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ARTIGOS (DOSSIÊ)
Ruy Mauro Marini e a Dialética do Capitalismo Contemporâneo
Carlos Eduardo Martins *
Resumo: Neste artigo analisamos criticamente a obra de Marini, tomando em consideração os conceitos
de superexploração do trabalho e subimperialismo, sua evolução na obra do autor e os principais debates
que se estabeleceram sobre eles para avaliar sua pertinência e avançar no desenvolvimento da teoria
marxista da dependência. Destacamos ainda as leituras do autor sobre o imperialismo e sua aproximação
das análises do sistema-mundo para delimitar os marcos e estratégias da luta pelo socialismo.
Palavras-chave: Ruy Mauro Marini. Capitalismo. Superexploração. Subimperialismo. Marxismo.
Abstract: In this article we critically analyze Marini’s work, taking into consideration the concepts
of labor superexploitation and subimperialism, their evolution in the author’s work and the main
debates that have been established about them in order to evaluate their relevance and to advance
the development of the Marxist theory of dependency. We also highlight the author’s readings on
imperialism and his approach to world-system analyses to delimit the frameworks and strategies of the
struggle for socialism.
Keywords: Ruy Mauro Marini. Capitalism. Superexploitation. Subimperialism. Marxism.
Resumen: En este artículo analizamos críticamente la obra de Marini, teniendo en cuenta los conceptos
de superexplotación laboral y subimperialismo, su evolución en la obra del autor y los principales
debates que se han establecido en torno a ellos para valorar su relevancia y avanzar en el desarrollo de
la teoría marxista de la dependencia. También destacamos las lecturas del autor sobre el imperialismo
y su aproximación a los análisis del sistema-mundo para delimitar los marcos y estrategias de lucha por
el socialismo.
Palabras-clave: Ruy Mauro Marini. Capitalismo. Superexplotación. Subimperialismo. Marxismo.
* Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa e do Programa de Pós-Graduação
em Economia Política Internacional da UFRJ, pesquisador do CLACSO e coordenador do Laboratório
de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia/UFRJ. Professor Visitante no Arrighi Center for
Global Studies (2022)
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Introdução
A obra de Ruy Mauro Marini desponta como uma das principais referências do mar-
xismo latino-americano do século XX por oferecer uma interpretação original do
capitalismo na América Latina que contribuiu decisivamente para a construção da
teoria marxista da dependência, da qual é um dos destacados fundadores, ao lado
de eotônio dos Santos (1968, 1969, 1972 e 1978), Vânia Bambirra (1974 e 1978) e
Orlando Caputo e Roberto Pizarro (1974)
1
. O pensamento de Marini foi o que mais
avançou na formulação de uma economia política para interpretar as estruturas e
dinâmicas do capitalismo dependente, tendo ultrapassado dialeticamente o seu ob-
jetivo inicial de construir uma “[...] teoria intermediária que, informada por Marx,
conduzisse à compreensão do caráter subdesenvolvido e dependente da economia
latino-americana e sua legalidade especíca” (MARINI, 1990, p. 25). A obra do autor
incidiu na ppria expansão e reformulação da teoria do valor de Marx, na inter-
pretação das leis de desenvolvimento da própria economia mundial capitalista e das
formações sociais nela inscritas, divididas em grande medida em centros e periferias,
tomadas como partes de uma totalidade mais ampla que as condiciona e modica,
mas que é ao mesmo tempo resultado de seus movimentos particulares, onde se des-
taca a atuação dos Estados imperialistas, sobretudo daquele hegemônico que lidera
esse tipo de expansão.
Apesar de todo o esforço feito pelas ditaduras do grande capital para bani-lo, exo-
nerando-o de cargos públicos, prendendo-o, torturando-o, destruindo seus materiais
de pesquisa, buscando o seu extermínio físico e condenando-o ao exílio; ou pelo
pensamento liberal para desacreditá-lo, distorcendo suas formulações e lhe impon-
do o ostracismo, o legado do autor sobreviveu e chegou com força ao século XXI.
A grande razão para isso é a sua capacidade de explicar e descrever dimenes es-
truturais do capitalismo dependente que condicionam e limitam o desenvolvimen-
to econômico, político e social de suas populações e formações sociais, assim como
a internacionalização de algumas de suas categorias para os centros imperialistas,
como a superexploração do trabalho, formulação que o autor passou a sustentar em
1 O texto fundacional da teoria da dependência no CESO, ao qual se soma Ruy Mauro Marini, em 1970,
restabelecendo a colaboração intelectual com eotônio dos Santos e Vânia Bambirra na Universidade
de Brasília e na Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), é Esquema de investiga-
ción sobre relaciones de dependencia en América Latina: bosquejo informativo (CESO, 1967). Esse texto
reuniu equipe de investigação sob a direção de eotonio dos Santos, que contou com a participação de
Vânia Bambirra, Orlando Caputo e Roberto Pizarro. Ruy Mauro Marini contribuiu para a fundação da
teoría da dependência com Contradicciones y conitos en el Brasil contemporâneo (1965b), La interde-
pendencia brasileña y la integración imperialista (1965a), La dialéctica del desarrollo capitalista en Brasil
(1966), Subdesarrollo y revolución (1974 [1969]) e Dialéctica de la dependencia (1973a).
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seus últimos trabalhos. Nos anos 1990, Ruy Mauro Marini e eotonio dos Santos
zeram um amplo balanço das contribuições da teoria marxista da dependência e do
pensamento latino-americano no século XX, apontando a necessidade de reformu-
lá-la parcialmente para analisar a reorganização da economia mundial estabelecida
com a reestruturação do imperialismo estadunidense e a ofensiva da globalização
neoliberal. eotonio dos Santos reivindicou a teoria marxista da dependência como
a primeira etapa da construção de uma teoria marxista do sistema mundial, e Marini
reivindicou que se retomasse o núcleo marxista da teoria marxista da dependência,
desgarrando-o de suas aderências desenvolvimentistas e neodesenvolvimentistas,
para saltar a uma nova etapa superior de pensamento
2
.
Esse trabalho de balanço e retomada, iniciado nos anos 1990, ganhou projeção
e difusão no século XXI dentro e fora da América Latina, com a crise do neolibera-
lismo na região e a ofensiva das esquerdas nas sociedades civis, instituições cientí-
cas, aparelhos de Estado, organismos regionais latino-americanos e caribenhos, ou
internacionais. Antigos discípulos e novas gerações se armam dando lugar a um
estudo mais detalhado da obra de Marini. Se estabelecem debates no interior da teo-
ria marxista da dependência e com outros enfoques analíticos rivais, no âmbito das
esquerdas ou do pensamento liberal, que buscam limitar seu alcance e inuência
nas ciências sociais e na organização da contra-hegemonia e dos processos eman-
cipatórios. O caráter paradigmático e incompleto da obra de Marini, expressão da
radicalidade de sua dimensão fundadora, abriu espaço para distintas reivindicações
dela no âmbito das ciências sociais. Podemos destacar: as que tomam seus textos
fundacionais dos anos 1970, principalmente Dialética da dependência (1973a), como
uma obra acabada e não como o autor a apresenta, uma introdução às linhas gerais de
desenvolvimento do capitalismo dependente, suscetível de abrir linhas de pesquisa
e de contribuir a esforços futuros de quem busca estudá-lo; as que acentuam as ade-
rências desenvolvimentistas e neodesenvolvimentistas no âmbito da teoria marxista
da dependência para limitar e subordinar o seu núcleo radical, descaracterizando-o,
para seguir o caminho inverso ao proposto por Marini; e as que buscam desenvolvê-
-los dialeticamente, reformulando categorias à luz da evolução das sociedades depen-
dentes, do capitalismo mundial e suas novas formas de reprodução internacionais.
Neste artigo analisaremos os conceitos de superexploração do trabalho e subim-
2 De Ruy Mauro Marini, destacam-se sua Memória (1990) e Dependência e integração na América Lati-
na (1992), Procesos y tendencias de la globalización capitalista (1996) e o balanço da teoria social latino-
-americana que organiza com Margara Millán (MARINI e MILLÁN, 1994a, 1994b, 1995 e 1996). eo-
tonio dos Santos publica Economia mundial, integração regional e desenvolvimento sustentável (1995
[1993]) e De la dependencia al sistema mundial: balance y perspectivas (1999), seguido por Teoria da
dependência: um balanço histórico e teórico (2000).
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perialismo de Ruy Mauro Marini, as suas leituras sobre o imperialismo e os marcos
que colocam para a luta pelo socialismo na obra do autor. Daremos ênfase aos deba-
tes suscitados no século XXI, sem deixar de fazer menção às principais controvérsias
do século XX que se prolongam nos debates contemporâneos.
A superexploração do trabalho em Marini
O conceito de superexploração do trabalho é o de maior centralidade na obra de Ruy
Mauro Marini e foi desenvolvido e aprimorado ao longo dela. A sua primeira apari-
ção se fez em seu artigo Subdesarrollo y revolución en América Latina (1968), poste-
riormente incorporado ao seu livro Subdesarrollo y revolución (1974 [1969]), no qual
o autor trouxe alguns elementos que desenvolveu posteriormente. Aqui ele armou
ser a superexploração “o princípio fundamental da economia subdesenvolvida, im-
plicando um “aumento do valor absoluto do mais-valor” através do qual suas classes
dominantes se ressarcem da drenagem de uma parte variável de seu mais-valor para
os países centrais (MARINI, 1968, p. 10). O termo permanecia intuitivo e impreciso,
mas sinalizava o seu determinante nas compensações às transferências de valor que
algumas formações sociais na economia mundial sofriam, impostas pela cooperação
subordinada com o imperialismo de suas classes dominantes. O conceito ganhou
estatuto teórico pela primeira vez em La acumulación capitalista dependiente y la
superexplotación del trabajo (1973b), na intervenção do autor no Encontro dos Eco-
nomistas Latino-Americanos em Roma, em setembro, publicada no ano seguinte no
Centro de Estudios Sócio-Económicos (CESO) Essa intervenção antecipou a sua for-
mulação em Dialéctica de la dependencia (1973a), onde o autor apresentou o concei-
to com maior amplitude e elaboração, situando-o no âmbito dos principais padrões
de reprodução de capital na América Latina, termo que utilizou posteriormente em
Plusvalía extraordinária y acumulación de capital (1979c) e deniu conceitualmente
em Sobre el patn de reproducción del capital en Chile (1982).
