irada de qualquer preocupação com os problemas da circulação e um viés produtivista que correspondia à abordagem parcial de Marx aos problemas no primeiro livro de O Capital, estamos tes-temunhando um esforço dos marxistas para apreender o conjunto do ciclo econômico, adquirindo um novo interesse na dialética entre produção e circulação, tema dos dois primeiros livros da obra. Isso leva a que até mesmo estudos não marxistas, acostumados a se concentrar na problemática econômica do ponto de vista da demanda, tendam a introduzir em seus trabalhos aspectos do instrumental marxista.

Entre outros aspectos, destaca-se o interesse que começam a despertar nos economistas latino-americanos os esquemas de reprodução do capital, que Marx expõe na terceira seção do Livro II. Esses esquemas se tornaram muito populares em duas ocasiões no desenvolvimento do marxismo, dando origem a polêmicas que até hoje suscitam confusão. Em nosso caso, isto é, na aplicação dos esquemas às economias dependentes, sua importância advém de uma razão específica: o notável desequilíbrio intersetorial observado nessas economias, expresso na tendência ao crescimento desproporcional da produção de artigos de luxo em relação à produção de meios de produção e bens de consumo necessários, desequilíbrio que se conjuga com o predomínio de capital estrangeiro na produção suntuária e, portanto, de tecnologia superior à média, além de estruturas monopolistas e manipulação de preços.

É inegável que os esquemas de Marx fornecem um instrumento adequado para abordar o tema. Existe, no entanto, o risco de que, como aconteceu nas duas ocasiões mencionadas, os esquemas sejam levados além de suas possibilidades e se concen-trem na solução de problemas que não podem resolver sozinhos. Por outro lado, usados arbitrariamente, os esquemas podem favorecer a supervalorização da circulação, o que caracteriza a economia neoclássica (na qual se inspirou, em suas origens, a atual ciência econômica latino-americana), permitindo dar um novo fôlego para essas análises.

Convém, portanto, verificar o que realmente são os esquemas de reprodução e qual é o papel que desempenham na construção teórica de Marx, antes de aplicá-los ao estudo de nossa realidade. Neste trabalho, nos propomos realizar, ainda que brevemente, essa tarefa e examinar, em segundo lugar, algumas tentativas que nos parecem importantes de uso de tais sistemas na América Latina.

I


  1. Ao empreender a exposição dos esquemas de reprodução, Marx abandona o ponto de vista do capital individual e a fórmula do ciclo do capital-dinheiro e do capital produtivo, que adotara na seção anterior do Livro II, para focar no processo desde o ponto de vista do capital total e segundo a fórmula do capital-mercadoria1. Isso se explica pelo fato de que, agora, o objeto de investigação não é o capital strictu sensu, ou seja, a massa de mercadorias que se destinam à valorização (capital constante + capital variável + mais-valia acumulada), de que pode dar conta tanto a forma D...D’ como a forma P...P’, mas, sim, o conjunto do capital social em circulação, que inclui também as mercadorias destinadas ao consumo individual; isso é particularmente importante no que diz respeito à circulação de mais-valia. Com efeito, embora a forma M...M’ ofereça a vantagem de considerar a classe trabalhadora não apenas como produtora, mas também como consumidora, isso não implica outra coisa senão uma mudança na forma de v, já incluída nas formas D e P, enquanto a mais-valia não acumulada que se realiza por meio do consumo individual dos capitalistas excluída nessas formas só pode ser considerada quando o ciclo é analisado segundo a forma M (MARX, 2014).

    Essa primeira particularidade que encontramos nos esquemas de reprodução não é por acaso. Em seu plano de exposição, que contempla primeiro a reprodução simples, na qual se consome toda a mais-valia e não se verifica a acumulação de capital, e depois a reprodução ampliada na qual isso ocorre, Marx não a perde de vista. Ainda que, como indicado, a reprodução simples seja apenas uma abstração e não possa ser nunca entendida como uma fase, nem mesmo como na “ficção teórica” de Rosa Luxemburgo2: “[...] na medida em que há uma acumulação, a reprodução simples é sempre parte dela; ela pode, portanto, ser examinada em si mesma e constitui um


    1. Ao iniciar na segunda seção o estudo da rotação do capital, Marx adverte, em relação aos ciclos do capital-dinheiro e do capital produtivo, que “[...] é preciso atentar para o primeiro sempre que se tratar fundamentalmente da influência da rotação sobre a formação de mais-valor, e para os segundo quando se tratar de sua influência sobre a formação do produto” (MARX, 2014, p. 262-263). Um pouco antes, observa, em relação à fórmula do capital-mercadoria, que “[...] é importante a última seção, na qual o movimento dos capitais é concebido em conexão com o movimento do capital social total” (MARX, 2014, p. 262).

    2. Questionando-se sobre a origem do dinheiro necessário à circulação de mais-valia, Rosa Luxemburgo censura Marx pelo fato de que “[...] apóia-se exclusivamente no momento do primeiro trânsito da reprodução simples à acumulação”, destacando ainda que o referido trânsito “[...] é uma ficção teórica, como o é a reprodução simples do capital” (LUXEMBURGO, 1970, p. 134). Além de expressar a tendência que a caracteriza de reduzir o lógico ao histórico, fonte de todos os erros de sua obra de valor inegável, Rosa Luxemburgo se equivoca na apreciação do conceito de reprodução simples, posto que uma abstração não é o mesmo que uma ficção.

      fator real da acumulação” (MARX, 2014, p. 553). Desde o ponto de vista estritamente econômico, portanto, é essa particularidade que leva Marx a estabelecer os dois grandes setores da produção: meios de produção (I) e meios de consumo (II); distingue este último em dois subsetores: meios de consumo necessário (IIa), que se destinam ao consumo dos trabalhadores, e meios de consumo de luxo (IIb), que a classe capitalista compra ao gastar sua mais-valia como renda e não como capital, atendendo ao seu consumo individual.

      Ao analisar as proporções em que, ano após ano, os bens produzidos em ambos os setores devem ser trocados, Marx estabelece certas regularidades para garantir o desenvolvimento normal do processo de produção, que Bukharin resume assim:


      1. Na reprodução simples, a soma da receita do setor I deve ser igual ao capital constante do setor II, ou: I(v+p) = IIc

      2. Na reprodução ampliada, todo novo capital variável do setor I e parte da mais-valia desse setor consumida improdutivamente devem se igualar ao novo capital constante do setor II, ou: I (v + βv + α p) = II (c+βc), em que α expressa a parte da mais-valia consumida improdutivamente e β a parte acumulada (LUXEMBURGO, 1970; BUKHARIN, 1984)3.


        O raciocínio que permite chegar a esses resultados se desenvolve sobre a base de três pressupostos principais. O primeiro deles é o de que se trata de uma economia capitalista pura e que se deve, antes de nada, ao fato de que o propósito dos esquemas é analisar as condições de reprodução do modo de produção capitalista e não suas conexões com outros modos de produção; isso é coerente com a visão de Marx em relação à tendência do modo de produção capitalista de se converter em modo de produção universal4, e o leva, por razões metodológicas, a excluir o comércio exterior: ele não está trabalhando com um país capitalista, mas com o modo de produção capitalista, em relação ao qual qualquer efeito do comércio exterior só pode ser con-


    3. Como nota Roman Rosdolsky, isso indica que, com base nos pressupostos de Marx, as taxas de acumulação de ambos os setores devem guardar uma proporcionalidade inversa às taxas de composição orgânica (ROSDOLSKY, 2001).

    4. “Sua tendência é converter toda a produção possível em produção de mercadorias; para tanto, seu meio principal é justamente essa incorporação da produção em seu processo de circulação; e a produção de mercadorias, quando atinge seu estágio desenvolvido, é produção capitalista de mercadorias. A intervenção do capital industrial estimula por toda parte essa transformação, mas, com ela, também a transformação de todos os produtores diretos em trabalhadores assalariados” (MARX, 2014, p. 211).

      siderado neutro5. Esse nível de abstração é congruente com a premissa metodológica geral de Marx, segundo a qual, “Numa investigação geral, pressupõe-se sempre que as relações reais correspondam a seu conceito ou, o que é o mesmo, que as relações reais só se apresentam na medida em que expressam seu próprio tipo geral” (MARX, 2017b, p. 177-178).

      O segundo pressuposto, que deriva do primeiro, consiste em considerar a existência apenas de duas classes: capitalistas e operários, e, em consequência, de dois tipos de renda [ingresos]: mais-valia e salários. Desse modo, quando se trata de realizar as mercadorias que chegam ao mercado,

      [...] há somente dois pontos de partida [da massa de dinheiro circulante]: o capitalista e o trabalhador. Todas as terceiras categorias de pessoas têm ou de receber dinheiro dessas duas classes por prestações de serviço ou, na medida em que o recebam sem nenhuma contrapartida, são copossuidoras do mais-valor na forma de renda, juro etc. (MARX, 2014, p. 478-479)6.


      É certo que

      [o] dinheiro que o trabalhador desembolsa para o pagamento de seus meios de subsistência existe anteriormente como forma-dinheiro do capital variável e, por isso, é originalmente lançado na circulação pelo capitalista, como meios de compra ou de pagamento da força de trabalho. (MARX, 2014, p. 479).


      Portanto, “[a] classe capitalista permanece, assim, o único ponto de partida da circulação monetária” (MARX, 2014, p. 479). Porém, a distinção dessa circulação monetária em duas grandes categorias é necessária precisamente porque é assim que se assegura a reprodução das duas classes antagônicas; os problemas da distribuição do produto encontram ali sua forma mais simples e decisiva. Por outro lado, o fato de que a circulação do dinheiro só tem uma origem – os capitalistas – e que a eles cabe fazer circular a totalidade da mais-valia, implica no fato de que os problemas da acumulação comecem precisamente na forma como essa se distribui em investimento e consumo, ou seja, pela taxa de acumulação. Daí a importância da subdivisão do setor II nos subsetores a e b, a que voltaremos mais à frente.

      Como terceiro pressuposto, Marx estabelece uma escala de reprodução sobre a


    5. “A produção capitalista não pode existir de modo algum sem comércio exterior. Mas quando se pressupõe uma reprodução anual normal, numa escala dada, com isso se pressupõe também que o comércio exterior não faz mais do que substituir artigos locais por artigos de outra forma de uso ou forma natural, sem afetar as relações de valor [...]” (MARX, 2014, p. 643).

    6. Por isso é inadequado um conceito como o de “terceira demanda”, que Pierre Salama utiliza em seu livro El Processo de Subdesarrollo (1976) e que apaga a origem de classe das determinações da distribuição e, por conseguinte, da demanda. Sobre o tema, ver meu artigo “La acumulacion capitalista mundial y el subimperialismo” (MARINI, 1977 p. 29-30).

      base da mesma produtividade, da mesma duração e da mesma intensidade de trabalho. Em consequência, não varia nem a composição orgânica do capital, nem o grau de exploração, nem a relação básica de distribuição. Por ser o pressuposto unanime-mente questionado nas polêmicas sobre o tema, o examinaremos mais de perto.

      O ponto comum a todos os que interviram na discussão suscitada pelos esquemas de produção foi o problema de sua aplicação ao estudo do movimento real do sistema capitalista. Como o debate foi situado inicialmente, esse ponto voltou à questão central já levantada pela economia clássica sobre o “futuro do capitalismo”7. Mas, enquanto na economia clássica essa questão foi enquadrada em uma dicoto-mia, a partir de uma impossibilidade congênita do capitalismo para se realizar como modo de produção histórico ou como um limite para seu desenvolvimento que não questionava sua vigência como modo de produção8, no marxismo a discussão tomou outro rumo, sendo Lenin a única exceção. Assim, em seu enfrentamento com os populistas russos, tanto Bulgákov como Tugan-Baranovski se apoiaram nos esquemas para sustentar a possibilidade do desenvolvimento do capitalismo sem nenhum tipo de limitação, o que, com matizes, reapareceu na argumentação posteriormente formulada por Kautsky, Hilferding e Otto Bauer; o problema da superação do capitalismo, pela via que fosse, foi então entregue à ação da luta de classes, que, mesmo se enraizando nas contradições inerentes ao modo de produção capitalista, teria que responder sozinha por sua liquidação ou por sua permanência9. Em posição contrária, Rosa Luxemburgo, ainda que demarcando posição em relação aos populistas


    7. A fórmula é de Claudio Napoleoni; ver sua introdução a El futuro del capitalismo (1978).

    8. Napoleoni, no texto citado, distingue a linha que se inicia com Smith, continua com a tese de Ricardo sobre a queda da taxa de lucro e culmina na tese da estagnação de Stuart Mill, da linha que, sustentando a tendência do sistema à superprodução crônica, se expressa principalmente por meio de Sismondi e de Malthus. Marx recorre a essa dupla problemática, como indica Napoleoni, mas critica ambas posições, que representavam, a sua vez, o ponto de vista da burguesia industrial (Ricardo), da pequena burguesia (Sismondi) e dos rentistas e demais grupos parasitários (Malthus). Ver mais no livro Historia Crítica de la Teoría de la Plusvalía (MARX, 1965).

