Patrícia da Silva Santos
Pesquisadora colaboradora – IEL/UNICAMP
patricia215@gmail.com
Resumo: O artigo discute a obra do intelectual judeu-alemão Siegfried Kracauer (1889-1966) produzida até o ano de 1933. Especialmente em sua atividade como publicista, Kracauer desenvolveu procedimentos de observação social que tinham como objetivo a análise de fenômenos de superfície, expressos por objetos relativamente marginais e de extração cotidiana. Esses trabalhos configuram um diagnóstico de época. Proponho demonstrar as conexões entre a concepção inicial do moderno como “espera” e a particular perspectiva epistemológica de Kracauer.
Palavras-chave: Espera; Diagnóstico de época; Cotidiano.
Abstract: The article aims to discuss the Works of the Jewish-German intellectual Siegfried Kracauer (1889-1966) in the period up to 1933. Especially during his career as a publicist, Kracauer developed methods for social observation in order to analyze surface phenomena, represented by relatively marginal and everyday life objects. These works configure a diagnosis of the time. I set out to demonstrate the connections between the initial conception of the modern as “wait” and Kracauer’s singular epistemological perspective.
Keywords: Wait; Diagnosis of the time; Everyday life.
Imaginemos situações contemporâneas de espera e as maneiras de preenchê-las. Na antessala do dentista, há sempre as muitas possibilidades oferecidas pelos modernos celulares. Dentro do avião, podemos assistir aos filmes mais atuais. Dentro do ônibus, há quase sempre uma tela, mas também muitos anúncios, assim como nas estações de metrô. A espera é, por excelência, a figura do vazio a ser preenchida. Há duas maneiras de fazê-lo: concentrando-se ou distraindo-se. Mas é muito difícil, talvez impossível, separar essas duas dimensões para classificar inequivocamente a maneira como uma espera se processa, pois quem se concentra (em um livro, em um problema etc.), termina distraindo-se do seu entorno; quem, por sua vez, distrai-se com seu celular, por exemplo, circunscreve-se de algum modo em um tipo de concentração. Uma forma para tentar perceber as posturas adotadas pelos “que esperam” talvez seja a identificação do objeto da espera. Quem sabe o que espera, pode concentrar-se no que irá acontecer (quase sempre de maneira ansiosa): o que dirá o dentista? O que responderá ao entrevistador? Como será o reencontro com a pessoa que deve chegar no próximo trem? Mas pensemos naqueles que não sabem bem o que esperam: para eles, as coisas são um pouco mais complicadas e a distração se impõe com mais força, porque o vazio dessa espera sem perspectivas é quase insuportável. Nossas manifestações culturais contemporâneas – nossas formas de distração, por assim dizer – conhecem formas que são como expressões puras dessa última maneira de esperar: o que é a música eletrônica, se não o vazio da espera mais absoluta?
Se juntarmos esses componentes, por vezes ambíguos, teremos uma dimensão (dentre as muitas possíveis) do programa de Siegfried Kracauer. Embora seja mais conhecido por trabalhos sobre cinema e sociedade que escreveu durante o exílio nos EUA – quais sejam, De Caligari a Hitler (1947) e Teoria do filme (1960) – anteriormente, durante a chamada República de Weimar, o publicista pensou a sociedade moderna nessa sua condição de espera e as reflexões derivadas desse ponto de partida contém justamente elementos (mencionados logo acima) circunscritos naquela atividade diária do seu preenchimento: a técnica, a distração, a condição mesma daquele que espera e a relação de interação recíproca entre seus modos de cognição e o entorno sócio-histórico. Em seus trabalhos do início do século passado, ele próprio, como intelectual, assumiu o seu lugar nessa espécie de espera sem conteúdo definido e procurou preenchê-la com considerações sobre objetos marginais tomados da esfera pública. Quando muitos outros pensadores alemães apostaram no Dezisionismus (muitas vezes de caráter antidemocrático) para responder a tal condição – que, não esqueçamos, possui um componente contextual muito específico, aquele do entreguerras1 – Kracauer preferiu aceitar e formular expressamente sua posição:2
De acordo com o lado positivo, a espera significa um estar aberto, que não pode naturalmente ser de modo algum confundido com um relaxamento das forças da alma que atuam sobre as coisas últimas, antes é, ao contrário, atividade intensa e preparar-se efetivo.3
A citação é de um dos primeiros ensaios publicados por Kracauer no jornal alemão Frankfurter Zeitung. O texto, intitulado “Os que esperam”, apareceu em 1922 e alguns comentadores4 já reconheceram o seu teor programático para as formulações seguintes publicadas na Alemanha, até serem interrompidas pela ascensão de Adolf Hitler. A passagem transcrita refere-se a uma parte do parágrafo final do ensaio, no qual Kracauer reflete sobre a condição existencial de pessoas comuns, de “tipos” extraídos do mundo cotidiano. Conforme detalharei um pouco mais abaixo, trata-se de um ensaio ainda carregado de certa melancolia que impregnou os primeiros trabalhos de Kracauer, para logo em seguida dar lugar a uma espécie de profissão de fé em relação ao contemporâneo.
Gostaria de concentrar-me aqui, ainda que introdutoriamente, justamente nos desdobramentos desse diagnóstico da espera, quando a melancolia deu lugar a uma preocupação com a atualidade – o que foi possível porque Kracauer deixou de lado o caráter de expectativa orquestrado pela situação de espera que havia identificado inicialmente e passou a refletir sobre os sentidos e atividades sociais provisórios que ela desencadeava.
Embora não seja o caso de perscrutar a constelação que originou tal alteração aqui, lembro que um dado importante deu-se pela aceitação de suas contingências como indivíduo em confronto com um mundo objetivo que se desenvolve de maneira cada vez mais acelerada e de acordo com lógicas relativamente independentes – essa é precisamente uma das características ambíguas da espera-modernidade (cujos contornos esboçarei a seguir). Desse modo, aquele dilema entre concentrar-se e distrair-se se desdobrou, igualmente, no seu próprio modo de pensamento. De um lado, um sujeito que tenta se afirmar e, por meio de uma reflexão, dotar os conteúdos do mundo objetivo de sentido; de outro, a proliferação desses conteúdos de maneira muito mais veloz do que a forma como ocorre o desenvolvimento subjetivo – aqui vale lembrar a forte presença do fenômeno que Georg Simmel, antigo professor de Kracauer, denominou de “tragédia da cultura”5.
