Vida e obra de um duplo1
Alexandre Nodari
Universidade Federal do Paraná
alexandre.nodari@gmail.com
Resumo: Na zona de contato entre a prosa e a poesia, as Memórias sentimentais de João Miramar foram (re)definidas pelo seu autor, Oswald de Andrade, não como “romance”, e sim como “invenção”. O termo, que indicava originalmente encontro (in-venire), parece apontar tanto para as inovações formais propostas pela ficção, quanto para uma experiência de contato entre arte e vida que ela encena. É nessa terceira margem que devemos buscar a “verdade poética” do entre-ser de nome Miramar.
Palavras-chave: Oswald de Andrade; Memórias sentimentais de João Miramar; memórias imaginárias; interesse
Abstract: At the intersection between prose and poetry, Oswald de Andrade’s Memórias sentimentais de João Miramar were (re)definied by its author not as a “novel”, but as an “invention”. This term, that originally meant encounter (in-venire), indicates both the formal innovations proposed by the fiction and the experience of a contact between art and life that it stages. It is in this third margin that we shall seek for the “poetic truth” of the being-in-between named Miramar.
Keywords: Oswald de Andrade; Memórias sentimentais de João Miramar; imaginary memories; interest
Próximo ao final do primeiro (e único publicado) volume de suas memórias, Um homem sem profissão, Oswald de Andrade (2002, p.164) afirma: “O meu nome é Miramar”. O contexto em que se encontra a frase é o relato da garçonnière que ele manteve de 1917 até 1918 na Rua Líbero Badaró, frequentada por, entre outros, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Pedro Rodrigues de Almeida, e que teve em seu centro a normalista Daisy, “figura símbolo para o grupo de uma outra mulher que então se forjava – a mulher moderna, em busca de liberdade, de afirmação, de independência (BRITO, 1969, p.9). Oswald parece, assim, situar uma coincidência sem resíduos entre a sua própria vida e a de Miramar em um período estrito, que vai da abertura dessa primeira garçonnière até o seu fechamento e a morte da Miss Cyclone2, já que “Sob as ordens da mamãe” se encerra com esse trágico acontecimento e a abertura de um segundo espaço de encontros (frequentado pelo círculo modernista que gestaria a Semana de 22, e que o autor planejou recontar no segundo volume, nunca acabado, de suas memórias, “O salão e a selva”, voltado aos anos de vanguarda). Nesse período “pré-moderno” (para dizê-lo de forma irônica), a primeira versão das Memórias sentimentais é escrita, alguns capítulos dela aparecem na imprensa, e o nome “Miramar” é utilizado pelo autor regularmente para assinar textos (o que continuará fazendo, embora cada vez menos, posteriormente, em cartas, mas também em “Antologia”, de 1927, feroz e divertidíssima crônica em que satiriza o grupo da Anta: no fim das contas, os duplos também têm sua sobrevida). Além disso, no caderno coletivo O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, que reúne a experiência da primeira garçonnière e adianta muito da estética das Memórias (o fragmentário, o ready-made, a intersecção de poesia e narrativa, um diário composto de muitas perspectivas e autorias, o “clima” e o “caricato das personagens” e suas alcunhas, como diz BRITO, 1969, p.9,10), o nome recebe inúmeras variações da parte não só de Oswald, como também de Daisy e dos demais, de acordo com a situação e/ou estado de espírito: Miramar...tyr, Miramar-ilha, Mira...a’mar...gem, Miramante, Miramar morto, Miramôr, Mirabismo (o mar é sempre fluído, sempre móvel). Todavia, apesar da vida miramarina de Oswald se situar ou concentrar nesse período – entre duas viagens que o autor faz a Europa –, ele está ausente das Memórias sentimentais, sendo o não-dito que forma o pano de fundo sobre o qual emerge o dito textual. Assim, por exemplo, um capítulo contendo personagens inspirados nos companheiros de garçonniere foi omitido da versão final.3 Além disso, Daisy – o grande coração que dá vida a Oswald-Miramar nessa época – também não aparece nela, embora seja uma das fontes que compõe Alma, personagem do contemporâneo primeiro volume de Os Condenados, e o manuscrito inicial contenha um “prolongamento sensacional das Memórias!”, intitulado “O episódio Gracia Lohe” (pseudônimo/persona de Miss Cyclone) e assinado por “Gracia Miramar”.4 O ponto de coincidência plena entre vida e ficção, quando Oswald “foi Miramar” (BRITO, 1969, p.33), resta assim como a entrelinha, a silenciosa respiração (o sopro) que dá vida ao texto, mas que não podemos ver ou ler explicitamente, mas apenas sentir e ler a contrapelo. Ou seja, aquilo que essas Memórias recordam não são vivências (a própria vida de Oswald), mas experiências (de uma outra vida), como se escrever envolvesse “lembrar-se do que nunca existiu” (LISPECTOR, 1984, p.58). Nesse sentido, Miramar não parece constituir apenas um pseudônimo literário de Oswald (por não coincidir totalmente com ele) mas também não chega a ser um heterônimo (por não se afastar completamente dele), se situando como uma terceira margem entre ambos, uma espécie de nome impróprio a assinalar a experiência da duplicidade (coincidência e dissonância) que toda bio-grafia, enquanto escrita da vida e vida da escrita, contém e que à literatura cumpre investigar.