    9. Coletti (1978), que identifica em Marx uma “teoria do colapso”, em sua lei sobre a tendência à queda da taxa de lucro, assinala corretamente que as tendências objetivas do sistema que apontam a sua destruição “por si só não podem ter valor resolutivo” e “só tem sentido quando aparecem como condições e premissas reais da luta de classes”. No entanto, tende a considerar incompatíveis ambas as formulações, ao exigir uma “teoria do colapso” que autonomiza o fator objetivo, o que certamente não está presente em Marx e tampouco nos partidários mais decisivos do “colapso”, como Rosa Luxemburgo, Grossmann e mesmo Bukharin. A mesma contradição de Coletti parece derivar de sua impossibilidade de compreender que a análise econômica marxista (e também sociológica, política) não é senão um ângulo de ataque do problema; é isso que leva Coletti a opor categorias como capital variável e constante (“ele-mentos internos ao capital”) ao de classes sociais, esquecendo-se que o capital, em Marx, só pode ser entendido como relação entre classes. O curioso é que, no mesmo texto, Coletti cita passagens de Schum-peter, que apontam de maneira muito mais certeira essa direção. Ver sua introdução a El Marxismo y el ‘Derrumbe’ del Capitalismo (COLETTI, 1978).

      russos, assim como com o próprio Sismondi, acaba por se juntar a eles no fim do caminho, ao defender que, embora determinada por uma contradição interna fundamental, a sorte do sistema foi selada por sua impossibilidade de se realizar historicamente como sistema universal, como supuseram os esquemas; isso, que negava os dois primeiros pressupostos de Marx, era estabelecido precisamente por causa da rejeição do terceiro pressuposto (LUXEMBURGO, 1970).

      Ora, por mais importante que seja a contribuição que o debate sobre os esquemas de reprodução trouxe para o aprofundamento da teoria marxista, é evidente que esse debate padece, em sua raiz, de um vício básico, que Lenin já havia colocado em evidência na polêmica russa: a confusão entre o lógico e o histórico, o abstrato e o concreto10. Escrevia Lenin:

      A questão da realização é um problema abstrato, vinculado com a teoria do capitalismo em geral. Que tomemos um país sozinho ou o mundo inteiro, as leis fundamentais da realização descobertas por Marx são sempre as mesmas. O problema do comércio exterior ou do mercado exterior é um problema histórico, um problema das condições concretas do desenvolvimento do capitalismo em tal ou qual país, em tal ou qual época. [...]

      Desta teoria [da realização] se deduz que, ainda que a reprodução e a circulação do conjunto do capital fossem uniformes e proporcionais, não se poderá evitar a contradição entre o aumento da produção e os limites restringidos do consumo. Além disso, o processo de realização não se desenvolve na realidade segundo uma proporção idealmente uniforme, mas enfrenta dificuldades, “flutuações”, “crises”, etc. (LENIN, 1974, p. 234 ).


      Essa passagem esclarece suficientemente muitas aparentes contradições que Rosdolsky (2001) crê identificar nos textos de Lenin a respeito do problema. Resta, porém, a questão que Rosdolsky levanta de se os esquemas de reprodução, mais que uma teoria – o que é indiscutível – representam a teoria da realização de Marx. Se assim fosse, a oposição que tírios e troianos estabeleceram entre as abordagens aos problemas de realização que Marx apresenta no Livro III (em particular, na terceira seção), assim como em suas Teorias da Mais-Valia, teriam razão de ser. Porém, a existência do terceiro pressuposto dos esquemas de reprodução e a importância que Marx atribuiu tanto ao grau de exploração quanto ao progresso técnico, no Livro I como no Livro III (ao ponto de identificar o próprio capitalismo como um meio histórico para o desenvolvimento da produtividade [MARX, 2017-b]), assim como a distribuição do produto social etc., indicam que não se pode tratar de uma contradição acidental



    10. Em Rosa Luxemburgo, esse erro aparece de maneira mais eloquente e reiterada; por exemplo: “O esquema pressupõe, por conseguinte, um movimento do capital total que contradiz a marcha efetiva da evolução capitalista. A história do sistema de produção capitalista caracteriza-se [...]” (LUXEMBURGO, 1970, p. 294)

      de uma nova “ruptura epistemológica”, como se o Marx do último rascunho do Livro II estivesse renegando toda sua construção teórica11. Por outro lado, a existência do terceiro pressuposto não pode ser atribuída a uma mera operação de simplificação, pela própria importância que ele tem na elaboração dos esquemas, bem como pelo fato de que não há dificuldade de cálculo que não possa ser resolvida em esquemas dessa natureza por meio dos artifícios adequados; no entanto, por mais sofisticados que viessem a se tornar e por mais que gostariam de provar, não passariam de meros modelos de simulação, que não provam absolutamente nada.

      Assim, para não cometer o erro de confundir os esquemas com uma representação formal da realidade, como se fez no curso do debate mencionado, é necessário considerá-los no nível de abstração em que Marx os formulou, para perguntar-se, então, a razão para a introdução do terceiro pressuposto (os outros dois têm sentido por si próprios, como já se indicou).


  2. O ponto de partida para a localização correta dos esquemas de reprodução na construção teórica de Marx é dado por Rosdolsky, ao apontar que o objetivo desses esquemas é analisar e resolver a contradição existente no processo de reprodução

    do capital entre valor de uso e valor:

    Para reproduzir seu capital, a “sociedade”, ou seja, o “capitalista total” deve dispor não só de um fundo de valores, mas também dispor desses valores em uma forma de uso determinada – na forma de máquinas, matérias primas e meios de subsistência – e nas proporções exigidas pelas técnicas de produção. Portanto, por motivos técnicos, a formação do valor e da mais-valia vincula-se ao “metabolismo social da matéria”, mesmo se abstrairmos a necessidade de vender as mercadorias produzidas, de achar compradores para elas. (ROSDOLSKY, 2001, p. 379).


    Trata-se de um problema que não havia se apresentado a Quesnay ao realizar a análise da reprodução em seu conjunto, pelo próprio fato de que, na agricultura, o processo econômico de reprodução, ou seja, a reprodução de valor, “[...] entrelaça-se sempre com um processo natural de reprodução” (MARX, 2014, p. 511), mas que foi levantado a partir de Adam Smith, devido ao erro básico que, sob sua influência, a economia clássica cometeu: confundir o valor do produto com o produto do valor. Por essa razão, Marx (2014, p. 450) se preocupa, desde o princípio, com o fato de que “[o] ciclo dos capitais individuais, considerados em seu conjunto como capital social,


    1. Bernstein já insistia nessa “ruptura”, aferrando-se ao fato de que o rascunho do Livro II que Engels utiliza é posterior ao Livro III, razão pela qual “em geral, o segundo livro contém frutos mais tardios e maduros da investigação marxiana”. Ver o trecho de seu livro Las Premisas del Socialismo y las Tareas de la Socialdemocracia (1982).

      ou seja, em sua totalidade, compreende não apenas a circulação do capital, mas também a circulação geral das mercadorias”, estabelecendo que:

      Primordialmente, esta última [a circulação de mercadorias] só pode consistir de dois componentes: 1) o próprio ciclo do capital e 2) o ciclo das mercadorias que entram no consumo individual, ou seja, das mercadorias nas qual o trabalhador gasta seu salário e o capitalista, seu mais-valor (ou parte dele). (MARX, 2014, p. 502)12.


      Em outras palavras, havia que contemplar “[...] a circulação de mercadorias que não constitui capital”, ainda que integrem o ciclo do capital social em seu conjunto (MARX, 2014, p. 504).

      Essa contradição aparente entre ambos os movimentos da circulação explica por que Marx, antes de passar a sua exposição propriamente dita, se detém a analisar o erro de Smith no que diz respeito à sua análise sobre o capital constante (“capital fixo”, para Smith), que constituiria um valor-capital que não dá lugar a rendas. Marx aponta que Smith está próximo da resolução do problema que levanta,

      [...] pois já havia observado que determinadas parcelas de valor de um tipo específico (meios de produção) dos capitais-mercadorias, das quais se formam o produto anual total da sociedade, constituem, de fato, renda para os trabalhadores e capitalistas individuais que atuam em sua produção, mas não um componente da renda da sociedade, ao passo que uma parcela de valor de outro tipo (meios de consumo), embora seja valor de capital para seus proprietários individuais – os capitalistas que atuam nessa esfera de investimento -, forma apenas uma parte da renda social. (MARX, 2014, p. 522).


      O problema que Marx trata de resolver é “[...] como se repõe, segundo seu valor e a partir do produto anual, o capital consumido na produção, e como o movimento dessa reposição se entrelaça com o consumo que os capitalistas e os trabalhadores efetuam, respectivamente, do mais-valor e do salário?” (MARX, 2014, p. 551-552). Sua solução passa pela consideração do valor sob sua forma natural de meios de produção e meios de consumo (em consequência, a divisão do aparato produtivo em dois grandes setores, I e II), ou seja, pela consideração do valor em íntima conexão com o valor de uso13. Aqui, é retomada a problemática levantada no capítulo 1 do


    2. A circulação da mais-valia, como parte do capital-mercadoria e do capital variável, como pagamento da força de trabalho, não entra na circulação do capital, embora o investimento dos salários a condicio-ne [aunque la inversión del salario la condicione].

    3. “A reconversão de uma parte do valor-produto em capital e o ingresso de outra parte no consumo individual tanto da classe capitalista como da classe trabalhadora compõem um movimento no interior do próprio valor-produto, valor no qual resultou o capital total; e esse movimento é reposição não só de valor, como de matéria, sendo, portanto, condicionado tanto pela inter-relação dos componentes de valor do produto social como por seu valor de uso, sua configuração material” (MARX, 2014, p. 553).

      Livro I e que deriva do “[...] caráter dúplice do próprio trabalho – do trabalho que, como dispêndio de força de trabalho, cria valor e, como trabalho útil, concreto, cria objetos de uso (valor de uso)” (MARX, 2014, p. 531).

      Isso tem uma primeira consequência, apontada por Rosdolsky (2001, p. 378): no processo de produção,

      [...] cada departamento deve conseguir repor o valor de seus elementos de produção; mas só pode fazê-lo se toma uma parte desses elementos do outro departamento, em uma forma material apropriada. Por outro lado, cada departamento só pode lograr a posse dos valores de uso de que necessita se os obtém do outro, mediante o intercâmbio de equivalentes de valor.


      E sublinha Rosdolsky (2001, p. 379-380):

      Essa dependência recíproca de “substituição do valor” e “substituição de material” se expressa claramente nos esquemas da produção; mas os esquemas só podem exibir essa dependência se separarem estritamente os departamentos e limitarem suas relações mútuas, exclusivamente ao intercâmbio de valores equivalentes.


      Nesse plano de análise, o pressuposto de Rosa Luxemburgo é válido no sentido de que a mais-valia se acumula, de acordo com a taxa estabelecida, no mesmo setor onde foi produzida, sem justificar a crítica que, neste sentido, faz Napoleoni (1978). Por outro lado, sob a hipótese de uma taxa de acumulação constante, também deverá se manter constante o grau de exploração, ou seja, descarta-se qualquer variação na magnitude intensiva ou extensiva do trabalho que altere as proporções de distribuição básica entre mais-valia e salário, uma vez que o procedimento distinto provocaria imediatamente um desequilíbrio entre a taxa de mais-valia e a taxa de acumulação e, portanto, entre suas massas; este é um ponto que convém lembrar, pois será útil mais adiante.