Essa espécie de espera moderna representa, também devido à sua indeterminação, uma aporia para aqueles processos de reflexão, pois o sujeito pensante não consegue acompanhar a velocidade de desenvolvimento do mundo exterior. Para poder seguir pensando, a resposta kracaueriana é ir tomando a cada vez um pequeno objeto dentre aqueles que estão presentes em sua época-sala-de-espera: já que os conteúdos e os objetivos de tal espera não se deixam entrever ou formular, então o sujeito da reflexão se distrai, ora concentrando-se em um pequeno objeto, ora em outro. Ele reflete sobre a música que ressoa nessa espera (o jazz, por exemplo); também sobre as imagens que aparecem na revista ilustrada a sua disposição; depois pensa nas roupas dos seus companheiros de espera; em lugares de espera por excelência, como o saguão de hotel, as agências de emprego ou os abrigos de inverno; ou lugares de distração, como a sala de cinema; em atividades de dispersão, como o esporte, a dança ou os filmes de entretenimento; ou toma objetos muito pontuais e os vincula a seus usos, significados e determinantes sociais (o guarda-chuva, o monóculo, o piano, o tinteiro, a máquina de escrever, etc.); enfim, ele toma um incontável número de objetos de superfície para ter alguma notícia do profundo6. Todos esses fenômenos e muitos outros foram objeto dos mais de mil e quinhentos artigos publicados pelo pensador entre o fim da década de 1910 e 1933 e reunidos recentemente em seus escritos coligidos7.
O procedimento é similar ao que Kracauer descreveu como próprio do pensamento de Georg Simmel. Esses objetos retirados do mundo em espera (aqui já podemos adiantar o ambiente correspondente: trata-se de elementos inseridos no mundo cotidiano) funcionam em sua reflexão como figuras de linguagem, metonímias, metáforas, analogias, que aludem a questões impossibilitadas de serem interpeladas de maneira direta. A respeito de Simmel, Kracauer afirma que as analogias têm a função de uma “luz vibrante”, que destaca, separa o objeto a ser analisado da sua não diferenciação na relação com os demais e, nesse processo, “interrompe o funcionamento” do “pensamento”8.
No caso do próprio Kracauer, tal interrupção é feita para lidar com a aporia da espera moderna, que (ainda?) não se deixa formular de maneira clara. De todo modo, o resultado do conjunto de reflexões feitas pelo pensador no início do século XX configura um diagnóstico de época, composto pelas “catástrofes ínfimas, nas quais consiste o cotidiano”9 – e esse é o grande distintivo de sua contemplação e reflexão a respeito do “mundo desencantado”10. Em tal diagnóstico, há dois movimentos de pensamento, que se complementam de uma maneira muito específica, por vezes contraditória: de um lado, o publicista tinha no horizonte aquela dimensão macrológica, aludida na ideia de espera e correspondente ao “conteúdo fundamental da época” e suas manifestações mais abrangentes (o capitalismo, o avanço da racionalização dos processos sociais, a multiplicação das esferas de validade, a mecanização das relações sociais etc.); de outro, contudo, tinha a consciência da impossibilidade de pensar essas dimensões mais amplas de maneira direta, por isso opta por um “desvio”, constituído por uma reflexão sobre as manifestações mais localizadas da vida social, referidas ao cotidiano.
Nesse passo, voltemos um pouco atrás para tentar compreender melhor em que consiste aquela figura da espera e seu teor histórico-sociológico (ou indicar alguns dos pressupostos macrológicos do pensamento kracaueriano) para, em um segundo momento, indicar, ainda que de maneira introdutória, aspectos da maneira peculiar escolhida por nosso autor para lidar com ela (ou seja, sua inclinação ao “refugo do fenomênico”).
Em diálogo com grande parte do debate das ciências do espírito alemã do início do século XX, Siegfried Kracauer, sobretudo em seus trabalhos iniciais, formulou muitas vezes a passagem para essa situação da espera, seja de maneira explícita, seja recorrendo a formulações de ordem mais metafórica: ela vincula-se à passagem do mundo tradicional para o moderno, da comunidade para a sociedade11, da cultura para a civilização12, da totalidade de sentido para a desagregação de sentido [Sinnzerfall].
Em uma “época de sentido pleno” todas as coisas estão relacionadas ao sentido divino. Não há nela nem um espaço vazio, nem um tempo vazio, tal como ambos são pressupostos pela ciência [...]