A edição de 1964 das Memórias sentimentais trazia uma capa assinada por Flávio de Carvalho, possivelmente um dos maiores interlocutores de Oswald. Nela, o fundo era seccionado por linhas e cores, cada parte contendo figuras disformes (um corpo de mulher com ramos e folhas no lugar da cabeça; cabeças aladas soprando vento; sombras ou pernas ou caudas de vestidos; etc.), como se fossem prismas ou perspectivas distintas formando um caleidoscópio, que não necessariamente obedeciam totalmente às divisórias. Sobre elas, um rosto emergia no primeiro plano, com linhas saindo do olho em várias direções e sem coincidir com as seções do fundo, no que parece ser uma referência náutica, seja a um farol, seja a um timão – talvez a roda da visão, que, posta em movimento, ativaria o caleidoscópio, fazendo girar também as diversas perspectivas sobrepostas do fundo, numa espécie de “cosmorama” surrealista. É como se Miramar portasse tanto uma visão de mundo quanto uma concepção de visão, uma visão que “cosmoramava” (p. 85)5, para usar o belíssimo neologismo oswaldiano contido no romance.
O nome “Miramar” condensa de modo inseparável esses dois aspectos essenciais da poética oswaldiana. Primeiro (Mira-), o olhar (de que a musa-amante do protagonista, Rolah, é um anagrama, como lembra Maria Augusta Fonseca), tematizado especialmente no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado no mesmo ano do romance (1924). Ali, Oswald advogava uma “Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem”. A aposta em “Uma nova perspectiva” que permitisse “Ver com olhos livres” implicava uma estratégia de desfamiliarização com o olhar “naturalista”, definido por Oswald como “uma ilusão de ótica” (ANDRADE, 2011a, p.63). Ou seja, tratava-se de denunciar a visão fiel ao objeto (objetiva) como uma convenção (subjetiva) que poderia e deveria ser desnaturalizada: a ideia oswaldiana de “uma perspectiva de outra ordem que a visual” constituía um protesto diante da redução da perspectiva à visão, entendida como uma relação, passiva e pré-determinada, entre sujeito e objeto (cada qual com seu lugar delimitado), e a consequente postulação de uma perspectiva liberta de tal (falsa) objetividade, em que a própria turbulência da perspectiva como uma interação recíproca entre sujeito e mundo viesse ao primeiro plano. A primazia se deslocava do que se vê para como se vê – o que incluía o modo como o que é visto afeta quem vê.
Mas, além do olhar, o nome que assina as Memórias porta também a insígnia da viagem (-mar). Segundo Antonio Candido (2004, p.100), o “mar dos embarques” (e não o das “ondas ou das nereidas”) tem como horizonte, no pensamento oswaldiano, a “utopia da viagem permanente e redentora, pela busca da plenitude através da mobilidade”, que se materializaria no “nudismo transatlântico” da “humanidade liberada” consignado no episódio do “El Durazno”, em Serafim Ponte Grande (ANDRADE, 2007, p. 57 e 206). Todavia, seria exagerado afirmar que a viagem em si tem um valor positivo a priori para Oswald. Mesmo sem levar em consideração a perspectiva comunista adotada após 1930, segundo a qual um dos sentidos da mobilidade, talvez mesmo o predominante, é o capitalismo e o colonialismo (o volume dedicado ao imperialismo de Marco Zero estava previsto para se chamar “A presença do mar”), importa sublinhar que, para Oswald (ANDRADE, 1990, p.220), “viajar não era nada” se não implicasse uma modificação naquele que viaja. Dito de outro modo: a perspectiva e a viagem, o olhar e o mar, são indissociáveis na poética e no pensamento oswaldianos: a mobilidade deve operar um des-centramento do sujeito, deve alterar o seu olhar, variar o seu modo de ver as coisas.
