Danielle Corpas
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro
danicorp@terra.com.br
Luciana Villas Bôas
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro
l.villasboas@uol.com.br
Este número de Terceira Margem presta homenagem aos 50 anos de morte de Siegfried Kracauer (Frankfurt, 8 de fevereiro de 1889 – Nova Iorque, 26 de novembro de 1966). Intelectual inclassificável – ou extraterritorial, como se definia –, Kracauer nos legou uma extensa e multifacetada obra, com contribuições para Sociologia, Filosofia, História, Teoria do Cinema e Estudos Literários.
Por décadas foi limitada a circulação dos escritos desse crítico que nunca teve vínculo estável com o circuito universitário e, devido ao exílio forçado pela perseguição nazista, perdeu boa parte do prestígio que obtivera junto à intelectualidade de língua alemã por conta de sua original atuação como colaborador e editor do suplemento cultural do Frankfurter Zeitung. Mesmo na Alemanha foi tardia a reunião dos artigos preparados para este e outros periódicos desde os primeiros anos do século XX, iniciada apenas em 1963, com O ornamento da massa. Compilações mais abrangentes destes e de outros trabalhos (incluindo estudos realizados para o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt) só vieram a público depois da morte do autor: primeiro, os Schriften (Frankfurt a. M: Suhrkamp, 1971-1990) e, nos últimos anos, um conjunto maior (Werke in neun Bänden. Frankfurt a. M: Suhrkamp, 2004-2012).
No Brasil, até pouco tempo vinham sendo escassos os debates sobre a obra de Kracauer – ainda que o livro que lhe trouxe nova respeitabilidade, De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão (1947) tenha sido brevemente criticado por Paulo Emílio Sales Gomes, já em 1958 (“Antes do cinema alemão”. In: Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 459), e que Ismail Xavier tenha dedicado a Theory of film: the redemption of physical reality (1960) toda uma sessão de seu O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (São Paulo: Paz e Terra, 2008 [1977], p. 67-79). Traduções para o português ainda são poucas: só duas décadas depois da já esgotadíssima edição de De Caligari a Hitler (Rio de Janeiro: Zahar, 1988) saiu O ornamento da massa: ensaios (São Paulo: Casac Nayfi, 2009) e, recentemente, Os empregados (Lisboa: Antígona, 2015). A partir da publicação de O ornamento da massa vem crescendo por aqui o interesse pelo pensamento do crítico frankfurtiano.
Em compensação, a maioria dos livros de Kracauer se encontra atualmente disponível em inglês, francês ou espanhol. Mas um enorme número de seus textos permanece acessível apenas ao leitor de língua alemã, sobretudo instigantes artigos para jornais e revistas das décadas de 1920 e 30, versando sobre temas os mais diversos – de romances, filmes e obras teóricas a espetáculos de circo, eventos esportivos, circunstâncias políticas, cultura das metrópoles etc.
Os artigos a seguir apresentam uma pequena amostra da agudeza e atualidade do pensamento de Siegfried Kracauer.
Abrindo o volume, o ensaio de Inka Mülder-Bach – uma das mais importantes pesquisadoras da obra de Kracauer, responsável pela organização de alguns volumes dos Schriften e das Werke in neun Bänden – remete a diferentes momentos de sua trajetória (dos anos da República de Weimar ao livro que escrevia quando morreu, History: the last things before the last, publicado em 1969). Pondo em articulação dados biográficos e motivos centrais em sua reflexão, como a espera e a figura do estrangeiro, Mülder-Bach identifica transformações no pensamento de Kracauer que respondem pela “textura porosa” dos livros de velhice. Agradecemos a Miguel Vedda a indicação de autores, e a Fernando Albuquerque o apoio na preparação dos originais.
Desdobramentos da peculiar condição de espera que Kracauer percebe na sociedade moderna são também discutidos por Patrícia da Silva Santos, autora do esclarecedor estudo Sociologia e superfície: uma leitura dos escritos de Siegfried Kracauer até 1933 (São Paulo: Unifesp, 2016). Aqui, Patrícia comenta textos do entreguerras para nos fornecer uma síntese do diagnóstico de época e da perspectiva epistemológica que determina a forma como o crítico pioneiro da cultura de massas avalia manifestações imediatamente anteriores à ascensão de Hitler.