No texto da intervenção em Roma, Marini enunciou um fundamento metodoló-
gico que rompeu os postulados que permeiam as diversas variantes do pensamento
desenvolvimentista e o apartou denitivamente deles, estabelecendo um dos pilares
da teoria marxista da dependência: nos países dependentes, a produção, na repro-
dução ampliada do capital, se subordina aos condicionamentos da circulação, o que
inclui não apenas a fase primário-exportadora, mas também a industrial, em torno
da qual o desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo nutriram grandes esperan-
ças de endogeneização da dinâmica do ciclo capitalista. Diferentemente dos países
centrais, onde a produção tem papel dominante e dinâmico sobre a circulação, esta-
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belecendo a sua espacialidade e as linhas de expansão necessárias à sua reprodução,
dirigindo a articulação entre o mercado mundial e o mercado interno, nos países
dependentes a relação entre essas categorias é inversa, exercendo o mercado mundial
e a circulação internacional de capitais o papel condicionante sobre a produção. A
parte mais dinâmica da produção se separa da circulação interna, e a exploração do
trabalhador deixa de estar limitada por sua necessidade de consumo para a realização
das mercadorias e a efetivação da reprodução completa do ciclo do capital. O autor
assinalou a necessidade de superar a leitura formalista de Marx em favor de uma
interpretação criativa, capaz de analisar as distintas formas particulares em que se
expressa o desenvolvimento do capitalismo. Marx partiu da premissa teórica de que
a força de trabalho média se remunera por seu valor para estabelecer sua teoria do
mais-valor; entretanto, esse suposto abstrato e geral, que corresponde às condições
históricas do capitalismo nos países centrais, não corresponde às formas particulares
em que ele se apresenta nos países dependentes, onde a força de trabalho é remunera-
da por debaixo do seu valor. Marini propôs reinterpretar a teoria do mais-valor para
ajustá-la às dimensões históricas dividindo o mais-valor em duas grandes formas:
o baseado no aumento da capacidade produtiva do trabalho e o fundado na maior
exploração do trabalhador. O primeiro se funda na elevação da produtividade e per-
mite o estabelecimento do mais-valor relativo quando desvaloriza bens de consumo
necessários; o segundo se baseia no mais-valor absoluto, na elevação da intensidade
de trabalho e do desgaste da força de trabalho (sem alterar-se a capacidade produtiva
do trabalho), e na remuneração da força de trabalho inferior ao seu valor real, con-
vertendo parte do fundo de consumo do trabalhador em fundo do capital.
Em Dialéctica de la dependencia, Marini voltou com mais profundidade e preci-
são ao tema que havia esboçado. Ele esclareceu que, no capitalismo, o aumento da
capacidade do trabalho eleva a produtividade, mas não aumenta a massa de valor,
reduzindo o valor por unidade de produto. Para elevar a taxa de mais-valor, exige-se
a maior exploração do trabalhador, modicando as proporções da jornada dentro
dos limites da variação de produtividade. A superexploração ocorre quando a maior
exploração do trabalhador se desenvolve de forma independente, sem vincular-se
diretamente ao aumento da capacidade do trabalho. Ele estabeleceu as bases da eco-
nomia política do capitalismo dependente e articulou a superexploração do trabalho
às transferências internacionais e internas de valor que essas economias sofrem, assi-
nalando que a maior exploração do trabalhador é o mecanismo utilizado pelo capital
para compensar aquelas, fundadas no monopólio da produção e na produtividade. O
autor especicou em grandes linhas os principais padrões históricos de reprodução
dos países dependentes, apontando as formas concretas em que a maior exploração
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do trabalhador se estabelece e a produção se diferencia, engendrando a expansão da
circulação interna, sem inverter, contudo, a relação de subordinação com o mercado
mundial e a circulação internacional de capitais.
Na velha economia primário-exportadora, o prolongamento da jornada de traba-
lho era forma predominante da maior exploração do trabalhador. A América Latina
orientava sua produção principalmente para compensar a queda da taxa de lucro e
auxiliar a transição do regime de acumulação dos países centrais para o mais-valor
relativo. Os países centrais buscavam burlar o princípio mais geral da lei do valor,
baseado na troca de quantidades equivalentes de trabalho, mediante a elevação da
produtividade, reduzindo a quantidade de valor por unidade de produto; e os países
dependentes moviam-se para aumentar a massa de valor realizado por meio da ex-
tensão da jornada de trabalho. Os limites à expansão da produção nos países depen-
dentes elevavam o intercâmbio e a taxa de lucro em seu favor, promovendo a migra-
ção de capitais para a economia exportadora. O resultado era o estabelecimento dos
preços de produção e da taxa média de lucros na economia mundial, a desvalorização
da produção primário-exportadora, e o deslocamento dos termos de intercâmbio em
favor dos produtos manufaturados. A perda da capacidade de compensar, mediante
o aumento da massa de valor, a violação da lei do valor imposta pelos países centrais,
através do aumento da produtividade e do monopólio da produção, não permitiu que
o aumento da capacidade produtiva se descolasse da maior exploração do trabalha-
dor, que vai incorporando lentamente o aumento da intensidade do trabalho com a
elevação da composição técnica e orgânica do capital.
O descolamento do aparato produtivo mais importante e dinâmico das necessi-
dades de consumo dos trabalhadores impediu que a indústria ultrapassasse níveis
complementares ao setor exportador e desempenhasse papel signicativo, sendo a
demanda interna mais importante, formada pelo mais-valor acumulado, atendida
pela importação de mercadorias. O desenvolvimento de uma fração industrial signi-
cativa apenas se estabeleceu a partir da janela de oportunidade da crise do mercado
mundial, que lhe proporcionou a demanda interna formada pela esfera alta de consu-
mo. O autor mencionou que a aproximação da oferta aos limites dessa demanda in-
terna foi lenta, utilizou o sobrepreço, possibilitado pelo protecionismo para aumentar
o mais-valor apropriado sem elevar a composição orgânica do capital, e não rompeu
com as estruturas internas exportadoras na grande maioria dos casos. Na seção inti-
tulada O novo anel da espiral, Marini assinalou que a aproximação entre a esfera alta
e a baixa da circulação interna dos países dependentes, que se fazia lentamente com
a expansão da produção para além dos limites da demanda, se interrompeu e levou
a um novo afastamento entre elas a partir da reorganização do imperialismo sob
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liderança dos Estados Unidos no pós-guerra. A profunda reestruturação produtiva,
a concentração e centralização de capitais, a aceleração dos seus tempos de rotação
e da obsolescência moral de produtos e processos nos países centrais deram lugar a
uma massiva transferência de tecnologia orientada aos mercados internos dos países
dependentes, estabelecendo a liderança do capital estrangeiro em seus processos de
industrialização. Criou-se um patamar de assimetrias e de monopólios que conduziu
ao estabelecimento de um mais-valor extraordinário permanente, impondo drásticas
transferências internas de valor que se somaram e se combinaram às internacionais.
Marini apontou que o mais-valor extraordinário altera a repartição do mais-valor,
mas não eleva a sua massa. Vincula o incremento da capacidade produtiva do traba-
lho ao aumento da massa do mais-valor realizado/apropriado e não ao incremento
da taxa de mais-valor, afetando-as negativamente nas frações médias e inferiores do
capital, que recorrem à maior exploração do trabalhador para restituí-las, diante da
incapacidade de neutralizarem o monopólio tecnológico. Como o autor apontou em
El ciclo del capital en la economía dependiente (1979a), mesmo que as frações médias
e inferiores recorram à elevação da produtividade e anulem provisoriamente a assi-
metria, o capital estrangeiro é capaz de restabelecer a sua liderança, aprofundar as
inovações e gerar outros patamares de competição, pois introduz a tecnologia aos sal-
tos. O emprego da maior exploração do trabalhador pelas frações médias e inferiores
do capital determina o nível médio de remuneração da força de trabalho, benecia o
setor monopólico e contribui para deprimir a estrutura geral de preços de matérias-
-primas e insumos industriais.
Como assinalou o autor em Plusvalía extraordinária y acumulación de capital
(1979c), desenvolvendo os esquemas de reprodução de Marx para introduzir neles
o progresso técnico, o mais-valor extraordinário se xa não apenas no interior dos
setores, mas entre eles, pois a inovação tecnológica tende a economizar força de tra-
balho e a substituir capital variável por mais-valor, restringindo a demanda por bens
de consumo necessários e ampliando a por bens de consumo suntuários e capital
constante para produzi-los. É a forte competição tecnológica no interior e entre as
economias centrais que impulsiona a desvalorização de parte dos bens de consumo
suntuários, transformando-os em bens de consumo necessários naqueles países, pro-
cesso que a luta de classes acelera e para o qual contribuem as transferências de valor
e a estrutura de preços deprimida dos países dependentes no mercado mundial. A es-
trutura monopólica, que impõe assimetrias tecnológicas e transferências de valor aos
países dependentes, bem como o emprego da maior exploração do trabalhador, como
forma invertida e paralela de mais-valor extraordinário, restringem a competitivida-
de e a capacidade de desvalorização dos bens de consumo suntuários, bloqueando
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o estabelecimento do mais-valor relativo como forma dominante de exploração da
força de trabalho.
A superexploração não corresponde a uma forma de exploração da força de tra-
balho restrita às formas mais primitivas da acumulação de capital, mas se desenvol-
ve com a sua própria potência produtiva, tornando-se dominante nos espaços onde
as transferências de valor impõem expressivas subtrações de mais-valor às frações
médias do capital, separando-as das frações superiores, que respondem pela grande
massa de mercadorias, mas não pelos empregos da grande massa de trabalhadores.
As transferências de valor se estabelecem pelo mais valor extraordinário no interior
do ramo produtivo, pela xação dos preços de produção ou do mais-valor extraor-
dinário entre os ramos produtivos. Corresponde, nestes países, a uma hipertroa do
setor de bens de consumo suntuários e a uma atroa do setor produtor de máqui-
nas e equipamentos, limitado pelas restrições impostas à esfera baixa de consumo e
pela oferta externa de bens de capital que congura a dependência tecnológica. A
superexploração é o fundamento da reprodução da dependência e do subdesenvol-
vimento, contribuindo, junto com as demais transferências de valor, para deprimir
a estrutura de preços dos bens de consumo necessários e dos produtos primários. O
subdesenvolvimento é cada vez mais determinado pelo imperialismo e a dependên-
cia com a expansão da economia mundial. Quanto mais avança o desenvolvimento
da capacidade produtiva nos países dependentes, mais a superexploração se desloca
da extensão da jornada de trabalho para o aumento da intensidade, que Marini con-
sidera uma forma particular de mais-valor relativo, e principalmente para a apropria-
ção do fundo de consumo do trabalhador sob a forma de redução de salários.
Embora o foco dos estudos de Marini nos anos 1970 fosse a superexploração nos
países dependentes, ele nunca pretendeu limitá-la a esses espaços, imputando-a ao
próprio modo capitalista de produção e analisando-a sempre nos marcos dos padrões
de reprodução de capital. Para o autor, a superexploração do trabalho cresce correlati-
vamente ao desenvolvimento da capacidade produtiva do trabalho e encontra barrei-
ras na exploração dos trabalhos escravo ou servil das sociedades latino-americanas,
durante o período colonial e o século XIX, ainda que possa neles se estabelecer, sen-
do mais adequada às formas salariais. Ao analisar os novos padrões de reprodução
de capital estabelecidos com a globalização capitalista, nos anos 1990, ele apontou
em Procesos y tendencias de la globalización capitalista (1996) que a superexploração
se generaliza ao conjunto do sistema capitalista, deixando de ser uma característica
distintiva dos países dependentes, ainda que suas formas de manifestação variem.
Isso se estabelece porque a globalização do capital tornou a força de trabalho supe-
rexplorada dos países dependentes uma fonte mundial de mais-valor extraordinário,
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ao fragmentar produtos e processos e explorá-la por meio de processos tecnológicos
com alta composição técnica do capital, colocando em xeque os regimes de explora-
ção da força de trabalho nos países centrais. A revolução nas forças produtivas em
curso, impulsionada pelo capital, deslocou o monopólio tecnológico para a ciência, e
o conhecimento e permitiu a difusão mundial da indústria, integrando a produção na
circulação mundial por meio da ofensiva neoliberal. A substituição da indústria pelo
setor de serviços como principal fonte de emprego nos países centrais estabelece alto
grau de desemprego e subemprego na ausência de uma ofensiva dos trabalhadores
que reduza a jornada de trabalho. Pressionado pelo uso da força de trabalho supe-
rexplorada como fonte da redução dos custos da produção destinada ao mercado
mundial e pelo desemprego tecnológico, o regime de exploração fundado no desen-
volvimento da capacidade do trabalhador nos países centrais passa a ser ameaçado
pela difusão global da superexploração.
