“throw me away”

Prolegômenos para uma antropologia literária do resíduo

Christian Moser

Universdade de Bonn

cm2201@uni-bonn.de

Tradução do alemão: Patrick Gert Bange (UFRJ)

Revisão técnica: Luciana Villas Bôas (UFRJ)

Resumo: A antropologia social inclui a sujeira, os restos e o lixo numa categoria ambivalente, liminal, que põe em risco a ordem social, mas guarda também um potencial para a sua renovação. Este artigo enfoca duas tendências que se interseccionam na história da modernidade: de um lado, a progressiva remoção de despojos e do lixo do espaço público, realizada pelas instituições de coleta e saneamento; e, de outro, o interesse crescente por fenômenos sujos e abjetos manifesto na literatura. Tomando textos de Goethe, Mayhew, Dickens e Kafka como ponto de partida, argumento que a literatura se empenha em aderir à função ritual da regeneração pela sujeira, que é banida pelas sociedades modernas em sua cruzada pela pureza e a limpeza.

Palavras-chave: Sujeira e lixo na literatura; Ritos de purificação; Liminalidade; Modernidade.

Abstract: Social anthropology conceives of dirt, waste and trash as an ambivalent, liminal category: It endangers social order, but it also harbors the potential for its renewal. This article focuses on two intersecting tendencies within the history of modernity: on the one hand, the progressive banishment of waste and trash from public space, effected by the institution of refuse disposal and sanitary systems; on the other hand, the increasing interest in dirty and abject phenomena articulated by literature. Taking my cue from texts by Goethe, Mayhew, Dickens and Kafka, I argue that literature strives to adopt the ritual function of regeneration through dirt ousted by modern societies in their crusade for purity and cleanliness.

Keywords: Dirt and trash in literature; Rites of purification; Liminality; Modernity.

I. Kafka e Douglas: resíduo como categoria cultural-antropológica

O que é resíduo? Pode parecer ousado endereçar essa pergunta não a um economista, a um adepto da política verde, ou a um especialista em descarte, mas a um escritor. Contudo vale a pena assumir o risco. Um pequeno texto de Franz Kafka contém toda uma teoria do resíduo de forma muito condensada. Trata-se do aforismo de número 73 de um total de 109, que Max Brod publicou do espólio de seu amigo pela primeira vez em 1953 com o título patético “Considerações sobre pecado, sofrimento, esperança e o caminho verdadeiro”. O texto diz o seguinte: “Ele devora os despojos que caem da própria mesa; sendo assim, na verdade, fica por algum tempo mais satisfeito que todos, mas se esquece de comer à mesa; com isso, porém, deixam de cair no chão também os despojos”.1 A concisão anedótica do texto oculta sua lógica intrincada. Ele narra a história de um esfomeado incomum, que acredita poder vencer engenhosamente a fome, mas que será alcançado pelas consequências de seu ato e que, por fim, recai no estado de escassez. O que está precisamente em jogo nessa história só se dá a ver quando levamos em conta seu contexto. Os aforismos de Kafka não são, como Brod sugere com o título que dá, sobre a “esperança” e o “caminho verdadeiro”; no entanto, têm a ver com o “pecado”. Eles delineam sobretudo o tema bíblico do pecado original, cujo princípio Kakfa busca sempre novas tentativas de alcançar. O estado da decadência, como Kafka o caracteriza, não conhece “caminho verdadeiro”; ele se mostra muito mais um caminho sem saída, como também o devorador de lixo do 73º aforismo precisa por fim reconhecer.

Os restos no sentido de lixo guardam, portanto, uma relação íntima com uma forma bem diferente de resíduo ― quando o ser humano originalmente decai de Deus.2 O que o Adão bíblico e o devorador de lixo têm em comum é, por um lado, a comida: ambos quebram um tabu alimentar. Por outro lado, a situação de escassez: o homem que come no aforismo 73 se agarra a restos porque sofre de fome. A punição de Adão pela sua transgressão será ter que lutar pela sua subsistência:

A terra será maldita por tua causa; tirarás dela o sustento com trabalhos penosos todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra, de que foste tomado; porque tu és pó, e em pó te hás de tornar.3

Diferente do paraíso, onde os frutos se lhe dão de si mesmos, o homem decaído precisa cultivar a terra árida para que ela o alimente. Abrolhos e espinhos o atiram em uma natureza hostil, contra a qual ele tem que se afirmar. Ele precisa discriminar o que nela é erva daninha, restos nocivos e inúteis, se quiser sobreviver. Mas a “erva da terra”, refeição com que ele tem que se contentar, não é nem um pouco diferente dessa erva daninha. Erva, abrolhos e espinhos ― todos eles são alimentos medíocres em oposição aos frutos do paraíso, de cujo deleite o homem decaído estará privado. Adão se transmutou, então, de um frutívoro para um detritívoro.4 Só com a mobilização de todas as suas forças pode conseguir dar um pequeno passo no sentido de reverter sua queda e abrir, dentro da categoria dos alimentos decaídos, uma diferença entre a erva preciosa e a erva daninha ordinária. Essa diferença é importante porque diferencia o homem do animal. Enquanto a cobra, como castigo pela sua transgressão, precisa se arrastar pela terra, para aí comer o “pó todos os dias de tua vida”,5 o homem tem a possibilidade de se erguer do pó, através do trabalho e do cultivo da terra, e ganhar distância dos animais. O trabalho é uma atividade que agrega valor. Ela transforma o resíduo (erva) em um bem precioso (pão). “For ‘tis Labour indeed that puts the difference of value on everything;” diz a interpretação secularizada que o filósofo inglês John Locke confere à história do pecado original: “labour makes the far greatest part of the value of things”.6

Kafka opera um jogo velado com a ambiguidade do termo “despojo”. Ele representa um homem pós-lapsariano que não procura superar a situação de escassez pelo trabalho, mas pelo fato de consumir os despojos. Ele faz uso do que os outros deixam cair no chão ― e que os animais tratam de devorar ― como uma fonte de alimento complementar. De início ele parece bem sucedido com essa estratégia. Ele fica mais satisfeito que seu semelhante; sem qualquer esforço, ele consegue satisfazer sua necessidade. Mas depois sua transgressão contra a ordem alimentar se vinga. Ele regride ao status de animal; ele devora ao invés de comer, desaprende os modos à mesa e rasteja no chão. As diferenças entre o de cima e o de baixo, ser humano e animal, cultura e natureza colapsam. Com elas, porém, esgotam-se também as fontes complementares de alimento. Porque, onde não há mais a diferença entre mesa e chão, não pode haver nenhum resíduo. O devorador se encontra de novo na mesma situação de escassez da qual buscava se libertar através do consumo dos restos. O aforismo de Kafka coloca ao devorador as seguintes alternativas: ou opta pela forma humana de vida e pela cultura, mas então terá que produzir resíduos, pelo que condena a si mesmo a uma existência de escassez; ou consome o resíduo, despoja-se de todas as suas aquisições culturais, mas recai certamente de novo na escassez. Seja qual for o ponto de vista, a situação da escassez é inevitável. Mas não é essa, para Kafka, típica “situação-doble-bind” o notável no aforismo 73. Notável é muito mais o fato de que o aforismo declara o resíduo como categoria antropológica fundamental. O resíduo, o decaído (sentido duplo da palavra) é isso que torna humano o humano. Kafka inverte a história do pecado original: o ser humano não se eleva sobre o animal através de seu trabalho valorativo, como na primeira linha, mas através do fato de que produz resíduos sem valor.7 A expressão “produz” é escolhida com cuidado, pois resíduo é algo fabricado, um produto artificial. Seguindo Kafka, não há objeto da natureza a partir do lixo sujo. O que seres humanos deixam cair no chão de suas mesas é fundamentalmente comestível; possui um valor de alimento ― o devorador de resíduo se satisfaz por isso. Isso que está debaixo da mesa é resíduo porque os seres humanos ― durante o ato simbólico de deixar restos ― fizeram disso resíduo e declararam-no sem valor ou impuro.8 Esses objetos não possuem características naturais que os predestinassem à condição de resíduo. Resíduo e sujeira são muito mais constructos culturais, categorias simbólicas. Como tais, não têm nada de absoluto. Resto é relativo. Para estabelecer uma ordem cultural, o ser humano precisa encontrar uma diferenciação entre o comestível e o resíduo, coloca-se exatamente onde dispõe a linha fronteiriça, segundo seu critério. O que vale para uma cultura como alimentação pura é descartado em outra como resíduo sujo. Ampliando-se a um nível universal, é unicamente essa capacidade de originar valor e ordem que está acoplada à produção de resíduo. Não há cultura humana sem resíduo.