Quando o sentido se perde (no ocidente desde o enfraquecimento do catolicismo), quando a crença determinadamente formada é sentida cada vez mais como dogma estreito, como importuno grilhão da razão, o cosmos unido por meio do sentido cinde-se e o mundo divide-se em uma multiplicidade de existências e o sujeito que com ela se defronta. Este sujeito, que antes estava incluído na dança das configurações que preenchem o mundo, ascende então sozinho do caos como portador único do espírito, e diante de sua vista abre-se o império imenso da realidade.13
De acordo com o argumento, esse momento de surgimento de “um espaço vazio” e “um tempo vazio”, viabiliza também a ciência moderna. Por isso, essa passagem, envolta em muitos pressupostos e inúmeras consequências, é também o nexo por excelência da sociologia – ciência com a qual o multifacetado intérprete dialogou intensamente. O fim da unidade de sentido típica do mundo tradicional e essa abertura do “império imenso da realidade” implicaram inúmeras e complexas consequências para o sujeito, a quem se delega a tarefa de “avaliar a realidade ou pesquisar seu nexo de existência.”14 O autor detecta, nessa transição, uma desorientação inerente, que configura justamente o sentimento de confusão ao qual “os que esperam” estão submetidos:
Há atualmente um grande número de homens, que, sem saber uns dos outros, estão ligados por um acontecimento comum. Evadidos de qualquer confissão de fé determinada, eles conquistaram sua parcela nos patrimônios de formação hoje universalmente acessíveis e, além disso, atravessam sua época de sentido desperto. Eles, esses sábios, comerciantes, médicos, advogados, estudantes e intelectuais de todo tipo, passam seus dias, em geral, na solidão das grandes cidades; e porque se sentam em escritórios, recebem clientes, conduzem negociações, visitam auditórios, eles esquecem frequentemente de seu próprio ser interior durante o barulho das atividades e julgam-se livres do lastro que secretamente os sobrecarrega. Mas quando eles se deslocam da superfície para o centro de seus seres, acomete-lhes uma profunda tristeza, que provém do conhecimento do seu ser banido para uma determinada situação espiritual e que, no fim, sufoca todas as camadas de sua essência. É o sofrimento metafísico pela falta de um sentido mais elevado no mundo, pela sua existência em espaço vazio, que faz desses homens companheiros de destino.15
Em outro texto, Kracauer utiliza duas analogias de espaços sociais16 para distinguir as duas épocas: o espaço da igreja e o de um saguão de hotel. Os fiéis reunir-se-iam na igreja para refletir sobre a vida em comum e “abrangê-la sempre novamente na tensão”, tal “reunião” resultaria em “recolhimento” e “unificação”. Já no saguão de hotel, a característica seria a “ausência de tensão”, por isso o “estar-junto” é “sem sentido” e a vivência é impregnada pela dispersão. Novamente, as analogias remetem a situações opostas: uma marcada pela “plenitude de sentido” oferecida pelos dogmas e pela vida em “comunidade”; a outra, um espera despida de um sentido mais abrangente e referida à “sociedade” – uma notadamente caracterizada pela concentração, a outra pela distração. Vale mencionar que tal passagem é também aquela que marca o advento das massas, que constituem um dos principais problemas articulados por Kracauer nos anos a seguir17.
De qualquer modo, mesmo que em um primeiro momento se acentue a nostalgia e a desorientação inerentes ao espaço do saguão de hotel para indicar, metaforicamente, a dimensão negativa da condição contemporânea, há, paralelamente, a constatação do outro lado dessa desconstrução (parcial) do mundo tradicional. Diferentemente de alguns contemporâneos, que se apegaram àquele âmbito negativo e mergulharam em um “pessimismo cultural”18, Kracauer, sobretudo após uma espécie de guinada do seu pensamento para objetos mais concretos e cotidianos, marcada, entre outros, pela leitura da obra de Karl Marx19, procurou destacar também a ideia de que só a extinção daquele sentido total engendrou a possibilidade de que o sujeito tome para si a tarefa de avaliar, de forma autônoma, a realidade da qual faz parte. De certo modo, essa possibilidade conserva uma espécie de promessa de emancipação humana:
Apenas quando o mundo se divide em uma realidade esvaziada de sentido e o sujeito, faculta-se a este avaliar a realidade ou pesquisar seus nexos de existência, trabalhar as regularidades gerais dos acontecimentos ou compreender, descrever e associar uns aos outros os acontecimentos vividos, de alguma forma, como individualidades.20
É também nesse sentido, aliás, que Kracauer interpreta a perspectiva do escritor Franz Kafka em relação à ciência, ao sugerir, por exemplo, o seguinte em relação à construção da narrativa “investigações de um cão”: “Uma construção que, decerto, não nasce exatamente do medo, mas da confusão – indiscutivelmente, Kafka concebe assim também a ciência [...].”21 Este último texto, de 1931, despido da carga de nostalgia e do pessimismo cultural das formulações do início da década, é posterior ao famoso ensaio “O ornamento da massa”, de 1927. Nesse ponto do desenvolvimento de seu pensamento, Kracauer passou a ver aquele grande processo de dissolução das relações sociais comunitárias como uma aceleração do processo de desmitologização, não apenas com a nostalgia por um suposto passado mais agregador, mas sim visando também às potencialidades abertas pelo moderno.
De maneira muito resumida, sublinho que o conceito desmitologização, que possui pontos de contato com o desencantamento do mundo weberiano, indica um processo gradativo de superação das forças da natureza e desagregação do nexo orgânico, com a consequente ascensão da razão, que, contudo, não se dá sempre de maneira positiva. Quais as consequências desse processo civilizacional para os que esperam? Quanto mais se dessubstancia o “nexo orgânico”, maior torna-se o “império imenso da realidade” a ser interpretado e dotado de sentido. Importantes consequências da desarticulação do mundo tradicional e de suas explicações unificadoras do mundo são, por isso, a confusão, o caos, a desagregação – essas palavras todas são bastante frequentes nos ensaios kracauerianos. Contudo, justamente essa “desordem” das coisas viabiliza uma postura mais autônoma para “os que esperam”: “Onde a razão desagrega o nexo orgânico e rasga a superfície natural cultivada como sempre, lá ela fala, lá ela apenas decompõe a forma humana para que a verdade desvelada modele de si o novo homem.”22 O pensamento de Kracauer operou entre essas duas dimensões tensas, paradoxais, daí sua complexidade. Mas, gradativamente e cada vez com mais intensidade, empenhou-se em destacar essa última consequência do advento de um mundo em “espera”, justamente para fugir ao niilismo configurado pela dimensão da fragmentação e ocupar-se dos nexos sócio-anímicos atuais.