Balanço do conceito de superexploração em Marini: diálogo com o marxismo
dependentista
Nos anos 1990, Marini dedicou-se ao balanço das contribuições da teoria da depen-
dência em sua Memória (1990), em seu livro América Latina: dependência e integra-
ção (1992), no amplo estudo da teoria social latino-americana que coordenou no
CELA/UNAM de 1994-96 e em seu artigo Procesos y tendencias de la globalización
capitalista (1996). Ele assinalou que a teoria da dependência teve duas orações, uma
inicial, nos anos 1920, que se expressou em particular na obra de Mariátegui, e outra
nos anos 1960-70, quando apresentou-se em suas versões mais radicais como teoria
marxista da dependência. Se de um lado destacou as contribuições dos anos 1960-70
e respondeu às críticas que sofreu, de outro mencionou a necessidade de submetê-las
a uma revisão para dar lugar a uma nova etapa de construção teórica, uma vez que
não as considerava sucientes para enfrentar os desaos da globalização capitalista.
Essa revisão criadora deveria tomar a teoria marxista da dependência como ponto de
partida e extirpar as aderências funcionalistas, desenvolvimentistas e neodesenvolvi-
mentistas de seu núcleo teórico-metodológico. Movidos por essa preocupação, lan-
çamo-nos à análise e retomada de sua obra e ao debate com os seguidores e a crítica.
Consideramos o conceito de superexploração do trabalho um dos mais fecundos
desenvolvidos pelo pensamento marxista e pela teoria social latino-americana para
iluminar as contradições do capitalismo dependente e os seus limites para impulsio-
nar o desenvolvimento e construir uma democracia de massas sustentável. Tal con-
ceito não pode ter a sua potência explicativa circunscrita a determinadas regiões da
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economia mundial sem sofrer importante mutilação, uma vez que deslinda dimen-
sões cruciais da própria lógica global de expansão do modo de produção capitalista e
sua economia mundial, que têm na concorrência um de seus traços fundamentais. A
sua importância na interpretação do movimento da totalidade da economia mundial
capitalista, reconhecida por teóricos do sistema-mundo como André Gunder Frank
(1978) e, em certa medida, Immanuel Wallerstein (1995), Giovanni Arrighi (1997) e
Beverly Silver (2019), ganhou novo impulso com a sua inclusão na teoria do impe-
rialismo por Andy Higginbotton (2010 e 2014) e John Smith (2016). Higginbottom
propôs atribuir a Marini, por sua formulação do conceito de superexploração, a des-
coberta de uma terceira forma de extração de mais-valor, capaz de ajustar o descom-
passo entre a lógica abstrata da teoria do mais-valor e as formas concretas pelas quais
se desenvolve o capitalismo, tema ao qual voltaremos mais adiante.
Apesar de reconhecermos a importância central desse conceito para a interpre-
tação do capitalismo dependente e para os processos de acumulação mundial de ca-
pital, não o consideramos sucientemente elaborado e desenvolvido. A reticência
de Marini em publicar Dialéctica de la dependencia – assinalada em sua Memória
–, superada para conter a difusão não autorizada de seu texto, evidencia o caráter
provisório e incompleto do conceito, estando o autor a aperfeiçoá-lo ao longo de
sua obra. A principal deciência do conceito de superexploração em Marini está
vinculada ao contexto social que o autor indicou haver limitado a radicalidade das
teorias da dependência: um padrão de reprodução da economia mundial em que as
relações de exploração entre as classes assumem a forma de relações entre Estados
nacionais, ocultando parcialmente a real natureza do imperialismo (MARINI, 1993).
Tal cenário é uma das fontes das aderências desenvolvimentistas e nacionalistas ao
instrumental teórico marxista da teoria da dependência, que ele denunciou sem, en-
tretanto, escapar delas inteiramente.
Se deniu a superexploração do trabalho no plano geral e abstrato como uma
forma de exploração em que o trabalhador é remunerado abaixo do valor da força
de trabalho. Marini não é sucientemente explícito, quando analisa as sociedades
dependentes, sobre o lugar analítico e concreto de denição do valor da força de
trabalho estar em última instância na economia mundial, em suas condições mé-
dias de produtividade e intensidade, e não no interior das economias nacionais que
articula – como supõe o nacionalismo metodológico, de matriz liberal –, o que se
acentua quanto mais se amplia a incidência do mercado mundial sobre elas. Embora
seja uma consequência lógica do trabalho do autor, quando dene a superexploração
como uma característica distintiva do capitalismo dependente, que o valor da força
de trabalho esteja denido fora, nos países centrais, onde seria supostamente equi-
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valente aos seus preços, faltou uma elaboração mais orgânica para defender-se dos
ataques do desenvolvimentismo e do endogenismo e evitar deslizes que aparecem,
por vezes, em seus trabalhos. Ele se aproximou dessa elaboração quando rearmou o
conceito de trabalho socialmente necessário e a lei do valor em escala internacional
em polêmica com Fernando Henrique Cardoso e José Serra (1978), que os negaram,
expressando o pensamento liberal canônico. Entretanto, ao fazê-lo, situou lado a lado
os conceitos de trabalho socialmente necessário em nível internacional e nacional,
sem estabelecer hierarquias
3.
O fato de não ter explicitado com clareza a centralidade da economia mundial na
determinação do valor da força de trabalho abriu espaço para a ofensiva do nacio-
nalismo metodológico, desdobrando-se em acusações de que a superexploração do
trabalho excluiria necessariamente o mais-valor relativo onde fosse dominante. En-
tretanto, isso não está na essência do método do autor que funda a economia política
marxista da teoria da dependência, nem em seu o condutor, mas em aderências que
eventualmente aparecem, sem comprometer os pilares fundamentais de seu edifício
teórico. Evidentemente que, se o valor da força de trabalho em uma economia mun-
dial monopólica se aproxima das condições de produtividade e intensidade estabe-
lecidas pelos capitais de composição superior e estes produzem mais-valor relativo,
expandindo os salários dos trabalhadores, a superexploração da força de trabalho
nos países dependentes signica uma remuneração abaixo do valor médio da força
de trabalho, que poderá implicar desde a neutralização de uma parte expressiva do
mais-valor relativo e da expansão salarial até a sua anulação completa
4
.
Marini indicou, ao nal de Dialéctica de la dependencia, que a superexploração do
trabalho impedia, no capitalismo dependente, o trânsito para o mais valor-relativo
3 “Desde este punto de vista, lo primero que llama la atención es que, aunque vayan a ‘criticar’ lo que he
dicho sobre el tema, hacen la curiosa advertencia de que no contemplarán el problema de la transferen-
cia de valor a través del comercio exterior (p. 16). La razón básica que dan para ello es que ‘no habiendo
movilidad de la fuerza de trabajo, es difícil establecerse, en escala internacional, el concepto de tiempo
de trabajo socialmente necesario, el cual, a su vez, es crucial como requisito para la operación de la ley
del valor […]. La movilidad de la fuerza de trabajo no inuye para nada en el concepto de tiempo de
trabajo socialmente necesario, a escala nacional o internacional. Seguramente, mis ‘críticos’ quieren
decir que afecta su determinación, su medición. Pero tampoco es así: a nivel nacional o internacional, el
tiempo de trabajo socialmente necesario no se determina por la circulación de la fuerza de trabajo, sino
que es exclusivamente función del desarrollo de las fuerzas productivas, del grado de destreza, producti-
vidad e intensidad media de la fuerza de trabajo en la producción” (MARINI, 1978, p. 64).
4 Samir Amin (1974 e 2011) defendeu a existência de uma lei do valor mundializada e a denição do
valor da força de trabalho na economia mundial, mas explica a polarização mundial pelas restrições à
circulação mundial da força de trabalho, o que tornaria as leis do modo de produção capitalista, que
supõe equalizadoras, distintas das que regeriam o sistema mundial. Tais supostos são completamente es-
tranhos à teoria marxista da dependência e à obra de Marini, que situam a polarização na própria lógica
interna do modo de produção capitalista e em seu desdobramento ao mercado mundial.
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como forma dominante de exploração da força de trabalho, o que implica reconhecer
a possibilidade deste existir como forma subordinada de exploração do trabalhador
5
.
O predomínio da superexploração não signica necessariamente a negação do mais-
-valor relativo, mas que a maior parte de sua expansão e do potencial crescimento dos
salários é apropriada por meio de mecanismos de transferência de valor, neutralizan-
do-os. Entretanto, o grau de monopolização da economia mundial e das economias
dependentes e as transferências de valor podem ser tais que eliminem o mais-valor
relativo e imponham a regressão salarial, como demonstramos em Algumas reexões
em torno da superexploração do trabalho (MARTINS, 2017), A teoria marxista da
dependência à luz de Marx e do capitalismo contemponeo (MARTINS, 2018), De-
pendency, neoliberalism and globalization in Latin America (MARTINS, 2020) e e
longue dureé of Marxist eory of Dependency and the twenty-rst century (MAR-
TINS, 2022b). A hipótese formulada por Marini, de extensão da superexploração
aos centros imperialistas pela utilização da força de trabalho dos países dependentes
como fonte de mais-valor extraordinário na globalização capitalista, aponta nesta
direção, incidindo negativamente sobre os salários em condições médias de produti-
vidade, situando por debaixo delas a grande massa de trabalhadores dos países cen-
trais e se expressando na forte elevação da desigualdade nos centros imperialistas e
na periferia dependente.
Apesar da instigante proposição de Andy Higginbottom (2010) de que a superex-
ploração do trabalho deve ser considerada uma terceira forma de extração de mais-
-valor, esta inclui o mais-valor absoluto com uma de suas variantes. A consideramos,
em seu plano mais geral e abstrato, uma forma de extração antagônica ao mais-valor
relativo e que, exatamente por isso, desvela a totalidade da dialética da reprodução
ampliada do capital, apontando a conjunção entre o seu elemento positivo, a criação
de mais-valor, e o negativo, a transferência de mais-valor, esta negada ou, em maior
ou menor medida, ocultada pelo pensamento liberal e desenvolvimentista. O pró-
prio Marini não percebeu toda a radicalidade de sua descoberta, como evidencia a
sua pretensão de incluir o mais-valor relativo como uma das modalidades de supe-
rexploração mediante a elevação da intensidade do trabalho, sob o argumento de que
afetaria os dois tempos da jornada. Entretanto, para Marx, no mais-valor relativo, os
“En este sentido, se pueden encontrar en mi ensayo indicaciones, aunque notoriamente insucientes,
que permiten vislumbrar el problema de fondo que la teoría marxista de la dependencia está urgida a
enfrentar: el hecho de que las condiciones creadas por la superexplotación del trabajo en la economía
capitalista dependiente tienden a obstaculizar su tránsito desde la producción de plusvalía absoluta a
la de plusvalía relativa, en tanto que forma dominante en las relaciones entre el capital y el trabajo. La
gravitación desproporcionada que asume en el sistema dependiente la plusvalía extraordinaria es un
resultado de esto y corresponde a la expansión del ejército industrial de reserva y al estrangulamiento
relativo de la capacidad de realización” (MARINI, 1973a, p. 100).