No que Kafka concede ao resíduo uma função constitutiva para a ordem simbólica da cultura, ele desmascara como insatisfatórias definições tradicionais, que o colocam em relação ao supérfluo.9 Resíduo não é, assim, supérfluo, mas um ingrediente indispensável da cultura. O aforismo de Kafka prevê, dessa forma, novas teorias cultural-antropológicas, sociológicas e filosóficas, que procuram organizar o lixo como um elemento funcional da sociedade humana. Junto ao Rubbish Theory, do sociólogo Michael Thompson, merece menção, nesse contexto, sobretudo o livro Purity and Danger, da etnóloga inglesa Mary Douglas.10 Douglas submete a uma análise comparativa os ritos de diferentes culturas que se ocupam em banir a sujeira. Como Kafka, eles também definem o trato humano com o resíduo como uma prática simbólica. E, como Kafka, também atribuem ao resíduo um papel positivo na conservação da ordem cultural:

In chasing dirt [...], we are not governed by anxiety to escape disease, but are positively re-ordering our environment, making it conform to an idea. There is nothing fearful or unreasoning in our dirt-avoidance: it is a creative movement, an attempt to relate form to function, to make unity of experience. […] [R]ituals of purity and impurity create unity of experience. […] By their means, symbolic patterns are worked out and publicly displayed.11

A exclusão da sujeira serve à produção de ordem. Sujeira é aquilo que fica visível, deslocado. “Shoes are not dirty in themselves”, explica Douglas, “but it is dirty to place them on the dining-table”.12 Sujeira é, então, aquilo que perturba ou mesmo destrói uma dada ordem. Decai sempre mais sujeira lá onde certos elementos são selecionados e outros rejeitados na instauração de uma dada ordem. Esses elementos caminham através dos restos, que põem em questão os esquemas classificatórios e perturbam a padronização da experiência. Douglas estabelece, com isso, uma oposição entre a desordem do resíduo e a ordem da cultura. Mas, ao mesmo tempo ― e aí reside a força da abordagem ―, sabe evitar que essa confrontação se congele em uma oposição rígida. Resíduo não é meramente o oposto de ordem, mas também a constitui:

Granted that disorder spoils pattern, it also provides the material of pattern. Order implies restriction; from all possible materials, a limited selection has been made and from all possible relations a limited set has been used. So disorder by implication is unlimited, no pattern has been realised in it, but its potential for patterning is indefinite. This is why, though we seek to create order, we do not simply condemn disorder. We recognise that it is destructive to existing patterns; also that it has potentiality. It symbolizes both danger and power.13

Consequentemente, o resíduo compõe um recurso indispensável da ordem. Ele é uma categoria ambivalente. Não se pode defini-lo como um componente da estrutura simbólica porque ele irrita as classificações e, por isso, é separado como sujeira. Mas também não está totalmente fora da ordem, já que ele é necessário ao estabelecimento dela, que, sem ele, não pode se constituir. Resíduo é um fenômeno-limite ambíguo; ele marca o limiar entre a ordem e a desordem.14 Douglas reconhece um indício desse status ambivalente do resíduo como fonte de perigo e força no fato de a maioria das culturas ter desenvolvido formas rituais específicas, que servem para colocá-las em contato com o domínio da desordem.15 Elementos impuros desempenham um papel significativo em muitos ritos de renovação. Em certas culturas da Nova Guiné, por exemplo, em que o canibalismo é normalmente um tabu, o ritual de iniciação prescreve o consumo de carne humana. O iniciando adentra, através da ingestão de comida impura, o domínio da desordem, onde procura se apossar das forças perigosas e ao mesmo tempo salutares, que ele deve tornar proveitosas para a renovação da sociedade. Resíduo, nas sociedades analisadas por Douglas, não é facilmente banido, ele antes expõe a fronteira sempre retraçada e testada, a partir da qual a cultura ganha um entendimento sobre si mesma.

A definição de resíduo como um fenômeno limítrofe, que se dá a partir da confrontação das abordagens de Kafka e Douglas, pode ser proveitosa para a análise da representação literária do lixo. Desde os meados do século XIX, surgiu uma série de autores que parecem ter especial afinidade com essa concepção. Talvez deva-se recuperar o fato de esses autores operarem com uma categoria bem semelhante. Textos poéticos também são estruturas simbólicas ordenadas, cuja construção contém a seleção e a escolha de elementos. Mas o que é antes de tudo digno de nota nesses autores é que eles descobriram para si o potencial criativo do desordenado. Eles exploram por predileção o espaço marginal entre ordem e desordem, que encaram como decisivo para a constituição e renovação de relações simbólicas. Daí que não é de se espantar que reajam sensivelmente a mudanças que dizem respeito à relação entre ordem e desordem em seu âmbito social. Assim, percebem antes e mais nitidamente que outros que o posicionamento da sociedade frente ao lixo, desde o século XVIII, está marcado por uma ampla guinada. Mary Douglas ignora a existência dessa guinada. Ela alcança suas percepções na medida em que faz confrontarem-se as chamadas culturas primitivas, afirma, entretanto, que os resultados de sua análise seriam transponíveis para as sociedades modernas do ocidente sem grandes sacrifícios.16 Com isso, negligencia que exatamente essas sociedades trabalham para eliminar a ambivalência perturbadora do resíduo. O resíduo é cada vez mais banido na cultura ocidental desde o século XVIII; a relação entre ordem e desordem, aqui, se endurece cada vez mais em uma oposição rígida.17 A exclusão do resíduo, que encontra expressão na constituição de um órgão público de limpeza do estado, tem relação com outros movimentos de exclusão, como Michel Foucault descreve em seus estudos histórico-discursivos: com a exclusão das doenças do espírito, para as quais foi criada a nova instituição hospício, com a exclusão de delinquentes, internados em penitenciárias, bem como com a exclusão de mendigos e vagabundos, que devem ser exilados em abrigos de pobres e reformatórios.18 Na medida em que esses “elementos sujos” se distanciam da sociedade, encontram ingresso no texto literário. A afinidade da literatura com o resíduo não se manifesta apenas no fato de o lixo se mostrar digno pela primeira vez para a representação. Além disso, a literatura se identifica com o sujo. O trapeiro, que remexe o lixo em busca do que tem valor, é promovido a alter ego do poeta.