Assim, se atentarmos às duas viagens europeias que são narradas nas Memórias sentimentais, a de Miramar e a de sua tia e primos, veremos que ali já transparece a diferença que o círculo antropofágico, tendo Oswald à frente, fará no fim dos anos 1920, entre o “cosmopolitismo de cais de porto” (o mero turismo) e a “aventura exogâmica”, na qual a viagem, enquanto forma de “exogamia” (“essência do homem na busca da aventura exterior que é toda a vida”), acarreta uma relação (-gamia) do sujeito com a exterioridade (exo-), um encontro com o inusitado, o desconhecido, o fora.6 De um lado, as impressões marcadas por um “cubo-futurismo plástico-estilístico” (para usar a expressão de Haroldo de Campos (2004a, p.57)) que Miramar faz da sua passagem pela Europa; de outro, as cartas que os familiares lhe enviam do velho continente, repletos de chavões e atos falhos. Estes não saem de si, do mesmo; já aquele, adquire um “conhecimento viajeiro do mundo” (p. 84), isto é, um conhecimento da viagem, mas também um conhecimento que viaja, móvel, mutante. E aqui vale a pena sublinhar a importância de um personagem ao qual a crítica talvez não tenha voltado suficientemente a atenção: Pantico. Um tanto deslocado do centro narrativo, aparentemente marginal ao ambiente e relações narradas, o primo-cunhado constitui, desde o começo, o índice de uma outra vida possível para Miramar, um outsider que aponta para uma linha de fuga do ambiente familiar tacanho e regrado. Até mesmo as situações cômicas que o envolvem são diferentes das de sua mãe e irmãs, como aquela em que é “tomado por espião” (p. 113) em Bruxelas e “envolvido como uma tainha nas malhas da segurança alemã invasora” (p. 114). A sua marca na infância de Miramar aparece logo no começo da narrativa, quando este lembra o quanto “Pantico inquietava minha tranquilidade com anos menos e carrinhos feitos para descidas ladeiras amigo íntimo do copeiro arranjador de almanaques nas farmácias” (p. 78), e de como isso provocava a ira de sua mãe: “Que diriam as famílias de nossas relações que me vissem em molecagens gritantes ou com servos?” (p. 79). Tal exemplo de um contato para fora dos círculos familiares (em todos os sentidos) parece favorecer a disposição interna do protagonista-narrador (“Eu achava abomináveis as famílias das nossas relações” – p. 79), e fornecer um ideal que o acompanhará a vida toda (além de um aliado na busca pela guarda de Celiazinha): “Pantico não tivera educação desde criança e por isso amava vagamundear” (p. 78-9). A escolha do vocábulo “vagamundear” ao invés do sinônimo mais usual, “vagabundear”, aponta para uma certa concepção que acompanhará a vida de Miramar (e também a de Oswald): a vagabundagem – a ausência de “uma vocação nobilitante” (p. 103) que Célia queria o marido tivesse, enquanto este preferia o boxe, ou “pendia mais para bilhares centrais que para pesquisas científicas” (p. 104) – é uma atitude existencial, uma forma de ver e explorar o mundo por meio do desfazimento das fronteiras, dos pontos de vista fixos e da partilha de lugares e ocupações que costumam conformá-lo.