50
ARTIGOS (DOSSIÊ)
dois tempos são modicados pelo aumento da capacidade produtiva do trabalho, e a
força de trabalho se vende por seu valor, supostos que não se encontram na elevação da
intensidade como forma de superexploração e nem na apropriação do fundo de consu-
mo do trabalhador, que também afetaria os dois tempos da jornada, o que sublinha não
poder ser a modicação simultânea dos tempos um critério isolado para especicar o
que é o mais-valor relativo sem incluir as determinações que Marx estabeleceu
6
.
Cabe então distinguir dois níveis de análise da superexploração, isto é, como ti-
pologia abstrata de exploração da força de trabalho que exclui o mais-valor relativo;
e como forma concreta dessa exploração, que pode vir a se combinar com este, onde
se toma como referência para o valor da força de trabalho, aquele estabelecido nas
condições médias de produtividade e intensidade da economia mundial e na econo-
mia nacional, de acordo com os padrões de acumulação de capital vigentes. Na de-
terminação do valor da força de trabalho, tem centralidade a economia mundial, que
é cada vez maior quanto for a sua capacidade de integrar a circulação das economias
nacionais ao mercado mundial. A superexploração tem forte vinculação a formas de
compensação das transferências de mais-valor, mas não se resume a essas, podendo
signicar, como na globalização capitalista, uma reação do capital – por meio do
desemprego tecnológico, uso da força de trabalho barata da periferia e nanceiriza-
ção – aos impactos negativos do aumento do valor da força de trabalho sobre a taxa
de mais-valor, provocado pela revolução cientico-técnica, segundo eotonio dos
Santos (2000, 2004 e 2016) e Carlos Eduardo Martins (2011, 2020, 2021a e 2023),
apropriando-se de um conceito de Radovan Richta (2018 [1968]), ou pela conversão
dos trabalhadores em analistas simbólicos, que menciona Marini (1996).
Foi a diculdade em distinguir com clareza esses dois níveis de análise, presen-
tes de forma embrionária em sua metodologia, que levou Marini a incluir indevi-
damente um mais-valor relativo espúrio na tipologia abstrata da superexploração e,
por vezes, a aparentar excluir o mais-valor relativo, tal como denido por Marx, das
formações sociais concretas em que a superexploração é dominante como forma de
exploração
7
. Tal procedimento fragilizou seu enfoque em algumas passagens de seus
6 Juan Cristobal Cardenas (2018) criou a categoria de mais-valor relativo usurpatório para incluir a
apropriação do fundo de consumo do trabalhador como mais-valor relativo, posição com a qual não
estamos de acordo.
7 Um exemplo disso é a passagem de Dialéctica de la dependencia em que Marini armou de forma pe-
remptória que determinadas mercadorias estariam excluídas do consumo popular. “Para ello concurrió
decisivamente la vinculación de las nuevas técnicas de producción a ramas industriales orientadas hacia
tipos de consumo que, si tienden a convertirse en consumo popular en los países avanzados, no pueden
hacerlo bajo ningún supuesto en las sociedades dependientes. El abismo existente allí entre el nivel de
vida de los trabajadores y el de los sectores que alimentan a la esfera alta de la circulación hace inevitable
que productos como automóviles, aparatos electrodomésticos, etc., se destinen necesariamente a esta
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escritos, mas em nosso entendimento não atingiu as bases fundamentais de seu mé-
todo para fundar e desenvolver a teoria marxista da dependência.
O desenvolvimento ainda embrionário de alguns aspectos do conceito de supe-
rexploração do trabalho em Marini – que acarretou, em determinados momentos,
a perda de autonomia relativa do nível concreto diante do abstrato do conceito e da
economia mundial diante da economia nacional na denição do valor da força de
trabalho – levou alguns de seus mais rigorosos seguidores a incorrerem em expli-
cações idealistas para demonstrar a compatibilidade da superexploração da força de
trabalho com o mais-valor relativo. Assim, autores qualicados, como Jaime Osório
(2006, 2018 e 2022a) e Mathias Luce (2018), recorrem a expedientes como a mudança
do valor histórico-moral da força de trabalho para explicar a ampliação do consumo
em situação de superexploração, incluindo-a como fator independente, conectado
diretamente com o desenvolvimento das forças produtivas, sem relacioná-la de forma
ampla com a teoria do valor e os processos de exploração dos trabalhadores, geração
e apropriação de mais-valor, onde deve estar inserida
8
. É preciso ainda incorporar
como quarta forma de superexploração, não estabelecida explicitamente por Marini
como uma de suas variantes, o aumento do valor da força de trabalho sem a elevação
absoluta ou proporcional de seus preços, que ganha importância crescente com a
reprodução ampliada do capitalismo e o desenvolvimento de suas forças produtivas
9
.
Outro tema, em que alguns de seus seguidores não acompanharam o desenvolvi-
mento metodológico do conceito de superexploração estabelecido pelo próprio Ma-
rini, é o que se refere à difusão desse tipo de exploração para as economias centrais
por meio do estabelecimento de um novo arranjo organizacional para a extração do
mais-valor extraordinário pelas corporações transnacionais, mediante a globalização
capitalista e a mundialização da lei do valor. Autores como Jaime Osório (2018 e
2022b) e Mathias Luce (2018) insistem na centralidade de Dialéctica de la dependen-
última” (MARINI, 1973a, p. 72). Ou o trecho da mesma obra em que arma que as indústrias dirigidas
ao consumo popular tendem à estagnação ou à regressão, armação que reescreve em Las razones del
neodesarrollismo: respuesta a F.H. Cardoso e Jose Serra (1978), sua resposta a Fernando Henrique Car-
doso e José Serra, para mencionar que tinha em mente taxas e não valores absolutos, o que não estava
explícito na versão inicial (MARINI, 1978, p. 73).
8 “El elemento histórico moral le da a la mercancía fuerza de trabajo una impronta particular, en tanto
no se trata de reproducir animales sin más, sino seres humanos, acostumbrados a formas particulares
de alimentación, y que van formando parte de una sociedad donde aparecen nuevos bienes, que al aba-
ratarse, pasan a formar parte de los bienes salarios” (OSÓRIO, 2006, p. 78).
9 Carlos Eduardo Martins foi o primeiro a apontar essa forma de superexploração dos trabalhadores:
“[...] isso signica uma queda dos preços da força de trabalho por meio de três mecanismos a extensão
da jornada de trabalho ou a elevação da intensidade ambas sem o aumento correspondente ao maior
desgaste da força de trabalho e a redução salarial. Seria possível agregar ainda o aumento do valor da
força de trabalho via qualicação sem o aumento correspondente do salário” (MARTINS, 2006, p. 930).
52
ARTIGOS (DOSSIÊ)
cia na obra de Marini e na especicidade do capitalismo dependente diante de ou-
tras formações sociais no capitalismo mundial. Entretanto, este autor nunca tomou
Dialéctica de la dependencia como a conclusão de uma linha de pesquisa, mas sim
como o texto que a abriu, ao deni-la de forma sistemática, inscrevendo-a no âmbito
do processo mais amplo e criativo de seu pensamento. Nesse livro, ele apontou que a
relação positiva entre o desenvolvimento das forças produtivas e a maior exploração
da força de trabalho não é exclusiva da economia dependente, mas inerente ao pró-
prio modo de produção capitalista, apresentando nela caráter agudo e dominante.
Em sua apresentação para a versão em inglês de Dialéctica de la dependencia, pu-
blicada pela Monthly Review, Jaime Osório se esforçou para apresentar as formulações
de Procesos y tendencias de la globalización capitalista, nos marcos do livro paradig-
mático de Marini, ao invés de concebê-las como uma continuidade que o desenvolve
e ultrapassa. Osório apresentou a tese de Marini de 1996 de que a superexploração
estaria se difundindo aos países centrais nos termos de Dialética da dependência, isto
é, como uma forma de exploração subordinada, que armou estar restrita às mino-
rias étnicas, imigrantes e indocumentados (OSÓRIO, 2022b, p. 158). Entretanto, a
interpretação de Marini nos anos 1990 se modicou, e o fator determinante é a sua
análise dos padrões de reprodução do capital estabelecidos pela mundialização da lei
do valor. É esse o fator dinâmico que permitiu a Marini reformular sua interpretação
sobre a incidência da superexploração da força de trabalho nas formações sociais,
redenindo suas análises dos anos 1970 e 1980. Novos padrões de reprodução do
capital modicam o lugar da maior exploração do trabalhador no modo de produção
capitalista e sua expressão geoeconômica e geopolítica. O pensamento de Marini não
deve ser tomado como estático, mas dinâmico em função da mudança nos pprios
processos de acumulação.
Marcelo Carcanholo e Hugo Figueroa Corrêa (2016) e Marisa Amaral (2018) tam-
bém se opuseram ao uso da categoria superexploração da força de trabalho para os
países centrais, ainda que por outras razões. Carcanholo e Corrêa zeram uso de uma
análise de O capital que pretende subordinar as dimensões históricas e concretas às
lógico-teóricas, mas terminaram por encerrar o pensamento de Marx em esquemas
abstratos que ignoram as contradições entre os múltiplos níveis de concreção a que
se referem, deixando de tomar em conta os movimentos da realidade que modicam
suas interrelações, hierarquias e o desenho de totalidade onde se inscrevem. Trata-
-se de uma metodologia idealista, reducionista, que reivindica para si a ortodoxia
marxista, mas caminha para o abstrato, em sentido inverso ao da dialética, uma vez
que esta modica os conceitos em seu movimento para o mais complexo. Os auto-
res armaram que, segundo Marx, os preços da força de trabalho se vendem ao seu
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valor, ainda que não se vendam em situações particulares, que carecem de interesse
teórico para análise do modo de produção capitalista por serem históricas. Em razão
disso, assinalaram que o conceito de superexploração não faz sentido para designar
uma forma particular de exploração, pois as variações de preço em relação ao valor
da força de trabalho se inscrevem na categoria exploração. Propuseram então cir-
cunscrever a validade do conceito de superexploração às transferências de mais-valor
sofridas pela periferia em favor dos centros. Em seu esforço para harmonizar Marini
com o Marx que apresentaram como denitivo, suprimiram do primeiro as reexões
que inscrevem a superexploração como uma variante do desenvolvimento das forças
produtivas do modo de produção capitalista. Marisa Amaral respaldou as reexões
de Carcanholo e Corrêa e vinculou a superexploração ao rentismo e à nanceiriza-
ção do capital, sem explicar por que, sendo hegemônicos na acumulação mundial de
capital, só imporiam a superexploração à periferia.
Os problemas desse tipo de abordagem são vários. Em primeiro lugar, Marini
nunca supôs que a superexploração não se inscrevia dentro da categoria exploração,
sem por isso perder especicidade como uma de suas formas particulares. O fato de
a exploração abarcar variações de preços em relação ao valor da força de trabalho
não desabilita a superexploração como conceito porque esta designa uma forma su-
cientemente singular de exploração. Ela se estabelece quando as variações de preços
para baixo do valor da força de trabalho são sistemáticas, o que aponta uma realidade
distinta do nível mais geral e preliminar da formulação de Marx. Em segundo lugar,
restringir a superexploração às transferências de mais-valor, eliminando-a como for-
ma especíca de extração de mais-valor, signica encerrá-la na circulação, onde não
se produz mais-valor, mas se apropria, implicando uma contradição formal. Em ter-
ceiro lugar, como demonstrou Marini, principalmente, em Plusvalía extraordinária y
acumulación de capital, as transferências de mais-valor, antes que internacionais, são
intrasetoriais e intersetoriais, podendo se efetivar entre os Estados ou no interior des-
tes. Finalmente, postular que, para Marx, os preços da força de trabalho se vendem
sempre em média por seu valor, é ignorar suas reexões sobre a tendência decrescen-
te da taxa de lucro e as contradições entre a taxa e a massa de mais-valor, direção do
modo de produção capitalista impulsionado por forças produtivas mais avançadas.