Justamente por ser diagnóstico, seu programa inclui, é certo, a tarefa weberiana de “olhar o destino do tempo em seu semblante grave”, porém, por meio de procedimentos e modo de pensar muito peculiares, buscou subtrair-se à “consciência resignada” justamente abrindo mão da resignação “viril”. Assim, dado que a concentração, por si só, poucas possibilidades possui em face de um mundo que, em sua acelerada velocidade de desenvolvimento, multiplica as esferas de validade e também as esferas de distração, seria necessário atender aos “conteúdos dessubstancializados” da vida e testar com eles arranjos provisórios – o reconhecimento da legitimidade histórica da distração e de suas eventuais possibilidades é, nesse sentido, impositivo. (Para as notas a esse trecho, ver, adiante, o artigo “A espera peculiar de Siegfried Kracauer).
São ainda das décadas de 1920 e 30 os textos de Kracauer enfocados por Carlos Eduardo Jordão Machado e Francisco García Chicote. O primeiro – um dos tradutores da edição brasileira de O ornamento da massa – apresenta um abrangente painel de momentos-chave de Strassen in Berlin und anderswo [Ruas em Berlim e noutras partes]. Enquanto comenta passagens do volume de 1964, que reúne “minituras urbanas” compostas com verve literária, Machado identifica não só uma interpretação original da vida nas metrópoles mas também, expressos em juízos e comparações entre a capital francesa e a alemã, posicionamentos do escritor em face da experiência da revolução e da “miséria alemã” a que se refere Marx. Outra manifestação bem definida de posicionamento político do autor é delineada no ensaio de García Chicote sobre Ginster, romance que Kracauer publicou em 1928, ainda inédito em língua portuguesa – e considerado por Adorno sua “realização mais significativa”.1 García Chicote parte da incisiva crítica de Kracuer ao Kriegsroman [romance de guerra], efetuada do ângulo da crítica à crise ideológica então vivenciada pelos setores médios da sociedade alemã (sua “direitização” que culminaria no apoio ao nazismo). Propõe, assim, uma chave de leitura para a criação ficcional de traços autobiográficos: o experimento estético levado a cabo em Ginster “mina aqueles componentes ideológicos do gênero que operam como ornamento da masa”.
Os últimos textos do dossiê versam sobre o interesse pelos meios fotográficos que Kracauer manteve por toda a vida, já flagrante no ensaio “A fotografia”, de 1927 (incluído em O ornamento da massa).
No artigo de Fabio Luiz Tezini Crocco, Alex Alves Fogale e Bárbara del Rio Araújo, pressupostos de Theory of film são comparados a proposições teóricas de Sergei Eisenstein, o que permite aos autores assinalar convergências nas duas abordagens da estética realista, mesmo que “em determinados momentos de suas reflexões o próprio Kracauer acuse Eisenstein de abusar de recursos técnicos para proporcionar efeitos no público”. E Maria Zinfert, editora do volume Kracauer Fotoarchiv (Zurique: Diaphanes, 2014) – organizado a partir do espólio do autor depositado no Deutsches Literaturarchiv Marbach e resenhado aqui por Douglas Valeriano Pompeu –, comenta uma série de fotos apresentadas nas páginas seguintes, gentilmente cedidas para reprodução pelo Arquivo de Marbach, por intermédio de Jens Tremmel, a quem agradecemos. Segundo Pompeu, o volume Fotoarchiv “possibilita agora ao leitor interessado uma proximidade maior com o contexto de surgimento e de produção das reflexões do crítico sobre a imagem fotográfica”, possibilidade crucial para os estudos sobre Kracauer, dada a centralidade que os meios fotográficos têm em sua obra. O ensaio de Zinfert preparado para Terceira Margem reafirma essa centralidade, com a seguinte hipótese – ou especulação, nos termos da autora: as fotografias comentadas permitem deduzir linhas gerais da “espécie e forma completamente nova de autobiografia” que Kracauer, segundo o testemunho de sua esposa Lili em carta de 1969, pretendia escrever. Infelizmente, não teve tempo de vida para isso.
