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ARTIGOS (DOSSIÊ)
Dependência e Neodependência no Século XXI
Adrián Sotelo Valencia
*
“É necessário retomar o o do pensamento crítico da esquer-
da naquele ponto em que ele alcançou o seu nível mais alto e
que corresponde à teoria da dependência. Impõe-se, de facto,
um empenho na construção de uma teoria marxista da de-
pendência, recuperando sua primeira oração dos anos vinte
e a que se registrou a partir de meados dos anos sessenta.
Ruy Mauro Marini (1992, p. 100-101)
Resumo: O objetivo deste artigo é apoiar a validade analítica e explicativa da teoria marxista da depen-
dência (TMD) no século XXI, considerando seu potencial metodológico e teórico, conceitual e categó-
rico para apreender, sistematizar e diagnosticar as causas, dinâmicas, comportamentos e contradições
dos fenômenos contemporâneos do capitalismo mundial e dependente em um tempo de decadência
histórica, sistêmica e estrutural.
Palavras-chave: Dependência. Neodependência. Superexploração. Desmedida do valor. Crise.
Resumen: El presente artículo tiene por objetivo sustentar la vigencia analítica y explicativa de la teoría
marxista de la dependencia (TMD) en el siglo XXI, considerando su potencial metodológico y teórico,
conceptual y categorial para aprehender, sistematizar y diagnosticar las causas, dinámicas, comporta-
mientos y contradicciones de los fenómenos contemporáneos del capitalismo mundial y dependiente en
tiempos de decadencia histórica, sistémica y estructural.
Palabras clave: Dependencia. Neodependencia. Sobreexplotación. Valor excesivo. Crisis.
Abstract :is article aims to support the analytical and explanatory validity of the Marxist eory of
Dependence (MTD) in the 21st century, considering its methodological and theoretical, conceptual and
categorical potential to apprehend, systematize and diagnose the causes, dynamics, behaviors and con-
tradictions of the contemporary phenomena of world and dependent capitalism in its time of historical,
systemic, and structural decadence.
Keywords: Dependency. Neodependence. Overexploitation. Excessive value. Cris.
* Doutor em Estudos Latino-Americanos da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidad
Autónoma do México (UNAM). Professor Titular e pesquisador do Centro de Estudios Latinoamerica-
nos (CELA) da Facultad de Ciencias Políticas y Sociales da UNAM. Correio eletrônico: adriansotelo@
politicas.unam.mx.
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Introdução
A teoria marxista da dependência (TMD) surgiu e se desenvolveu ao longo das dé-
cadas de 60 e 70 do século passado, no esforço de compreender os problemas que a
América Latina apresentava em matéria de desenvolvimento, atraso, subdesenvolvi-
mento e dependência. Duas vertentes surgiram naquela época: a do enfoque da de-
pendência e a teoria – a primeira em uma conguração teórica eclética, e a segunda
alimentada essencialmente pela crítica da economia política marxista, embora numa
primeira fase inuenciada pelo estrutural-funcionalismo. A neodependência expres-
sa dois fenômenos epistêmicos: a extinção das abordagens ecléticas da dependência e
a atualização da teoria marxista da dependência para o século XXI.
O capitalismo contemporâneo sob o locus da TMD
O par “dependência e neodependência” responde a dois momentos da dependência:
o original, desde seu surgimento e desenvolvimento nas décadas de 1960 e 1970, e
o atual, que apreende e analisa os fenômenos globais e latino-americanos em curso.
Duas vertentes teórico-metodológicas surgiram na sua gênese: a) a do “enfoque
ou “escola da dependência, e b) a teoria da dependência.
A primeira, uma construção eclética baseada em diferentes disciplinas e correntes
ideológicas (funcionalismo, estruturalismo, dualismo, keynesianismo e teoria neo-
clássica), nega a necessidade de se estudar a categoria dependência como objeto de
estudo e, em geral, a concebe como um fenômeno conjuntural que pode ser “supe-
rado” dentro do próprio capitalismo. Os escritos de Cardoso (1970) e outros autores
apontam nessa direção.
A segunda perspectiva ou corrente, em geral fundada no marxismo e na crítica da
economia política, ao contrário, erige a dependência como objeto de estudo e pesquisa,
e coloca como objetivo construir uma teoria da dependência, mais exatamente uma
teoria marxista da dependência. Os escritos e contribuições conjuntas de eotônio
dos Santos, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini e outros autores, como os chilenos
Orlando Caputo e Roberto Pizarro (1972), estão inscritos nessa perspectiva teórica.