      A segunda consequência da identidade existente, nesse plano, entre valor e valor de uso, é ainda mais decisiva e, em certa medida, de fácil compreensão; no entanto, tem sido o cavalo de batalha [caballo de batalla] por excelência dos debates motivados pelos esquemas. Se trata da taxa de produtividade constante. De fato, o aumento da produtividade do trabalho atua como a relação entre valor e valor de uso das mercadorias de maneira contraditória, uma vez que reduz o primeiro enquanto mantém invariável o segundo; isso também vale para a intensidade do trabalho, sempre que sua elevação seja geral e uniforme. Marx expõe essa contradição na seguinte lei: “[...] a jornada de trabalho de grandeza dada representa-se sempre no mesmo produto de valor, seja qual for a variação da produtividade do trabalho [e] a correspondente massa de produtos [...]” (MARX, 2017-a, p. 588)

      O que se complementa com o fato de que:

      [...] [s]e a intensidade do trabalho aumentasse em todos os ramos industriais ao mesmo tem-

      po e na mesma medida, o novo grau de intensidade mais elevado se converteria no grau normal, fixado socialmente no costume, e deixaria, assim, de ser contado como grandeza extensiva. (MARX, 2017-a, p. 592).

      Essa semelhança aparente entre produtividade e intensidade do trabalho, em ter-

      mos de seu efeito sobre o valor e o valor de uso das mercadorias, esconde diferenças que merecem destaque. Assim, em termos gerais, isto é, para o produto social e seu conjunto, a lei da produtividade vale para todos os setores da produção, mas não para os capitais individuais; desse modo, ao elevar sua produtividade acima do nível normal que estabelece o tempo de trabalho socialmente necessário14, ou seja, acima do nível que determina o valor social da mercadoria, o capitalista individual consegue que uma mesma jornada renda um produto de maior valor, precisamente porque, apesar de o valor individual da mercadoria ter caído em termos reais, ela continua apresentando o mesmo valor social, mas agora é produzida em maior quantidade [por esse capitalista]; em suma, dado que o valor é uma relação social, é o valor social que conta, e afirmar que o capitalista individual reduziu o valor unitário de sua mercadoria nada mais é do que dizer que seus custos de produção foram reduzidos em relação aos demais capitalistas do ramo. É por meio desse mecanismo que o capital individual obtém uma mais-valia extraordinária, que se converte, na competição in-tercapitalista, no fator por excelência de introdução do progresso técnico.

      Porém, isso não é tudo no que se refere à lei da produtividade. Na medida em que ela permite ao capitalista individual reduzir custos, e sendo o capital variável um elemento integrante dos custos, o aumento da produtividade implica a redução da participação dos salários na massa de valor criada, ainda que o preço da força de trabalho permaneça invariável (ou seja, a relação entre seu valor e o número de horas trabalhadas, sobre a base de uma determinada intensidade) e o salário tampouco se modifique em termos reais ou nominais, considerando que seja elevado o grau de exploração (a relação entre tempo de trabalho necessário e trabalho excedente) e a taxa de mais-valia (essa relação expressada em valor). A mais-valia extraordinária não é, pois, um mecanismo de transferência que atua somente na competição intercapita-lista, mas também é um fator que incide na relação de distribuição entre mais-valia e salário, do ponto de vista do capitalista individual.

      Para que o efeito seja similar em todo o ramo da produção, é necessário que a produtividade do trabalho se eleve nele todo, se estabelecendo em um nível superior. Isso implica, imediatamente, a supressão da mais-valia extraordinária, enquanto me-


    4. Esse nível não corresponde necessariamente ao nível médio da produtividade, assim como o valor social da mercadoria não é sempre a média dos valores produzidos no ramo, mas ambos são afetados também pela concorrência (MARX, 2017b).

      canismo de transferência entre capitalistas, ou seja, mecanismo de transferência de mais-valia no seio do ramo de produção. No entanto, para a economia em seu conjunto, o efeito só se generaliza se esse ramo produz, direta ou indiretamente, meios de subsistência para os trabalhadores e, dessa forma, determina o valor da força de tra-balho15; em outros termos, a generalização do efeito só ocorre se estivermos falando de um ramo de produção do subsetor IIa ou de um ramo do setor I que produza para esse subsetor; só então cabe falar de mais-valia relativa16. Se não for assim, a elevação da produtividade no ramo, ainda que anule a mais-valia extraordinária obtida pelo capitalista individual, seguirá traduzindo-se em um nível de produtividade superior ao restante da economia; em outros termos, como o valor da força de trabalho permanece inalterado e, em princípio, seu preço, a produtividade do trabalho superior se traduzirá em um grau de exploração superior e uma taxa de mais-valia também superior no ramo de produção em questão, o que pode afetar tanto a distribuição básica (salário/mais-valia) no ramo, como a distribuição da mais-valia no conjunto da economia. Dito de outra maneira, se o aumento da produtividade se limitar ao setor IIb ou aos ramos de produção do setor I que produzem apenas para esse subsetor, a mais-valia extraordinária deixa de ser um fator de transferência e de maior exploração do trabalho que opera no nível dos capitalistas individuais, para se situar no nível das transferências de valor intersetoriais e no nível das relações de distribuição no conjunto da economia. Como veremos, isso só é verdadeiro se consideramos o problema à luz da teoria da mais-valia, ou seja, se tomarmos a produção capitalista como um processo imediato de produção.

      O aumento da intensidade do trabalho configura uma situação distinta. No que diz respeito ao capitalista individual, não modifica nem o valor, nem o valor de uso das mercadorias; em consequência, o aumento da intensidade se expressa na produção de uma massa maior de mercadorias cujo valor unitário não se modifica, se traduzindo em uma massa de valor e, portanto, de mais-valia. Não existe, portanto, razão para que se altere a taxa de mais-valia, uma vez que a maior intensidade do trabalho acarreta também a elevação do valor da força de trabalho17, elevando tanto


    5. “[...] uma variação na grandeza do valor da força de trabalho – e, por conseguinte, na grandeza do mais-valor – se os produtos dos ramos industriais afetados entram no consumo habitual do trabalha-dor” (MARX, 2017a, p. 592). Como Marx coloca em outras passagens, a produtividade atua no mesmo sentido quando se trata de ramos que, ainda que não produzam bens de consumo habitual, determinam as condições de produção desses.

    6. “[...] se vimos não ser possível nenhuma variação absoluta de grandeza no valor da força de trabalho e do mais-valor sem uma variação de suas grandezas relativas, segue-se agora que nenhuma variação de suas grandezas relativas de valor é possível sem uma variação na grandeza absoluta de valor da força de trabalho” (MARX, 2017a, p. 590).

    7. “Toda variação na magnitude extensiva ou intensiva do trabalho afeta [...] o valor da força de traba-

      seu preço como o salário. Assim, para que se eleve a taxa de mais-valia, ou pelo menos para que se eleve em um grau mais que proporcional ao aumento da intensidade do trabalho, será necessário que – independentemente do aumento do preço e do salário da força de trabalho – esta se remunere por debaixo de seu valor, ou seja, seja objeto de uma superexploração18. Nessas condições, tal como se a jornada de trabalho se prolongasse num determinado ramo de produção em grandeza superior aos outros ramos, o aumento da intensidade em qualquer ramo resultará numa mais-valia extraordinária em relação ao restante da economia (como vimos, isso só não ocorre se a elevação da intensidade do trabalho for uniforme ao longo de toda economia). A particularidade da intensidade do trabalho reside, pois, na possibilidade que contém de gerar mais-valia extraordinária em todos os ramos da economia, quer se trate dos dois subsetores do setor II, quer se trate do setor I19. O mesmo para a produtividade, isso é válido se nos atermos exclusivamente à teoria da mais-valia.

      Assim, sem ir além da teoria da mais-valia, se entende por que, ao buscar estabelecer as proporções em que se trocam as mercadorias, tomadas como unidade de valor e valor de uso, Marx teve que necessariamente descartar as mudanças na produtividade ou na magnitude intensiva do trabalho, bem como, em geral, no grau de exploração. Os esquemas de reprodução do Livro II resolvem o problema colocado por Marx, qual seja, o de saber como se articula a reprodução do capital com o consumo individual dos agentes da produção, no marco da circulação geral de mercadorias, mas com a condição de considerar estas como unidade de valor e valor de uso, ou seja, sem recorrer aos fatores que, ao exacerbar a contradição latente entre ambos no processo de produção, cortariam de raiz a possibilidade de abstrair o seu movimento no processo de reprodução. É evidente que isso assinala o papel específico e, por isso mesmo, limitado que os esquemas cumprem na construção teórica de Marx, cujo fio


      lho na medida em que acelera seu desgaste” tradução literal [de Marini] de O Capital (MARX, 2017a, p. 592).

    8. “É claro que se o produto de valor da jornada de trabalho varia, por exemplo, de 6 para 8 xelins, ambas as partes desse produto de valor, o preço da força de trabalho e o mais-valor, podem aumentar ao mesmo tempo, seja em grau igual ou desigual. Se o produto de valor sobe de 6 para 8 xelins, o preço da força de trabalho e o mais-valor podem ambos de 3 para 4 xelins. O aumento do preço da força de trabalho não implica aqui, necessariamente, um aumento de seu preço acima de seu valor. Ao contrário, ele pode vir acompanhado de uma queda de seu valor. Esse é o seu caso sempre que a elevação do preço da força de trabalho não compensa seu desgaste acelerado” (MARX, 2017a, p. 592). Onde se lê “queda de seu valor” deve-se ler “queda abaixo de seu valor”, como faz notar a edição da Siglo XXI, México, 1975, tomo 1, volume 2, na nota do editor [essa nota também está presenta na edição da Boitempo, utilizada nesta tradução].

    9. “Se a grandeza do trabalho varia extensiva ou intensivamente, à sua variação de grandeza corresponde uma variação na grandeza de seu produto de valor, independentemente da natureza do artigo no qual esse valor se representa” (MARX, 2017a, p. 592).

      condutor é precisamente a capacidade produtiva do trabalho, o qual, em um regime capitalista de produção, se expressa na contradição entre valorização do capital e a sua desvalorização, cuja primeira manifestação se dá no nível da mercadoria, por força do efeito contraditório que a capacidade produtiva do trabalho exerce sobre ela, e assenta as bases para as grandes leis que regem o sistema, em particular a lei geral da acumulação capitalista e a lei da queda tendencial da taxa de lucro.

      Porém, por essa razão, o uso dos esquemas de reprodução para a análise da realidade concreta do capitalismo não pode ser realizado sem que se modifiquem os três pressupostos sobre os quais Marx os concebeu, em especial o da produtividade constante. Há motivos de sobra para supor que, se tivesse completado sua investigação, o próprio Marx o teria feito ao avançar para a teoria do mercado mundial e, consequentemente, do imperialismo20, do Estado e da crise. Por isso, a crítica que se pode fazer aos que tentaram utilizar os esquemas para a análise concreta da realidade não é a de terem descartado os pressupostos adotados por Marx na terceira seção do Livro II, mas, ao não estabelecer com precisão o plano de análise em que se moviam, tomaram a nuvem por Juno. Isso levou a uma série de equívocos que não só privaram os esquemas da possibilidade de serem modificados para dar conta do movimento real do capital (como ocorre quando, por exemplo, Rosa Luxemburgo mantém o pressuposto de que a mais-valia se acumula no mesmo setor em que foi gerada (o que só vale no nível de abstração em que Marx se situa em sua análise), contrapondo-o a outros elementos da obra de Marx, sem perceber que os esquemas não eram mais que um dos elementos que ele utilizou para sua construção teórica global.


  3. O exame da reprodução do capital à luz da teoria da mais-valia nos permite chegar a algumas conclusões que podemos retomar, aqui, de outro ângulo. A principal é que, a partir do momento em que introduzimos mudanças na produtividade e na intensidade do trabalho, a taxa de mais-valia se modifica – modificação que opera de forma diferente conforme se trate de um capital individual ou de ramos de produção.