Menciono rapidamente esses pressupostos que estão presentes nas reflexões de Kracauer apenas para sugerir alguns dos processos mais amplos que estavam presentes em sua interpretação do “conteúdo da época”. Contudo, esse pano de fundo de sua reflexão permaneceu sempre recuado, porque o próprio pensador via a si mesmo como alguém que tenta “avaliar e construir a confusão no mundo” – tarefa infinita e marcada por aporias, contingências – ou seja, como alguém que também está envolvido naquelas dificuldades próprias aos que esperam e que não sabem bem pelo quê esperam. Para retomar a expressão cara a Kracauer, tomada de Gerog Lukács e remodelada em seu pensamento: como indivíduo sujeito ao “desabrigo transcendental”23. E nosso autor demarcou sempre essa posição ao diferenciar-se recorrentemente de parte da intelectualidade alemã da época, que insistia em construtos que os permitissem separar-se das massas, da distração etc., referindo-se a eles ironicamente como “pessoas cultas”24. Aqueles intelectuais, ou os “mandarins alemães” (vale lembrar aqui, como contraponto, a formulação de Fritz Ringer), teriam projetado sua formação subjetiva altamente cultivada nos seus julgamentos sociológicos. O mal-estar privado da insegurança relativa à dificuldade de manter e transmitir essa herança cultural tradicional direcionaria, desse modo, a reflexão social:
Curiosamente, toda a teoria da decadência cultural foi uma projeção dos temores e dúvidas pessoais dos intelectuais sobre o restante da sociedade. A sensação era que o desenvolvimento cultural do indivíduo tornara-se mais difícil do que antes. Isso levou a uma vaga insatisfação do espírito. O intelectual mandarim queixava-se de uma sensação de impotência intelectual. Suspeitava que houvesse alguma relação entre sua moléstia espiritual e sua nova relação com a sociedade, como de fato havia. Mas, em vez de explorar honestamente as complexidades dessa relação, ele gravitava na direção de analogias primitivas entre “comunidade” e certeza moral, entre “sociedade” e dúvida espiritual.25
Ainda conforme Ringer, haveria nessas análises uma visão “idealista”, “autocentrada”, de modo que: “Parecia uma projeção descontrolada, uma fuga primordialmente pessoal das tensões psicológicas da vida intelectual moderna.” A postura de Siegfried Kracauer como intelectual foi notadamente diferente. O que só foi possível por uma aceitação muito consciente do caráter fragmentário do mundo contemporâneo. Ainda que não fosse possível pensar de maneira abrangente e direta os pressupostos, nexos e possíveis consequências, o pensador insistia em tomar tal mundo e suas manifestações culturais como historicamente legítimos. Assim, a aporia entre a urgência de dotar o mundo de sentido e a impossibilidade de fazê-lo seriam elementos próprios da atualidade. Suas estratégias para lidar com eles compreendem o procedimento que procurei indicar acima, aquele de pensar situações cotidianas, pontuais e de ver a si próprio como alguém imbuído nesse contexto histórico e sujeito às suas contingências. Dessa maneira, Kracauer assumiu como historicamente legítimos fenômenos que eram recusados por parte dos pensadores alemães como as manifestações culturais de massa, o declínio da personalidade e da formação [Bildung], as formas artísticas marcadas pela distração e a técnica como fenômeno inexorável da vida moderna. A afirmação peremptória de que “o processo conduz a atravessar por meio do ornamento, não voltar dele para traz” é uma das marcas desse pensamento.
Contornados, ainda que muito rapidamente, os pressupostos gerais de um mundo em estado de espera, podemos tentar entrever alguns elementos da opção adotada por Kracauer para lidar com ele. Vale citar o famoso parágrafo inicial do ensaio “O ornamento da massa”. Se a figura da espera foi o ponto de partida epistemológico para os trabalhos do autor publicados durante a República de Weimar, a formulação sucinta é a melhor apresentação do procedimento que o corresponde na tarefa kracaueriana de dotar o mundo social de sentido:
O lugar que uma época ocupa no processo histórico deve ser determinado de modo mais convincente a partir da análise de suas discretas manifestações de superfície do que a partir dos juízos da época sobre si mesma. Estes, como expressão de tendências do tempo, não são um testemunho para a compreensão conjunta do tempo. Aquelas, por causa de sua inconsciência, oferecem um acesso imediato ao conteúdo fundamental do existente. Inversamente, ao seu conhecimento está ligada sua interpretação. O conteúdo fundamental da época e seus movimentos despercebidos iluminam-se reciprocamente.26
Assim, de maneira tateante, incompleta, assistemática e (porque não?) como um jogo de experimentação, Kracauer, como intelectual, vivenciou sua condição de espera e, ao mesmo tempo, buscou estratégias para não se entregar nem ao “desespero intelectual” dos “céticos por princípio”, nem se tornar um “homem curto-circuito” – para retomar os dois “tipos” clássicos de respostas ao mundo que desencadeou o estado de espera, conforme o argumento kracaueriano no texto mencionado no início27.
Para entender um pouco mais o procedimento kracaueriano de interpretação do mundo social, penso que seja possível relacioná-lo à forma como ele concebia o cinema. O que o fascinava nessa técnica era a possibilidade de montar e desmontar o mundo, de jogar com os significados, suspender os nexos determinados e abrir caminho para as elaborações provisórias. O caráter específico dessa forma de arte é aquele do jogo, portanto, das experimentações, ele se opõe à autenticidade, às “leis e formas daquela cultura idealista”, inerente a “tendências reacionárias”28. Paradoxalmente, apenas aquela passagem desorientadora do mundo pleno de sentido para o mundo caótico moderno engendra essa técnica e também as potencialidades que ela pressupõe – que são, por sua vez, estendíveis a outros âmbitos da existência.