A seguir, tentarei elucidar as tendências opostas da exclusão do resíduo para fora da sociedade e a integração delas na representação literária com exemplos selecionados. Eu os tomo da literatura alemã e inglesa do século XIX. Os textos serão lidos como testemunhos da mencionada guinada histórico-cultural; depois, como indícios do esforço de transpor para a literatura a função ritual da purificação, que no passado era exercida por figuras marginais em lugares liminares dentro da sociedade. A literatura assume, por fim, a tarefa de comunicar à sociedade as fontes ambivalentes de força do resíduo.

II. Goethe: resíduo como motor da circulação social

O primeiro exemplo que gostaria de introduzir certamente vai espantar. Trata-se de Viagem à Itália, de Goethe. Perguntarão: o que tem esse relato de viagem, que dá forma a uma experiência de formação paradigmática do encontro de Goethe com os testemunhos dos antigos e que declara a Itália como um ideal de conciliação entre arte e natureza, a ver com um ensaio sobre a representação do lixo? Onde, senão nesse texto, está operada a exclusão sistemática de toda sujeira? Olhando com precisão, sem dúvida fica visível que uma exclusão dessas sequer tem lugar. Ao contrário, exatamente porque a Itália deve se comportar como modelo para a interação sem conflitos entre natureza e cultura, Goethe é compelido a integrar o lixo em seu relato19. Segundo o veredito das suas exposições, o resíduo não perturba a Itália, porque lá ele assume o lugar que a ordem natural das coisas atribui a ele, a saber, justamente, o lugar dele no limiar entre natureza e cultura. Embora a sujeira nas ruas das cidades italianas seja onipresente ― à diferença da Europa Nórdica protestante ―, elas não são, por isso, declaradas retratos assustadores e repulsivos, mas modelos de trato com o resíduo.

A tolerância de Goethe com o resíduo se insinua logo nas primeiras páginas de seu relato de viagem. Já em Verona lhe ocorre que as ruas estão repletas de imundície: o povo comum satisfaz, aqui, suas necessidades corporais― em pleno espaço público ― e contamina as praças com fezes.20 Goethe traz isso com relação à observação de que nas cidades italianas o de dentro das casas e o de fora das ruas são pouco delimitados. As casas dos artesãos não têm portas, estão abertas às ruas; mesmo os palácios possuem adros totalmente acessíveis. A sujeira e o excremento, como a vida interna da casa, tampouco são escondidos. Com respeito a ambos, a população demonstra um despudor “natural” e uma despreocupação durante o dia. Ela quer “se livrar tão rápido quanto possível daquilo que tomou para si”21. Ela não contém nada em si, não retém nada “consigo” ou “para si”. Não há aqui nenhuma violência com a natureza, a circulação orgânica e verbal não toleram nenhuma obstrução. Consequentemente, os excrementos não estão nas ruas de Verona deslocados, mas inseridos harmonicamente no quadro geral: “átrios e colunatas estão todos contaminados de imundície e isso é muito natural”.22 A rua é o espaço de um tráfego livre, de uma troca desimpedida de bens, alimentos, palavras e excreções. Já que tudo está em movimento, nada pode ser barrado; não há constipações danosas. Conflitos sociais são resolvidos tão rapidamente quanto o intestino se esvazia. O excremento na rua é para o viajante um indício da existência de uma ordem, social e em funcionamento, de um saudável body politic, ordem que se orienta segundo o exemplo da natureza.

O que Goethe apenas sugere de forma rudimentar em relação à vida veronense, ele representa pormenorizadamente em sua descrição da cidade portuária de Nápolis. Para ilustar o trato napolitano com o resíduo, ele constrói uma sofisticada rede de opostos. A circulação característica da produção, do consumo e da exclusão do resíduo é, por um lado, contrastada com o fenômeno natural do Vesúvio, por outro, com as relações na Palermo siciliana. Goethe retrata o Vesúvio como uma “acumulação frutífera, amorfa, que sempre torna a se consumir e a declarar guerra a toda sensação de beleza”; a montanha representa “o disforme” per se.23 O vulcão repercute no viajante como um monte de imundície ― uma imundície, contudo, que de maneira nenhuma está em relação de troca com seu entorno, já que ele, o vulcão, não se alimenta de nada ou fecunda nada além de si mesmo. À figuração da imundície devoradora de si mesmo se ligam repulsivamente as representações do canibalismo, da coprofagia e do incesto. O vulcão é, portanto, apresentado como a quintessência do sujo. Ele corporifica a ideia de uma circulação ruim, perversa e improdutiva, que se esgota numa reprodução estática do amorfo, ao invés de se dispor como substância para a construção de novas formas.

Como o Vesúvio, Palermo também oferece ao viajante o espetáculo de um ciclo improdutivo. Aqui também sujeira só gera sujeira. Os comerciantes da cidade siciliana, durante o dia inteiro, mantêm os degraus em frente de suas lojas limpos através de diligente varrição. Eles varrem a imundície ― “camadas de palha e cestos de restos de comida e toda espécie de imundície” ― para o meio da rua, onde ela, já que ninguém a recolhe, seca e se deteriora em pó. Qualquer brisa basta, então, para distribuir a “pó infinito e agitado por todos os barracos e janelas”, de modo que a loja precisa recomeçar a limpeza do início.24 O lixo apodrece na rua, onde ninguém faz uso de sua degradação, já que ele não serve a nenhuma nova regeneração em alimento. O resíduo se transforma em puro amorfo, em pó. A total desintegração do resíduo corresponde à desintegração da sociedade citadina. Goethe condena a “administração desonesta” de Palermo:25 o magistrado da cidade é corrupto e não se ocupa dos interesses públicos, a aristocracia cuida apenas da defesa de seus privilégios, e na burguesia impera um espírito tacanho e mesquinho ― cada um volta-se, então, apenas para a própria porta e carrega a sujeira da comunidade. Mas falta, sobretudo, uma coisa em Palermo: o povo comum na rua.

Porque é antes de tudo ao povo das camadas mais baixas ― isso Goethe bem ilustra com o exemplo de Nápolis ― que compete a função social da limpeza. Em Nápolis, seguindo Goethe, é o povo que intermedia os domínios da natureza e da cultura. Preocupa-o que a troca renovadora entre essas duas esferas não sucumba ― que nada vire pó e se desintegre totalmente, e que o ciclo orgânico não possa ser restabelecido. Figuras marginais das camadas baixas do povo comum ― crianças de rua, trapeiros e catadores de lixo ― realizam rituais de purificação em meio à cidade; livram a sociedade de sua sujeira, mas se revelam ao mesmo tempo a fonte de força encoberta que há no desordenado. Eles são “homens da natureza”, voltados totalmente para o gozo sensual do presente.26 “Macaquinhos” e “pequenos hurões”, assim chama o viajante os jovens das ruas, que encontra em Nápolis por todo lado.27 Com o estado animal pouco desenvolvido, esses seres liminares operam um recycling em grande estilo. Goethe encontra em Nápolis um sem número de “exemplos [...] desses que fazem uso [disso] que, do contrário, se perderia”: aí estariam por exemplo os rapazes, que se deitam com o corpo inteiro no calçamento para aproveitar o calor que sobra da queima de uma forja, ou então as criaças que catam restos de madeira na praia ou em frente às oficinas dos carpinteiros, para depois vendê-los nas ruas.28 Num nível mais acima, perambulam os trapeiros e os catadores napolitanos. Eles se ocupam da revalorização de materiais inorgânicos: “nenhum pedacinho de ferro, tecido, pano, tela, feltro etc. que não retornasse ao mercado como mercadoria de coleta e que não fosse comprado de novo por um ou outro”.29 Por fim, o ponto mais alto da capacidade intermediadora é o trabalho dos carroceiros, que levam os despojos de burros.30 Esses despojos são compostos por esterco, fezes e restos de comida, que não são, à diferença de Palermo, jogados na rua, mas utilizados como adubo nos campos e nas hortas do entorno da cidade. “Nenhum jardim sobrevive sem esses burros”.31 A cidade é uma “rica mina de ouro”32 para os agricultores. Seus jardins alimentam a cidade, mas a cidade, do outro lado, também alimenta seus jardins. Enquanto o Vesúvio devora a si mesmo, há aqui uma relação de reciprocidade alimentar. É de se agradecer ao transportador de despojos que a cidade e o campo, cultura e natureza permaneçam em uma relação vital de troca.