As Memórias sentimentais de João Miramar foram escritas e reescritas sob o impacto de duas viagens que Oswald fez a Europa. A primeira, de 1912, lhe forneceu muito da matéria narrativa que comporá tanto a primeira versão (manuscrita, composta provavelmente entre 1915 e 1918) quanto a versão publicada em 1924. Do ponto de vista subjetivo-existencial, o autor relata que voltou dessa viagem “inocente como fora, pela ladeira de um intérmino mar. Apenas tinha uma nova dimensão na alma – conhecera a liberdade” (ANDRADE, 2002, p.118). Ou seja, trouxe consigo apenas um primeiro e tênue distanciamento crítico em relação ao provinciano ambiente intelectual e social paulistas, permitindo-lhe vê-lo um pouco de fora, à margem. A essa ainda tateante liberdade de ponto de vista se agregaria a liberdade formal de prisma (a conjugação de ambas dando na liberdade estética da mirada que caracteriza o livro), maturada nos anos de gestação da Semana de Arte Moderna, e coroada na segunda viagem europeia, em 1923, que faz com Tarsila do Amaral, sua esposa à época. Especialistas, por meio de estudos genéticos, já ressaltaram o quão substanciais foram as modificações que as Memórias sentimentais sofreram depois disso. Assim, Maria Augusta Fonseca (2006, p.27), comentando as discrepâncias entre o primeiro manuscrito e a versão publicada, afirma:
De uma narrativa de cunho memorialista-confessional, quase totalmente centrada na temática amorosa e no cotidiano de uma intelectualidade de província, Oswald de Andrade irá transgredir a si mesmo e desestabilizar escancaradamente o cânone que prezava, alterando a estrutura de um trabalho já em andamento para privilegiar um sistema de sínteses e estranhamentos nada trivial.7
Trata-se do gesto oswaldiano da “invenção”, que não consiste em criar o novo, mas tornar novo (ou melhor, encontrar o diferente/novo no mesmo/antigo)8, procedimento pelo qual “os lugares comuns se transformam em lugares incomuns” (PIGNATARI, 2004a, p.163). Ou seja, se a invenção implica “[v]er com olhos livres”, como lemos no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, aqui ela diz respeito à própria vida e escritura oswaldianas: a viagem de Miramar, que co-incide com a primeira de Oswald, só se torna uma aventura exogâmica (passando de um relato convencional e de tom tardo-romântico à forma poética que conhecemos) quando este viaja de novo... Vera Chalmers (2004, p.190), comparando a edição de 1924 com capítulos publicados na imprensa na década anterior, aponta que uma mudança importante pode ser vista na “ambivalência sério cômica” ausente originalmente, por meio da “introdução da inversão paródica em 24 das situações dilacerantes descritas”, o que permitiu, pela “escrita invertida” das Memórias, fazer a “autocrítica da sua afetividade burguesa”. Desse modo, se, “Em Miramar, Oswald engendra elementos autobiográficos pelo duplo ficcional que oculta um pseudônimo bastante usado pelo autor” (FONSECA, 2007, p.150), seria possível dizer que as Memórias constituem uma paródia do seu próprio autor, que nelas Oswald estava parodiando a si mesmo (sua vida, mas também sua própria escrita9)? Talvez, se não perdermos de vista que, para além da dissonância entre paródia e original que produz o efeito cômico, “O procedimento estilístico da paródia (...) mantém sob o texto invertido o texto parodiado” (CHALMERS, 2004, p.190), ou seja, que toda paródia mantém uma zona de proximidade com o original de que busca se afastar. Nas palavras de Agamben (2007, p.46),
[...] a paródia não põe em dúvida (...) a realidade do seu objeto – este, aliás, é tão insuportavelmente real que se trata, precisamente, de mantê-lo à distância (...). Por isso, se a ficção define a essência da literatura, a paródia se põe, por assim dizer, no limiar dela, obstinadamente estendida entre realidade e ficção, entre a palavra e a coisa.
Seriedade e comicidade, vida e obra, realidade e ficção andam lado a lado (para-) e muitas vezes se cruzam nas Memórias. Ao se parodiar, Oswald vê a si mesmo como um duplo, vê a própria vida como se fosse cindida, como se vivesse duas vidas paralelas, ou visse a vida de duas perspectivas diferentes simultaneamente.