Em uma visita à cidade cenográfica da UFA, o publicista formulou da seguinte forma o resultado das suas observações de restos de cidades cenográficas:
Para que o mundo possa passar para o filme, ele precisa antes ser decomposto na cidade cinematográfica. Seus nexos valem como suspensos, suas dimensões transformam-se arbitrariamente, seus poderes mitológicos se tornam divertimento. Ele assemelha-se a um brinquedo de criança que se coloca em uma caixinha de papelão. A desconstrução dos conteúdos do mundo é radical, e, mesmo que ela aconteça apenas na aparência, ainda assim a aparência não é de modo algum insignificante. Os heróis da antiguidade já estão bem postos nos livros escolares.29 [destaque meu]
Este “regimento arbitrário” não se limitaria ao mundo existente, mas apontaria para aqueles outros mundos do reino das “possibilidades”. Portanto, caso o cinema assumisse essa sua condição de jogo, ele poderia desencadear todo um rol de possibilidades de experimentação, que poderiam levar o público ao desejo por experimentações também de ordem social. Mas o “jogo permanece imperfeito, se ele toma fabricações prontas.”30 Para Kracauer, a maioria dos filmes realiza justamente a “colagem das pedrinhas de um mosaico” e desautoriza, deste modo, as potencialidades do cinema – que são as mesmas oferecidas pela passagem para o moderno referida acima. Geralmente, aquela decomposição, aquela suspensão de nexos e aqueles conteúdos descontruídos (enfim, aquele “material imagético, que é a bela desordem como a própria vida”) são colecionados e configurados em “unidade” e, nesse processo, voltam a ser mera natureza:
Até que, enfim, um pequeno todo surge do grande caos. Um drama social, um acontecimento histórico, um sem mulheres. Em geral o final é bom: nuvens de vidro formam-se e evaporam-se. As quatro paredes tornam-se críveis. Tudo garante a natureza.31
Como intelectual e como intérprete social, ao contrário, Kracauer tentava manter aquele jogo de desmontagem do mundo e de alteração arbitrária de suas dimensões. Nesse sentido, em seus ensaios publicados principalmente nas páginas do Frankfurter Zeitung, fenômenos pontuais como o jazz, a dança, o turismo, a moda, os filmes, os best-sellers, o esporte, a fotografia, os espaços sociais mais diversos, os romances policiais e tudo o mais que foi objeto de sua inteligência são mobilizados como subprodutos de tal desmontagem e, em suas referências e conexões múltiplas com os demais elementos da realidade, a sua exploração e interpretação acabaram por produzir um diagnóstico de época. Conforme formulou certa vez Leo Löwenthal em uma de suas cartas a Kracauer: “[seus escritos,] originalmente pensados para a necessidade do dia, são agora monumentos analíticos de história contemporânea.”32
Ainda que aqui não seja o espaço para explorar de maneira detalhada e mais sistemática os pressupostos e resultados dessa composição, é possível apontar para o fato de que, em tal estratégia de acesso ao conteúdo epocal, a busca pelo objeto ou pelo sentido da espera acabou sendo suspensa em prol de uma entrega aos nexos “provisórios” de tal configuração e, para Kracauer, essa aceitação da provisoriedade é uma condição para o usufruto das possibilidades que estão implicadas no bojo da complexa passagem para o mundo moderno. Para transformar, como nos filmes, os “poderes mitológicos” em divertimento, seria necessário desbancar um suposto “original” [Original], associado à ideia de autenticidade do mundo tradicional, fazer perder a “ordenação original” [ursprüngliche Anordnung] e deixar surgir um “provisório” [Provisorium] do “resquício natural” [naturaler Überrest]. Apenas diante desse provisório, pode-se pensar em uma consciência emancipada, que teria como tarefa justamente “mostrar a provisoriedade [Vorläufigkeit] de todas as configurações dadas e, até mesmo, despertar o pressentimento da ordem correta do acervo natural”. Com a ressalva de que “o jogo indica que a organização válida é desconhecida [...]”. Ou seja, apenas como experimentação ou como jogo mesmo é possível “pressentir” a “ordenação correta” 33.
Daquela espera formulada no programa inicial derivou, assim, um procedimento de análise do mundo social que buscava respeitar as contingências e as dificuldades de estabelecer formulações definitivas. Também a uma reflexão sobre o cinema devemos a seguinte constatação (que é igualmente válida para a forma como o intelectual se comportou em sua tarefa de dotar o mundo de sentido): “Devem ser indicados caminhos? É esperada uma receita? Não há receita. Sinceridade, dom de observação, humanidade – tais coisas não se deixam ensinar. Basta que a situação seja exposta abertamente.”34
Expor a situação abertamente: era esse o objetivo de Kracauer como publicista da vida cotidiana, que desejava denotar suas implicações sociais e seus reflexos anímicos. O desdobramento daquele nexo de espera (cujos contornos foram esboçados acima) em seu pensamento e na maneira de empreender suas observações deu-se de maneira tão intrincada e peculiar, que é difícil identificar o quanto isso se deveu aos determinantes externos e às dimensões biográficas e o quanto a sua maneira muito peculiar de pensar e formular seus problemas. Afinal, é necessário ter em mente que o autor não desenvolveu seus trabalhos sob condições acadêmicas, embora um diálogo subterrâneo entre eles e alguns textos clássicos, produzidos no âmbito universitário, seja perfeitamente possível. De todo modo, diferentemente de outros diagnósticos de época apresentados pelos pensadores alemães no início do século passado e marcados pelo mesmo contexto histórico, o de Kracauer foi exposto, majoritariamente, em páginas de publicações periódicas. Esses ensaios, também devido à contingência de suas formas, oferecem reflexões pontuais, atreladas à ordem do dia. Mas curiosamente logram apontar para aquele “conteúdo fundamental da época” com uma consciência avassaladora de suas inferências nas mais diversas esferas da vida social.