Em Nápolis, as camadas mais baixas da população funcionam, assim, como motor de uma circulação vitalizante. Seu trabalho garante que a fronteira entre cidade e campo, entre o que é destituído e o que é dotado de forma33 permaneça permeável e garanta que possa haver sempre uma troca renovadora. Aqueles que pertencem a essas camadas causam, de fato, como Goethe admite, uma impressão totalmente maltrapilha. Assim, eles são parecidos a ponto de poderem ser confundidos com os mendigos e vagabundos, estigmatizados como dejetos da sociedade na Europa Nórdica protestante. Os napolitanos que se ocupam de resíduos pela rua vivem como estes; dormem “sob a cobertura dos telhados, nos limiares dos palácios e das igrejas”.34 Mas justamente aqui podemos traçar a linha divisória: eles são, tanto no sentido literal, como no metafórico, habitantes do limiar. Enquanto, na Europa Nórdica, esforçam-se em por para fora essa corja suja, em neutralizá-la além da fronteira, em Nápolis, ela ocupa exatamente a fronteira, em que preenche uma função social indispensável. Em Nápolis, quem mora na rua, explica Goethe, não foi “por isso ainda banido e considerado miserável”.35 Diferente da Europa Nórdica, aqui os habitantes das ruas não são ociosos e parasitários: trazem, isso sim, através de seu trabalho algo essencial para o processo social de produção e de criação de valor: “sim, gostaria de propor quase um paradoxo, segundo o qual, em Nápolis, a maior indústria pode ser encontrada nas mais baixas classes”.36 Goethe apresenta Nápolis como exemplo de uma sociedade que cultiva suas margens e fronteiras. Ela enfrenta o perigo que emerge do sujo espaço liminar entre ordem e desordem, não através de uma estratégia de banimento, mas através do fato de que integra os habitantes do limiar em sua economia, ate mesmo os promove a guardadores do limiar. A sociedade napolitana faz uso do potencial de renovação escondido nessa esfera de transição e recusa, com isso, traçar uma linha divisória nítida entre o puro e o impuro, entre dentro e fora.

iii. Mayhew e Lamb: a estetização do trapeiro

Goethe dá a Nápolis uma forma de quadro ideal de uma sociedade orgânica, que integra a sujeira através da mediação de um grupo marginalizado da população. Ele mostra ao mesmo tempo que uma integração dessas não é mais possível nas sociedades da Europa Nórdica. Sem dúvida também há nelas figuras marginais, cuja tarefa consiste em reconciliar a sociedade com sua sujeira. O chiffonnier, por exemplo, nas ruas de Paris, faz com que resíduos sejam revalorizados; o ragpicker desempenha uma função parecida em Londres. O chiffonnier não livra a cidade apenas da sujeira em sentido literal; ele realiza com isso uma transação simbólica, uma purificação ritual. Isso pode, por exemplo, ser interpretado como um pequeno ritual, que ocorre em todas as manhãs dos séculos XVIII e XIX nas habitações parisienses. Faz parte da tarefa do concierge, do guardador do limiar da casa, colocar os cestos de lixo na rua. O concierge transfere essa tarefa, entretanto, via de regra, a um chiffonnier, que, em troca, ganha o direito de selecionar o lixo e de se apropriar de materiais reutilizáveis37. O chiffonnier cede ao concierge, assim, um trabalho sujo e que suja; aquele submete este a uma purificação simbólica. Por outro lado, o trapeiro tem entrada na casa; ele ocupa ― mesmo que por um momento ― o lugar do concierge e é dessa forma integrado à comunidade da casa. A função mediadora do chiffonnier, contudo, é colocada em questão de modo radical pela revolução industrial. Se encaramos, hoje, o chiffonnier como uma figura típica do século XIX, isso já pode ser visto como o resultado de uma mitificação literária, que vivenciou a queda do trapeiro em uma falta de sentido social. A poesia, no século XIX, assume a tentativa de compensar a perda da função mediadora simbólica, na medida em que eleva o chiffonnier a um símbolo.38 O chiffonnier, no entanto, pertence de fato a uma época mais antiga. Não menos antiga do que aquela em que o Rei Sol, Luís XIV, no ano de 1704, concede à profissão de chiffonnier o direito, a essa altura há muito existente, de aproveitar o lixo das casas da metrópole de Paris.39 No século XIX, ao contrário, esse direito é colocado em questão. Nos anos vinte, o chiffonnier anda sob a vigilância da prefeitura policial parisiense. Ela coloca o modo de vida do trapeiro sob a mira e declara, sem mais, a profissão como uma fonte de ameaça moral. Em primeiro lugar, ela obriga a instalação dos depósitos em que os chiffonniers alocavam suas coletas, espaço em frente e para o lado de fora dos portões da cidade.40 No ano de 1832, chegou a haver uma revolta dos trapeiros, que se opunham contra essas tendências excludentes e especialmente contra as ordens da prefeitura de acelerar a coleta de lixo.41 O velho guardador da área fronteiriça entre a ordem e o desordenado não pode mais acompanhar a velocidade excessiva da circulação social.