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Escritos por renomados pesquisadores no campo dos estudos literários de língua alemã, um conjunto seleto de ensaios fecha, com chave de ouro, este volume. A despeito da diversidade de temas e abordagens, os textos guardam entre si uma notável convergência: refletem, todos eles, explicitamente, sobre a moldura mais ampla dos seus argumentos, a Modernidade. A reflexão sobre a Modernidade, como pressuposto estrutural dos estudos literários, associa-os ao legado deixado por Kracauer e, ao mesmo tempo, convida-nos a repensar a historicidade da sua obra. A ênfase dada a aspectos culturais dos textos literários aqui trabalhados implica sempre o reconhecimento da literatura como espaço singular de teorização da cultura e seus meios diversificados. O primeiro ensaio, "A modernidade oculta em Effi Briest de Theodor Fontane", de Joachim Küpper, revisita o celebrado romance à luz de uma teoria da modernidade inspirada, sobretudo, pela psicanálise de Sigmund Freud. Para além da ruptura com a tradição e do ceticismo epistemológico, a Modernidade se distinguiria por um modelo de experiência estético-cultural voltado para a compensação dos sentimentos de frustração que estão na raiz do que Freud denominou de "mal-estar da cultura”. Fontane, cuja representação das soluções existenciais acomodatícias, e das "estruturas de apoio", são finamente elaboradas, aparece como um precursor das reflexões freudianas sobre a cultura. Ao termo da sua interpretação, Küpper lança uma hipótese provocadora: a recepção tardia e acalorada de Effi Briest fora da Alemanha estaria associada à sua capacidade de oferecer um dos "impulsos literários mais importantes para a teoria do inconsciente de Freud”.
Em "Narciso e eco: medialidade do amor e da morte", Christian Kiening aborda a semântica amorosa de "Eco e Narciso" de Ovídio, no contexto de teorizações sobre a medialidade contemporâneas às Metamorfoses. Se interpretações modernas enxergaram em Narciso um paradigma do autoconhecimento e da auto-enfatuação, leituras recentes compreendem a sua história como articulação da natureza paradoxal dos meios. A abordagem de Kiening distingue-se das demais por aliar a leitura cerrada do texto à sua contextualização histórica rigorosa. Deste modo, o autor demonstra como o texto explora, a um só tempo, a fatalidade do encontro amoroso entre Eco e Narciso e as contingências mediais que limitam os amantes. A narrativa ovidiana tematiza a relação entre desejo e percepção, criando uma "fina rede de ligações e separações, desejo e frustração, identidade e diferença". Ovídio contrapõe os personagens em sua existência medial: a ninfa como eco, Narciso como reflexo. Mas deixa que o seu destino – na morte por amor, na perda do próprio corpo e, na sua transformação em fenômenos da natureza – coincida. Tanto o eco quanto o reflexo oferecem um modelo de eu "narcisista", imbricado na própria autorreflexividade. Contudo, mais do "que a graça ou a beleza", sugere Kiening, a história valoriza o amor, sobretudo o amor correspondido.
Em “‘Throw me away’: prolegômenos para uma antropologia literária do resíduo", Christian Moser parte da noção de lixo e restos como uma categoria liminal, "que põe em risco a ordem social, mas guarda também um potencial para a sua renovação". Produzidos pelo trabalho humano, os despojos revelam sempre uma dada concepção de humanidade. Assim, num aforisma sobre resíduos, Kafka reflete sobre a condição pós-lapsária de ser humano que se furta a trabalhar, enquando John Locke toma a transformação do resíduo em valor como uma capacidade exclusiva do ser humano. Em ambos os autores está em jogo a fronteira entre humanidade e animalidade, cultura e natureza. Moser enfatiza, de uma perspectiva antropológica, a ambivalência do lixo – como elemento de oposição e constituição da cultura – mas também, de uma perspectiva histórica, a transformação do lugar do lixo na Modernidade. Justamente à medida em que se investe do status de descartável e sujo, o lixo passa a ser dignificado pela literatura. Mais do que isso, a literatura concebe-se, desde Charles Baudelaire, em analogia com a sujeira: "O trapeiro, que remexe o lixo em busca do que tem valor, é promovido ao alter ego do poeta”. Moser explora esta visão a partir de textos de Goethe, Henry Mayhew, Charles Lamb e Charles Dickens. Ao indicar como registram, e ao mesmo tempo, questionam criticamente os procedimentos modernos da eliminação do lixo, o autor também abre caminho para se pensar como a literatura do século XIX de certa forma antecipa as reflexões da antropologia do século XX sobre a cultura.
ADORNO, Theodor W. “O curioso realista”. Novos Estudos Cebrap, nº 85, p. 5-22, nov. 2009, p. 16.↩