A dinâmica paradoxal entre os que buscam preencher a espera com o ideal de uma cultura ultrapassada e os que se entregam à distração aparece exemplarmente em uma dessas breves reflexões kracauerianas sobre a vida cotidiana nas grandes cidades (vale mencionar que exagero um pouco a figura da espera apenas para conduzir melhor o argumento, embora ela não seja retomada diretamente pelo autor nos textos a partir de meados dos anos 1920). O artigo “Culto da distração”, publicado em 1926, apresenta a tensão relativa às possíveis posturas adotadas na situação moderna da espera. Trata-se de um texto sobre os cineteatros de Berlim e sua insistência em expor o cinema como uma obra de arte total, articulando efeitos de luz, música, assim como o próprio espaço de apresentação dos filmes. Kracauer aproveita essa forma de manifestação artística para refletir sobre sua relação com as demais esferas da vida social, assim como apontar para algumas de suas reverberações anímicas. De um lado, estariam as massas e sua necessidade de preenchimento do tempo livre:
Os berlinenses são criticados por serem viciados em distração; a censura é pequeno-burguesa. Certamente a procura por distração aqui é maior que nas províncias, mas maior e mais perceptível é também o esforço das massas trabalhadoras, que ocupa seu dia, sem preenchê-lo. O que se perde precisa ser recuperado; pode-se reencontrá-lo apenas na mesma esfera superficial na qual se foi obrigado a perder. A forma da atividade corresponde necessariamente à da “empresa”.35
De outro lado, estaria a ainda vigorante pretensão das classes superiores de afirmar o “prestígio” de sua “arte superior”. Contudo, essas manifestações culturais das “pessoas cultivadas” seriam, na verdade, “fenômenos recalcados”, “formações ultrapassadas, que enxergam mal as necessidades atuais da época”. Para Kracauer, essa última postura, ou seja, aquela que afirma ainda “valores culturais” tornados irreais, “por meio do mal-uso irrefletido de conceitos como personalidade, interioridade, trágico etc.” seria menos legítima do que aquela das massas. Embora o autor não se refira explicitamente à condição de passagem para o mundo em espera, tais valores remetem justamente aos referenciais tradicionais que foram ultrapassados com o seu advento. A “verdade” estaria mais próxima daqueles que esperam entregando-se à esfera da distração do que daqueles que tentam desesperadamente fugir dela. Contudo, assim como no caso da desmitologização dos nexos orgânicos e da transformação do mundo em divertimento a ser efetivado pelo cinema (conforme citação mais acima), haveria um elemento quase lúdico na distração, que deveria ser reforçado para combater as “tendências reacionárias” presentes na afirmação da “cultura idealista”:
As leis e formas daquela cultura idealista, que existe hoje ainda apenas como fantasma, perderam, por certo, seu direito nos cineteatros, mas dos elementos da exterioridade, para os quais eles felizmente avançaram, desejam preparar uma nova cultura. A distração, que apenas faz sentido como improvisação, como reprodução da bagunça indomável de nosso mundo, é transposta pelos cineteatros com adornos e obrigada a voltar novamente a uma unidade, que de modo algum existe mais. Em vez de professar a desagregação, cuja exposição seria sua tarefa, eles colam as peças postumamente e as oferecem como criação madura.36
Os viciados em distração expõem de maneira muito mais sincera a perda de fundamento que preparou caminho para o mundo em estado de espera do que aqueles que ainda se apegam aos ideais equivalentes ao mundo anterior, referidos a uma espécie de “plenitude de sentido”. O percurso kracaueriano realizado no entreguerras aparece resumido em constatações de teor semelhante a esse e relativas às manifestações artísticas contemporâneas. A tarefa de interpretar a época a partir de seus “movimentos despercebidos” foi conduzida pelo pensador de maneira muito peculiar. Inicialmente, a “espera” foi pensada sob a perspectiva do declínio do mundo [Weltuntergang], contudo, ao tomar a sociedade moderna cada vez mais enfaticamente sob a ótica de uma “sociedade de passagem”37, Kracauer ocupou-se de apontar para elementos que pudessem evitar aquela catástrofe final. Vale lembrar que a ideia de passagem foi pensada tanto sob uma ótica pontual e localizada, como sob uma perspectiva mais abrangente. Por um lado, em muitos discursos intelectuais, a acentuação da perspectiva de declínio do mundo contribuiu muito para o fortalecimento de respostas fascistas e antidemocráticas – a postura de Kracauer tinha também essa dimensão em mente. Por outro, havia nas reflexões pontuais do autor uma preocupação com a dinâmica da civilização. De todo modo, o destaque é dado para o teor de diagnóstico e, assim, o nexo contemporâneo, seus objetos, formas e configurações sociais aparecem em destaque, ainda que estejam subterraneamente duplamente referidos: ao passado e ao futuro.
Ao longo da República de Weimar, Kracauer abstraiu-se da preocupação com o “sofrimento metafísico pela falta de um sentido mais elevado no mundo” (também porque pouco se poderia fazer para dizimá-lo) e buscou salvar as potencialidades liberadas por essa ausência, não sem atentar para os perigos nela pressupostos – das quais a substituição do vácuo deixado pelas religiões pelo capitalismo e seus efeitos era a mais pungente38. Não posso detalhar os passos desse último argumento aqui, porém retomo o problema para concluir com uma “imagem de pensamento” [Denkbild] que sintetiza a forma como Kracauer conduziu suas investigações no início do século passado. Para nosso autor, o mesmo nexo que desencadeou o surgimento do capitalismo e seu coroamento como uma força de proporções quase tão mitológicas como os poderes da natureza, possibilitou, também, um descolamento de fundamentos últimos ou dos dogmas totais religiosos – condição necessária para a emancipação humana. Para permanecermos nos limites das potencialidades postas na ideia de espera e no jogo expositivo de Kracauer, indico apenas a imagem da história cunhada pelo autor como um “jogo de tudo ou nada” [Vabanque-Spiel]: aos que esperam resta seguir jogando, sem abrir mão das possibilidades de dotar, de maneira autônoma, tais jogos de sentido, até que essa experimentação contribua para o recuo das forças mitológicas do pensamento abstrato capitalista.