Apesar da diversidade temática de ambos os enfoques – e ao contrário das ve-
lhas teorias do desenvolvimento que oresceram após a Segunda Guerra Mundial,
principalmente nos Estados Unidos (EUA) – seu denominador comum consiste em
considerar a dependência como uma característica própria do capitalismo nos países
da periferia, particularmente na América Latina e no Caribe, mas não se limita a
ele. Não se trata apenas desse reconhecimento supercial – que às vezes se reduz a
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
uma diferença linguística – de um fenômeno global, histórico-estrutural, ao lado de
outros, como os problemas relativos ao poder político, ao Estado, às classes sociais e
suas lutas.
Ao longo da vigência da primeira corrente (entre 1965-1994), quando seu re-
presentante, F. H. Cardoso, assume a presidência do Brasil, a dependência foi pra-
ticamente trocada pela interdependência e pelo neoliberalismo. O que permanece e
transcende até o presente é a TMD que é promovida por novas gerações de intelec-
tuais, estudantes e professores em várias partes e instituições do mundo.
A primeira corrente se esgotou devido às suas premissas, hipóteses e teses teóricas
terem se tornado completamente inviáveis; particularmente seu postulado central: o
do “desenvolvimento autônomo do capitalismo” na periferia.
Tudo isso foi feito sob a política de um Estado capitalista dependente interventor.
Mas o que aconteceu a partir da crise de meados da década de 1960 e durante as dé-
cadas de 1970 e 1980, foi que aumentaram as condições estruturais de dependência,
subdesenvolvimento e atraso, e se aprofundaram, para a grande maioria da popula-
ção, a pobreza, o desemprego e a desigualdade. Isso vai ao encontro de uma das teses
nucleares criadas por Marini (1992, p. 89):
[...] quanto mais cresce a economia dependente, mais ela aguça as diferenças es-
pecícas que a separam do capitalismo existente nos países avançados. Derivar daí uma su-
posta incapacidade de crescimento da economia dependente, que condenaria à estagnação
econômica, representa um erro grosseiro. Ao que a fórmula aponta é simplesmente a noção
de que, em uma situação de dependência, quanto mais desenvolvimento capitalista, mais de-
pendência.
Em um amplo contexto histórico durante os anos 1980, como mostra Mari-
ni (1996, p. 59) em relação à América Latina, se produziu “[...] o regresso de países
(sob métodos de gestão plenamente capitalistas, diferentemente do que se sucedia
antes) à forma simples de divisão social do trabalho que prevalecia no século XIX e
que envolvia a troca de bens primários por bens manufaturados. Esse fenômeno de
conversão – com exceção do México, que se especializou na produção manufatureira
e nas atividades maquiladoras de marcado perl transnacional (SOTELO, 2014) – foi
implantado no Chile e depois se generalizou para outros países, como Argentina e
Brasil, este último a partir de meados da década de 1990, em pleno auge do neoli-
beralismo. Esse processo macroeconômico e político-social foi caracterizado como
uma desindustrialização que priorizou a produção primária para exportação sob a
inuência da intensa aplicação das políticas neoliberais recomendadas pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), em conluio com governos e
burguesias dependentes da América Latina.
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Apesar de o Brasil ter desenvolvido seu coeciente de industrialização mais
do que qualquer outro país da região, os dados de 2021 do World Integrated Trade
Solution (WITS) revelam que, em seu padrão total de exportação (280,815 bilhões de
dólares), as matérias-primas respondem por 55,72% do total, o equivalente a 156,478
bilhões de dólares, seguidas pelos bens intermediários, com 24,99%, o equivalente a
70,175 bilhões de dólares. Por outro lado, importou bens de capital por 76,7 bilhões
de dólares (32,68%) e bens intermediários (em alguns casos muito semelhantes a
matérias-primas) por um valor de 86,095 bilhões de dólares, equivalente a 36,68%.
A mesma fonte indica que, no mesmo ano, do total de suas exportações (494.596
milhões de dólares), o México exportou bens de capital no valor de 216.890 milhões
de dólares (43,85%), seguido por bens de consumo no valor de 128.187 milhões de
dólares (25,92%), com matérias-primas atingindo um valor de 51.795 milhões de dó-
lares (10,47% do total) e 28.595 milhões de dólares para bens intermediários (5,78%).
Esse país importou, principalmente dos Estados Unidos, 125.821 milhões de dólares
em bens de consumo (24,84% do total) (Tabela 1).