Na Inglaterra se desenhou, no início do século XIX, um desenvolvimento parecido. As consequências da transformação social para o sistema de limpeza tornam-se aqui ainda mais visíveis. O escritor inglês Henry Mayhew dedica aos dustmen, aos homens do lixo da capital inglesa, um amplo capítulo42 no seu estudo publicado em forma de livro em 1861 e anteriormente como uma série de artigos compostos em 1860 para a Morning Chronicle, publicada em livro no ano seguinte, com estudos retrógados sobre London Labour and the London Poor. Por isso, o modo de representar de Mayhew interessa especialmente, por um lado porque documenta de modo realista os efeitos devastadores da industrialização sobre o trabalho dos dustmen. Por outro, porque torna visível a tendência à supervalorização simbólica da miséria dos homens do lixo. Significa: encontram-se ali modos de aproximação de uma compensação poética frente à perda da função mediadora simbólica que sofre o trabalho dos dustmen. De início, Mayhew traça as estruturas organizacionais do órgão de limpeza estatal de Londres. O tratamento do lixo da metrópole se transforma em um discreto ramo industrial. Esse tratamento está agora nas mãos de grandes empresários, os assim chamados dust-contractors, junto aos quais os dustmen comuns encontram ocupação como trabalhadores assalariados. Eles recolhem o lixo das ruas e o transportam, à carroça, aos dust-yards, que não são mais no centro da cidade, mas em seus limites mais distantes. Ali o lixo é amontoado em pilhas imensas: “the dust is piled up to a great height in a conical heap, [...] having much the appearance of a volcanic mountain”. 43 Nos dust-yards‚ os sifters assumem a função de selecionar os resíduos com auxílio de grandes peneiras: o pó fino de carvão, gerado nesse movimento, é reaproveitado para agricultura como adubo; os pedaços mais brutos servem à produção de tijolos; farrapos, à produção de papel.44 O trabalho de seleção, antes praticado por trapeiros ambulantes sob os olhos dos cidadãos, torna-se assim uma etapa de trabalho executada longe da esfera pública. Figuras cobertas de fuligem, sobretudo crianças e mulheres, que preferem a função de sifter, ficam da manhã à noite sobre montanhas de lixo, que tentam extirpar com suas peneira, em vão, já que carroças sem fim sempre voltam com mais lixo. Se colocarmos o vulcão que se devora a si mesmo de Goethe em negativo, de cujo fundo emergem, com toda cor, as atividades frutíferas dos trapeiros napolitanos, podemos mesmo ler o processamento do lixo em Mayhew como um sombrio processo vulcânico. A atividade dos sifters se iguala ao trabalho de Sísifo; ela parece tão sem sentido como o lixo, segundo Mayhew, que está prestes a perder qualquer valor econômico. Devido ao crescimento exponencial ou explosivo de bens de consumo e do rápido crescimento populacional, há nomeadamente uma superoferta de resíduo, enquanto cai a procura por adubo e por outros produtos reciclados: “the demand has fallen off greatly, while the supply has been progressively increasing, [...] so that the Contractors have not only declined paying anything for liberty to collect it, but now stipulate to receive a certain sum for the removal of it”.45 Em vez de contar com a possibilidade de os resíduos gerarem valor, os empresários só procuram ganhar dinheiro com o descarte do lixo.46 Os dust-yards perdem cada vez mais a característica de lugares de transformação em que o trabalho do sifter transforma resíduos sem valor em matéria-prima revalorizada. Transformam-se em depósitos que servem à disposição do lixo.47 O sentido da atividade do sifter é confiscado; ela se restringe definitivamente apenas em um revolver vazio, sem nenhuma função, das estáticas e crescentes montanhas de lixo.

O que Mayhew diz valer para o trabalho dos dustmen vale também para seus modos de vida.48 Eles vivem praticamente em meio ao lixo; suas casas fazem fronteira cerrada com os dust-yards. Seus filhos não têm formação escolar, são acostumados com o trabalho em meio ao lixo desde pequenos. Não há alternativa para eles: “The dustmen are, generally speaking, an hereditary race”. 49 Eles herdam o trabalho em meio ao lixo, herança de que não podem abrir mão. Os dustmen se relacionam apenas com seus pares; nas public houses há até um espaço reservado para eles. Já que não estão empregados como trabalhados assalariados no mercado e gostam de se embebedar com sua pouca renda, não têm oportunidade de se relacionar, através de transações econômicas, com outras camadas sociais. Como vestimenta, não possuem mais que suas roupas de trabalho, que pendem neles como uma segunda pele e que os identificam a uma certa casta. Os dustmen formam, portanto uma comunidade isolada e totalmente excluída. Da mesma forma que a montanha vulcânica que sempre renasce e se devora, os dustmen também estão presos em um ciclo estéril. Permanecem fora da circulação encadeada de bens e marcas que caracteriza a vida na sociedade capitalista. Para Mayhew, isso é um motivo de queixa. Ele exige reformas que devem dar aos dustmen possibilidades de ingresso e de retirada. Mas, ao mesmo tempo, fascina-o o isolamento social dos homens do lixo. Porque, pelo fato de existirem em um espaço para além da circulação social, podem, explica Mayhew, preservar certa inocência. A influência corruptível de uma ordem econômica baseada em mentira e engano os atravessa sem deixar marcas. Nesse sentido, Mayhew constrasta os dustmen com os costermongers, os comerciantes de rua londrinos, conhecidos pela esperteza, pela “cunning and natural quickness”. 50 Os homens do lixo, ao contrário, se caracterizam, segundo ele, por uma franqueza natural. Em meio a uma sociedade depravada, eles trazem à tona uma pureza pré-lapsariana. Mayhew entende como indício de que os dustmen descendem de uma pré-história melhor e arcaica51 o fato de que levam a vida em meio à imundície e de que gozam ali de uma indestrutível saúde corporal, a qual, portanto, os revela imunes à sujeira nociva. São sujos do lado de fora, mas puros no interior.

Da análise dos homens do lixo por Mayhew emergem, então, duas tendências contraditórias. Por um lado, ele traça um quadro realista da má administração social e reclama por reformas, isto é: por medidas que acabem com o isolamento social dos dustmen. Por outro, confere a eles, justamente por seu isolamento, um caráter simbólico ― eles remetem a um tempo melhor e a uma ordem social mais justa. Acaba-se com seu isolamento na mesma medida em que se destrói seu caráter simbólico e, com isso, a lembrança de uma condição melhor. Esse pensamento, que está por toda a parte de London Labour and the London Poor, nunca formulado explicitamente, Mayhew liga à poesia urbana do romantismo inglês. Charles Lamb, por exemplo, amigo de Coleridge e Wordsworth, apresenta, em sua coletânea de ensaios chamada Elia, um flâneur que se lança à busca de relíquias simbólicas como essas na Londres moderna.52 Ele navega, por assim dizer, nos resíduos de tempos passados. Elia53 acredita ter encontrado uma tal relíquia na figura do limpador de chaminés que encontrou na rua.54 O escândalo do trabalho infantil, o fato de que era completamente comum no século XIX sequestrar rapazes de cinco a seis anos de suas famílias para os meter no perigoso serviço de limpeza de estreitas chaminés da metrópole inglesa, esse fato era um prato cheio para uma enxurrada de crítica social.55 Mas Elia evita a análise detalhada das circunstâncias sociais. Ele se concentra no retrato do pequeno limpador de chaminés. O menino está totalmente coberto de fuligem negra que parece indicar sua personalidade depravada, arrancada precocemente do estado da inocência. Não obstante, o flâneur se espanta que a sujeira só esteja do lado de fora e que se esconda ali um ser puro, um resquício de inocência do paraíso. Para tornar visível essa pureza, é necessário, no entanto, uma ocasião especial. O flâneur pula pra rua e se remexe na imundície. A aparição do gentleman em meio à sujeira e de seu terno salpicado de lama faz rir o limpador de chaminés, quando o seu rosto revela uma fila brilhante de dentes brancos:

There he stood, pointing me out with his dusky finger to the mob, [...] till the tears for the exquisiteness of the fun (so he thought it) worked themselves out at the corners of his poor red eyes [...], there he stood, [...] irremovable, as if the jest was to last for ever ― with such a maximum of glee, and minimum of mischief, in his mirth [...] ― that I could have been content, if the honour of a gentleman might endure it, to have remained his butt and his mockery till midnight.56