Desse modo, assim como Miramar e Pantico parecem viver ao mesmo tempo em dois mundos, tanto dentro quanto fora do circuito e padrão sociais do baronismo do café, Oswald, à época da escrita do romance, também tinha uma vida dupla: “Do meu fundamental anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo. Servi a burguesia sem nela crer” (ANDRADE, 2007, p.57), dirá no famoso prefácio a Serafim Ponte Grande que renega a obra, como se tivesse até então encenado a própria vida, sido um personagem, estado fora do lugar no próprio lugar que ocupava. Dessa (anti-)posição, sustentada pelo seu anarquismo e tendo como efeito o humor, importa sublinhar dois aspectos, a partir da sua conferência “A sátira na literatura brasileira”, de 1945 (Oswald levava o humor a sério...). Primeiro, o caráter social da sátira (afinal, “Ninguém faz sátira rindo sozinho”), que confere a ela uma “função (...) crítica”: “A eficácia da sátira está em fazer os outros rirem de alguém, alguma instituição, acontecimento ou coisa. (...) E através da ressonância, [produzir] a deflagração de um estado de espírito oposto. A sátira é sempre oposição” (ANDRADE, 2011b, p.101). Quem ri mostra os dentes... Segundo, o riso é deflagrado quando se dá a ver que algo está deslocado: “É o cachorro que entra na igreja que torna o riso inevitável” (ANDRADE, 2011b, p.103). Mas aquilo que aparece fora de lugar no “ensaio satírico” (p. 71), como Machado Penumbra define as Memórias de Miramar, é o próprio lugar, as posições e convenções sociais e suas produções discursivas que estabelecem a topografia sócio-cultural: o cachorro na igreja eram os próprios devotos, senão o padre. Ou ainda: o cachorro, o não crente, era Miramar/Oswald. Nesse sentido, os alvos preferenciais da sátira e da crítica miramarina são “a burguesia endinheirada”, que “roda pelo mundo o seu vazio, as suas convenções, numa esterilidade apavorante” (Cândido, 1992, p.25), e a intelectualidade provinciana parodiada à exaustão, com seus discursos repletos de clichês, frases feitas, lugares comuns (material privilegiado da poética oswaldiana, que os mobiliza também positivamente invertendo-os por meio de trocadilhos e deslocamentos). Tal ataque em um primeiro plano a uma sociedade patriarcal baseada na herança e no domínio do lugar público de fala pelos homens reforça-se, em outro plano, pela proeminência dada no romance às personagens femininas (a mãe, a tia Gabriela, Célia, Rocambola e Rolah, e, por fim, Celiazinha, espirituosa como Daisy10), no geral bem mais originais e interessantes que os enfadonhos tipos masculinos. Além disso, a centralidade da figura do perdulário (aquele que gasta tudo), uma obsessão oswaldiana, adianta a sua crítica do acúmulo, que será mais tarde formulado em termos políticos na contraposição antropofágica entre produção e consumo.11 Mas nem o autor está imune dos próprios dentes, sendo satirizado no que se refere tanto a sua inserção nesse sistema, quanto a utilização que faz de linhas de fuga a ele, incluindo a arte. Assim, um dos fatos mais hilários do romance, a sociedade de Miramar (com o dinheiro alheio, da família da esposa) na empresa cinematográfica “Piacagüera Lightning and Famous Company Pictures of São Paulo and Around” (p. 123), com o único intuito de sustentar e agradar a amante e a mãe desta, é uma hipérbole de uma situação imaginada, mas nunca realizada, por Oswald, o rapto de Landa (personagem em quem Rolah é visivelmente inspirada):
Planejamos uma aventura. Na hora do banho do Flamengo, quando ela sair da pensão, de maiô, ao lado do padrasto americano, nós estaremos à espreita, sobre um caminhão que levará bem visível uma máquina de cinema rodando. Meus amigos ali estarão fingindo filmar. Eu passarei num táxi. Paro junto a eles, prego uns sopapos no americano e a recolho a meu lado. O caminhão vem atrás como se tomasse uma cena de filme. Se o americano quiser fazer barulho e chamar por socorro, todos gritarão: – É fita! É fita!
(ANDRADE, 2002, p.138).
Se, nesse projeto oswaldiano, uma ficção seria fingida (um falso filme) para possibilitar uma melhor interferência na realidade e desafiar o conservadorismo dos costumes, na sua paródia miramarina, a pseudo-ficção (o filme de Rolah nunca é concluído) serve apenas para manter a ficção dos lugares sociais (alimentando o arrivismo de Madama Rocambola) e também a ficção da pertença de Miramar a eles.