No primeiro caso, o do capital individual, ambos os métodos de produção de


  1. Assim, em sua obra clássica sobre o tema, Bukharin (1984, p. 23-24) estabelece a noção de economia mundial e afirma: “O intercâmbio internacional repousa sobre a divisão internacional do trabalho. Não se deve crer, porém, que ela se efetua apenas nos limites que lhe atribui essa divisão. Os países não trocam apenas produtos de natureza diferente, mas também produtos similares. Tal país, por exemplo, pode exportar para outro não apenas mercadorias que este último não produz, ou produz em ínfima quantidade – mas pode também exportar suas mercadorias fazendo concorrência à produção estrangeira. A troca internacional, nesse caso, tem fundamento não na divisão do trabalho – que implica a produção de valores mercantis de natureza diversa – mas unicamente na diferença dos custos de produção, na diferença dos valores individuais (para cada país) que, na troca internacional, se resumem no trabalho socialmente necessário em todo mundo”.

    mais-valia se traduzem em mais-valia extraordinária e implicam, portanto, uma mudança na relação básica de distribuição; porém, essa modificação na distribuição do produto excedente entre salário e mais-valia (ou, o que é o mesmo, no grau de exploração) é realizada, no caso da produtividade, sem necessariamente superexplorar a força de trabalho, enquanto, caso se trate de um aumento da intensidade do trabalho, a superexploração tende a ocorrer, pois esse aumento também aumenta o valor da força de trabalho.

    No segundo caso, o dos ramos de produção, constatamos que o aumento da taxa de mais-valia só se expressa em mais-valia extraordinária se esses ramos pertencerem ao subsetor IIb (assim como nos ramos de produção do setor I que produzem exclusivamente para ele) e se esse aumento for decorrente de uma maior produtividade, enquanto, se o aumento da taxa de mais-valia se dever à intensificação do trabalho, existe a possibilidade de mais-valia extraordinária para qualquer ramo de qualquer setor. Por sua vez, a relação básica de distribuição (e, portanto, de grau de exploração) se altera em toda a economia se, em ambos os casos (produtividade e intensidade), os ramos afetados correspondem ao setor I e ao subsetor IIa (generalização da mudança da taxa de mais-valia ou, em outros termos, passagem da mais-valia extraordinária à mais-valia relativa), ou se modifica apenas no ramo em questão, se este pertence ao subsetor IIb, deixando invariável a relação básica de distribuição no conjunto da economia, ainda que altere a distribuição de mais-valia daquele ramo (fixação da mais-valia extraordinária).

    Ora, o ganho de mais-valia extraordinária não é mais do que um pressuposto para a apropriação do lucro extraordinário. A realização ou não dessa apropriação depende da concorrência. Isso se deve ao fato de que a variação da taxa de mais-va-lia em função de modificações na produção faz com que a massa de valores de uso produzida varie no mesmo sentido, mas sua expressão em valor social está sujeita à validação que essa massa de valores de uso opera na demanda (necessidades sociais solventes)21. Assim, dependendo do nível de demanda em relação à oferta, a magni-


  2. “Ainda que ambos os elementos, a mercadoria e o dinheiro, sejam unidades de valor de troca e de valor de uso, já vimos (Livro I, capítulo 1, item 3) que, nas operações de compra e venda, essas duas funções aparecem distribuídas como polos extremos, de modo que a mercadoria (vendedor) representa o valor de uso, e o dinheiro (comprador), o valor de troca. A mercadoria tem um valor de uso, ou seja, satisfaz uma necessidade social, e isso constitui precisamente um dos requisitos da venda. O outro requisito é, como vimos, que a quantidade de trabalho contida na mercadoria representa trabalho socialmente necessário, ou seja, que o valor individual (e o que sob esse pressuposto é sinônimo, o preço de venda) da mercadoria coincida com seu valor social” (MARX, 2017b, p. 216). E também: “Para que uma mercadoria seja vendida por seu valor de mercado, isto é, na proporção do trabalho socialmente necessário nela contido, a quantidade total de trabalho social empregada na massa total desse tipo de mercadoria tem de corresponder à quantidade das necessidades sociais, isto é, às necessidades sociais solventes. A concorrência e as oscilações dos preços de mercado que correspondem às oscilações da

    tude do valor se estabelecerá no mesmo nível, acima ou abaixo das condições médias de produção22, embora, em todos os casos, a massa de valores de uso produzida esteja sendo realizada. O mercado opera, assim, no sentido de corrigir ou ampliar o desvio entre valor e valor de uso implícito no desenvolvimento da produção mercantil.

    Estabeleçamos algumas premissas essenciais. A demanda é estruturada diretamente pelas relações de distribuição23 que, embora determinadas pela produção, re-percutem nela, a partir do momento em que se transformam em determinações da demanda, com as quais sobredeterminam a produção de valor e de mais-valia. Em seu nível básico, a demanda depende de como o produto excedente se distribui entre mais-valia e salários; em seu nível derivado, a demanda gira em torno da maneira como se distribui a mais-valia, assim como a maneira como ela se resolve em acumulação e consumo.

    Vamos verificar agora como as mudanças na produção afetam as relações intersetoriais no nível de mercado, partindo de uma situação de equilíbrio. O aumento de mais-valia no setor I (por mudanças na produtividade e/ou intensidade) implica o aumento da massa de valores de uso produzida. Se, quando as mercadorias aparecem no mercado, seu valor não muda, o aumento da massa de valores de uso é expresso em uma massa de valor proporcionalmente maior. Uma vez realizada a troca intersetorial, isso se traduz na ampliação da escala de acumulação e no consequente


    relação entre oferta e demanda tendem constantemente a reduzir a essa medida a quantidade total do trabalho empregado em cada tipo de mercadoria” (MARX, 2017b, p. 227-228).

  3. “O suposto de que as mercadorias das diferentes esferas da produção são vendidas a seus valores significa apenas, naturalmente, que seu valor é o centro de gravitação em torno do qual giram os preços e com base no qual se compensam suas constantes altas e baixas. Além disso, será sempre preciso distinguir entre um valor de mercado, do qual falaremos mais adiante, e o valor individual das mercadorias produzidas pelos diversos produtores. O valor individual de algumas dessas mercadorias ficará abaixo do valor de mercado (quer dizer, menos tempo de trabalho será necessário para sua produção do que o expresso pelo valor de mercado), e o de outras mercadorias ficará acima desse valor. O valor de mercado deverá ser considerado, por um lado, como o valor médio das mercadorias produzidas numa esfera de produção e, por outro, como o valor individual das mercadorias produzidas sob as condições médias dessa esfera e que formam a grande massa de seus produtos. Apenas conjunturas extraordinárias podem fazer com que mercadorias produzidas sob péssimas condições, ou sob as mais favoráveis, venham a regular o valor de mercado, o qual, por sua vez, constitui o centro de gravitação dos preços de mercado, que são sempre os mesmos para mercadorias do mesmo tipo. Quando a oferta das mercadorias ao valor médio, ou seja, ao valor médio da massa situada entre ambos os extremos, satisfaz a demanda habitual, as mercadorias cujo valor individual é inferior ao valor de mercado realizam um mais-valor ou lucro extraordinário, ao passo que aquelas cujo valor individual é superior ao valor de mercado não podem realizar uma parte do mais-valor nelas contido” (MARX, 2017b, p. 212-213). Mais adiante, Marx acrescenta: “E o que dizemos sobre o valor comercial também se aplica ao preço de produção, quando ele substitui o valor comercial” (MARX, 2017b, p. 182-183 e 186).

  4. “A oferta e a demanda, numa análise mais detalhada, pressupõem a existência das diversas classes e

    subclasses entre as quais se reparte a renda total da sociedade para ser por elas consumida como renda, e que, portanto, constituem parte da demanda formada pela renda [...]” (MARX, 2017b, p. 230).

    incremento de valor de capital constante em IIa e IIb, assim como de capital variável (embora não necessariamente na mesma proporção) e, por conseguinte, na valorização da massa de mercadorias que se lançam no mercado. Portanto, o mercado para o setor II tem que se expandir, sob o risco de que a massa de valor realizada seja inferior à produzida (seja porque parte das mercadorias não se vendem, seja porque o preço dos bens cai); se isso ocorrer, a maior massa de mais-valia criada nos dois subsetores se traduziria em uma massa de lucro menor e, mesmo que esta fosse igual à que antes pertencia ao setor II, sua taxa de lucro cairia à medida que os custos de produção aumentaram. Em consequência, ou a) se reduziria a demanda criada por IIa e IIb, o que forçaria a redução dos preços de c produzido por I (essa redução correspondendo a uma redução no valor), ou b) capitais de ambos subsetores emigrariam para I, seja porque se tornaram capital em excesso devido às limitações do mercado, seja em razão de uma taxa de lucro maior no setor I, ou por ambos os motivos; nos dois casos, seria imposto o nivelamento da taxa de lucro em I e II, desaparecendo o lucro extraordinário de I. Para que isso não ocorra, é preciso que o mercado de II aumente; mas como v permanece constante em I na melhor das hipóteses, a expansão do mercado só poderia ser realmente importante para IIb graças à conversão da mais-valia extraordinária de I, ou parte dela, em consumo individual dos capitalistas. Assim, devido ao condicionamento do mercado, o lucro extraordinário de I se traduziria no aumento da participação nos lucros de IIb e dos ramos de I que produzem para ele. Somente na medida em que os lucros maiores de I e IIb expandirem a escala de acumulação, é que o subsetor IIa e os ramos de I dirigidos a ele poderiam se integrar ao movimento expansivo iniciado em I, com atraso e de forma subordinada, eliminando o lucro extraordinário dos primeiros lentamente.

    Uma observação: é evidente que, como a mais-valia se acumula em qualquer setor, o incremento da mais-valia de I pode se destinar à acumulação em II, o que assegura não só a realização do produto c, como também poderia compensar, teoricamente, por meio do aumento de v em II, a redução relativa de v em I. Mas isso só ocorrerá se a mais-valia incrementada, ao se converter em capital excedente no setor I, pressionar para baixo a taxa de lucro (do mesmo modo que aconteceria com a mais-valia que emigra de II) e tender a nivelá-la com a do setor II. Se ocorrer essa migração de capital, teríamos que a modificação da relação básica de distribuição em I obriga a extensão da escala de acumulação em toda a economia para assegurar a expansão do mercado e, portanto, a realização da massa de mercadorias produzida, bem como o aumento de mais-valia. Isso, repetimos, só pode ocorrer na medida em que se opera a tendência de nivelação da taxa de lucro e se elimina, pois, a mais-valia extraordinária em I, o que supõe a emigração prévia de capital de II para I ou uma

    crise de superprodução em I.

    Consideremos o setor IIa. O aumento da mais-valia ali verificado é acompanhado, como sabemos, de uma massa maior de mercadorias. Se não se modifica o valor individual das mercadorias, não se pode aumentar sua demanda por parte de I e IIb, já que v se mantém constante ali, mas se reduz relativamente a demanda própria criada por IIa, dada a redução da participação de v em seu produto (ainda que mantenha seu valor absoluto). O impasse teria que ser resolvido, como no caso de I, ou pela redução do valor individual (e do preço) das mercadorias de IIa, ou pela migração de capitais de I e IIb para IIa, ou deste para os outros dois, conduzindo ao nivelamento da taxa de lucro. O deslocamento de mais-valia entre IIa e I ou IIb está sujeito às condições descritas acima. Assim, do ponto de vista do mercado, IIa não está em condições de realizar de forma sustentável um ganho de mais-valia extraordinária, ainda menos que I.