De sua parte, Siegfried Kracauer, como intelectual, fez desse jogo seu próprio modo de pensar. Aqui podemos remeter ao jogo metodológico, que vai experimentando tanto formas de proceder como objetos inusitados, alternativos, sob uma diretriz perspectivista, para lidar com o nexo das crises contemporâneas. Também há o jogo que se realiza com a linguagem, para que ela possibilite ao pensamento formular a realidade “que não se deixa adaptar” às “determinações fechadas do pensamento”39. É, sobretudo, a forma como Kracauer avalia as novas formas de manifestações culturais que permite entrever essa possibilidade de uma relação menos definitiva e mais experimental em relação ao mundo, tal como encerrado na ideia de jogo40. Justamente por ser diagnóstico, seu programa inclui, é certo, a tarefa weberiana de “olhar o destino do tempo em seu semblante grave”, porém, por meio de procedimentos e modo de pensar muito peculiares, buscou subtrair-se à “consciência resignada” justamente abrindo mão da resignação “viril”41. Assim, dado que a concentração, por si só, poucas possibilidades possui em face de um mundo que, em sua acelerada velocidade de desenvolvimento, multiplica as esferas de validade e também as esferas de distração, seria necessário atender aos “conteúdos dessubstancializados” da vida e testar com eles arranjos provisórios – o reconhecimento da legitimidade histórica da distração e de suas eventuais possibilidades é, nesse sentido, impositivo42.
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O período, historicamente complexo, porém teoricamente fecundo, já foi objeto de muitas investigações. Como uma referência possível, cito Peukert. (PEUKERT. Die Weimarer Republik).↩
Não desenvolverei aqui esse argumento específico, mas o fiz em outro lugar: SANTOS, Siegfried Kracauer: Sociologia e Superfícies. Escritos até 1933.↩
KRACAUER, Werke 5.1 („Die Wartenden“ [1922]), pp. 389-390. (No caso de artigos que constam na tradução brasileira – KRACAUER, O ornamento da massa – aponto a seguir as páginas equivalentes para quem possa interessa sob a sigla EB – edição brasileira: p. 156).↩
MÜLDER-BACH, Siegfried Kracauer – Grenzgänger zwischen Theorie und Literatur. SCHRÖTER, Text+Kritik („Weltzerfall und Rekonstruktion“).↩
O problema foi formulado por Simmel em inúmeros momentos. Cito, como exemplo, o registro que aparece no famoso ensaio “As grandes cidades e a vida do espírito”: “Os problemas mais profundos da vida moderna se originam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida — a última reconfiguração da luta com a natureza que o homem primitivo conduziu em favor de sua existência corporal.”, SIMMEL, “Die Großstädte und das Geistesleben”, Gesamtausgabe 7, p. 116. Aqui não atentarei extensamente para a presença de Simmel no pensamento de Kracauer, mas ela possui reverberações tanto no modo de exposição, como no que se refere aos procedimentos de análise. Cf. SANTOS, Siegfried Kracauer: Sociologia e Superfícies.↩
Também aqui a presença de Simmel é inegável. Em sua Filosofia do Dinheiro, esse autor afirma, por exemplo: “Nesse complexo de problemas o dinheiro é apenas meio, material ou exemplo para a apresentação das relações, que existem entre os fenômenos mais externos, realistas, casuais e a potência mais ideal da existência, a mais profunda corrente da vida singular e a história.” Cf. SIMMEL, Philosophie des Geldes, p. 16.↩
KRACAUER, Werke 5 e 6.↩
KRACAUER, Werke 9.2 (Georg Simmel. Ein Beitrag zur Deutung des Geistigen Lebens unserer Zeit), p. 170. (EB: p. 272)↩
KRACAUER, Werke 1 (Die Angestellten), p. 258.↩
Nesse sentido, a filosofia dos anos 1920 já foi interpretada por um comentador como formas de “saída do mundo desencantado”: BOLZ. Auszug aus der entzauberten Welt.↩
O par conceitual de Ferdinand Tönnies encontrou ressonância muito forte na obra de Kracauer, embora suas posturas em relação aos termos tenham se alterado com o decorrer dos anos. Inicialmente, o saudosismo em relação à comunidade tem presença forte, depois a aceitação da forma sociedade aparece como condição para a articulação de transformações sociais. TÖNNIES. Gemeinschaft und Gesellschaft, p. 39.↩
A respeito desse outro par conceitual de fortes ressonâncias nos debates do entreguerras, ver, por exemplo, as notas de ELIAS, Norbert: Über den Prozeß der Zivilisation, v. I, pp. 1-64.↩
KRACAUER, Werke 1 (Soziologie als Wissenschaft), p. 12.↩
Idem, ibidem, p. 13.↩
KRACAUER, Werke 5.1 („Die Wartenden“), p. 383. (EB: p. 149).↩
O autor era arquiteto de formação. De muitas maneiras, isso se reflete em seu pensamento teórico. Essa duas analogias específicas aparecem em um capítulo do livro sobre o romance policial, publicado também no livro O Ornamento da massa. KRACAUER, Werke 1 (Der Detektivroman), pp. 130-139. (EB: pp. 191-202).↩
Especialmente no ensaio “O ornamento da massa”, Kracauer argumenta a respeito do entrelaçamento entre esses processos. A concepção, contudo, está praticamente onipresente em suas reflexões. Negar as massas seria também negar o moderno e fomentar um “recuo” da razão. KRACAUER, Werke 5.2 (“Das Ornament der Masse” [1927]), pp. 612-624. (EB: p. 91-103).↩
O fenômeno, que possui ressonâncias diferenciadas, tem como um dos principais representantes Oswald Spengler e sua tese de “declínio do ocidente”. SPENGLER, Der Untergang des Abendlandes.↩
Não entrarei na questão da recepção de Marx por parte de Kracauer, mas lembro que o autor foi influenciado, sobretudo, pelos textos do “jovem” Marx, redigidos por volta de 1840, especialmente os escritos Sobre a questão judaica, Sagrada família e a versão parcial da Ideologia alemã, publicada em 1926.↩