O riso sincero e o branco dos dentes são as marcas da inocência que o flâneur procura. Mas, paradoxalmente, a pureza pré-lapsariana só pode ser trazida à luz no curso de uma queda; o branco da inocência precisa do fundo negro para se tornar visível. O encontro entre o flâneur e o limpador de chaminés tem, nos dois, um efeito catártico, mas essa purificação interior está acoplada à produção de sujeira do lado de fora. De certa forma, a pureza provoca a sujeira. Esse modo de ver o efeito purificador da sujeira faz com que Elia, aliás Lamb, se oponha aos movimentos de reforma que querem livrar a sociedade de elementos impuros ― mendigos, prostitutas, vagabundos, trapeiros etc.57 Quem põe de lado a sujeira, assim diz seu argumento, põe de lado ao mesmo tempo a pureza. Lamb chega a afirmar que mesmo o espetáculo sujo de um mendigo pode provocar um efeito sadio e purificador, mesmo se ele fingir sua indigência.58 Porque, em um mundo decaído, de qualquer modo, só se consegue a pureza pelo desvio da sujeira, a verdade, pelo desvio do engano. Lamb devolve, então, mais uma vez, a esses seres liminares os seus direitos como mediadores simbólicos entre a sujeira e a pureza. Mas a purificação que promovem tem apenas um caráter estético. Os mendigos e os aleijados, que estão como que em casa nas ruas das metrópoles, são contemplados como atrações (sights), “in their picturesque attire as ornamental as the Signs of London”; os trapeiros, que o flâneur encontra em suas excursões, são apreciados como spectacle enriquecedor ― eles encenam o espetáculo da limpeza, indissociável da sujeira, nas ruas das metrópoles, para uso e piedade dos passantes.59

iv. Dickens: as zonas de transição como espaços da renovação

A resistência dos românticos não pôde deter certamente a marcha triunfal dos movimentos de reforma. Nos anos quarenta do século XIX, o sanitary reform movement, assim chamado por Edwin Chadwick, empreendeu sua vitoriosa cruzada contra a sujeira e os excrementos. A palavra mágica da vez é higiene. As descobertas inovadoras de Louis Pasteur ocorrem apenas nos anos setenta. Mas Chadwick consegue instrumentalizar, para seus fins, a antiga teoria do miasma de Hipócrates e Galeno.60 Segundo Chadwick, o perigo da contágio é maior em todos os lugares onde há algum impedimento à circulação de água e ar. O surgimento de vapores nocivos só pode, então, ser prevenido através do movimento constante da água e do ar.61 Sob essa premissa, Chadwick se pôs em guerra contra latrinas, fossas, montes de esterco e sarjetas. Inovações técnicas, como a invenção do banheiro, a produção de canos esmaltados e de aquedutos de ferro deram as condições para que a água pudesse ser transportada por grandes distâncias e distribuída rapidamente e sem congestionamento. Os serviços públicos encarregados acolheram as sugestões de reforma de Chadwick: no ano de 1847, a administração pública de Londres ordena que fezes e lixo doméstico não podem mais ser acumulados em fossas, mas imediatamente descarregados nos canais do Tâmisa.62 A instância legislativa dá a permissão em geral e assim cria as condições para que o esgoto sem tratamento fosse despejado nos rios e lagos; no Public Health Act, de 1848, obriga os construtores a instalar banheiros em qualquer nova construção.63

A concepção de Chadwick de uma canalização de despejo pode servir de modelo para uma postura frente ao resíduo. O lixo não é mais algo reutilizável, mas apenas um fator que pode perturbar e obstruir o tráfego social. O lixo precisa ser afastado o quanto antes do sistema, para não obstruí-lo. O objetivo primeiro consiste em desintegrar totalmente, o mais rápido possível, o resíduo.64 Os novos modelos do descarte do lixo são estes: o grande volume de água, em que se perde a sujeira ali disposta; e os enormes depósitos, em que o resíduo forma uma massa indiferenciada. O perigo está nas etapas intermediárias, em que o lixo ainda está totalmente decomposto em pó, em que alguns pequenos pedaços ainda se deixam identificar, já que os vestígios guardam ainda a sua origem. Esse estado intermediário, junto ao qual o chiffonier se dispõe a permanecer para revirar, essa congestão da circulação social deveria ser eliminada a partir daquele momento. A nova ideologia do lixo quer estabelecer uma oposição rígida entre ordem e desordem.65

Como reage a literatura a essa nova ideologia do resíduo? Charles Dickens se mostra, no prefácio da edição de 1849 de seu romance Martin Chuzzlewit, adepto ao movimento de reforma de Chatwick.66 Pode-se tirar daí que a literatura moderna toma o partido da remoção do lixo? Que ela se coloca, através da representação realista da sujeira e da deterioração, a serviço de um movimento que busca purificar a sociedade através da exclusão? Pelo menos em relação a Dickens, esta pergunta não pode ser respondida de forma unívoca. Por um lado, Dickens atribuía as catastróficas condições higiênicas aos cortiços dos pobres.67 Por outro lado, a questão do lixo exerce sobre ele uma curiosa força de atração. Essa força é tão grande, que ele até torna o negócio em torno do lixo o tema central de uma de suas últimas obras, Our Mutual Friend (1864/65). Dickens se mostra especialmente fascinado pelos estados de transição entre ordem e desordem. Ele representa essas zonas de transição como algo capaz de resistir às pretensões modernas em torno da limpeza. O entre-terreno híbrido não se deixa eliminar por formas tão rígidas de oposição. Isso deve ficar claro, por fim, com um exemplo do romance David Copperfield (1849/50).

No capítulo “Martha”, Dickens narra como Copperfield e seu amigo Peggotty perseguem uma prostituta numa rua noturna de Londres. Martha, assim se chama a jovem, dirige-se a uma fronteira decadente da cidade, à margem do Tâmisa, onde pretende cometer suicídio. Ela se identifica com o rio imundo, no qual planeja se atirar. “I know it’s like me”, diz.

I know that I belong to it. [...] It comes from country places, where there was once no harm in it ― and it creeps through the dismal streets, defiled and miserable ― and it goes away, like my life, to a great sea that is always troubled ― and I feel that I must go with it!68

A jovem por cair se vê como resíduo humano: “Throw me away”, grita ela a Copperfield.69 Ela quer se jogar fora da mesma forma como se costumava jogar fora o resíduo na época de Chadwick. Nos anos de 1840 e 1850 ― até o estabelecimento de um sistema de canalização por Joseph Bazalgette (1855) ― o Tâmisa representava o mais importante órgão de descarte da cidade de Londres.70 O esgoto é levado direto ao Tâmisa desde 1847, de modo a distanciá-lo imediatamente da metrópole. Martha deseja que o rio a deságue no mar, onde estará entregue, como espera, à total desintegração e ao esquecimento sem rastro. Mas o rio se recusa a levar a jovem mulher consigo. Ela permanece à sua margem, como se o rio a tivesse vomitado ― “[a]s if she were a part of the refuse it had cast out”. 71 De fato, a zona limítrofe, que separa a cidade do rio, se mostra como um espaço de despejo do que foi desaguado e jogado fora:

In one part, carcasses of houses, inauspiciously begun and never finished, rotted away. In another, the ground was cumbered with rusty iron monsters of steam-boilers, wheels, cranks, pipes, furnaces, paddles, anchors, diving-bells, wind-mill sails, and I know not what strange objects, accumulated by some speculator, and grovelling in the dust, underneath which ― having sunk into the soil of their own weight in wet weather ― they had the appearance of vainly trying to hide themselves.72