Tabela 1. Brasil e México: Exportações e Importações Mundiais por Grupos de Pro-
dutos, 2021 (Milhões de Dólares).
Brasil Exportações Importações
Valor (%) Va l or (%)
Exportações totais 280,815 100 234,690 100
Matérias-primas 156,478 55,72% 17,290 7,37%
Bens intermediários 70,175 24.99% 86 095 36.68%
Bens de consumo 31,178 11.10% 54,529 23.23%
Bens de capital 22,950% 8,17% 76,700% 32,68%
México Exportações Importações
Valor (%) Valor (%)
Exportacões totais 494,596 100% 506,565% 100%
Matérias-primas 51,795 10.47% 19,309 3,81%
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Bens intermediários 28,595 5.78% 88,822 16,35%
Bens de consumo 128,187 25,92% 125,821 24.84%
Bens de capital 216,890 43,85% 205,264 40.52%
Fonte: World Integrated Trade Solution (WITS), 2021.
Essa conguração da formação social dependente, surgida nos anos 1980 e ao
longo dos anos 1990, do padrão de acumulação neoliberal do capital, foi corretamen-
te apreciada e caracterizada por Marini em seu “Processo e tendências da globaliza-
ção capitalista” (1996) e hoje constitui uma realidade que caracteriza a maioria dos
países da região.
Há anos-luz das prescrições técnicas e políticas da Comissão Econômica para a
América Latina (Cepal) e de outros expoentes do enfoque da dependência – como o
próprio Cardoso, que pregava o desenvolvimento autônomo do capitalismo depen-
dente e da equidade social, e outros ainda, como os endogenistas, com base na tese
da existência do feudalismo e da articulação dos modos de produção –, o capitalismo
dependente mergulhou numa profunda crise, no marco internacional, que o subor-
dinou ainda mais aos poderes econômico-políticos transnacionais e hegemônicos
dos Estados imperialistas e das suas poderosas empresas multinacionais.
Em duas décadas, antes da entrada no século XXI, a dependência tornou-se mul-
tidimensional no quadro da nova divisão internacional do trabalho que oresceu
junto ao neoliberalismo e à globalização. Essa é a marca distintiva da nova etapa,
que podemos chamar de “neodependência, no quadro de um capitalismo global
em crise e decadência.
A TMD e a World System Analysis
Junto ao ocaso da escola ou enfoque da dependência, surgiram outros esforços no
sentido de “atualizá-la, com o m de conferir-lhe validade e contemporaneidade.
Dessa vez a proposta foi fazê-la a partir da world system analysis (WSA), de orien-
tação braudeliana, representada por autores como Wallerstein e Arrighi. O próprio
eotônio dos Santos se propôs a assumir essa tarefa desde meados da década de
1970, enquanto Gunder Frank, que havia contribuído com estudos especícos sobre
dependência e subdesenvolvimento, terminou incorporado a essa corrente.
Substancialmente, ela se propunha a “fundir” ambas as análises para dar origem a
uma nova teoria da dependência na perspectiva teórico-analítica do sistema-mundo,
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mas sem indicar como ou que tipos de procedimentos, categorias e conceitos seriam
utilizados para atingir esse objetivo. Em todo caso, seu produto mais acabado, junta-
mente com projetos e análises muito interessantes realizados dentro de sua perspec-
tiva teórica, foi ter demonstrado a crise de hegemonia que o imperialismo estaduni-
dense começou a experimentar desde pelo menos a década de 1970 e que hoje é um
fato empiricamente vericável. No entanto, até a presente data, a questão da fusão
entre a WSA e a TMD não foi resolvida, apesar de existirem esforços nesse sentido,
como o recentemente realizado por Martins (2021, p. 44-45), embora com ênfase na
“[...] construção de uma teoria marxista do sistema-mundo capitalista.
Em nossa avaliação, a reformulação e atualização da teoria da dependência não
passa por aderi-la a outras correntes como as mencionadas, pois ela possui seu pró-
prio potencial teórico, conceitual, categórico e metodológico que se apoia, a prin-
cípio, nos textos originais e resultados elaborados pelos teóricos dependentistas da
primeira geração.