    Suponhamos agora o aumento de mais-valia e do produto mercantil em IIb. Este pode manter em princípio o valor individual de suas mercadorias, pois a demanda para estas deriva exclusivamente da mais-valia, a qual se encontra aumentada devido à modificação da relação básica de distribuição no próprio setor; isto confere uma maior elasticidade à demanda para os produtos de IIb, o que se entende ainda melhor se considerarmos que os aumentos de mais-valia nos demais setores, ainda que se traduzam em uma escala maior de acumulação, tendem a traduzir-se também em aumento relativo e absoluto de mais-valia não acumulada24. Em consequência, a possibilidade de que a mais-valia extraordinária de IIb se traduza em lucro extraordinário não se vê limitada em princípio pelo mercado, mas apenas pela competição entre os capitais e sua emigração de ramo a ramo. No entanto, como os capitais migrantes não se movem de um ramo para outro com o objetivo de eliminar o lucro extraordinário, mas para se aproveitar dele, apenas as pressões que se exercem sobre o mercado (uma escala de acumulação tão rapidamente ascendente que freie a expansão do consumo individual criado pela mais-valia; atrativos excepcionais de poupança; crises setoriais em I ou IIa, etc.) podem eliminar em IIb o lucro extraordinário, independentemente de que este se veja reduzido pela concorrência entre os capitais sobre a mais-valia extraordinária realmente criada. Neste plano de análise, pois, a explicação do lucro extraordinário de IIb deve ser buscada na dinâmica própria do mercado, e não em outros fatores, como, por exemplo, as estruturas monopólicas que possam existir ali, pois essas ocorrem igualmente em I e em II, sem produzir o mesmo efeito.

    Para maior abundância, ressaltaremos que a demanda criada pela mais-valia não


  5. Isso é o que Bukharin esqueceu, o que o levou a deduzir falsas relações de sua fórmula de equilíbrio para a reprodução ampliada. Ver em Rosdolsky (2001, p. 374-375).

    acumulada é feita fora do ciclo do capital produtivo, e, portanto, a determinação do valor social nessa esfera da circulação não afeta a valorização do capital em I e IIa, mas apenas a taxa de acumulação (na medida em que influencia a forma como a mais-valia é dividida em mais-valia acumulada e não acumulada). É, pois, compreensível que, quanto mais a mais-valia aumenta na economia, maior a elasticidade dessa demanda. Por outro lado, considerando que tal demanda não entra na circulação do capital, mas configura um caso de circulação geral de mercadorias, é natural que o valor de uso adquira uma importância mais decisiva na realização do produto; daí a maior diferenciação dos artigos produzidos pelo subsetor IIb, os desvios mais frequentes da lei do valor (como a superestimação da produção artesanal em relação à produção fabril) etc.

    Deve-se ter em mente que, ao transferir os preços em menor medida de I e IIa aos aumentos de produtividade, o subsetor IIb estabelece com os demais uma relação que implica uma transferência intersetorial de mais-valia, via preços, que vai além do que corresponderia estritamente aos mecanismos de nivelação da taxa de lucro e que, em vez disso, os violam; em outros termos, se configura uma situação similar à que alude à noção de trocas desiguais na economia internacional. Isso reduz, assim, a taxa de lucro que alcança I e IIa (ainda que os ramos de I que produzem fundamentalmente para IIb possam ser ressarcidos, recorrendo também à mais-valia extraordinária) e pressiona para baixo a taxa de lucro desses setores. Em outras palavras, o setor IIb exerce um efeito depressivo sobre a taxa de lucro geral, o qual, rigorosamente, é a contrapartida do lucro extraordinário que se verifica nele25.

    Notemos, finalmente, que a especificidade de IIb, em termos de produção de mais-valia extraordinária e sua conversão em lucro extraordinário, se acentua necessariamente onde prevalece a superexploração do trabalho, configurando uma situação em que prevalecem salários baixos e lucros elevados. Com efeito, isso implica que, ao mesmo tempo em que a esfera inferior de circulação se apresenta com pouco dinamismo, a esfera superior tende a inflar-se. Em tais circunstância, se entende perfeitamente que o subsetor IIb tende constantemente ao crescimento desproporcional em relação aos demais, bem como se acentua, no plano do mercado, a subordinação do setor I em relação ao subsetor IIb, mais que em relação ao subsetor IIa. Como em qualquer outro campo observado, também aqui a economia dependente, baseada na superexploração do trabalho, sofre de maneira ampliada as leis gerais do regime capitalista de produção.


  6. Esse efeito depressivo não se traduz automaticamente em redução da taxa de lucro, já que pode ser combatido por diferentes mecanismos, entre os quais se destaca a superexploração do trabalho, particularmente no subsetor IIa. Mas, sobretudo neste caso, a consequência desse efeito depressivo é a atrofia do subsetor IIa e a hipertrofia do IIb, com a distorção correspondente do setor I.

    II

    1. Esclarecidos alguns dos problemas colocados pelo uso dos esquemas como representação de uma economia capitalista concreta, passaremos agora aos trabalhos de Maria da Conceição Tavares (1998) e Francisco de Oliveira (1977), que se valem dos esquemas. Convém esclarecer que, ainda que ambos, via Kalecki26, se remetam aos esquemas de reprodução de Marx como ponto de referência para a análise da problemática que querem resolver, não procedem à elaboração de esquemas próprios e ignoram as controvérsias que deram lugar às tentativas dessa natureza. Os dois trabalhos têm em comum a preocupação em relação ao peso e papel do subsetor de produtos de bens de consumo de luxo (que ambos os autores identificam, grosso modo, como bens de consumo duráveis) na economia brasileira atual, isto é, do pós-guerra. Enquanto Oliveira foca sua atenção explicitamente ali, com objetivo de examinar a relação entre o dito subsetor e a crise econômica que atravessa neste momento o país, Tavares busca uma teorização mais ampla, que não só contempla o problema do desenvolvimento desse subsetor nos países capitalistas avançados, mas, sobretudo, pretende estabelecer um marco de análise para essa questão nas economias que chama semi-industrializadas, ou seja, as economias capitalistas dependentes de maior desenvolvimento relativo, para chegar finalmente ao caso brasileiro, considerado principalmente à luz da industrialização do período pós-guerra e da crise econômica que esta enfrentou na década de 1960. No entanto, ao longo de todo o trabalho, a preocupação subjacente de Tavares, assim como de Oliveira, se orienta para a atual crise do capitalismo brasileiro. Ao analisar ambos os trabalhos, meu propósito não é examinar todos seus pressupostos teóricos nem o quadro explicativo que apresentam para a dinâmica da economia brasileira, mas tão somente verificar o uso que fazem dos esquemas e o papel que eles desempenham nas conclusões a que chegam.

      Não é tarefa fácil, particularmente com o trabalho de Tavares. Com efeito, ali se observa uma modificação progressiva de aparato analítico: a estrutura setorial tripartite, que se estabelece no capítulo I (e que, como descobrimos no final do capí-


  7. Ambos os autores invocam Michel Kalecki para denominar o subsetor de bens de consumo de luxo como Departamento III, mantendo a designação Departamento I para os meios de produção e nomean-do Departamento II a produção de bens de consumo necessários. A realidade é que não é necessário recorrer a Kalecki para estabelecer um setor de Departamento III, já que isso se apresenta na obra de Tugan-Baranovsky, que deu origem à polêmica tratada e que data de 1894, havendo sido aceito por muitos marxistas, entre eles o próprio Kautsky. Por outro lado, não custa observar que, em Kalecki (1977), o setor que produz bens de consumo para os capitalistas é o II, sendo o III o que produz para os trabalhadores. Como quer que seja, não tendo importância a denominação dos setores e subsetores da produção se estes se encontram bem definidos, aceitaremos aqui a terminologia de Oliveira e Tavares.

    tulo, aplica-se apenas ao setor manufatureiro industrial, reservando para os demais o esquema cepalino indústria-agricultura, ampliado pelos serviços e o Estado), se combina, no capítulo II, com a organização diferenciada da empresa nos distintos setores (oligopólio competitivo, oligopólio diferenciado e oligopólio concentrado, que, mais ou menos, correspondem respectivamente aos setores II, III e I), para quase desaparecer no capítulo III; aqui, as categorias complexas setores de produção-formas de organização empresariais substituem o esquema setorial do capítulo I, com ênfase na organização empresarial e sua dinâmica competitiva, e se aplicam exclusivamente à indústria, regendo os demais âmbitos da produção o instrumental analítico cepalino27.

    A própria justificativa do esquema setorial tripartite é discutível. Tavares introduz o setor III por supor que em Marx o consumo dos capitalistas é tratado apenas “[...] como uma apropriação e utilização de mais-valia, não necessitando ser introduzido como um setor de produção específico, com seus problemas próprios de produção e realização” (TAVARES, 1998, p. 32), o que reitera ao acrescentar que o “[...] gasto improdutivo do excedente diminui a taxa de poupança e acumulação do sistema (visão clássica ortodoxa)” (TAVARES, 1998, p. 33). Tavares confunde, portanto, a concepção de David Ricardo, e principalmente a de Thomas Malthus, sobre o consumo improdutivo, com a de Marx, para quem o consumo improdutivo, na verdade, corresponde a um subsetor específico da produção (IIb), com seus próprios problemas de produção e realização, participando dinamicamente da reprodução, tanto pela acumulação que ali ocorre, na forma c + v, como por meio da circulação de mercadorias que engendra, implicando no processo a circulação de mais-valia produzida no setor. No entanto, apesar de propor um tratamento diferenciado do setor III, Tavares não cita o único motivo que justificaria esse tratamento: as peculiaridades que a produção de mais-valia ostenta como base para a apropriação de lucro extraordinário no referido setor, que incide na tendência à acumulação em direção a ele, assim como o peso que ele adquire na determinação das estruturas de distribuição.

    Isso não é por acaso, mas corresponde à forma como Tavares analisa o desenvolvimento do setor III e, o que está ligado intimamente a isso, a passagem à concorrência oligopolista e suas estruturas de produção. Sua tese central sobre o setor III é que ele corresponde à industrialização avançada, dentro da qual a diferenciação do consumo dos capitalistas sobre o consumo dos trabalhadores contribui para resolver os problemas da reprodução de capital (TAVARES, 1998). Tais problemas surgem do fato de que o progresso técnico, ao reduzir os custos gerais de produção (ou seja, au-



  8. Esses saltos metodológicos em Tavares são habituais. Assim, por exemplo, a autora adverte, no começo de seu trabalho, que não trabalha com valores, mas com preços de produção, porém, ao não considerar o problema da formação da taxa média de lucro, raciocina em função dos preços de mercado.

    mentar a composição técnica do capital sem aumentar sua composição de valor), cria uma massa de lucros e, portanto, um potencial de acumulação superior à taxa efetiva da capacidade produtiva utilizada (TAVARES, 1998). Embora isso permita, em princípio, que a análise se oriente ao mercado exterior, como escoadouro de capital excedente, e passar daí às modificações que isso acarreta para a economia mundial, Tavares opta por centrar sua análise “[...] de um ponto de vista ‘lógico’ – apenas dentro de padrões endógenos de acumulação” (TAVARES, 1998, p. 38); passa, então, a considerar as formas de organização que surgem quando se estabelece a concorrência oligopolista, e só de passagem vai se referir aos seus efeitos na economia mundial, ao tratar das formas que correspondem ao oligopólio diferenciado e ao conglomerado financeiro, no final de seu capítulo I.

    Sempre segundo Tavares, a superacumulação de capital, decorrente da redução geral de custos, conduz a uma situação em que


    [...] o limite da acumulação passa a estar dado não pelas condições de ‘produção de mais-va-lia’, mas sim pelas condições de sua realização dinâmica em escala ampliada. Vale dizer, os problemas se deslocam para a órbita da ‘insuficiência de demanda efetiva’, colocados, porém, em termos dinâmicos e não em termos estáticos como nos esquemas keynesianos. (TAVARES, 1998, p. 47-48).


    O setor III é introduzido nesse marco analítico para absorver superlucros, ou seja, se explica pelo lado da realização, passando a funcionar em termos de uma “terceira demanda” endógena à reprodução de capital.