Mas, como sublinhamos antes, dada a ambiguidade ou ambivalência (o entre lugar de Miramar, mas também de Oswald), os polos sério e cômico podem se mostrar reversíveis ou se justapor, pois estamos diante de “sátiras à sociedade de sátiros de nossos dias” (p. 107). O caso mais emblemático dessa reversibilidade é o do prefácio de Machado Penumbra, que, além de apresentar o livro, é personagem dele, em mais uma duplicidade dentro-fora, e que, apesar de ser satirizado, porta o nome de um dos poucos escritores da geração anterior admirados pelo autor. Nele, esconde-se, sob o véu de uma paródia de Rui Barbosa (outra figura pela qual Oswald nutria sentimentos ambíguos), um diagnóstico à altura do “Brasileiro do século XXI” (como o personagem-prefaciador sugere caracterizar Miramar): “O Brasil, desde a idade trevosa das capitanias, vive em estado de sítio. Somos feudais, somos fascistas, somos justiçadores. Época nenhuma da história foi mais propícia à nossa entrada no concerto das nações, pois que estamos na época do desconcerto” (p. 70).12 O ufanismo celebratório e a caracterização hiperbólica, que produzem o efeito humorístico, não invalidam a precisão cabal com que se descreve a história do país: o estado de exceção como a regra, a “Brutalidade jardim” (p. 96) que se tornou agora matéria de exportação.
É Machado Penumbra também quem nomeia as duas marcas características da prosa miramarina, a “escrita telegráfica” (wireless), e a “metáfora lancinante”, que acompanharão também a poética oswaldiana: a compressão ou redução aforismáticas de alta densidade e repletas de sugestibilidade, associabilidade, mas também impacto e ferocidade. A primeira, de feição metonímica e sintagmática, opera no eixo sintático, da contiguidade, suprimindo elementos relacionais (sejam eles conectivos, verbos, ou mesmo orações inteiras) e possibilitando uma associação tanto mais livre quanto mais veloz. Por sua vez, a segunda, de caráter paradigmático, atua no plano semântico, justapondo inesperadamente significados díspares e até mesmo contraditórios (o exemplo mais óbvio é a “Brutalidade jardim”). Daí o seu caráter “lancinante”, pungente, que leva até o limite a “Analógica (....) do terceiro incluído” característica da metáfora e pela qual “uma coisa pode deixar de ser igual a si mesma para incorporar o outro, a diferença” (CAMPOS, 2004b, p.149). Podemos tomar ambas não como figuras de linguagem isoladas de que Miramar faz uso, mas como procedimentos interligados que vão para além de ocorrências individualizáveis, alterando toda a estrutura da linguagem e da expressão mobilizadas pelo autor. Pense-se, para ficar no mais explícito, na estrutura fragmentária de capítulos curtos, por vezes de uma única frase13 (escrita telegráfica), que se conjuga aos sugestivos e imagéticos títulos que eles recebem, como “Gare do Infinito” (p. 74), que nomeia o referente à morte do pai (metáfora lancinante). Ou então, no modo como a rarefação dos marcadores de subordinação (sujeito e predicado), sequência e continuidade serve à produção de imagens inusitadas e pungentes: “A referência à pintura cubista”, afirma Chalmers (2004, p.188-9),
[...] é pertinente, não só do ponto de vista da construção simultânea dos diferentes planos organizados numa estrutura geométrica, que não é a da perspectiva euclidiana. Mas porque as imagens que Oswald constrói são inusitadamente visuais, de uma visibilidade nova, os tropos não são as figuras repertoriadas pelo discurso canônico da prosa e tem a liberdade da licença poética. A supressão dos termos de ligação e da relação de causa e efeito no encadeamento no período provoca na linguagem um efeito singular, que diz respeito à proporção dos planos, que não é sempre a mesma e que varia com a ampliação e a síncope. Como num quadro cubista os planos se interseccionam.
Desse modo, se a metáfora (e a lancinante mais ainda) constitui uma “anomalia semântica” (BLUMENBERG, 2013) que vai desviando e transferindo o sentido (significação), podemos dizer que a escrita telegráfica constitui uma anomalia sintática, desviando o sentido em outro sentido (a ordenação, a direção, a predicação), resultando em uma linguagem anômala, nômade, desconhecida e surpreendente, como se se tratasse de fazer a própria língua sair dos eixos e vagamundear. Em Miramar, Oswald “amassa o idioma como plástica argila” e faz dele um “novo e dúctil instrumento” (BRITO, 1969, p.43), em que substantivos se convertem em verbos, advérbios em substantivos, orações prescindem de verbos ou mesmo de sujeitos, produzindo uma variação tanto semântica quanto sintática do sentido. O resultado é a dissolução da sintaxe e a semântica usuais, colocando em questão a própria ordenação espaço-temporal e organização simbólico-ontológica que elas implicam (a disposição dos lugares na linguagem) e que, ao ser desfeita, permite ver os seres (sujeitos, objetos, contexto) dispostos e relacionados de outro modo (justapostos violentamente, relacionados de forma invertida, etc.): uma outra topografia da linguagem aponta para uma outra topografia do mundo.