A difusão da superexploração da força de trabalho aos países centrais foi destaca-
da por autores como Adrian Sotelo Valencia (2016, 2019) e Carlos Eduardo Martins
(2011, 2018, 2020 e 2023), que apontaram como expressões dessa realidade o forte
incremento da desigualdade, a apropriação do fundo de consumo do trabalhador, a
crise ideológica do liberalismo, a agudização da luta de classes e o crescimento do fas-
cismo nos segmentos desorganizados da classe trabalhadora, incapazes de fazer fren-
54
ARTIGOS (DOSSIÊ)
te à ofensiva do grande capital e às disputas internas entre suas frações. Na mesma
direção se colocou John Smith (2016), que redeniu a teoria do imperialismo para
situar a superexploração como a essência do imperialismo no século XXI. Tal difusão
não signica, entretanto, eliminar as diferenças entre países imperialistas e países
dependentes, que continuam a existir em razão do monopólio das forças produtivas,
das transferências de mais-valor e dos distintos padrões de qualicação da força de
trabalho. A extensão da superexploração aos países centrais tem relação com: a) uma
nova etapa de composição técnica e orgânica de suas frações superiores do capital; b)
transferências de mais-valor impostas aos segmentos que empregam a maior parte de
seus trabalhadores e são movidos para debaixo das condições médias de produtivi-
dade e intensidade. Não apenas em Plusvalía extraordinária y acumulación de capital
(1979c), mas também em Dialéctica de la dependencia (1973a), Las razones del neo-
desarrollismo (1978) e El ciclo del capital en la economía dependiente (1979a), Marini
mencionou que a superexploração pode estar determinada por transferências inter-
nas de mais-valor, e não apenas pelas externas, formulação que antecedeu seus escri-
tos dos anos 1990, quando analisou o novo padrão de reprodução global do capital.
O diálogo com a crítica
As principais críticas ao conceito de superexploração de Marini vêm de um conjunto
de matrizes de interpretação que podemos resumir da seguinte forma: a) a leitura
desenvolvimentista do capitalismo mundial, cuja principal expressão são análises
weberianas do capitalismo dependente; b) o enfoque desenvolvimentista dos capita-
lismos nacionais, cuja principal pretensão é a de promover um capitalismo organiza-
do que internalize o ciclo industrial ou eleve a participação do Estado nacional nas
cadeias de valor globais; c) o endogenismo, que atribui características do capitalismo
latino-americano fundamentalmente à combinação de forças econômicas, sociais,
políticas e culturais internas. Tais análises, ainda que distintas, inuenciaram-se re-
ciprocamente, afetando as esquerdas e parte do campo marxista. Elas sustentaram,
em maior ou menor grau, as seguintes teses: a) uma visão apologética que dene os
capitalismos industrial e pós-industrial como fundados de forma dominante ou ex-
clusiva no mais-valor relativo; b) a negação ou minimização das transferências de va-
lor; c) a determinação do valor da força de trabalho em bases estritamente nacionais;
d) a incapacidade de compreender a limitação que a superexploração exerce sobre
o mais-valor relativo; e) a desqualicação da superexploração como fundamento da
dependência em favor das transferências de valor; f) a postulação de que o conceito
de superexploração trunca ou viola substantivamente a lei do valor; g) a reivindica-
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ção de que as particularidades da América Latina derivam do que se chamou articu-
lação de modos de produção ou da combinação entre a modernidade capitalista com
a persistência de formas pré-modernas patrimoniais, coloniais ou comunais.
A mais importante linha de ataque é a que sustenta que a modernidade capitalista
se baseia no mais-valor relativo. Esse enfoque foi articulado principalmente pelas
análises weberianas da dependência e pelo neodesenvolvimentismo, ganhando no
pensamento endogenista dominância mais matizada. Os críticos de maior destaque
foram Fernando Henrique Cardoso e José Serra, cujo texto conjunto expressou a con-
vergência das análises weberianas do primeiro com o enfoque neodesenvolvimentis-
ta do segundo (CARDOSO e SERRA, 1978). Cardoso tratou de separar as análises
de Marx do livro I de O capital, dedicado ao processo de produção do capital – em
particular, a seção IV – daquelas do livro III, voltado para o processo de produção
global de capital, que insere a abordagem inicial em uma totalidade mais complexa,
tomando como objetos a concorrência, as transferências e a apropriação de mais-va-
lor. Ao amputar o pensamento de Marx, Cardoso formulou um tipo ideal do modo
de produção capitalista, voltado eminentemente para a criação de valor, minimizan-
do a sua dialética negativa e as contradições intercapitalistas. Pôde, assim, promover
a dependência e a associação do capital local ao imperialismo como objetivo nacional
dos países latino-americanos, e confundir elevação de produtividade com produção
de mais-valor, característica que atravessou seus textos sobre economia política.
Esse Marx domesticado e inofensivo foi mesclado pelo pensamento neodesen-
volvimentista com outras referências, como Keynes, Schumpeter, Steindl e Kalecki,
para reivindicar um ciclo endógeno e autônomo de desenvolvimento, em particular
durante os anos 1970 e 1980, baseado na articulação entre distintas formas de oligo-
pólio e a tecnoburocracia estatal, que deslocaram os limites do crescimento para a
demanda interna e para os arranjos nanceiros que vincularam diferentes setores e
tipos de rmas. A demanda dos capitalistas atrelou a expansão do setor de bens da
capital à sua expansão, garantindo um padrão de crescimento excludente, e as crises
abriram o espaço para aprofundá-lo, ou construir novos estilos de desenvolvimento,
em que a demanda estatal e os bancos públicos tornaram-se chaves para construir
padrões de crescimento e nanciamento mais equilibrados
10
.
10 Entre os principais pensadores neodesenvolvimentistas estão Maria da Conceição Tavares (1985
[1974] e 1998 [1978]), José Serra (1982), João Manuel Cardoso de Mello (1982[1975]), Antonio Bar-
ros de Castro e Francisco Eduardo Souza (1985), Luiz Bresser Pereira (1982), Guido Mantega (1984)
e Paul Singer (1979), vinculados ao Instituto de Economia Industrial/UFRJ, ao Instituto de Economia
da UNICAMP, à Fundação Getúlio Vargas de São Paulo ou ao CEBRAP. No México se destacam Jorge
Castañeda e Enrique Hett (1978). Marini (1979-b) critica Maria da Conceição Tavares por tomar o
consumo dos capitalistas, que ela nomeia como setor III, apenas como uma demanda externa, vincu-
lado à apropriação e redistribuição do mais-valor, ignorando a sua constituição como setor produtivo
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
As análises weberianas se afastaram em grau desse enfoque, ponderando mais
ênfase às restrições externas, embora postulassem ser o desenvolvimento o elemento
predominante na relação com a dependência. Com a nanceirização da acumulação
de capital, a diminuição das taxas de crescimento econômico, a precarização das re-
lações de trabalho e a destruição de direitos sociais promovidas pelo neoliberalismo
nos centros imperiais e suas periferias na América Latina nos anos 1990, a postulação
da centralidade do mais-valor relativo perdeu ênfase e saiu de cena, sem ser descarta-
da e substituída por outra formulação nessas matrizes de pensamento. Nos primeiros
15 anos do século XXI, a onda progressista na América Latina e Caribe se armou e o
reformismo liberal de esquerda foi protagonista. Este reivindicou o projeto de transi-
ção a um capitalismo includente, com forte expansão dos estratos médios, a partir do
aumento do valor da força de trabalho, desvalorização de bens de consumo duráveis
e ampliação do consumo de bens de consumos leves, capaz de proporcionar uma
democracia estável. O cerco que a direita impôs a esse projeto, os diversos golpes de
Estado e processos de desestabilização implementados, assim como a destruição da
integração latino-americana, colocou em xeque a hipótese de um reformismo lento
e contínuo.
A negação e a minimização das transferências de valor assumem diversas formas.
A mais elementar é a confusão entre trabalho abstrato e trabalho socialmente neces-
sário; produtividade e valor; e mais-valor extraordinário e a geração de mais-valor. O
primeiro nível da criação de valor é o da quantidade de trabalho abstrato. Entretanto,
como a produção de valor implica a produção de valores de uso, a quantidade de
trabalho para ser equivalente geral de medida do valor necessita representar as con-
dições médias de produtividade, intensidade e destreza em que se produz as merca-
dorias socialmente necessárias. Cria-se, então, uma apropriação do valor gerado pelo
trabalho abstrato exercido em condições inferiores ou médias de produtividade por
aquele exercido em condições superiores, exatamente porque a relação entre trabalho
abstrato e trabalho concreto, ou entre valor e produtividade, é dialética, estabelecen-
do-se uma síntese contraditória entre essas dimensões distintas. A incapacidade de
distinguir entre esses dois níveis, onde é gerado ou apropriado o valor, é o que funda-
menta a confusão entre a produção de mais-valor e mais-valor extraordinário, pedra
de toque do pensamento neodesenvolvimentista, que estende sua inuência sobre o
marxismo em função da hegemonia do liberalismo e do nacionalismo metodológico.
Exemplos destes equívocos são Cardoso e Serra (1978), que descartaram o conceito
de trabalho socialmente necessário na economia mundial e não se dão conta que
transferências de valor podem se fazer via preços, em razão de confundirem traba-
especíco vinculado à produção e à realização de mais-valor, o que minimiza as crises e seus efeitos.
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lho abstrato e trabalho concreto, ou produtividade com valor, como denunciou Ruy
Mauro Marini (1978).
Claudio Katz (2018) descartou a superexploração da força de trabalho como uma
categoria central nas periferias dependentes por denir o valor da força de trabalho
em bases nacionais. O valor da força de trabalho teria base histórica nas diferenças de
produtividade de cada Estado ou região, sendo determinado pelo grau de desenvolvi-
mento interno, modalidade de inserção internacional e pelas oscilações salariais que a
luta de classes produzisse dentro desses condicionamentos. O que existiria, segundo
o autor, seria o baixo valor da força de trabalho e não a superexploração, submetendo
o marxismo às teorias desenvolvimentistas. Embora tenha se referido às transferên-
cias internacionais de valor, Katz não descreveu a concretude e a operacionalidade
da categoria, que permaneceu genérica e tangencial em seu esquema, cometendo o
erro que atribui incompreensivelmente a Marini. O intérprete brasileiro as detalhou e
desenvolveu exaustivamente no plano teórico-metodológico, debruçando-se sobre o
intercâmbio desigual, o mais-valor extraordinário, os preços de produção, os preços
de produção de mercado, o mais-valor extraordinário entre os distintos setores de
produção, além das transferências de valor de liais a matrizes das corporações mul-
tinacionais, ou as estabelecidas pelo capital nanceiro internacional. Katz desenhou,
assim, o estranho cenário de uma economia mundial com transferências de valor
abstratas e sem superexploração.