    Na realidade, ao transferir o “limite” da acumulação para a realização, são assumidas leis malthusianas sobre o consumo improdutivo28, ainda que em outro contexto, como também uma visão de produtividade que não distingue seus efeitos na antino-mia valor-valor de uso. O aumento geral da produtividade no sistema (ou, o que dá


  9. É assim que, em sua correspondência com Ricardo, Malthus sustentava: “Não posso, de modo algum, concordar com você quando observa que ‘o desejo de acumulação agirá sob demanda com a mesma eficácia que o desejo de consumir’ e que ‘o consumo e a acumulação promovem igualmente a demanda’. Confesso que não conheço, na verdade, outra causa para a queda dos lucros, que acredito que você geralmente atribuirá à acumulação, se não que o preço dos produtos cai em comparação aos gastos de produção, ou, em outras palavras, que diminui a demanda efetiva”. E adiciona, em outra carta: “De modo algum quero negar que umas ou outras pessoas tenham dinheiro para consumir tudo o que se produz; mas a grande questão está em saber se está distribuído de tal maneira entre as diferentes partes interessadas, de modo a ocasionar maior demanda efetiva para a produção futura. E defendo, expressamente, que uma tentativa de acumular muito rapidamente, o que supõe uma considerável diminuição de consumo improdutivo, deve frear prematuramente o progresso da riqueza ao debilitar muito os motivos [móviles] usuais da produção”. Citada por John Maynard Keynes (1970), incluído como prólogo a T. R. Malthus, Primer ensayo sobre la población.

    no mesmo, a redução dos custos gerais), embora produza um aumento na massa de valores de uso, não altera por si só a massa de valor criada se mantiver a magnitude extensiva e intensiva da jornada de trabalho. No entanto, reduz nesse valor a parte que corresponde ao capital constante e variável, e é isso que se expressa na redução de custos (uma unidade de capital constante passa a representar uma magnitude de valor menor, e o mesmo acontece com a força de trabalho). A esse caso corresponde a hipótese de Tavares sobre o aumento dos lucros independentemente do comportamento da mais-valia.

    Consideremos mais de perto essa hipótese. A elevação da produtividade faz subir a composição técnica do capital, ou seja, a relação física entre trabalho vivo e trabalho morto, e incide sobre a massa de mercadorias produzidas, mas entendidas apenas como valores de uso. Para que saibamos se o aumento de valores de uso corresponde a um aumento de valor, é necessário remeter-se à composição orgânica do capital, isto é, a relação existente entre capital constante e capital variável, tomados como expressão de valor. Suponhamos que a composição orgânica não se altera: como se elevou a massa de mercadorias produzidas, o valor do capital empregado na produção (variável e constante) se divide em uma maior quantidade de produtos, reduzindo o custo unitário da produção, mas mantendo o custo de produção global; em outros termos, a maior quantidade de produtos incorpora, em termos de custo, a mesma massa de valor. Nesse nível, não há variação de valor total da produção; para que isso se modifique, isto é, se eleve, o que implicaria a redução relativa do custo de produção, o valor novo (a mais-valia), criado por efeito de uma maior produtividade, deve ser validado a nível de mercado, o que tenderá a uma elevação, não necessariamente proporcional, do lucro obtido pelo capital em cada mercadoria individual e, portanto, um lucro total superior em relação à massa global de mercadorias. Para o capitalista individual, que eleva sua produtividade acima da média do ramo, esse efeito é automático, na medida em que a redução do valor individual das mercadorias que ele produz não alterou o valor social delas; em outras palavras, esse capitalista terá produzido uma mais-valia extraordinária convertida em lucro extraordinário para si próprio. Se colocarmos na perspectiva do ramo, o efeito é passageiro, uma vez que o aumento da produtividade média deverá reduzir, eventualmente, o valor social da produção ao seu valor individual; se isso não ocorrer, e o ramo pertencer ao setor I ou ao setor II, não haverá redução de custos nos demais ramos, o que dificultaria as reduções de custos posteriores no ramo em questão; ao passo que, se pertence ao setor III, os capitalistas de todos os setores serão obrigados a destinar uma maior parte da mais-valia ao consumo improdutivo, limitando, assim, a escala de acumulação de capital. Em qualquer caso, e independentemente do setor a que pertence, o ramo

    que conseguir manter o valor social de suas mercadorias acima do valor individual estaria convertendo parte ou toda sua mais-valia extraordinária em lucro extraordinário, o qual, como já demonstramos antes, e abstraindo aqui o comércio exterior, implicaria não uma redução de custos, mas a manutenção da elevação de custos dos demais, considerando que se tratam de lucros extraordinários que beneficiam o setor I e II, ou, caso se trate de um ramo do setor III, uma redução de lucros em todos os setores. No primeiro caso, a composição orgânica não diminuirá, mas permanecerá estável ou aumentará; no segundo, a massa de lucros suscetível de ser apropriada pelos demais ramos será menor. Assim, para que se observe uma redução geral de custos em toda a economia e a elevação da taxa média de lucro, é necessário que haja uma redução no valor dos lucros individuais e especiais, independentemente de se aumentarem ou não a capacidade de dispor de valores de uso; ou seja, deve-se operar a tendência à nivelação da taxa geral de lucro, levando ao desaparecimento do lucro extraordinário. Assinalamos que aí reside o aspecto negativo dos monopólios que, enquanto atuam sobre a circulação, estabelecem e mantêm superlucros acima da taxa de lucro médio vigente.

    Colocando as coisas dessa forma, não se pode sustentar que o aumento de produtividade e a queda geral de custos na economia produzam uma massa crescente de valor, que transforme os problemas da reprodução de capital em problemas de realização e desloque a determinação da dinâmica do sistema do campo da produção e realização da mais-valia para o comportamento da “demanda efetiva”. No jogo entre capitais individuais e entre os ramos de produção, bem como entre os setores produtivos, o aumento da produtividade e a redução dos custos provocam transferências de mais-valia e alterações nas relações básicas de distribuição justamente porque derivam de mudanças na proporção do valor produzido e apropriado por esses ramos e capitais que não correspondem a mudanças na massa global de valor produzida na economia em seu conjunto; no nível desta, a maior produtividade e a redução de custos opera não no sentido de aumentar a massa de valor criada, com os consequentes problemas de realização que daí surgiriam, mas, sim, no sentido de manter essa massa, simultaneamente com a sua expressão em uma maior quantidade e diferenciação de valores de uso.

    Visto que agora é necessário fazer circular uma massa maior de valores de uso que corresponda à mesma massa de valor, os problemas de circulação surgem a partir do momento em que se modifica a repartição dessa massa de valor entre os diferentes setores. Eles são, pois, a consequência, não a causa, das tendências inerentes à produção de mais-valia, e se expressam em um nível aparente, no fenômeno do lucro extraordinário. O fato de que isso possa derivar de manipulações operadas pelo ca-

    pital na esfera da circulação não deve nos fazer esquecer que, salvo em situações excepcionais, como as crises, essas manipulações só dão resultados se acompanharem as tendências da produção. Os lucros monopólicos não constituem, nesse sentido, uma exceção.

    Se Tavares pode sustentar pontos de vistas distintos, é porque confunde o efeito da produtividade na criação de valores de uso e de valor, ao tempo que não distingue a dinâmica própria dos capitais individuais, dos ramos especiais de produção e a economia em seu conjunto. Isso é o que a leva a explicar o crescimento desproporcional do setor III por meio da realização, em vez de partir das condições de produção e circulação da mais-valia. Deste modo, não percebe que o aumento da produtividade do sistema segue dependendo da produção de mais-valia e, mais ainda, só tem sentido se se expressa numa elevação dessa mais-valia sobre a base da redução do valor da força de trabalho, que se traduza em uma redução de capital variável, relativa, portanto, independentemente de um aumento de salário do operário individual. São os aumentos de produtividade não canalizados nessa direção que, ao influenciar a esfera de circulação, levam ao desequilíbrio setorial, com a hipertrofia do setor III e dos ramos que produzem para ele.

    Nas economias dependentes, o crescimento desproporcional do setor III, que preocupa Tavares, explica-se da mesma forma e leva ao mesmo ponto de chegada, embora seu movimento seja mais exacerbado, como ocorre com fenômenos econômicos nesse tipo de economia capitalista. Por um lado, o aumento da produtividade no setor III pode se traduzir facilmente em superlucros, devido a que a produtividade média dos outros setores é inferior (e quando é alta em certos ramos do setor I, parte dela se transfere aos demais, situação em que o Estado desempenha um papel importante). Por outro lado, devido à superexploração do trabalho, ou seja, ao fato de que a força de trabalho é remunerada abaixo de seu valor, a necessidade de des-valorizá-la não se impõe na mesma forma que nos países capitalistas avançados; os mecanismos econômicos que engendram a superexploração e que a reforçam, em particular o crescimento do exército industrial de reserva, atuam naturalmente no sentido de elevar a taxa de mais-valia e criam, no nível político, condições para que os trabalhadores sofram pressões no mesmo sentido. Em consequência, o aumento da produtividade, que normalmente se traduz em superlucros no setor III, tende a orientar-se de maneira ainda mais decidida em sua direção (e, com ela, a acumulação), provocando a hipertrofia do setor. A produção de superlucros no setor III, frente a um setor II que não oferece estímulo significativo ao aumento de produtividade, e as diferenças de composição orgânica que os mediam acentuam o escoamento da mais-valia para o setor III e enviesam toda a estrutura produtiva, traduzindo-se, no

    plano da circulação, na diferenciação crescente entre sua esfera alta e sua esfera baixa, ou seja, a que corresponde ao consumo de mais-valia e a que corresponde ao consumo dos salários. Mais uma vez, o que só se compreende à luz dos mecanismos de produção se expressa como um problema de realização.

    Ao analisar a acumulação oligopólica, Tavares o faz sobre a base do que estabeleceu para a acumulação competitiva. Mas se verá confrontada, partindo de sua premissa de que o limite da acumulação é dado pelo mercado, com o fato de que novos mercados sempre serão necessários. O setor III já não lhe basta: nas páginas 32-33, introduz novos setores, à margem de seu esquema tripartite (cuja validez é limitada à indústria manufatureira), como agricultura e serviços, bem como o Estado (ou, mais precisamente, o gasto público em infraestrutura). Não só termina o esforço de examinar o problema posto à luz dos esquemas de reprodução, mas perde o fio “lógico” da exposição, pois temos que lidar com uma “terceira demanda” exógena a esses esquemas. Nesta perspectiva, dificilmente se compreende por que, ao tratar de economias dependentes, no capítulo II, Tavares contemple com certo desprezo o problema da sua relação com a economia (e o mercado) mundial, e que o coloque francamente “entre parênteses” no capítulo III, relativo à economia brasileira.


    1. Oliveira, apesar de mais ortodoxo na aplicação de um esquema tripartite de reprodução, enfatiza igualmente a desproporcionalidade do setor III, que constitui o elemento definidor por excelência do padrão de acumulação vigente no Brasil (OLIVEIRA, 1977), e não difere muito de Tavares quanto à identificação da origem dessa hipertrofia: a concentração do investimento, que originou um perfil de demanda que fez possível o desenvolvimento do setor III, em um momento em que a divisão internacional do trabalho permitia a certas economias dependentes a possibilidade de passar da distinção entre produtores de matérias-primas e produtores de bens manu-faturados para estabelecer-se em torno da distinção entre produtores de manufaturas de consumo e produtores de manufaturas de bens de produção (OLIVEIRA, 1977). Ainda que Oliveira não explicite, parece ser que o problema de fundo está em que essa divisão do trabalho não transcende o plano produtivo para se projetar no plano do mercado, o que levaria aos problemas que esse padrão de crescimento enfrenta; isso provoca uma crise recorrente no balanço de pagamentos, que


      [...] se expressa na contradição entre uma industrialização voltada para o mercado interno mas financiada ou controlada pelo capital estrangeiro e a insuficiência de geração de meios de pagamento internacionais para fazer voltar à circulação internacional de capitais a parte do excedente que pertence ao capital internacional. (OLIVEIRA, 1977, p. 87).

      Por outro lado, a predominância do setor III, com seu controle oligopolista sobre a economia, leva a que aumentos de produtividade em qualquer setor sejam transferidos para ele e para o setor I das economias centrais, ao qual está vinculado (OLIVEIRA, 1977), embora os mecanismos para tais transferências não sejam indicados. Isso implica extrema concentração de renda, que esteve na base do desenvolvimento do setor III.

      Sempre de acordo com Oliveira, esse padrão de crescimento conduziu à crise de 1962-1967, que se superou se aprofundando, agravando os problemas. A crise atual abre, portanto, duas possibilidades de estratégias: uma de superação efetiva do problema, mediante a internacionalização do padrão de reprodução, o que supõe o desenvolvimento do setor I; a outra é uma estratégia de simples amortização, por meio do crescimento da dívida sustentado pelo aumento de exportações (OLIVEIRA, 1977).

