Ruy Mauro: Intelectual Revolucionário

Emir Sader*


Ruy Mauro Marini é o melhor exemplo de intelectual revolucionário na América Latina. Intelectual revolucionário porque pensou a realidade de forma rigorosa e do ponto de vista da sua transformação revolucionária. Intelectual revolucionário porque não apenas pensou a realidade do ponto de vista da sua transformação revolucionária, mas foi sempre um militante, um dirigente revolucionário, vinculado a organizações revolucionárias da América Latina. Trabalhou na construção da teoria revolucionária do nosso tempo e na construção da força revolucionária do nosso tempo.

Tendo se formado na Escola de Administração Pública, no Rio de Janeiro, Ruy Mauro se desenvolveu em um ambiente marcado pelo nacionalismo de Getúlio Vargas e pela linha nacional-desenvolvimentista do Partido Comunista Brasileiro. Esta galvanizava a grande maioria da intelectualidade brasileira, assim como o conjunto da esquerda, seja no movimento sindical ou no estudantil.

Ruy Mauro foi influenciado por um sociólogo brasileiro que foi seu professor –Guerreiro Ramos –, assim como por Eric Sachs, imigrante alemão, de formação lu-xemburguista, que terá influência determinante na organização em que Ruy Mauro militou no Brasil – a POLOP (Política Operária). Em viagem a Paris, Ruy Mauro pôde desenvolver seu estudo do marxismo e, no retorno, engajar-se definitivamente na militância política, que para ele esteve sempre associada à elaboração teórica crítica e alternativa.


Teoria e prática revolucionárias

Ao contrário da grande maioria dos intelectuais de esquerda do continente, Ruy Mauro não pode ser incluído na categoria que Perry Anderson chamou de “marxista ocidental”, isto é, uma elaboração teórica desvinculada da prática política e dos seus problemas centrais. A obra de Ruy Mauro resgata de forma articulada, na melhor tradição marxista, a economia, a história, a política e a ideologia, recompondo essa totalidade que caracteriza o marxismo e faz dele – nas palavras de Sartre – “[...] a filosofia insuperável do nosso tempo”. Tanto sua obra teórica está voltada para o deci-


* Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-

-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas na mesma instituição. Presidente do Comitê Científico Consultivo do Programa MOST da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

framento da realidade, na perspectiva da ação militante, como sua militância política esteve sempre iluminada pela teoria revolucionária.

Chegado ao Brasil de volta da Europa, Ruy Mauro buscou compreender a natureza e o momento vivido pelo capitalismo brasileiro. O golpe de 1964 é o momento privilegiado para a compreensão desses fenômenos, porque pega o capitalismo brasileiro fazendo uma grande opção no processo de acumulação de capital. A realização através da exportação e da esfera alta do consumo passam a ter papel central no processo de acumulação, fenômenos que são captados brilhantemente por Ruy Mauro e expressados mais adiante em sua Dialética da dependência.

Mas, antes disso, em dois artigos que circularam amplamente em publicações clan-destinas no Brasil – e no primeiro número da revista Teoria e Prática –, Ruy Mauro captou as razões que tinham levado ao golpe militar no Brasil. Com uma esquerda relativamente mais débil que as de outros países da região – como a da Argentina, do Chile e do Uruguai –, o Brasil acabou tendo um golpe de forma relativamente precoce. A análise das contradições e conflitos do capitalismo brasileiro lhe permitiu perceber o confronto entre as necessidades do processo de acumulação e o processo de mobilização social e de reivindicação social e política, na base da profunda crise que terminou desembocando na sua resolução conservadora mediante o golpe militar de 1964. Ao contrário do pensamento hegemônico naquele momento, Ruy Mauro pôde perceber como a democracia não era funcional ao desenvolvimento capitalista brasileiro. Ele percebeu como os espaços democráticos conquistados pelo movimento popular – extensão do sindicalismo urbano, rural, do funcionalismo público e até mesmo dos setores da baixa oficialidade das forças armadas – o colocavam em crise. Essa análise era de tal forma correta, que a ditadura militar, ao contrário do que alguns previram, não significou um retrocesso na expansão econômica, mas seu redirecionamento, voltando-se mais para o mercado externo e para as altas esferas do consumo. Demonstrou-se, então, que o que interessa ao capitalismo é a expansão do mercado, não importa se concentrando renda, e, em um caso como o brasileiro nesse momento, a concentração de renda foi um mecanismo de aceleração da expansão econômica, fortalecendo a capacidade de consumo dos setores com maior poder aquisitivo. Ruy Mauro tornou-se, assim, leitura essencial para a compreensão não apenas do significado do golpe militar de 1964 no Brasil, mas também do caráter da

política econômica colocada em prática pela ditadura militar.