Insistimos que o objeto de estudo da TMD é a dependência, independentemente
da abordagem de questões e problemas colaterais, como a pobreza, o desemprego,
a crise ou as revoluções tecnológicas, por exemplo. Assim, se demarca a diferença
em relação à world system analysis, cujo objeto de estudo é a “análise dos sistemas-
-mundo” e dos “impérios-mundo” (WALLERSTEIN, 2005), mas não do modo de
produção capitalista de Marx, que constitui um marco teórico geral da TMD. Em-
bora em vários autores se advirta a utilização do “modelo centro/periferia” de corte
cepalino, o correto, em termos conceituais, é a relação dialética (neo)imperialismo/
(neo)dependência, amparada na lei do valor, da mais-valia, do lucro e na teoria do
imperialismo. Outras categorias, como a troca desigual e as transferências de valor,
são essenciais para fortalecer o piso ou o eixo do ciclo da economia dependente que
gravita em torno da superexploração da força de trabalho (SFT).
Aqui se marca outra diferença entre as duas perspectivas apontadas: enquanto
para a WSA a categoria central é a hegemonia, para a TMD é a superexploração. É
difícil conciliar ambas numa fusão, porque cada uma tem a sua própria hierarquia e
status dentro da sua epistemologia, no nível dos seus postulados teóricos, do método
expositivo e de investigação, e do seu aparato analítico. O mais plausível é a inter-
cambialidade de resultados, por exemplo, a crise hegemônica dos Estados Unidos
no quadro internacional e a extensão da superexploração do trabalho ao mundo do
trabalho do capitalismo avançado, sob a inuência dos efeitos do regime chamado
de “revolução industrial 4.0”. Esses resultados são compatíveis, sem a necessidade de
mesclar as duas perspectivas. E tanto são úteis para a teoria como para a ação política
de forças comprometidas com a mudança social radical.
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
Reformulação e atualização da TMD
Muita tinta foi derramada tanto para descartar como para, supostamente, “reatuali-
zar” a TMD. No primeiro caso, como vimos, isso não apenas não foi alcançado como,
francamente, os postulados, teses e hipóteses dos críticos foram ultrapassados pelo
aprofundamento da crise capitalista e das relações estruturais de dependência ao lon-
go dos anos oitenta e noventa do século passado. Nesta última década, destacou-se
um discurso convencional denominado de “nova economia, em relação aos Estados
Unidos, que ponticava uma suposta chegada do capitalismo norte-americano a uma
nova etapa de desenvolvimento e crescimento sustentada pelos aparatos da terceira
revolução tecnológica industrial, baseada no desenvolvimento de tecnologias de in-
formática, automação, novos materiais e internet. No entanto, não havia argumentos
sólidos para sustentar essas armações, pois, no período 1991-2000, que abrange as
duas administrações do governo Clinton, o PIB cresceu apenas 2,7%, média anual,
segundo o Banco Mundial (c2023); na primeira década dos anos 2000: o PIB dos
EUA cresceu em média 2,1% ao ano entre 2001-2007; e caiu para -1,3% durante a
crise de 2008-2009. Nesse último período, a economia mundial cresceu apenas, em
média, 0,34%, segundo o Banco Mundial (c2023).
Assim, mesmo essa fase do capitalismo que os ideólogos neoliberais e keynesianos
caracterizaram como uma “aterrisagem suave” para o “crescimento sustentável”, a p e -
nas agravou os problemas para os povos dos países dependentes da América Latina.
Ao longo dos anos 1980, a taxa média de crescimento desses países foi de 1,2%, e
3,3% nos anos 1990, enquanto o produto per capita foi de -0,9% e 1,5%, em média,
respectivamente, segundo a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL,
2000), e a dívida externa bruta disparou de 220,4 bilhões de dólares em 1980 (CEPAL,
1997) para 750,855 bilhões de dólares no ano 2000 (CEPAL, 2000), um aumento de
29,35%, apesar dos pagamentos constantes tanto de juros como de principal. Esses
três indicadores mostram que, enquanto o crescimento econômico desacelerou, e
piorou a desigualdade social expressa no produto per capita, aumentavam as trans-
ferências de valor e mais-valia, via endividamento externo, para os centros do ca-
pitalismo avançado, acentuando a dependência estrutural da região, muito distante
das “recomendações” das teorias convencionais que prenunciavam a “superação” da
dependência e o advento do “pleno” desenvolvimento econômico e social.