      Não reiteraremos aqui as críticas já feitas à Tavares, no sentido de que as razões do desenvolvimento desproporcional do setor III não devem ser buscadas na circulação (concentração do investimento, perfil de demanda); adicionaremos apenas que o recurso às tendências de investimento estrangeiro no Brasil, que se orienta crescen-temente ao setor industrial desde os anos 50, além de manter a questão no plano da circulação (movimento de capitais), não proporciona um fator explicativo suficiente: se é certo que esse investimento se dirigiu preferencialmente ao setor III, deve-se explicar por que se sucedeu dessa maneira. Se descartarmos a ideia de um complô, só resta como razão o comportamento particular que esse setor assume na formação de lucros extraordinários. Mais interessante, por ser um problema que Tavares preferiu deixar de lado, é examinar como, do ponto de vista de Oliveira, a estrutura setorial da economia brasileira e suas relações interdepartamentais afetaram sua relação com a economia internacional.

      Vimos que Oliveira considera crucial a contradição entre desenvolvimento do setor III sob o controle do capital estrangeiro, mas centrado no mercado interno, e a necessidade das empresas estrangeiras de remeter seus lucros ao exterior. Neste sentido, é enfático em negar a possibilidade de crise de realização no mercado interno, convertendo o problema em um de obtenção de divisas para a repatriação de lucros já realizados em moeda nacional. Nos encontramos, assim, com um problema de realização de mais-valia que não tem a ver com sua mudança de forma de mercadoria para dinheiro, mas se desdobra na mudança de forma que o próprio dinheiro deve realizar, na medida em que não é dinheiro mundial. Essa é a razão pela qual Oliveira contempla de passagem, como uma solução pelo menos parcial para o problema, que

      a moeda brasileira teria esse caráter, ainda que restrito à esfera regional (OLIVEIRA, 1977). Mas, de imediato, e para o período considerado, essa solução não é uma realidade, pelo que a contradição foi resolvida com o aumento da dívida sobre a base do crescimento das exportações.

      A debilidade do trabalho de Oliveira está em que, partindo da relação economia brasileira-economia mundial, busca somente na primeira a solução das contradições existentes entre elas, além de não contemplar senão em um único sentido as mudanças de forma (dinheiro, produção, mercadoria) que o capital assume em seu ciclo. Os dois problemas sérios que sua análise apresenta são os pressupostos, que não coloca jamais em discussão, de que os lucros do capital estrangeiro devem regressar ao circuito internacional e devem fazê-lo sob a forma de dinheiro mundial, materializado em divisas. Para que fosse assim, seria necessário que esses lucros, ao serem remetidos, fossem expressos internamente como superacumulação de capital, ou seja, como capital que não pode ser investido na própria economia nacional a uma taxa de lucro atrativa. Mas, nesse caso, o problema não residiria na realização (ainda que de dinheiro em dinheiro), mas na própria acumulação, cuja restrição obrigaria o capital estrangeiro a ir para o exterior, e também teria que afetar o capital nacional, o que minimiza a importância do controle estrangeiro ou não estrangeiro da produção. De resto, a saída de capital (que tem a ver com as decisões dos capitalistas individuais, o que a torna possível) só seria um problema se não fosse compensada por novas entradas de capital estrangeiro. Caso surgisse essa situação – egressos sem ingressos – seríamos obrigados a reexaminar a própria dinâmica da acumulação pelos motivos que a estariam causando. Na verdade, não é necessário fazê-lo, pois não tem sido essa a característica das relações que, em termos de exportação e importação de capitais, a economia brasileira manteve com a economia mundial nos anos de prosperidade – e graças, é certo, à especulação financeira que o Estado está proporcionando – e ainda não é assim que se apresenta no curso da crise atual.

      O segundo pressuposto – a necessidade de que o capital-dinheiro retorne à circulação nacional do capital sob a forma de dinheiro mundial, que se expressa em divisas – merece ser tratado também com cuidado. Isso só seria assim se a economia brasileira, apesar de funcionando como centro da produção de capital, não pudesse funcionar também como centro da circulação tanto de mercadorias como de dinheiro, e se constituindo como simples ponto de uma circulação originada em países avançados. Desde o momento em que o Brasil passou a funcionar como centro de circulação de mercadorias, ou seja, que diversifica, por razões internas, a composição e o destino de suas exportações, a moeda brasileira começa imediatamente a funcionar como dinheiro mundial, ainda que em um marco limitado de relações bilaterais; a expansão

      notável que o Banco do Brasil passou nos últimos dez anos é apenas consequência desse fenômeno. Isso pode perfeitamente assumir, como agora, a forma de créditos para garantir a expansão das exportações de mercadorias; mas já se observa, junto a isso, como a circulação de dinheiro originário do Brasil passa a assumir a forma de investimento direito ou indireto no exterior (o que fornece uma base ainda mais efetiva para a expansão da circulação de mercadorias).

      A diversificação da circulação é o que hoje pode permitir ao Brasil reproduzir sua dependência de maneira ampla e representa a base sobre a qual terá que resolver a contradição que a nova divisão internacional do trabalho criou entre o nível de produção e o de mercado. Marx apontou que as contradições só se resolvem se aprofundando, ou seja, ampliando o âmbito em que podem seguir se desenvolvendo; desde o momento em que isso deixa de acontecer, nada resta senão a crise final e definitiva. Como a ideia de que o capitalismo atingiu um ponto decisivo de ruptura parece estar longe das cogitações de Oliveira, não lhe restaria senão enfrentar de forma mais dialética a relação entre a circulação de mercadorias e de dinheiro e, portanto, admitir que a superação da crise brasileira atual só se dará mediante uma integração plena com a economia mundial como centro de produção e circulação de capital, sob as três formas em que completa seu ciclo: capital monetário, capital mercantil e capital produtivo.


    2. Isso parece dar razão à crítica que Gilberto Mathias (1977) faz aos autores que acabamos de comentar. Na realidade não é bem assim, pois que a crítica de Mathias se baseia em equívocos. Em primeiro lugar, Mathias aceita a afirmação sem fundamento de Tavares de que os esquemas da reprodução de Marx se estabelecem sobre a base de dois departamentos (excluindo a produção de bens de luxo), quando admite que “[...] a introdução de um terceiro setor nesses esquemas, que produz majoritariamente bens de consumo duráveis, permite sem dúvida a construção de um ‘modelo’ que melhor dá conta da evolução da estrutura industrial desses países [dependentes]”, etc. (MATHIAS, 1977, p. 68). Esse é um erro menor. Mais grave é o fato de que Mathias dispensa a conveniência de recorrer a esquemas para a análise concreta em benefício da referência ao movimento cíclico do capital; em outras palavras, contrapõe o estudo do ciclo do capital, tal como formulado na primeira seção do Livro II, ao estudo do processo de reprodução e circulação, da forma como é posto na terceira seção, incorrendo no erro metodológico de opor entre si elementos da construção teórica de Marx, em lugar de utilizá-la como um todo para a análise concreta. Finalmente, e ainda mais grave, Mathias erra ao privilegiar o ciclo do ca-

    pital produtivo sobre os demais, insistindo não só no procedimento de opor Marx a Marx (o correto é considerar a unidade dos três ciclos), como privilegiando a forma do capital menos apta para dar conta do processo de valorização29 e menos capaz para a análise da circulação geral de mercadorias, como indiquei antes; adicionamos que, por isso mesmo, a forma P...P não pode incluir a “terceira demanda” em que Mathias (1977) crê, sem perceber que essa “terceira demanda” não é mais do que uma expressão do consumo individual gerado pela mais-valia; assim, se o método de análise proposto por Mathias for aceito, a “corrente ricardiana” teria a vantagem de possuir um elemento explicativo não incluído no seu (além de ter que excluir os outros elementos indicados pelo próprio Mathias [1977]).

    Essas claudicações teóricas e tomadas de posição dogmáticas não desmerecem, porém, o interesse da obra de Mathias para o estudo da atual crise brasileira. Sua análise parte do modo como o desenvolvimento do setor III afeta duplamente a taxa de lucro no Brasil ao impedir a desvalorização da força de trabalho e do capital constante (MATHIAS, 1977). Quanto ao segundo, o desenvolvimento do setor III provoca a atrofia do setor I, o que cria obstáculos à desvalorização do capital constante e não pode ser compensado nem pela ação do Estado nem pela importação de bens de produção, visto que o mercado mundial não favorece que aumentos de produtividade obtidos no setor I dos países avançados se traduzam em preços; consequentemente, sobe a composição orgânica do capital, ao mesmo tempo em que se reduz a lucratividade do capital constante. Em relação à força de trabalho, a hipertrofia do setor III corresponde também à atrofia do setor II, freando a desvalorização daquela e, em consequência, a generalização da mais-valia relativa; ainda que isso se compense com a superexploração do trabalho, esta tem limites que, ao se manifesta-rem, freiam a taxa de acumulação e impedem a expansão do mercado (MATHIAS, 1977). Tudo isso estabelece, pois, fatores de pressão sobre a taxa de lucro a partir do mesmo processo de acumulação.

    Sem dúvidas que, a partir da taxa de lucro, Mathias avança consideravelmente, em relação aos outros autores, na percepção dos problemas que caracterizam o padrão de reprodução do capital no Brasil, atualmente em crise; no entanto, ao fazê-lo sem ter esclarecido suas determinações com base na taxa de mais-valia, ele não tira todas as consequências disso e incorre em confusão. Assim, embora perceba que o desenvolvimento do setor III não afeta diretamente a desvalorização da força de trabalho e do capital constante, e por isso não representa uma solução aos problemas


  10. Ver minha crítica a Pierre Salama, de quem Mathias toma a ideia, em “La acumulación capitalista y el subimperialismo” (MARINI, 1977).

    da taxa de lucro30, Mathias não parte desse fato para explicar esse desenvolvimento (o que o obrigaria a recorrer ao conceito de mais-valia extraordinária), que é simplesmente tomado como um dado, e se preocupa apenas com seus efeitos negativos nos mecanismos que, do ponto de vista do capital constante e variável, combatem a queda tendencial da taxa de lucro. Em sua análise, esses efeitos se expressam na atrofia dos outros dois setores de produção, o que, por não ter sido revelado o comportamento da taxa de mais-valia nos três setores, não chega a ser uma explicação e o deixa em pé de igualdade com Oliveira e em retrocesso em relação a Tavares.

    A suposição de Mathias de que os bens de produção não sofrem reduções significativas de preços no mercado mundial, independentemente de seu custo de produção ser cada vez mais baixo, é, pelo grau de absolutização em que é formulado, suscetível de provocar dúvidas. A teoria ensina que os aumentos de produtividade se transferem ou não aos preços, nesses bens como em quaisquer outros, segundo as condições da concorrência; a prática mostra que, ainda que de modo geral a redução de preços desses bens seja mais lenta que a dos produtos primários e bens intermediários, devido às diferenças de produtividade e intensidade do trabalho nos países que produzem uns e outros (e aí radica a chave para as trocas desiguais), tal redução não deixa de acontecer, particularmente em períodos em que se acentua a competição por mercados. Isso se comprova facilmente se examinamos as relações internacionais de troca no início desta década; naturalmente, a elevação dos preços do petróleo e a subsequente agudização da inflação mundial modificaram a situação. O essencial – e Mathias deve ter tirado as consequências de suas formulações em relação à atrofia dos setores I e II – é que, nas economias dependentes de maior desenvolvimento relativo, a busca por superlucros e a elasticidade da demanda que corresponde à esfera alta de circulação orientam os investimentos ao setor III – em


  11. Em vez disso, como indiquei anteriormente, atua no sentido de deprimir a taxa geral de lucro. Note-se que, ao estudar os mecanismos de compensação da queda da taxa de lucro, Marx aponta o desenvolvimento da produção de luxo como um deles (MARX, 2017b). No entanto, ele está se referindo aos ramos de produção, de bens suntuários ou não, que se baseiam no aumento da superpopulação relativa e, por isso, graças à redução dos salários abaixo do nível médio, têm como base uma baixa composição orgânica do capital, “[...] de modo que, nesses ramos de produção, tanto a taxa como a massa do mais-valor são extraordinariamente elevadas” (MARX, 2017b, p. 276); a equalização da taxa de lucro é responsável por fazer com que o conjunto do capital social se beneficie dessa situação. Isso ainda é válido hoje, mas em menor escala: o setor III ao qual nos referimos aqui não é mais constituído principalmente, como na fase de desenvolvimento capitalista referida por Marx, de ramos de baixa composição orgânica, derivados da superestimação de produção artesanal ou semiartesanal (os produtos “feitos à mão” de nossos dias, na indústria de chapéus, calçados, roupas em geral, por exemplo), mas de ramos com alta composição orgânica, cuja maior parcela de valor agregado vem de sua superioridade tecnológica e se traduz em mais-valia extraordinária. Isso é particularmente verdadeiro se nos atermos ao setor III, conforme definido por Oliveira, Tavares e pelo próprio Mathias, ou seja, referente à produção de bens de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos.

    particular, estrangeiros, pelas características próprias do setor em termos de produção de mais-valia e de condições de distribuição criadas pela superexploração do trabalho. Com isso, se eleva a composição orgânica desse setor a um ritmo mais rápido que os demais, incluindo a seu favor o mecanismo de nivelamento da taxa de lucro. Ambos os fatores – a drenagem de mais-valia que resulta do nivelamento dos lucros em um setor com alta composição orgânica e o que deriva do lucro extraordinário (que, como vimos, está diretamente ligado às condições de mercado) – deprimem a taxa de lucro nos demais setores (com exceção dos ramos do setor I que produzem fundamentalmente para o setor III): nesse sentido, e somente nesse sentido, é que a atrofia de I e II pode ser atribuída ao desenvolvimento do setor III.