Ainda no Brasil, como dirigente da POLOP, Ruy Mauro foi detido e brutalmente torturado pelo CENIMAR, serviço repressivo da Marinha. Saiu posteriormente do Brasil para o Chile, trabalhando na Universidade de Concepción e ligando-se imediatamente ao movimento que tinha características similares às posições da POLOP

e que ele defendia – Movimento de Esquerda Revolucionária, MIR.

No mesmo estilo que havia desenvolvido no Brasil, Ruy Mauro seguiu combinando admiravelmente seu trabalho teórico com as responsabilidades de militância política. Ocupou cargos de direção no MIR chileno ao mesmo tempo em que desen-volvia sua obra teórica, dava cursos, dirigia teses e tinha papel destacado de direção no Centro de Estudios Sócio-Económicos (CESO), da Universidade do Chile, onde se agruparam intelectuais como André Gunder Frank, os brasileiros Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, Marco Aurélio Garcia, Emir Sader, os chilenos Marta Har-necker, Guillermo Labarca, Cristobal Kay, Silvia Hernandez, Roberto Pizarro, José Bengoa, os cubanos German Sanchez, José Bell Lara, entre outros.

Sua obra desemboca no seu livro mais importante, a Dialética da dependência. Me lembro que Ruy Mauro havia pedido um tempo de férias para ir ao México, em pleno turbilhão de 1972, com as ofensivas golpistas da direita chilena e as contra-ofensivas do movimento popular. Começamos a ficar preocupados, na universidade e no MIR, quando havia passado uma, depois duas semanas, e ele não retornava e não mandava notícias. De repente Ruy Mauro reaparece, trazendo consigo um manuscrito, que era simplesmente o texto da Dialética da dependência. Isto é, em meio ao furacão da luta de classes, Ruy Mauro encontrou o tempo e a forma de se concentrar para escrever uma das obras primas do pensamento marxista contemporâneo, revelando como é sempre possível produzir teoricamente e se dedicar à militância política.


Dialética da luta de classes contemporânea


O conceito chave de superexploração do trabalho permite decifrar questões chave da história contemporânea e da forma que assume a luta de classes. Pode-se dizer que, sem esse conceito, se passaria ao largo das particularidades desse processo na periferia capitalista, mas – e daí sua surpreendente atualidade – também da extração do valor nos países do centro do capitalismo, no período histórico marcado pela desregulação e pela deslocalização dos capitais, com a correspondente constituição de um mercado de trabalho no plano internacional marcado pela precariedade e pela mobilidade acentuada dos capitais.

Até a Dialética da dependência, o pensamento de esquerda da América Latina vivia dilemas que não conseguia resolver, preso em contradições difíceis de resolver. Uma parte das análises partia dos fundamentos do marxismo, sem, no entanto, conseguir dar conta da situação específica das formações sociais da periferia do capitalismo, e sem uma compreensão histórica da configuração assumida pelo sistema capitalista internacional e do lugar particular ocupado por essas formações, com suas

consequências concretas. Por outro lado, análises da formação histórica concreta dos nossos países privilegiavam a construção do Estado nacional, dos projetos de nação, as relações com o sistema internacional, com os centros do capitalismo, sem conseguir articular essa abordagem com os processos de acumulação de capital e de enfrentamento de classes.

A obra de Ruy Mauro retira precisamente daí sua originalidade. Ela vem da sua capacidade de compreender a constituição das nossas formações sociais de forma indissoluvelmente intrincada com a constituição do sistema capitalista internacional, no interior do qual nascem, como um de seus elementos constitutivos e, ao mesmo tempo, condicionados por esse tipo de inserção subordinada.

O modelo de acumulação de capital das sociedades dependentes latino-america-nas é enfocado na sua dupla ótica, ambas intrinsecamente articuladas: fornecedor de fatores de produção que permitem a reprodução de capital nas economias centrais do capitalismo, o que, ao mesmo tempo, condiciona as burguesias da periferia, inferio-rizadas na competição pelo mercado internacional, a induzir em nossas formações o processo de superexploração do trabalho. Integra-se, assim, o processo de acumulação em escala mundial e o processo de acumulação a nível nacional, com as características típicas da extração do excedente que a caracteriza.