A incapacidade de compreender a relação dialética entre transferências de valor
e superexploração do trabalho conduziu Katz a retomar Enrique Dussel (1985) para
opô-las e armar que as transferências de valor são o fundamento da dependência
e não a superexploração. A maior parte dos trabalhadores produziriam mercadorias
vendidas por valor social abaixo do valor individual, mas apenas a força de trabalho
seria vendida em qualquer parte do mundo por seu valor, com a exceção de polos
marginais maiores ou menores de acordo com os espaços geoeconômicos. Ele as-
sinalou ainda que, se por hipótese a superexploração se estendesse aos centros, o
capitalismo dependente perderia a sua especicidade.
Todavia, contrariamente ao que pensa Katz, não são as imposições da economia
mundial que fundamentam a dependência, mas sim como as classes dominantes des-
sas formações sociais denem as relações de produção internas diante desses condi-
cionamentos externos. Ao aplicar o método marxista para as condições de dependên-
cia, Marini partiu da circulação à produção, para só por meio dela voltar à circulação.
É a remuneração da força de trabalho por debaixo de seu valor o elemento primordial
da reprodução ampliada da dependência, pois limita a capacidade endógena de
desenvolvimento das forças produtivas, componente estratégico para a produção e
58
ARTIGOS (DOSSIÊ)
apropriação de mais-valor, e estabelece os determinantes da reprodução ampliada da
dependência. As transferências de valor atingem também Cuba e China, mas é o es-
forço para elevar o valor da força de trabalho nesses países que lhes vem permitindo
armar e desenvolver a soberania cientíca e tecnológica em diversos campos e, no
caso do país asiático, desaar a liderança dos Estados Unidos no mundo. A extensão
da superexploração aos países centrais não elimina a especicidade dos países de-
pendentes. Se, de um lado, essa extensão se associa ao declínio tecnológico dos países
imperialistas ocidentais a partir de um lugar distinto no sistema-mundo, de outro se
vincula fundamentalmente à transferências internas de mais-valor em favor de suas
frações de capital mais internacionalizadas, e não em benefício de frações estrangei-
ras e externas do capital.
A incapacidade de compreender os elementos centrais e a potencialidade do eixo
metodológico lançado por Marini leva à confusão entre o conceito de superexplora-
ção do trabalho como tipologia abstrata, que exclui o mais-valor relativo, tal como
denido por Marx, e como forma de exploração dominante que se combina com
o mais-valor relativo, restringindo-o signicativamente. Não apenas Claudio Katz
apresentou em diversas partes a superexploração como uma teoria da pauperização,
mas outras intérpretes marxistas, como Virginia Fontes, também se aproximaram
dessa análise. Ela assinalou que o conceito de superexploração de Marini implica o
truncamento da lei do valor no que se refere à força de trabalho e ao mercado interno,
correspondendo a um período de desenvolvimento do que chama de capital-impe-
rialismo brasileiro dos anos 1960, rapidamente superado na década seguinte (FON-
TES, 2010). Segundo a autora, Marini não teria percebido que o desenvolvimento
por substituição de importações se dirigia basicamente ao mercado interno. Nildo
Ouriques, em seu destacado livro O colapso do gurino francês (2014), dedicou um
capítulo à superexploração, mas a entendeu basicamente por uma de suas formas, a
redução salarial, que confundiu com a remuneração abaixo de seu valor, sua deni-
ção geral e ampla, sem especicar o que entende concretamente pelo valor da força
de trabalho
11
.
Embora essa confusão tenha base em certa ambiguidade que permeia a obra de
Marini e que aparece eventualmente em algumas de suas passagens, não constitui,
11 “Ricardo Antunes jamais fez menção à remuneração da força de trabalho abaixo de seu valor como
característica essencial da superexploração como modalidade de extração de mais-valor na periferia
capitalista. É precisamente a superexploração que transforma parte do fundo de consumo dos traba-
lhadores em fundo de acumulação para o capitalista […] é preciso incluir, sobretudo, o salário como
mecanismo decisivo da remuneração da força de trabalho por debaixo de seu valor” (OURIQUES, 2014,
p. 92-95). Nildo Ouriques tampouco fez menção à quarta forma de superexploração que indicamos, a
elevação do valor da força de trabalho sem o aumento salarial correspondente.
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como mencionamos, o seu núcleo metodológico central e mais importante. Em Plus-
valía extraordinária y acumulación de capital, que em sua Memória considerou um
complemento indispensável a Dialéctica de la dependencia, o autor apontou o mais-
-valor relativo, nos termos de Marx, como forma subordinada à superexploração na
periferia dependente, que não implica necessariamente a sua eliminação: “Por otro
lado, dada la superexplotación del trabajo, es decir, el hecho de que la fuerza de tra-
bajo se remunere por debajo de su valor, la necesidad de desvalorizarla no se impone
con la misma fuerza que en los países capitalistas avanzados […]” (MARINI, 1979c,
p. 33).
O que é fundamental no capitalismo dependente para Marini é que a superex-
ploração é a sua forma de exploração principal, podendo impedir, subordinar ou até
eliminar o mais-valor relativo. Não é a presença do mais-valor relativo que exclui
a superexploração, como pensam Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Guido
Mantega ou Paul Singer, mas a sua mediocridade que a estabelece como forma de ex-
ploração predominante, convertendo a pressão salarial em fonte de desestabilização
do sistema político liberal representativo. A superexploração tampouco representa o
truncamento da lei do valor, como imagina Virginia Fontes, mas exatamente o con-
trário, pois o desenvolvimento dialético da lei do valor desestabiliza equivalências
que foram tomadas como ponto de partida. Este tema atravessa a crítica da economia
política de Marx e o leva a formular múltiplos conceitos para dar conta da transfor-
mação das equivalências originais. Marini apenas acrescenta mais um conceito no
processo de construção de categorias de análise do autor alemão. Não se sabe por
que Virginia Fontes, uma autora cuidadosa, atribuiu a Marini desconhecer serem
os processos de substituição de importações dirigidos ao mercado interno. O autor
analisou abundantemente a expansão do mercado interno durante o auge da subs-
tituição de importações e a partir da penetração do investimento direto estrangeiro
na indústria brasileira, apontando as formas da circulação de mercadorias a que deu
lugar, criando categorias analíticas para explicar o divórcio entre as esferas alta e bai-
xa do consumo.
A pretensão de separar o subdesenvolvimento de imperialismo e dependência se
armou com o pensamento endogenista e conectou-se com as análises weberianas da
dependência que procuram apresentá-la como o paradigma de desenvolvimento dos
países periféricos, separando-a das mazelas das formações sociais periféricas em que
predomina. Uma das formas do endogenismo é a teoria da articulação dos modos
de produção, que sustenta ser a combinação de distintos modos de produção a razão
para que o capitalismo latino-americano se afaste do padrão alcançado nas socieda-
des industriais e de serviços europeias e anglo-saxãs dos anos 1950-70, supostamente
60
ARTIGOS (DOSSIÊ)
a evolução mais próxima do desenvolvimento das leis puras, ideais típicas e exempla-
res do capitalismo. Retira-se do conceito de modo de produção a sua dimensão su-
perestrutural, reduzindo-o à articulação de forças produtivas e relações de produção
sem a mediação do Estado, priorizando-se sua caracterização como valor de uso em
detrimento de sua articulação com a circulação. O conceito de modo de produção é,
assim, convertido ao de formas produtivas, que, desconectadas da unidade dialética
com a circulação, são desvinculadas da economia mundial, do processo de valoriza-
ção do valor e de suas transferências espaciais. Diversicam-se as teses sobre distin-
tos modos de produção, referentes às variadas combinações de forças produtivas e
relações de produção, que passam a ser tomadas isoladamente e denidas segundo
modelos abstratos orientados principalmente pela história milenar europeia, mas
descolados da história do moderno sistema-mundo e da economia mundial capitalis-
ta. Agustín Cueva (1974 e 1977) se referiu a estruturas dominantes pré-capitalistas e
à presença de relações feudais na América Latina durante o século XIX. Ele deu cen-
tralidade a processos endógenos de acumulação originária e explicou a via oligárqui-
ca de transição para o capitalismo dependente principalmente pela heterogeneidade
estrutural, representada pela combinação de distintos modos de produção internos.
Ciro Flammarion Cardoso e Hector Brignolli desenvolveram o conceito de modo de
produção colonial, denido como uma estrutura pré-capitalista, que se hibridizou
posteriormente com o modo de produção capitalista – associado pelos autores ao
emprego de força de trabalho assalariada, à geração de mais-valor relativo e ao uso de
técnicas industriais – impondo-lhe limites e modicando suas leis puras (CARDO-
SO, 1973; CARDOSO e BRIGNOLLI, 1983 [1979]). A economia mundial só é vista
como capitalista e revolucionária com a emergência da grande indústria britânica,
apesar das imensas transformações econômicas, políticas, espaciais, demográcas e
civilizatórias entre os séculos XVI e XVIII. Grande ênfase foi colocada na autono-
mia das estruturas internas latino-americanas e na presença nelas do pré-capitalismo
para a explicação do subdesenvolvimento e das formas predominantes de exploração
da força de trabalho no capitalismo periférico. Outras expressões desse enfoque são
Carlos Sempat Assadourian (1973 e 1982) e Enrique Semo (1978), que representaram
a reação da intelectualidade ligada aos partidos comunistas de orientação soviética
ou maoísta à ofensiva da teoria marxista da dependência e das análises do sistema-
-mundo nos anos 1960, 1970 ou 1980 (MARINI, 1992; MARTINS, 2021b).
A herança ibérica, o patrimonialismo dela derivado, ou as tradições comunais e
corporativas são apontados pelo endogenismo e neodesenvolvimentismo como os
limites para o estabelecimento de um capitalismo racional, promotor do desenvol-
vimento das forças produtivas e democrático. Maria da Conceição Tavares inverteu
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a cronologia e o sentido da letra de Chico Buarque de O fado tropical - em que o
compositor, em homenagem à Revolução dos Cravos, apresentou um Brasil predes-
tinado a virar um “grande Portugal” socialista no futuro -, dirigindo-a para o passa-
do e para uma dimensão negativa e patrimonialista que acompanharia a história do
país
12
. O pensamento neogramsciano, inuenciado pelo eurocomunismo dos anos
1980, atribuiu as ameaças à consolidação de nossa democracia às estruturas internas
formadas pelo iberismo e pela herança colonial, que poriam em risco e em incom-
pletude a transição para o Ocidente político, descartando como relevantes os con-
dicionamentos da dependência e do imperialismo à questão nacional. Sendo a luta,
sobretudo, contra a reatualização do passado, que se hibridizaria com a dinâmica
da modernidade capitalista, essa, em sua condição plena, não representaria limite
para a consolidação e desenvolvimento da democracia, propondo-se a aliança com
o liberalismo racional e o centro político como diretriz de estratégia e tática. A meta
seria a de estabilizar a batalha das ideias dentro do regime político democrático para
convertê-lo em um valor universal. Expressões desse pensamento no Brasil são os
trabalhos de Carlos Nelson Coutinho (1979), Leandro Konder (1984) e Luiz Werneck
Vianna (1986), todos oriundos do grupo Renovação do Partido Comunista Brasileiro
dos anos 1970/80. Werneck Vianna defendeu a persistência de uma modernização
baseada na combinação entre americanismo e iberismo, sob direção do primeiro.
Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho posicionaram-se mais à esquerda, a par-
tir dos anos 1990, e restringiram a necessidade de composição com o liberalismo
conservador, ingressando no PT e depois no PSOL.