    A internacionalização do setor I, ou seja, a substituição de importações de bens de produção, tenderia a corrigir esse desequilíbrio básico ao elevar a composição orgânica desse setor em relação ao setor III, mas não seria capaz de, por si só, depreciar o capital constante, como supõe Mathias. É pouco provável que os preços dos bens de produção fabricados internamente tenham estado abaixo dos preços vigentes no mercado mundial (basta ver o que acontece com os bens que o setor III produz). Em consequência, a desvalorização do capital constante e seu efeito na taxa geral de lucro no Brasil seguiriam dependentes das condições impostas, nesse terreno, pelas economias capitalistas avançadas, ainda que essa dependência específica deixasse de ser viabilizada como prioridade, como é agora, pela via da balança comercial. Afirmando o contrário, Mathias, ainda que de maneira diferente, leva água ao moinho autonomista de Oliveira e recua em relação a Tavares, que é muito mais cética quanto a essa possibilidade de superação da dependência (tanto que, para ela, essa via nem existe). As considerações de Mathias sobre a desvalorização da força de trabalho criam dúvidas ainda mais sérias. Deixando de lado a influência do setor III na determinação da taxa de lucro do setor II, pelo que vale o exposto, devemos nos preocupar com a forma como Mathias aborda o problema da superexploração do trabalho enquanto mecanismo que garante essa desvalorização. Não insistiremos na imprecisão conceitual com que aborda a superexploração (igual à mais-valia absoluta e, mais adiante, igual à prolongação e intensificação do trabalho, sem referência à relação entre o salário e o valor da força de trabalho), nem tampouco o fato de que a superexploração não desvaloriza a força de trabalho, mas a deprecia; vamos ao essencial: o fato de considerar a superexploração como a expressão de uma fase que o capitalismo brasileiro vive, portanto suscetível de dar lugar a outra fase com a introdução de métodos voltados ao aumento da produtividade que permitam a geração de mais-valia relativa. Assim como fez em relação à transferência dos aumentos de produtividade aos preços dos bens de produção no mercado mundial, Mathias incorre, aqui, em

    “simplificações abusivas”, tanto no plano teórico como no histórico. O recurso à produtividade do trabalho, como método de extração de mais-valia, não é algo que está por vir para quando se esgota a possibilidade de extraí-la com base na superexploração, mas é justamente porque esse recurso já é amplamente utilizado que a superexploração no Brasil se agravou. É o que examinei em outro lugar, ao indicar como, ao influenciar uma estrutura produtiva baseada na superexploração, o aumento da produtividade do trabalho leva à aceleração do crescimento do exército industrial de reserva, o que torna possível uma maior pressão do capital sobre as condições de trabalho e remuneração dos trabalhadores31. O fato de, junto com isso, a burguesia recorrer ao Estado para quebrar a resistência operária e tornar ainda mais eficaz a ação do exército de reserva (eliminando, por exemplo, a estabilidade de emprego, fixando tetos salariais, suprimindo o direito à greve etc.) não modifica o problema em seus termos essenciais. Consequentemente, para que os trabalhadores brasileiros consigam superar a superexploração, eles terão de fazê-lo – ao contrário do que pensa Mathias – derrubando a economia dependente que existe no Brasil, por maiores que sejam os avanços que o regime capitalista de produção apresenta.


    * * *


    Na medida em que constituem um momento definido do processo de produção do edifício teórico de Marx, os esquemas de reprodução não podem ser isolados dos demais componentes que intervêm nesse processo, nem se contrapor a eles. É a partir da teoria do valor e em função da teoria da mais-valia que é estabelecida sua conexão com a lei da queda tendencial da taxa de lucro, com o que Marx coroa seu trabalho. Mas, pelo nível de abstração em que se situam, os esquemas de reprodução só têm validade sobre a base dos pressupostos em que se baseiam; qualquer mudança neles


  12. Cf Dialética da Dependência (MARINI, 2011). Polemizando comigo a respeito desse ponto, Mathias comete erros que não sei se atribuo à má compreensão ou má-fé. Assim, sustenta que pretendo caracterizar “[...] o capitalismo latino-americano pelo fato de que isso [sic] dispensa o industrial de se preocupar em aumentar a produtividade do trabalho para [...] depreciar a força de trabalho, etc” com base em um trecho do texto acima mencionado. A frase se encontra lá, de fato, mas não como uma caracterização geral do capitalismo latino-americano, mas da industrialização realizada até 1950, isto é, um período que, de maneira nada feliz, Mathias chama de “reinserção” da economia latino-americana à economia capitalista mundial. No parágrafo seguinte, no entanto, meu texto se volta às condições que obrigam os capitalistas industriais a enfrentar a necessidade de recorrer ao aumento da produtividade do trabalho e indica de que maneira isso ocorreu, ou seja, como se verificou a transição entre um modo de acumulação baseado essencialmente na superexploração do trabalho a outro, em que a superexploração é a base sobre a qual incide o aumento da produtividade do trabalho, cf. em particular p. 171 e o último parágrafo do texto em questão.

leva, necessariamente, ao seu questionamento global. O vício básico das polêmicas suscitadas reside na violação dessa norma e no fato de confundirem o que é uma abstração teórica com a representação histórico-formal do sistema capitalista.

A utilização dos esquemas de reprodução para a análise do capitalismo dependente, que examinamos nessa ocasião, não apresenta esse inconveniente. O fato de serem tomados como uma referência teórica entre muitas e de estarem integrados a um quadro categórico mais amplo é uma virtude, pois permite levantar problemas que os próprios esquemas não podem dar conta. No entanto, para que a análise seja bem-sucedida, o fio lógico da construção teórica de Marx não pode ser quebrado, sob pena de incorrer num ecletismo que invalida a capacidade explicativa dos esquemas e não os torna mais úteis que qualquer outro instrumental analítico, como, por exemplo, o de tradição cepalina. Analogamente, uma correta aplicação dos esquemas aos problemas da realidade latino-americana exclui raciocínios unidirecionais – e, por isso mesmo, unilaterais – e exige a consideração dialética de suas relações com a economia mundial, bem como os movimentos contraditórios que, tanto no abstrato como no concreto, caracterizam o ciclo do capital.

No entanto, essa utilização por parte dos autores que analisamos aqui, ao privilegiar o objeto específico dos esquemas – as relações intersetoriais e, com isso a circulação da massa de valores de uso e de valor produzida – conduz ao equívoco de sobrepor a circulação à acumulação e mesmo à reprodução do capital. Em Tavares, particularmente, isso leva a recuperar formulações que até mesmo Ricardo rechaçaria, como as teses malthusianas sobre o consumo improdutivo, ainda que estas tenham sido impostas novamente na economia neoclássica; mais que por serem erros teóricos, os equívocos de Tavares são inaceitáveis na medida em que encobrem uma visão apologética do capitalismo em geral e do brasileiro em particular. No fundamental, essa visão deriva de sua tese em relação à expansão dos lucros sobre a base da redução geral de custos, desvinculada da produção de mais-valia, e compatível com a elevação dos salários além de qualquer limite que possa ser imposto pelo valor da força de trabalho em sua comercialização. Na perspectiva de Tavares, o aumento dos lucros tem como causa principal a desvalorização do capital constante, alcançada como efeito da produtividade do próprio capital constante; o fato dessa produtividade ser, em última análise, a produtividade do trabalho e que essa desvalorização é o resultado da desvalorização da força de trabalho desparece como por magia e, com isso, o caráter explorador do sistema, que poderia continuar seu desenvolvimento livre das determinações que surgem da produção de mais-valia, ou seja, da exploração do trabalho, se preocupando apenas com os problemas colocados pela realização dos produtos.

Em Oliveira e, de maneira mais sutil, em Mathias, essas questões reaparecem.

Apesar de sua pretensão de realizar um estudo endógeno da acumulação no Brasil, Oliveira não leva realmente em conta a acumulação em si e sua mola vital, a exploração do trabalho, e justamente por isso sua análise acaba por privilegiar as relações da economia brasileira com a economia mundial (não importa, aqui, se se baseia em um esquema setorial) e, finalmente, foca o problema da realização do dinheiro nacional em dinheiro mundial como questão central; preso nessa contradição aparente, toda a análise de Oliveira conclui em direção à solução que representaria a busca de um esquema setorial mais equilibrado, graças ao desenvolvimento do setor I, que mal disfarça o retorno do autor ao redil das ilusões sobre o desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil que alimentaram as elaborações ideológicas do pensamento de-senvolvimentista. A crítica de Mathias, por sua vez, se circunscreve à taxa de lucro, ela mesma resultado da concorrência, sem esclarecer as questões próprias da acumulação enquanto tal, ou seja, como fator de produção imediato, não indo ao fundo do problema. Consequentemente, Mathias não só incide no desvio autonomista de Oliveira, como, ao confundir a superexploração do trabalho com extração de mais-valia absoluta, e esta com um determinado período histórico, alimenta ilusões na entrada do capitalismo brasileiro em uma fase em que este não se distinguiria essencialmente do capitalismo tal como se desenvolveu nos grandes centros imperialistas.

Os três autores analisados encontram-se, no final do caminho, destacando a importância do Estado em abrir caminho para as tendências progressistas que eleva-riam o desenvolvimento capitalista brasileiro a um patamar superior: reorientação das tendências do mercado, maior equilíbrio entre os setores da produção, passagem para o estágio da mais-valia relativa etc. O esforço de Mathias por recolocar o problema do Estado, ressaltando que sua ação não escapa às leis gerais que regem o capitalismo brasileiro, ainda que represente um passo adiante em relação ao pessimismo de Tavares e constitua a parte mais interessante e bem escrita de seu trabalho, não é suficiente para situá-lo de maneira correta. E não é pelo fato de que essas leis não estão claramente estabelecidas em sua análise, que salta das relações relativas à teoria do valor para aquelas relativas à teoria do lucro, sem se deter nas relativas à teoria da mais-valia e da acumulação de capital. No entanto, esse vínculo é essencial para uma adequada compreensão do capitalismo brasileiro e do papel do Estado em seu desenvolvimento.

O marxismo é uma teoria complexa, que permite uma análise extremamente rica das realidades concretas a que se aplica. O esquematismo e a aridez que o leitor encontra nesse ensaio não invalidam essa proposição: nosso objetivo, como apontamos no início, consistia apenas em verificar a possibilidade de utilizar os esquemas de reprodução na análise concreta. Se, quando considerados à luz da produção e rea-

lização de mais-valia, ficar claro que esses esquemas não têm validade própria e só constituem uma ferramenta analítica útil se incorporarem o conjunto das formulações marxistas, nosso propósito terá sido plenamente alcançado.


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