Esse marco teórico permitiu, por um lado, a consciência de que os interesses da chamada “burguesia nacional” não tinham contradições suficientes com os do impe-rialismo e nem sequer do latifúndio para que se pudesse estabelecer uma aliança com os trabalhadores da cidade e do campo centrada em um modelo de desenvolvimento econômico em ruptura com o grande capital internacional e com a propriedade monopolizada da terra. Por outro, o marco definiu um campo dos trabalhadores da cidade e do campo como a força motriz das transformações anticapitalistas, com a classe operária como seu setor hegemônico, ao mesmo tempo em que caracterizou como o desenvolvimento econômico possível na América Latina se daria somente com o aprofundamento da dependência e da desigualdade social. E, dessa forma, as burguesias de cada país se desnacionalizariam cada vez mais, atrelando cada vez mais seus interesses e destinos aos do mercado internacional.

A visão de Ruy Mauro permite, ao mesmo tempo, entender o esgotamento da capacidade do capitalismo latino-americano de retomar o desenvolvimento de forma sustentada, com distribuição de renda e expansão minimamente orgânica das forças produtivas. Seus ciclos expansivos, além de curtos, aprofundam o caráter desigual do desenvolvimento e deformam cada vez mais sua estrutura econômica, com consequências de profundos desequilíbrios no plano social.

A atualidade de Ruy Mauro Marini


A atualidade da obra de Ruy Mauro Marini se deu no marco do período hegemoni-zado pelo capital financeiro, na sua modalidade de capital especulativo. A desnacio-nalização das burguesias nativas se deu por intermédio da sua financeirização, estas estreitamente vinculadas aos compromissos internacionais dos governos, endivida-dos no marco das políticas de ajuste do FMI.

Mas o principal tema de sua obra que revela mais profundamente sua atualidade é o da superexploração do trabalho. Em primeiro lugar porque a globalização liberal acentuou a implementação de modelos de acumulação centrados na exportação e na esfera alta do consumo – agregando a eles a esfera de acumulação financeira, com suas típicas contradições – como contrapartida dos mecanismos de exploração da força de trabalho que bloqueiam a possibilidade de desenvolvimento de um mercado interno de consumo de massas.

Esse mecanismo é o que explica que a América Latina tenha visto retroceder fortemente o caráter primário exportador de suas economias. Modelos voltados para a exportação, em época de desregulação neoliberal, só podem abrigar-se de volta nos setores em que desfrutam das malfadadas “vantagens comparativas”. Daí as batalhas dos governos da região para desbloquear os mercados de produtos primários – particularmente os agrícolas –, como se isso fosse representar um avanço significativo de suas economias. A soja passou a ser a grande estrela da pauta exportadora de grande parte dos países da região, em clara regressão dos espaços conquistados anteriormente no setor industrial – e sendo o Brasil o melhor exemplo dessa triste regressão. O aspecto mais diretamente vinculado à extração do excedente nas teses da superexploração do trabalho se revelou dramaticamente o mais atual da obra de Ruy Mauro. O Consenso de Washington trouxe no seu bojo as teses da “flexibilização laboral”, isto é, estender as propostas de desregulação para as relações de trabalho. Essas significaram simplesmente a precarização ainda maior das relações de trabalho, com a expropriação generalizada dos direitos dos trabalhadores, imposição de contratos provisórios, suspensão do pagamento de indenização por despido e todas

as formas de incentivo à informalização das relações de trabalho.

Os direitos trabalhistas, conquistados a duras penas através de longas lutas do movimento sindical, foram sendo atingidos de forma privilegiada pelas políticas neoliberais, revelando da forma mais crua seu caráter classista. Como um de seus resultados, na América Latina a maior parte dos trabalhadores não têm carteira de trabalho assinada – nunca tiveram ou deixaram de ter. Assim, não são cidadãos, no sentido de serem sujeitos de direitos econômicos e sociais. Não podem associar-se,

não pode acorrer à justiça do trabalho, não possuem direitos elementares, como um nível mínimo de remuneração salarial, férias, décimo terceiro salário, licença maternidade e todos os direitos previdenciárias e assistências conquistados nas décadas anteriores.