Também o ferro-velho que suja a margem é algo expelido ― expelido não pelo Tâmisa, mas pelo fluxo errante do capital. Os pedaços de ferro devem adentrar o grande rio das mercadorias e do dinheiro como objetos especulativos, mas encalham num selvagem depósito de lixo à margem da cidade, onde são condenados a se amontoarem. Mais precisamente: onde querem se amontoar, mas não podem. Porque, como Martha, a sucata se envergonha de seu estado e quer se ocultar: como a prostituta, a sucata quer se desfazer em algo sem forma e virar pó. E, como para a jovem mulher, essa possibilidade lhe está barrada. Dickens coloca em questão a ideologia do descarte desenfreado. O limite73 entre rio e cidade marca o entre-espaço ambivalente dessa ideologia, o qual, como diz Chadwick, não pode mais existir. Mas o rio, que esse reformador queria transformar em um canal de esgoto, não deságua a sujeira para fora, deságua muito mais para a margem.74 Exatamente nessa zona de transição Martha encontra a chance de se purificar de sua culpa e de se reintegrar à sociedade. Ela firma, aqui, um pacto com Copperfield e Peggotty, útil aos dois lados e que, com isso, traz à luz o recycling do que é jogado fora. Dickens marca o entre-espaço, assim, como o lugar em que a sociedade pode se renovar. Ele mantém esse recycling com as coisas jogadas fora e com os seres humanos jogados fora, com a marca do lixo, a qual ele se propõe decifrar. Ele se inscreve, assim, na longa tradição dos chiffonniers literários, a qual chega até nosso presente, até os grande romances do lixo, de Thomas Pynchon, Paul Auster e Don DeLillo. “Tout ce que la grande cité a rejeté,” assim descreve Charles Baudelaire a atividade dessas espécies marginais, “tout ce qu’elle a perdu, tout ce qu’elle a dédaigné, tout ce qu’elle a brisé, il le catalogue, il le collectionne”.75


  1. No original em: KAFKA, Franz. Schriften, Tagebücher, Briefe. Kritische Ausgabe. Hg. v. Jürgen Born, Gerhard Neumann, Malcolm Pasley und Jost Schillemeit. Bd. I.5: Nachgelassene Schriften und Fragmente II. Hg. v. Jost Schillemeit. Frankfurt a. M. : S. Fischer Verlage, 1992. p. 129. [N. do T.: KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics ; Companhia das Letras, 2011. p. 200.]

  2. N. do T.: cabe ressaltar que a palavra alemã Abfall, palavra-chave para o texto inteiro, significa tanto “resíduo”, cabendo aí algumas nuances como “resto”, “despojo”, “lixo”, mas também significa “queda”, dado que faz com que o autor diga de uma ambiguidade do termo referindo-se ao texto bíblico, em que o homem cai de Deus, isto é, para fazer uma ponte semântica que não está dada em português, em que o homem se torna, por assim dizer, um resíduo de Deus.

  3. Gênesis, 3, 17-19.

  4. N. do T.: o autor joga com a sonoridade das palavras Apfel (maçã) e Abfall (resto).

  5. Gênesis, 3, 14.

  6. LOCKE, John. Two Treatises of Government. Ed. Peter Laslett. Cambridge: Cambridge Universty Press, 1988. p. 239.

  7. A fronteira entre ser humano e animal é frágil em Kafka: comparar algo do tornar-se animal de Gregor Samsa no conto A metamorfose ou do tornar-se humano do macaco Rotpeter em “Relatório para uma academia”. A linha fronteiriça entre eles é permeável ― ela não é, de uma vez por todas, determinada pela natureza. Parece sempre necessário marcá-la com recursos simbólicos ― em primeiro lugar, através de uma ordem alimentar e pela produção de resíduos. Quem produz resíduo se circunscreve fora do animalesco e sabe seu lugar independentemente da ordem das coisas. De modo significativo, Gregor Samsa é alimentado, em A metamorfose, por sua irmã com restos da economia doméstica. Sobre a função da ordem alimentar em Kafka, cf. NEUMANN, Gerhard. Hungerkünstler und Menschenfresser. Zum Verhältnis von Kunst und kulturellem Ritual im Werk Franz Kafkas, Archiv für Kulturgeschichte, nº 66, p. 347-388, 1984.

  8. A tentação animal par excellence, em Kafka, consiste sobretudo nisto: comer tudo e não deixar restar nada. Ver o registro do diário de 30 de outubro de 1911 (KAFKA, Franz. Schriften, Tagebücher, Briefe [Anm. 1], Bd. II.1: Tagebücher. Org. Hans-Gerd Koch, Michael Müller e Malcolm Pasley. Frankfurt a. M. : S. Fischer Verlage, 1990. p. 210): Kafka fantasia que coloca “longos couratos de carne de costela” na boca, sem mordê-los, depois, retira “partidos, de trás do estômago e do intestino”. Trata-se aqui de uma comida ardorosa que não “valora” nada, não gera valor (nem valor alimentício, nem valor cultural), mas também nenhum resíduo.

  9. No “entendimento comum, cotidiano do resíduo”, o termo define, como explica Franka Ostertag, “materiais residuais não valoráveis da capacidade produtiva humana e técnica”(OSTERTAG, Franka: WASTE: Der Müll als Material und Metapher der US-amerikanischen Kunst und Literatur seit 1950. Tese de doutorado, Freie Universität Berlin, 1998. p. 6). A esse entendimento cotidiano cabe confrontar um conceito cultural e simbólico de resíduo.

  10. Cf. THOMPSON, Michael. Rubbish Theory. The Creation and Destruction of Value. Oxford: Oxford University Press, 1979; DOUGLAS, Mary. Purity and Danger. An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo. Londres; Nova Iorque: Routledge, 2002 [1966]. Jonathan Culler apresenta uma interpretação cultural-semiótica do fenômeno: CULLER, Jonathan. Rubbish Theory. In: Framing the Sign. Criticism and Its Institutions. Oxford: University of Oklahoma Press, 1988. p. 168-182. Theodor M. Bardmann ensaia a categoria de resíduo de uma perspectiva teórico-sistêmica: Wenn aus Arbeit Abfall wird. Aufbau und Abbau organisatorischer Realitäten. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1994. Roger Fayet empreende a tentativa de chegar a uma determinação “geral e filosófica” do resíduo e da pureza: Reinigungen. Vom Abfall der Moderne zum Kompost der Nachmoderne. Tese de doutorado, Viena, 2003 (citação: p. 11).

  11. DOUGLAS, M. Op. cit., p. 3.

  12. Idem, p. 44.

  13. Idem, p. 117.

  14. Cf. OSTERTAG, F. Op. cit. , p. 9.

  15. Cf. DOUGLAS, M. Op. cit., p. 120 e as seguintes.

  16. Idem, p. 43.

  17. Roger Fayet registra, nos tempos modernos europeus, a tendência ao agravamento da oposição entre o puro e o impuro. Ele define a modernidade como uma época rigorosamente ordenada e pura e a compara à pós-modernidade, com sua predileção pelo impuro e pela mistura. (Cf. FAYET, R. Op. cit., p. 81-155.) Eu concordo com Fayet que a história da modernidade possa ser descrita como um tal endurecimento cada vez maior dos opostos puro- impuro. A desconstrução dessa oposição não acontece, entretanto, como entendo, pela pós-modernidade. Ela acompanha, sobretudo, o projeto da modernidade desde o início ― e de fato especialmente no terreno da arte e da literatura. Compete à literatura, como deve ficar evidente a seguir, herdar de certo modo os ritos de renovação arcaicos.