Subimperialismo, imperialismo e revolução no capitalismo contemporâneo
O conceito de subimperialismo começou a ser formulado por Marini em 1965, com
a publicação de Brazilian interdependence and imperialist integration (1965a) e El eje
militar Brasil-Argentina y el subimperialismo (1965c). Nesses artigos o subimperialis-
mo surgiu como um resultado da integração do Brasil ao imperialismo, impulsiona-
do por tendências políticas e econômicas: as primeiras, relacionadas à substituição
da política externa independente de Jânio Quadros e João Goulart pela de interde-
pendência continental e fronteiras ideológicas, que colocou o conceito de segurança
continental no lugar de soberania nacional; e as últimas, para solucionar a contradi-
12A aliança explícita da coroa portuguesa com a potência que derrotaria Napoleão e que imporia a
Pax Britânica ao mundo por mais de um século permitiu que o Brasil se constituísse desde o começo
do século XIX (e não no futuro, como temia Chico Buarque) num imenso Portugal” (TAVARES, 1999,
p. 450).
62
ARTIGOS (DOSSIÊ)
ção entre o desenvolvimento da produtividade e a limitação dos mercados internos,
provocada pela introdução da tecnologia estrangeira, através da conquista de mer-
cados de exportação e da expansão da demanda estatal para equipamentos militares.
O autor apontou que o subimperialismo se baseou em uma política de repressão
salarial para atrair investimentos estrangeiros e repartir os lucros com o imperialis-
mo, além de atuar para gerar o mesmo modelo político em outros países da América
Latina, substituindo democracias liberais por ditaduras militares, em particular na
Argentina e Uruguai, o que transformou a resistência e o socialismo em processos de
emancipação e revolução continentais.
Em Subdesarrollo y revolución, em particular, no prefácio à 5ª edição, de 1974, o
autor desenvolveu esse conceito, que aprofundou em Estado y crisis en Brasil (1977a),
La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo (1977b) e, particularmente,
em Geopolítica latino-americana (1985), Estado, grupos económicos y proyectos políti-
cos no Brasil:1945-1988 (1989) e Dependência e integração na América Latina (1992).
O subimperialismo é teorizado como a etapa da fusão do capital bancário e industrial
dos capitalismos dependentes, que os leva a engendrar uma circulação relativamen-
te autônoma, mas por isso mesmo relativamente subordinada aos imperialismos a
que se integra. Sua emergência como fenômeno corresponde ao desenvolvimento
do imperialismo estadunidense que ultrapassa a etapa da monopolaridade para a
da integração hierarquizada e cooperação antagônica, em que os capitais privados
recuperam sua autonomia diante do Estado e a difusão tecnológica faz emergir con-
tradições entre o centro integrador, os Estados Unidos, e imperialismos rivais, sem
ameaçar a centralidade do primeiro. A rígida separação entre centro e periferia se vê
borrada pela emergência de potências capitalistas médias, que possuem pretensões
de ingressar no grupo dos imperialismos, se baseiam no Estado para aumentar seu
grau de autonomia, mas estão vinculadas pela dependência tecnológica, nanceira
e geopolítica ao imperialismo estadunidense, sendo, portanto, restringidas em sua
capacidade de manobra, o que pode dar lugar a choques de maior ou menor intensi-
dade, ocasionando distintas formas de acomodação.
Analisando o cenário no m dos anos 1970, o autor assinalou Brasil, África do
Sul, o Irã da monarquia Pahlavi, Israel e Índia como potências subimperialistas, des-
cartando as pretensões de Argentina e México (MARINI, 1977b e 1979b). Ele poste-
riormente distinguiu o subimperialismo das economias de anexação, como o México,
onde o alto coeciente de exportação não é resultado da geração de um ciclo interno,
sendo expressão de sua incorporação parcial à economia dos Estados Unidos por
meio das maquilas, que basicamente substituem a força de trabalho estadunidense
pela mexicana, sem se integrarem à circulação interna. Para o autor, a diversidade
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das frações internas burguesas e oligárquicas e a crescente competição interimperia-
lista ampliariam as possibilidades de autonomia do Estado para articular o projeto
subimperialista. Esse se apoiaria em um expansionismo regional sobre as periferias
centrado na exportação de manufaturas, no controle de matérias-primas e suprimen-
tos, na demanda estatal impulsionadora da produção de bens de capital principal-
mente para projetos bélicos, e em intervenções político-militares. O subimperialismo
se armou como projeto no Brasil antes que os problemas de realização provocados
pela reprodução ampliada do capitalismo dependente colocassem a sua necessidade
para manter o dinamismo do desenvolvimento econômico. Vinculou-se à Escola Su-
perior de Guerra e teve em Golbery do Couto e Silva o seu principal ideólogo. Alcan-
çou o seu auge durante a ditadura militar, quando foi criado o Grupo Permanente de
Mobilização Industrial (1966), que reuniu militares e industriais, quando se rechaçou
o Tratado de Tlateloco de Não-Proliferação Nuclear (1968) e lançou-se o II PND,
durante o governo Geisel, que priorizou o desenvolvimento da indústria de bens de
capital e insumos básicos no Brasil. Geisel rmou o acordo de cooperação nuclear
com a Alemanha, rompeu o acordo militar entre Brasil-Estados Unidos (1952), que
previa o envio de minerais estratégicos em troca de equipamentos militares, e abriu
espaço para a criação da Política Nacional de Informática (1984) no governo João
Figueiredo. A reserva de mercado brasileira foi duramente retaliada por Reagan com
elevações tarifárias no montante de US$ 100 milhões e proibição de compras de pro-
dutos eletrônicos brasileiros.
Marini assinalou que o subimperialismo brasileiro enfrentou resistências internas
e externas para se desenvolver e armar-se. Ele destacou:
a) a oposição da burguesia interna do setor de bens de consumo suntuários à
formação de um expressivo setor de bens de capital, impulsionado pelo apoio estatal
e orientado para a indústria bélica;
b) a nanceirização estabelecida pelo imperialismo estadunidense, que impôs o
estrangulamento macroeconômico às potências médias através da política do dólar
forte, aproveitando-se de suas debilidades estruturais, como a imensa dependência
nanceira com que pretendiam viabilizar a substituição de importações na indústria
pesada;
c) a redemocratização, que contou tanto com o apoio do imperialismo e dos seg-
mentos empresariais que se opunham à expansão da indústria pesada, quanto com
a ofensiva dos movimentos sociais e da classe trabalhadora, redenindo o papel dos
militares na direção do Estado burguês; e
d) a ofensiva neoliberal que se armou durante as ditaduras militares no Chile e
na Argentina, mas se generalizou na América Latina através do Consenso de Washin-
64
ARTIGOS (DOSSIÊ)
gton durante os anos 1990, implicando um profundo ajuste à globalização neoliberal
que implicou, por sua vez, a desnacionalização e destruição de amplos segmentos
industriais, principalmente os de maior valor agregado.
Segundo o autor, a industrialização brasileira apoiou-se em economias de trans-
ferência garantidas pelo Estado para viabilizar a substituição de importações, que se
prologaram e mantiveram-se na sustentação ao projeto exportador. Esse projeto ba-
seou-se em renúncias scais, créditos, subsídios, desvalorizações cambiais, na supe-
rexploração da força de trabalho e na estatização da dívida externa privada, mediante
a expansão da dívida pública interna que se formou a partir dos anos 1980. O estran-
gulamento das políticas industriais pelas políticas monetárias e scais restritivas e a
sobrevalorização cambial implicou o deslocamento de parte substancial da economia
de transferência para a dívida pública interna, que se tornou a principal política do
Estado brasileiro, acomodando as tensões entre as distintas frações do capital e im-
pulsionando um gigantesco processo de nanceirização.
O ajuste interno à globalização neoliberal priorizou a dívida interna e a nancei-
rização como fonte de lucro extraordinário, acelerou a desindustrialização da econo-
mia e a reprimarização da pauta exportadora, subordinando o subimperialismo, que
perdeu o suporte do projeto geopolítico e industrial-militar, da expansão do setor de
bens de capital e da indústria em geral. Sobre isso Marini assim se expressou no nal
dos anos 1980:
Partindo de um projeto industrial-exportador, base de um ideal de potência, o país chegou
à edicação de uma economia parasitária-especulativa e altamente dependente do exterior,
cujo Estado se vê privado de um princípio básico de soberania – a denição de sua política
econômica – e totalmente hipotecado ao grande capital nacional e estrangeiro. (MARINI,
1989, p. 40).
O subimperialismo brasileiro se redeniu em margens muito mais estreitas de
atuação. Descartado como prioridade por amplos setores da burguesia interna bra-
sileira face às pressões do imperialismo e à montagem de uma imensa economia de
transferência por meio da dívida pública, que restringiu o crédito e impôs taxas de
juros reais muito superiores ao crescimento da economia durante todo o ciclo de
Kondratiev expansivo de 1994-2015, se limitou, durante o auge neoliberal, à exporta-
ção de bens de consumo suntuários e de capitais – voltados para o controle de supri-
mentos estratégicos, como energia, petróleo e gás – na América do Sul. O subimpe-
rialismo voltou a ganhar prioridade no relançamento do projeto de potência média e
de reindustrialização dirigido por uma tecnoburocracia neodesenvolvimentista, sob
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o comando do governo Lula e forças de centro-esquerda
13
. Entretanto, esteve parcial-
mente limitado por uma política externa multilateral, alinhada com a integração re-
gional na América Latina, a emergência do Sul global, o questionamento da liderança
unipolar dos Estados Unidos e da hegemonia do neoliberalismo, que concretamente
implicaram a elevação dos custos de produção nas periferias. O projeto expansionista
partiu do apoio estatal a nichos de mercado, como a exportação de carnes, óleo de
soja, papel e celulose, serviços de construção civil, petróleo e gás, e veículos auto-
motores, para gerar encadeamentos no setor de bens de capital e na indústria naval.
Tal projeto impulsionou investimentos na América do Sul, Caribe e África elevando
signicativamente os créditos por remessas de lucros na balança de pagamentos e
assumiu uma face militar no comando brasileiro das tropas da Minustah, em aliança
subordinada ao Comando Sul dos Estados Unidos.
O neodesenvolvimentismo e o subimperialismo reeditados não deslocaram a cen-
tralidade das políticas de nanceirização, mas os seus efeitos positivos sobre o cresci-
mento econômico e a formalização do emprego, apoiados por uma conjuntura inter-
nacional favorável de elevação dos preços da commodities, colocaram em questão a
superexploração da força de trabalho, contribuindo para a retomada dos movimen-
tos sindicais e as explosões sociais que marcaram os anos de 2012 e 2013, o que abriu
espaço para a reação antidemocrática que culminou no golpe de Estado de 2016.