Desde que o capitalismo passou do seu ciclo longo expansivo do segundo pós-guer-ra ao seu atual ciclo longo recessivo, a desregulação, típica das políticas neoliberais, havia incentivado amplamente a transferência de capitais da esfera produtiva para a especulativa. Esta passou a aparecer como a desembocadura dos capitais excedentes, característica dos períodos recessivos do capital. O forte processo de reconcentração de renda resultado da globalização neoliberal, acentuou esse processo de transferência ao limitar ainda mais a capacidade de consumo da esfera baixa do mercado.

Como uma de suas consequências mais claras, o capitalismo central passou de décadas de pleno emprego a níveis altos de desemprego – ausentes nas principais economias da Europa ocidental ao longo de todo o ciclo longo expansivo. A mudança nas relações de força entre capital e trabalho, decorrente do ciclo recessivo, dos níveis de desemprego, a desaparição do campo socialista e seus reflexos na esquerda, assim como a recessão profunda nos países periféricos, promoveram a imigração maciça de mão-de-obra de países da periferia para países do centro do capitalismo.

Essa mão de obra, além daquela explorada pela chamada “deslocalização”, com a utilização extensiva de força de trabalho em países como o México – com as chamadas “maquilas” –, a China, a Indonésia, a Índia, o Brasil, entre outros – permitida pela criação de uma espécie de mercado mundial de mão de obra – generalizou a superexploração do trabalho como modalidade essencial do processo de acumulação de capital na era neoliberal. No próprio ciclo curto expansivo da economia estadunidense dos anos 1990, grande parte dele foi devido aos mecanismos de enorme aumento de produtividade, sem elevação significativa do nível de emprego e de renda dos trabalhadores, devido à “flexibilização laboral”, que teve como uma de suas consequências a elevação dos EUA a país com a maior jornada laboral do planeta.

Essa extensão se dá porque, conforme os trabalhadores mudam ainda mais constantemente de emprego nesse país, pelas facilidades que a desregulação laboral permite, perdem em média 14% dos seus salários nessa mudança. Buscam compensação agregando novos empregos, elevando sua jornada de forma desmesurada e aumentando a mais-valia absoluta. Os maiores empregadores de mão de obra nos EUA são a Wall Mart e suas rigorosas proibições de sindicalização, entre outras normas coi-bidoras da defesa do poder de negociação dos trabalhadores, e a Man Power, que intermedia o aluguel de mão de obra temporária – de que os entregadores de pizza no fim de semana são o caso paradigmático.

Por outro lado, na periferia capitalista – nos países citados, entre outros – a abertura para o ingresso de capitais estrangeiros e a sua busca, para recompor os déficits públicos, lançou mão abertamente da oferta de força de trabalho em condições ainda mais vantajosas para o grande capital internacional, favorecendo ainda mais as condições de superexploração do trabalho. A competição ganha pela China contra o México espelha bem essa situação. Apesar da proximidade com os EUA e da oferta de mão de obra barata – sobretudo de mulheres e crianças sem sindicalização –, o México viu esvaziar em grande parte suas indústrias fronteiriças com o vizinho do norte, porque a China ofereceu condições ainda melhores de exploração da mão de obra, apesar da sua distância com os EUA. Tudo às custas da expropriação intensiva e extensiva da força de trabalho.

O setor social que mais cresce no mundo – segundo os dados da pesquisa da ONU sobre as grandes metrópoles – é justamente o subproletariado da periferia das grandes metrópoles. Um setor social submetido às piores condições de exploração, sem direitos, sem socialização através de sindicatos, de movimentos sociais, de educação pública, em meio à violência e ao narcotráfico, adotando religiões evangélicas ou islâmicas como formas contemporâneas de alienação.

Sem a organização, a consciência social e a incorporação dessas jovens gerações, dificilmente a esquerda poderá reconquistar força de massas e voltar a protagoni-zar os grandes combates políticos do novo século. Sem isso, o próprio Fórum Social Mundial seguirá privilegiando os direitos do cidadão e do consumidor, como substitutos aos grandes temas do mundo do trabalho – particularmente ausentes desses foros. Sem isso, será praticamente impossível imprimir um caráter anticapitalista à luta antineoliberal – objetivo pelo que certamente Ruy Mauro estaria lutando com todas suas forças – de teórico e de militante revolucionário.