  18. Cf. FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961; Surveiller et punir. La naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975.

  19. N. do T.: em alemão, Darstellung.

  20. GOETHE, Johann Wolfgang von. Italienische Reise. In: Werke. Hamburger Ausgabe in 14 Bänden. Org. Erich Trunz. Bd. 11: Autobiographische Schriften III. Munique: C. H. Beck, 1981, p. 50 e seguintes.

  21. Idem, p. 50.

  22. Idem.

  23. Idem, p. 192.

  24. Idem, p. 235 e seguintes.

  25. Idem, p. 236.

  26. N. do T.: em alemão, sinnlichen Genuß des Gegenwärtigen.

  27. Idem, p. 200.

  28. Idem, p. 200, p. 333 e seguintes.

  29. Idem, p. 336.

  30. Idem, p. 334.

  31. Idem, p. 335.

  32. Idem.

  33. N. do T.: em alemão, zwischen dem Formlosen und dem Geformten.

  34. Idem, p. 337 (Hervorh. von mir, Ch. M.).

  35. Idem.

  36. Idem, p. 336.

  37. Cf. HÖSEL, Gottfried. Unser Abfall aller Zeiten. Eine Kulturgeschichte der Städtereinigung. 2. Aufl. Munique: Jehle Verlag, 1990, p. 207 e seguintes.

  38. N. do T.: em alemão, Sinnbild.

  39. Cf. Idem, p. 103.

  40. Idem, p. 125 e seguintes, p. 129.

  41. Idem, p. 129.

  42. MAYHEW, Henry. London Labour and the London Poor. Repr. der Ausg. 1861. 4 Bde. Nova Iorque: Dover Publications, 1968. v 2, p. 166-179.

  43. Idem, p. 171.

  44. Idem, p. 170 e seguintes.

  45. Idem, p. 167.

  46. Um processo semelhante, por exemplo, se passa ao mesmo tempo na metrópole francesa de Paris. Cf. HÖSEL, G. Unser Abfall aller Zeiten. Op. cit., p. 103 e seguintes.

  47. Com isso fica de fato claro haver um processo, que atinge seu ápice no século XX: a deportação do lixo para imensos “sanitary landfills”, que ficam fora da cidade. Sobre a formação desses “landfills” na Inglaterra e nos EUA, cf. RATHJE, William e MURPHY, Cullen. Rubbish! The Archaeology of Garbage. New York: The University of Arizona Press, 1992. p. 85 e seguintes.

  48. Cf. MAYHEW, H. London Labour and the London Poor. Op. cit., p. 175-178.

  49. Idem, p. 175.

  50. Idem, p. 176.

  51. Idem, p. 175.

  52. O volume Elia, publicado em 1823, recolhe ensaios que Lamb escreveu entre 1820 e 1823 para a London Magazine.

  53. N. do T.: trata-se do nome do flâneur, caso não tenha ficado claro.

  54. Cf. LAMB, Charles. The Praise of Chimney-Sweepers. In: Elia and The Last Essays of Elia. Ed. Jonathan Bate. Oxford; Nova Iorque: Oxford University Press, 1987. p. 124-130.

  55. H. Mayhew articula uma acertada crítica filantrópica à má administração no interior da associação dos limpadores de chaminés e especialmente à exploração dos climbing-boys. Ver London Labour and the London Poor. Op. cit., v. 2, p. 346-354.

  56. Cf. LAMB, Ch. Elia and The Last Essays of Elia. Op. cit., p. 126 e seguintes.

  57. Cf. Ch. Lamb. A Complaint of the Decay of Beggars in the Metropolis. In: Elia and The Last Essays of Elia. Op. cit., p. 130-137, aqui: p. 130: “The all-sweeping besom of societarian reformation ― your only modern Alcides‘ club to rid the time of its abuses ― is uplift with many-handed sway to extirpate the last fluttering tatters of the bugbear MENDICITY from the metropolis. [...] I do not approve of this wholesale going to work, this impertinent crusado, or bellum ad exterminationem, proclaimed against a species. Much good might be sucked from these Beggars”.

  58. Idem, p. 136 e seguintes.

  59. Idem, p. 133, p. 135.

  60. Sobre a teoria do miasma, cf. HÖSEL, G. Unser Abfall aller Zeiten. Op. cit., p. 66 e seguintes, p. 120 e seguintes.

  61. Cf. TROTTER, David. Cooking with Mud. The Idea of Mess in Nineteenth-Century Art and Fiction. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 164: “Continuous circulation [...] became the fundamental principle of sanitary reform”.

  62. Cf. ACKROYD, Peter. London. The Biography. Nova Iorque: Chatto and Windus, 2000. p. 338.

  63. HÖSEL, G. Unser Abfall aller Zeiten. Op. cit., p. 116, p. 119.

  64. David Trotter parece cometer um erro quando liga a circulação ininterrupta, que ele identifica como o princípio básico da nova concepção de reforma, com a reciclagem do lixo (ver Cooking with Mud, p. 164). As reformas não tratam da revalorização do que é jogado fora, mas do descarte desenfreado de tudo que poderia frear a dinâmica econômica e social. Digno de nota para a época da alta indústria é a dissociação entre o descarte e as relações de produção e de consumo: “For the first time in human history, disposal became separated from production, consumption, and use” (STRASSER, Susan. Waste and Want. A Social History of Trash. Nova Iorque: Henry Holt and Company, 1999. p. 109).

  65. Essa ideologia ainda tem algum valor em nossa sociedade do consumo e do “jogar fora”, e deixa-se facilmente demonstrar através de um de nossos hábitos diários: muita gente prefere o chuveiro à banheira, porque quem tomar banho de banheira estará cercado dos restos de seu corpo, enquanto o chuveiro os leva embora imediatamente. O garbage disposal, tão amado nos EUA, tritura os resíduos da cozinha e os encaminha diretamente à canalização, desviando-os do contêiner de lixo, estação intermediária. Sobre essa invenção, também cf. STRASSER, S. Waste and Want. Op. cit., p. 272 e seguintes.

  66. Cf. DICKENS, Charles. Martin Chuzzlewit. Ed. Margaret Caldwell. Oxford: Clarendon Press, 1982. p. 848. David Trotter lança luz sobre a relação de Dickens com o sanitary reform movement de Chadwick em Circulation. Defoe, Dickens and the Economies of the Novel. Londres: Macmillan, 1988. p. 103-109.

  67. Cf. DICKENS, Ch. Martin Chuzzlewit. Op. cit., p. 848: “In all the tales composed in this cheap series, and in all my writings, I hope I have taken every possible opportunity of showing the want of sanitary improvements in the neglected dwellings of the poor”.

  68. DICKENS, Charles. David Copperfield. Ed. Nina Burgis. Oxford: Clarendon, 1981. p. 581.

  69. Idem, p. 583.

  70. ACKROYD, P. London. Op. cit., p. 338.

  71. DICKENS, Ch. David Copperfield. Op. cit., p. 580.

  72. Idem, p. 580.

  73. N. do T.: não traduzo o termo por “litoral”, porque no português brasileiro, conforme consta no dicionário, a palavra se refere especialmente ao beira-mar, não ao beira-rio.

  74. N. do T.: em alemão, Doch der Fluß [...] schwemmt den Schmutz nicht weg, er schwemmt ihn vielmehr an.

  75. BAUDELAIRE, Charles. Du vin et du hachich. In: Œuvres complètes. v. I. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1975. p. 377-398, aqui: p. 381.