KRACAUER, Werke 1 (Soziologie als Wissenschaft [Sociologia como ciência]), p. 13.↩
KRACAUER, Werke 5.3 („Zu Franz Kafkas nachgelassenen Schriften“ [„Sobre os escritos póstumos de Franz Kafka“] [1931]). (EB: p. 289)↩
KRACAUER, Werke 5.2 („Das Ornament der Masse“), p. 621. (EB: p. 100)↩
O termo é tomado da Teoria do romance de LUKÁCS: Die Theorie des Romans. Em Kracauer, ele é retomado sobretudo para pensar a nova classe média alemã, principalmente em seu livro de 1929, intitulado Os empregados: KRACAUER, Werke 1 (Die Angestellten), pp. 213-310.↩
Kracauer menciona frequentemente a negação das massas pelos “homens cultos” (“o que nem todos são”) e a explica como uma espécie de saudosismo. Cf., por exemplo, KRACAUER, Werke 5.2 (“Das Ornament der Masse”), p. 615. (EB: p. 95) e Werke 5.4 (“Wunschträume der Gebildeten” [“Desejo dos sonhos das pessoas cultas”] [1932]), pp. 280-285.↩
RINGER, O declínio dos mandarins alemães, p. 251.↩
KRACAUER, Werke 5.2 („Das Ornament der Masse“), p. 612. (EB: p. 91)↩
De acordo com tal tipologia, os “céticos por princípio” entenderiam a “inquietude da situação” de forma clara, mas apostariam na impossibilidade de se fazer qualquer coisa diante dela. Desse modo, por meio de um “heroísmo sem igual”, engajar-se-iam na produção de “conhecimentos puros”, dando deliberadamente as “costas ao absoluto”. O mais “competente representante” desse tipo de homens é, conforme o texto, Max Weber. O segundo tipo seria constituído por “homens curto-circuito”, que se caracterizariam por uma dedicação a crenças fervorosas – as quais, no entanto, são artificiais. Essas pessoas curto-circuito querem ter uma fé, querem crer em algo, por isso se entregariam a todo tipo de fanatismo. KRACAUER, Werke 5.1 (“Die Wartenden”), pp. 383-394. (EB: p. 149-160).↩
KRACAUER, Werke 6.1 („Kult der Zerstreuung“), p. 212. (EB: 348).↩
Idem, Werke 6.1, („Kaliko-Welt“ [“Mundo-calicó”]), p. 191. (EB: p. 304).↩
Idem, ibidem, p. 193. (EB: p. 306).↩
Idem, ibidem, p. 197. (EB: p. 310).↩
KRACAUER e LÖWENTHAL, In steter Freundschaft [em amizade contínua], p. 246.↩
As citações foram extraídas de outro ensaio fundamental. KRACAUER, Werke 5.2 (“Die Photographie” [1927]), pp. 682-698. (EB: p. 63-80)↩
Idem, Werke 6.2 („Der heutige Film und sein Publikum“ [Film 1928], [„O filme contemporâneo e seu público“), p. 164. (EB: p. 342)↩
KRACAUER, Werke 6.1 („Kult der Zerstreuung“), p. 210. (EB: p. 345-346)↩
Idem, ibidem, p. 212 (EB: p. 348).↩
O desenvolvimento dessa perspectiva aparece especialmente no ensaio “Adeus à passagem das Tílias”, de 1930. KRACAUER, Werke 5.3, pp. 393-400. (EB: 357-364)↩
“O poder supraindividual mais forte que vincula os homens de nossa civilização é o capitalismo, sob tal palavra entendo não apenas um sistema econômico, porém uma constituição espiritual total. O capitalismo se tornou ideia, uma grande ‘rotação’ da vida proporcionou a ele o domínio absoluto sobre a alma. Toda ideia autonomizada dessa forma quer desenvolver-se até o extremo e ser completada até a mais alta perfeição; é como se ela se esforçasse por uma efetivação lógica de todas as consequências nela implicadas, não importa se sua realização subsequente corresponda ou não ainda a necessidades internas essenciais [...] Como formação supraindividual, que cresceu e deseja inchar e se propagar em certa direção, a ideia deve influenciar e cunhar o interior dos homens em um sentido determinado. Em vez do homem total se manifestar em sua dedicação ao objetivo, ela o modela segundo seu agrado e o arrebata junto consigo. Ela se torna formadora de almas [Seelenbildner]. De acordo com seu conteúdo, são preferidas estas ou aquelas propriedades e capacidades e reprimidas outras”. KRACAUER, Werke 9.2 (Georg Simmel), p. 245.↩
ADORNO e KRACAUER, Briefwechsel 1923-1966, p. 218.↩
Nesse passo, aponto marginalmente para a afinidade do autor com o pensamento de Georg Simmel. Aquela nova postura que o autor de Filosofia do dinheiro reclamava para o pensamento filosófico é vista por Kracauer como igualmente necessária no âmbito da vida cotidiana de modo geral: uma vez que os “conteúdos” aparecem dessubstancializados, a vida pede para ser experimentada como “processo”, não mais como “sistema”. A percepção simmeliana em relação à filosofia aparece formulada na introdução à “Cultura filosófica” nos seguintes termos: “Sua essência [do conceito de filosofia] não é ou não é apenas o conteúdo que é a cada vez sabido, construído e acreditado, mas uma determinada atitude espiritual em relação ao mundo e à vida, uma forma e maneira funcional de tomar as coisas e lidar com elas intimamente.” SIMMEL, Gesamtausgabe 14 („Einleitung“ em Philosophische Kultur [„Introdução“, em Cultura filosófica] [1919]), p. 162:↩
WEBER, Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre („Wissenschaft als Beruf“), pp. 581-613.↩
Vale aqui uma referência ao modo “levemente diferente” de como Kracauer e Adorno avaliam a “indústria cultural”. Perguntado em uma carta deste último onde estaria a diferença, nosso autor afirma preferir conversar pessoalmente sobre a questão, mas adianta que, de acordo com seu “realismo curioso” (referindo-se ao título dado por Adorno ao texto escrito em sua homenagem – e que não o agradou [cf. Theodor Adorno, Gesammelte Schriften 11 (“Der wunderliche Realist” [“O curioso realista”] [1964]), pp. 388-408] havia observado que “o (inevitável) crescimento em quantidade da indústria cultural conduz também à posse de novas qualidades” (idem, ibidem, p. 640).↩