E aqui seria interessante assinalar um efeito dessa estrutura errante já sublinhado por Mário de Andrade (2004, p.12): a “objetivação direta da realidade”. Tal objetivação sem fio ou mediação se dá em alguns casos por meio de uma subjetivação do ambiente, uma animação do inanimado (muitas vezes antropomórfica) pela qual o fundo se converte em figura: “Paredes enormes davam comida a portais góticos” (p. 89). Assim, como uma “[f]ala do mundo” (p. 118), ela ocorre seja através metonímias ou sinédoques, em que a parte (os atributos objetivos) toma o lugar do todo, do sujeito (“A barbicha investigadora do dr. Pilatos veio trazer-nos a visita esquecida de São Paulo com os e ahs e caspa no fraque de gola”: p. 103), seja de metáforas, nas quais uma impressão subjetiva do mundo no narrador converte-se em expressão objetiva do mundo que Miramar capta (“Copacabana era um veludo arrepiado na luminosa noite varada pelas frestas da cidade”: p. 103). Nesses dois exemplos, todavia, poder-se-ia dizer que o deslocamento do centro da agência se dá ainda pelas lentes de Miramar, com intuitos satírico-humorísticos, no primeiro caso, e líricos, no segundo. Mas há momentos em que a densidade poética do relato atinge seu ápice, com a visão de Miramar (se) objetivando diretamente (n)o mundo através da subjetivação deste, confundindo-se completamente com ele a ponto de não ser possível dizer se é Miramar que se expressa por intermédio do mundo ou o mundo por meio de Miramar, se é o sujeito que se projeta no mundo ou o meio que se introjeta no homem: “éramos a paisagem na paisagem” (p. 129), dirá a certa altura o protagonista. Talvez o exemplo mais acabado seja a frase final do capítulo “Far-west”, uma das mais belas do livro: “E o sertão para lá eldoradava sempres e liberdades” (p. 99). Condensando deslocamentos sintáticos que pululam por toda a obra (verbalização do substantivo “Eldorado”, substantivação do advérbio “sempre”), a construção confere ao ambiente não só a agência (o “sertão” enquanto sujeito do verbo), quanto a subjetividade, o lirismo miramarino (que, por sua vez, talvez seja um efeito do contato com esse meio). Pois a paisagem, nessa passagem, funde imaginários daqui e passados e de alhures e presentes, como se pode deduzir conectando a referência a Eldorado ao título do capítulo, que remete aos filmes de faroeste (remissão explicitada também na frase que o abre, em que o interior paulista é apresentado como um cenário de cinema, ou em que o cinema ganha vida: “Chapelões e revolvers de último modelo saíam mecanicamente das telas bulhentas e passeavam calmos nas ruas irrigadas do pó vermelho”: p. 99). Desse modo, a frase aponta para um dado essencial da obra, que não poderia ser enunciado de outro modo senão por meio dessa linguagem anômala: a utopia (os “sempres e liberdades”) não se situa em um não-lugar (o mar), mas no desconhecido (o sertão, na acepção antiga e corrente à época, de wilderness): o sertão vai virar mar, e o mar, virar sertão... Todavia, o Eldorado tampouco é um lugar fixo (ele não é um substantivo), e sim uma ação (um verbo, eldoradar): a produção de um efeito pelo lugar (no caso, o sertão) sobre o sujeito, que possibilita vê-lo de outro modo, de outra perspectiva, mesmo que, ao fim e ao cabo, se trate de uma ilusão, de uma ficção (um Eldorado ou um cenário de cinema). Pois a felicidade (os “sempres e liberdades”) é um artifício deste mundo (do mundo e neste mundo: “Desta terra, nesta terra, para esta terra”, dirá Oswald em seu “Testamento” (ANDRADE, 1990, p.85)); e o Eldorado é o duplo do mundo quando as fronteiras se deslocam, quando as fronteiras dos lugares se desfazem para revelar uma face oculta, desconhecida, quando o mundo deixa de ser para o sujeito uma “terra sem surpresas” (ANDRADE, 2005, p.206), e passa ele também a vagamundear.14