Do locus da TMD, a década de 1970 foi de transição para o que posteriormente
seria conhecido como neoliberalismo, que prevalece até a atualidade. Nos anos 1980,
caracterizados por uma crise de alta intensidade e pela surgimento de uma nova di-
reita internacional sediada nos Estados Unidos, segundo Cueva (1993), produziu-se
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uma nova divisão internacional do trabalho (globalização) que reestruturou a econo-
mia, abriu as fronteiras nacionais para o livre funcionamento da lei do valor e come-
çou o desmantelamento do desgastado welfare state; a força de trabalho e os merca-
dos de trabalho tornaram-se mais exíveis e desregulamentados, a heterogeneidade
tecnológica e industrial deu lugar à maior homogeneização dos aparatos produtivos,
com ênfase no capital constante xo. Sua consequência mais notável, ante o efeito
que esse fato produziu na queda da taxa de lucro devido ao aumento da composi-
ção orgânica do capital, segundo Marini (1996, p. 65), consistia em aumentar para
o capital a “[...] importância do trabalhador como fonte de lucros extraordinários.
É importante notar que, enquanto Marini esboçava esse processo, ganhava força a
tese dominante do “m do trabalho, que promovia o abandono da teoria do valo-
r-trabalho e da superexploração pelo capital ctício, e coroava a tese da “sociedade
pós-industrial” baseada na técnica e no conhecimento cientíco sem ligação com a
exploração e produção de mais-valia. Marini, ao contrário, rearmou que a força de
trabalho do trabalhador é o fator essencial na produção de lucros extraordinários, devi-
do à tendência de igualar as composições orgânicas do capital na economia mundial
e ao crescente processo de homogeneização tecnológica que se estava começando a
observar nos anos 1980. Dessa forma, a superexploração do trabalho tornou-se um
fator fundamental para enfrentar o acirramento da competição capitalista em escala
mundial e para neutralizar as diculdades que o capital enfrenta na produção de
valor e mais-valia.
Várias consequências advêm deste último fato, pouco notado pelos críticos da TMD:
a) A nova divisão do trabalho, na era neoliberal, opera fundamentalmente na pró-
pria força de trabalho e, em menor medida, entre “centros” e “periferias, como acon-
tecia no passado, quando havia intensas transferências de indústrias e tecnologias
(obsoleto) dos países desenvolvidos para a América Latina, após a Segunda Guerra
Mundial. A estrutura salarial mundial mantém sua hierarquia: alta, nos países im-
perialistas, e baixa nos países dependentes e subdesenvolvidos, mas agora, com as
novas tecnologias, o capital exige mão de obra qualicada, mais disciplinada e com
melhores níveis de capacitação e qualicação, o que provoca a conversão massiva de
trabalhadores formais em países como os Estados Unidos em mão de obra qualica-
da, enquanto os trabalhadores de países dependentes se veem cada vez mais pressio-
nados e obrigados a elevar seus níveis de formação e qualicação, embora com uma
estrutura salarial que se encontra, no caso do México, abaixo dos salários recebidos
pelos trabalhadores dos países avançados, como se pode observar no Gráco 1, em
relação aos Estados Unidos, durante o período de novembro de 2020 a junho de 2021:
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Gráco 1. México – Estados Unidos: salários na indústria manufatureira (dólares por hora),
2020-2021
El ECONOMISTA (17 de octubre de 2021). Comparación de Salarios en México y E.U.A: Manufactura.
b) A outra consequência da globalização e do neoliberalismo é que esses cria-
ram as bases para a extensão da superexploração – e não apenas da precarização
(para uma discussão sobre a precarização, ver Alves [2021, p. 213-262]) – aos países
avançados através de várias formas, como salários baixos, o part time, contratos de
zero horas, benefícios reduzidos, desemprego e subemprego. Isso foi possível por
causa da nova divisão do trabalho, que, além de gerar, nos países dependentes, eco-
nomias produtivamente desintegradas que garantem o abastecimento sistemático de
matérias-primas e alimentos aos países avançados, estabeleceu a competição interna-
cional entre os grandes capitais para obter lucros extraordinários com a “exploração
redobrada do trabalhador”, como diz Marx (2000, p. 505).
Esse ponto tem sido objeto de controvérsia, pois alguns acreditam que isso não é
possível, já que a categoria «superexploração» é «exclusiva» dos países dependentes
e que, invocando-a para os avançados, «anula-se” a dependência tanto no plano da
teoria como da realidade sócio-laboral e técnico-produtiva, ignorando a dialética
“imperialismo-dependência. Outros ainda armam que essa extensão ocorre, mas
apenas em tempos de crise, como um fenômeno conjuntural, para depois desapare-
cer quando o “crescimento” for restabelecido. Claro, aqui seria necessário discutir,
primeiro, o que se entende por crise e, posteriormente, qual é a sua duração atual,
especialmente no longo prazo, pelo menos em relação à que se estende desde a crise
estrutural e nanceira de 2008-2009, que acentuou a queda das taxas médias de lucro
e de crescimento da economia capitalista mundial, agora exacerbada pela pandemia
do coronavírus que assola a humanidade.