Esse golpe de Estado impôs uma economia política recessiva que criminalizou as
políticas sociais com a Emenda Constitucional nº 95, atingiu o BNDES, desmontou
os programas estatais de reindustrialização e desarticulou parte das cadeias produti-
vas subimperialistas ao tornar suas empresas alvo da Operação Lava-Jato, respaldada
pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Essa economia política recessiva
do golpe de 2016, aprofundada no governo Bolsonaro, com a independência do Ban-
co Central, o novo marco cambial e a reforma da previdência, contou com o apoio de
amplas frações do grande capital, reunindo Febraban (Federação Brasileira de Ban-
cos), Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), CNI (Confederação
Nacional da Industria), Firjan e a Sociedade Rural Brasileira, entre outras representa-
ções patronais de grande porte, além do suporte das grandes empresas que exercem o
monopólio midiático no Brasil. Tratou-se, sobretudo, de impedir que os trabalhado-
13 O atual ministro da Fazenda e ex-ministro da Educação, Fernando Haddad, assim se referiu às di-
ferenças entre os projetos de internacionalização de Fernando Henrique Cardoso e Lula: “FHC, desde
sempre, não depositava muita conança na burguesia nacional e imaginava um acoplamento da econo-
mia nacional à ordem mundial de tipo subcapitalista. Em outras palavras, FHC via a burguesia nacional
apenas como um sócio menor e dependente do capital internacional. Lula, ao contrário, sem negar
nossas diculdades históricas, imaginava a possibilidade do exercício de um subimperialismo, de tipo
regional, mediante a internacionalização do capital nacional feita com o apoio do Estado nacional, mas
limitada pela ação do capital internacional” (HADDAD, 2017).
66
ARTIGOS (DOSSIÊ)
res, detentores de uma força de trabalho que dobrou seus níveis de qualicação entre
1980-2010, fortalecidos pela elevação dos níveis de emprego e formalização do traba-
lho, atuassem para reduzir os altos níveis de desigualdade da economia brasileira. A
aproximação no Haiti dos militares brasileiros ao Comando Sul dos Estados Unidos
contribuiu para respaldar internamente o golpe de Estado, ao atualizar a inuência
do imperialismo em nossas forças armadas, semeada com a Escola Superior de Guer-
ra em 1952, aprofundada com o golpe de 1964 e consolidada com a Lei de Anistia que
estabeleceu limites à legalidade democrática e à soberania popular.
O subimperialismo como conceito na obra de Marini é parte importante de sua
economia política, mas não possui a mesma centralidade que a categoria superexplo-
ração do trabalho
14
. Deve ser tomado de forma dinâmica, sendo inserido no redese-
nho dos padrões de reprodução de capital, e não assumido como uma estrutura rí-
gida e estática que se ime unilateralmente à realidade, pois não foi esse o caminho
teórico-metodológico seguido por Marini
15
.
Em relação ao imperialismo, Marini distingue três fases a partir do m da Segun-
da Guerra Mundial: a da monopolaridade dos Estados Unidos, a da cooperação an-
tagônica, e uma terceira etapa, que apenas começaria a se esboçar com a globalização
capitalista e a mundialização da lei do valor, em que a dialética entre a centralização
política e a internacionalização, presente nas etapas anteriores, desdobrar-se-ia em
contradições profundas, colocando em questão a liderança dos Estados Unidos e o
próprio Estado nacional como categoria política de articulação da economia mundial
(MARINI, 1965b, 1977b, 1992 e 1996). O autor sugere que a tensão entre a interna-
cionalização e o Estado nacional, ao ser levada ao ponto de ruptura, colocaria em
questão o próprio capitalismo como sistema (MARINI, 1992). Durante a etapa da
14 A tese de Virgínia Fontes (2010) sobre o capital-imperialismo brasileiro que retomou, em certa medi-
da, formulações de Jorge Castañeda e Enrique Hett (1978) sobre os imperialismos em formações perifé-
ricas, elude a questão da dependência ao usar um eufemismo, “imperialismo subordinado, para ocultar
a inserção estrutural distinta, negligenciando a superexploração da força de trabalho como limite para o
desenvolvimento das forças produtivas, que descarta. O termo capital-imperialismo tampouco é o mais
adequado porque elimina a mediação do Estado, sem o que não é possível a atuação imperialista de um
grupo de capitais, que para isso se apropria do monopólio da violência e da identidade nacional.
15 Katz (2018) é um dos autores que se equivoca em sua análise da categoria de submperialismo em
Marini, tomando-a rigidamente, encerrando-a em seus textos dos anos 1970, negligenciando a histo-
ricidade que o autor apresenta em suas análises. O mencionamos aqui não com o intuito de polemizar,
mas pela importância que assumiu sua obra. Ele faz armações surpreendentes como a de que a era de
Ruy Mauro Marini foi a da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), sendo o brasileiro um
crítico das teses estalinistas e do Comintern sobre o imperialismo, o caráter das formações coloniais, do
capitalismo nos países dependentes, e as lutas anti-imperialistas e socialistas. Marini tampouco vincula
o subimperialismo à cooperação hegemônica, como quer Katz – que o aproxima implicitamente a Kau-
tsky, pela via de um imperialismo coletivo, sob liderança dos Estados Unidos, e sem guerras –, mas sim
à cooperação antagônica.
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monopolaridade, que se estende até meados dos anos 1950, o Estado norte-ameri-
cano exerceu papel preponderante na reestruturação da economia mundial. Na fase
da cooperação antagônica, se estabeleceram dois movimentos que limitaram o poder
do Estado norte-americano: o de autonomia relativa de seus capitais diante do poder
estatal; e o de projeção internacional e competição de outros centros de acumulação,
notadamente, Alemanha e Japão. Durante o período da cooperação antagônica se
armaram as rivalidades dos projetos subimperialistas periféricos e da emergência
das economias do Leste asiático. Os primeiros são largamente derrotados durante a
transição para a globalização neoliberal, submetidos à ofensiva nanceira e militar
do imperialismo dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha (MARINI, 1996). Entre-
tanto, o desao asiático ganhou novas escalas com a projeção da China socialista,
elevando imensamente as pressões competitivas na economia mundial, que ultrapas-
saram amplamente os marcos do subimperialismo.
Na economia mundial baseada na mundialização da lei do valor pelo capital, a
América Latina arrisca-se a ter sucateada a sua indústria e a regredir à especiali-
zação primário-exportadora sob bases tecnológicas modernas associadas ao apro-
fundamento da superexploração, caso continue a estar sob a liderança da burguesia
dependente e associada. Marini armou, já no início dos anos 1990, que os povos
latino-americanos devem retomar e atualizar os ideais bolivarianos para relançar a
integração latino-americana sob novas bases, capazes de fundar algo pximo a um
Estado supranacional latino-americano, que rompa com a superexploração, eleve ra-
dicalmente a qualicação do trabalhador, reverta a distribuição desigual de riqueza e
renda e se baseie em uma intensa democracia participativa
16
.
Desde a primeira versão de Subdesarrollo y revolución, em 1969, para Marini,
a luta dos povos latino-americanos contra o imperialismo não seria suciente
caso se restringisse apenas ao Estado nacional ou à América Latina, devendo
assumir forte internacionalismo para interagir dialeticamente com as demais
regiões das periferias ou semiperiferias e os trabalhadores dos países centrais,
com destaque para os Estados Unidos:
Vista en su perspectiva histórica más amplia, una América Latina integrada al imperialismo
no es más viable que la supervivencia del sistema imperialista mismo. La superexplotación del
trabajo en que se funda el imperialismo, bajo cuyo signo se pretende integrar a los países de la
región, establece una tal arritmia entre la evolución de las fuerzas productivas y las relaciones
de producción que no deja prever sino el derrocamiento del sistema en su conjunto, con todo
lo que él representa en explotación, opresión y degradación. Por otra parte, la lucha mundial
16 Ver, de Ruy Mauro Marini, América Latina: dependência e integração (1992), particularmente, os
capítulos “A luta pela democracia e “Os caminhos da integração.
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ARTIGOS (DOSSIÊ)
de los pueblos contra el imperialismo, a la cual se integró victoriosamente América Latina
por medio de la Revolución cubana, no depende exclusivamente de lo que quieran y hagan los
pueblos de este continente, sino que inuye sobre éstos a través de sucesos tan importantes
como la guerra de liberación del pueblo vietnamita, la revolución cultural china, la agudiza-
ción de las luchas de clase en el interior mismo de Estados Unidos. (MARINI, 1974, p. 20).
O autor se distanciou desde sempre de qualquer propensão para o chauvinismo
nacional ou latino-americanista e armou a sua compreensão do imperialismo como
um sistema mundial a ser derrotado nesse plano
17
. Em suas Memórias, reivindicou
abertamente a inuência da teoria marxista da dependência sobre autores como Gio-
vanni Arrighi, Immanuel Wallerstein, Samir Amin e, naturalmente, Andre Gunder
Frank, aproximando-se explicitamente das análises do sistema-mundo, sem abrir
mão de sua autonomia, caminho que eotonio dos Santos ampliou de maneira mais
vigorosa após a morte de Marini, e Carlos Eduardo Martins (2011, 2020, 2021a e
2021b) vem dedicando parte de seus trabalhos ao desenvolvimento de uma teoria
marxista do sistema-mundo capitalista:
Cabe concluir insistindo num traço peculiar da teoria da dependência, qualquer que seja o
juízo que dela se faça: sua contribuição decisiva para alentar o estudo da América Latina pelos
próprios latino-americanos e sua capacidade para, invertendo por primeira vez o sentido das
relações entre a região e os grandes centros capitalistas, fazer com que, ao invés de receptor,
o pensamento latino-americano passasse a inuir sobre as correntes progressistas da Europa
e dos Estados Unidos; basta citar, neste sentido, autores como Amin, Sweezy, Wallerstein,
Poulantzas, Arrighi, Magdo, Touraine. A pobreza teórica da América Latina, nos anos 80, é,
numa ampla medida, resultado da ofensiva desfechada contra a teoria da dependência, fato
que preparou o terreno para a reintegração da região ao novo sistema mundial (grifos nossos)
que começava a se gestar e que se caracteriza pela armação hegemônica, em todos os planos,
dos grandes centros capitalistas. (MARINI, 1990).
17 Expressão desse equívoco é o ataque de Nildo Ouriques (2018) ao desdobramento teórico e histórico
da teoria marxista da dependência a partir de seu diálogo com as análises do sistema-mundo, que reputa
como submissão e, ainda, concessão a uma visão liberal. Preconiza a volta aos anos 1970, onde estaria
uma suposta essência arqueológica da teoria marxista da dependência, com transbordante retórica e
pouca preocupação conceitual, na contramão das linhas metodológicas estabelecidas nas obras de seus
principais fundadores. Na mesma direção vão Marisa Amaral e Roberta Traspadini (2022), em artigo a
quatro mãos, com bibliograa extremamente limitada sobre as análises do sistema-mundo e armações
que denunciam uma leitura supercial e apressada desse enfoque – segundo as autoras, o conceito de
sistema-mundo se contraporia ao de dependência porque permitiria a ampla mobilidade de posições
dentro do sistema, armação que não se encontra em nenhum de seus formuladores.
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Conclusão
Neste artigo nos propusemos a revistar criticamente a obra de Ruy Mauro Marini se-
guindo as suas indicações metodológicas para o desenvolvimento dialético da teoria
marxista da dependência, contribuindo para liberá-la das aderências desenvolvimen-
tistas, neodesenvolvimentistas e endogenistas que haviam limitado a sua radicalida-
de. Consideramos ser esta a melhor forma de homenagear o autor e manter viva a sua
obra. Abordamos os conceitos de superexploração do trabalho e subimperialismo e
alguns dos principais debates que se estabeleceram em torno da sua denição, evo-
lução e validade para a interpretação da realidade. Destacamos as leituras de Mari-
ni do imperialismo, sua interlocução com os analistas e os marcos em que coloca
a revolução socialista no mundo contemporâneo, integrando dimensões nacionais,
continentais e mundiais.
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