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Por último, nossa posição é que a SFT, como um regime de expropriação de uma
parte do valor social da força de trabalho e do seu fundo de consumo – e não sim-
plesmente como “violação da lei do valor”, que é, antes, sua consequência – opera
nos países capitalistas avançados sob a hegemonia econômica e política da mais-valia
relativa por meio da gestão do Estado e do capital, a qual se obtém mediante o de-
senvolvimento cientíco-tecnológico quando incide na redução do valor social da
força de trabalho, junto com outros mecanismos, como a intensicação e/ou prolon-
gamento da jornada de trabalho (questão que desenvolvemos amplamente em Sotelo
[2012, 2019]).
Superexploração e crise da produção de mais-valia
A categoria superexploração não é um silogismo que, aplicado ao capitalismo
avançado, anula a dependência do mundo subdesenvolvido e atrasado. Ao contrário,
o capital – e o Estado quando age como capital – faz uso dela tanto para combater
os problemas de superprodução e acumulação quanto para compensar a redução da
taxa de lucro e as crescentes diculdades de realização das mercadorias. O problema
não é se o faz fortuita ou conjunturalmente – como sustentam alguns autores – mas
sim se seu funcionamento estrutural se impõe como componente necessário da divi-
são internacional do trabalho, da crise capitalista e da insuciência, e cada vez menor,
criação de mais-valia promovida pelo neoliberalismo e pela globalização desde os
anos oitenta do século passado.
Nesse cenário, é preciso localizar a necessidade do capital global, em países e
regiões desenvolvidas, onde opera hegemonicamente o regime de mais-valia rela-
tiva (Estados Unidos, Japão, Alemanha ou França, entre outros), de administrar a
superexploração como um componente adicional de seus processos de acumulação
e reprodução necessários para tentar compensar o problema relativo ao fenômeno
iminente e em desenvolvimento que consiste no fato de que, com o desenvolvimento
industrial e técnico-cientíco das forças produtivas materiais da sociedade, a pro-
dução de riqueza depende cada vez menos do trabalho imediato e do quantum de
trabalho utilizado, e cada vez mais “[...] do estado geral da ciência e do progresso da
tecnologia, ou a aplicação desta ciência à produção” (MARX, 1980, p. 228). Essa lei
inexorável do modo de produção capitalista universal se desenvolveu em todas as cri-
ses e revoluções tecnológicas, desde a primeira, na Inglaterra do século XVIII. Hoje,
a chamada quarta revolução industrial (4.0), que transcorre em meio à pandemia do
coronavírus, amparada por plataformas digitais e inteligência articial, aprofundou
essa lei, fazendo com que não só o sistema capitalista entrasse plenamente em um
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momento de queda intensa em suas taxas médias de crescimento (BANCO MUN-
DIAL, c2023) e de lucros (ROBERTS, 2021), mas também em diculdades crescentes
para produzir as sucientes massas e cotas de mais valor para a reprodução (mínima
do sistema) em uma escala que Marx chamou de reprodução ampliada.
Nota final
As duas visões de dependência corroboraram que o capitalismo periférico, para se
desenvolver relativamente, teria que articular seus processos econômicos e políti-
co-sociais à dominação política dos centros hegemônicos do capitalismo avançado,
particularmente por meio de suas empresas transnacionais e de suas instituições -
nanceiras e monetárias que surgiram no período pós-Segunda Guerra Mundial, em
particular, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, controlados pelos
Estados Unidos.
Contudo, dado o esgotamento das correntes articuladas às abordagens ecléticas
da dependência em função do fracasso de suas teses e projeções quanto ao desenvol-
vimento autônomo e à “correção” da desigualdade social, que seriam alcançadas na
medida em que surtissem efeito positivo as políticas recomendadas pelos promotores
da industrialização e da modernização econômico-social, a perspectiva que trans-
cendeu – a crise teórica dos anos oitenta e noventa do século passado, que afetou a
maioria dos paradigmas e disciplinas das ciências sociais – foi justamente a TMD, a
qual, como apontamos, está vigente e guarda relação com outras abordagens ana-
líticas e teóricas, particularmente com a world system analysis, com quem ela troca
análises e resultados frutíferos... mas sem se fundir.
Referências
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