Tal animismo verbal, em que tanto a linguagem quanto as coisas parecem ganhar vida, atravessa a obra. Nesse sentido, poderíamos, jogando com uma caracterização de José Paulo Paes (1988, p.99: “Salta à vista tender o estilo de Miramar mais à exuberância lírica do que à objetividade prosaica”), falar de uma paradoxal objetividade lírica miramarina. E isso pode ser lido à luz de uma outra característica peculiar do livro: embora as Memórias sejam de Miramar, ele narra e mesmo comenta pouco para uma escritura desse gênero. Pelo contrário, para além da escrita poética, grande parte das informações que temos sobre muitos dos acontecimentos vem de cartas alheias, trechos de conferências, em suma, discursos alheios com quase nenhuma interferência do narrador-protagonista (a não ser, o que não é exatamente pouco, a seleção, montagem e titulação que caracterizam esses ready-mades fictícios). Ou seja, a biografia de Miramar é uma espécie de diário coletivo composto por tessituras múltiplas de autorias diversas (dos outros personagens, mas também do mundo “objetivo”), assim como a sua perspectiva é composta de perspectivas alheias, e a subjetividade miramarina a que temos acesso é um caleidoscópio de diferentes prismas e focos – nunca sabemos quando termina o olhar de Miramar e quando começa o do mundo.15
Como vem insistindo Silviano Santiago (2006), Miramar integra uma linhagem de memórias imaginárias na literatura brasileira junto a, entre outros, Memórias póstumas de Brás Cubas e O amanuense Belmiro. Com relação à proximidade com o romance de Machado, José Paulo Paes (1988 p.100) assinalou que, além da “técnica dos capítulos curtos com títulos as mais das vezes irônicos”, “tanto o herói machadiano quanto o oswaldiano parecem ter sido talhados no mesmo pano para, cada qual à sua maneira, figurar o tipo do gozador elegante e cínico que, num texto autobiográfico, se distrai a fixar os ridículos, pecados e fraquezas alheios”. Já quanto à ficção de Cyro dos Anjos, que lhe é posterior, podemos apontar que ela ecoa das Memórias sentimentais a gênese num pseudônimo literário do autor16, como também a pasmaceira e o vazio da intelectualidade ali retratados, e, além disso, o fim abrupto do relato, que se dá logo “depois dos trinta e cinco anos, mezzo del camin di nostra vita” (p. 161), no romance oswaldiano, e aos trinta e oito, “pouco além do meio da estrada” (ANJOS, 1937, p. 293), n’O amanuense Belmiro. Se este sente que “a vida parou e nada há mais por escrever” (ANJOS, 1937, p. 293), tendo finalmente aceito sua condição de outsider da linhagem familiar (“Negação de Belarmino, de Porfírio, de Firmino e de Baldomero...”), o livro de Miramar, por sua vez, termina após ele se ver liberto das amarras domésticas tradicionais e constituir a sua nova família, passando a criar sua filha Celiazinha. Por outro ângulo, poderíamos também pensar que Miramar cessa suas Memórias quando deixa de ser um “homem sem profissão” e se torna jornalista, como se houvesse uma cisão, uma incompatibilidade – que Belmiro, enquanto copista público, talvez também tenha sentido – entre um tipo de escritura profissional (do jornalista, no caso de Miramar), que professa, que confere fé pública do que enuncia, que atesta a sua veracidade, e aquela outra cujo valor reside alhures, para além da verdade e da verificabilidade. E é esta cisão que transparece no estranho gênero das memórias imaginárias, em que o lembrado não é mera co-incidência nem total dissonância com o que foi. Mas, nessa zona para além da verdade e da mentira, abre-se o caminho para o que Silviano Santiago (2006, p.43) chama de “verdade poética”.17 Pois “[a]o dar o salto em direção ao inverificável”, afirma Juan José Saer (2009, p.2), a ficção põe “em evidência o caráter complexo da situação, caráter complexo de que o tratamento limitado ao verificável implica uma redução abusiva e um empobrecimento”. Nas memórias imaginárias dos duplos, a complexidade diz respeito à condição e natureza da subjetividade, e o “entrecruzamento crítico entre verdade e falsidade” (SAER, 2000, p.4) possibilitado pela ficção permite que a literatura, nas palavras de Milan Kundera (2009), responda ao “enigma do eu”, à pergunta “o que é o eu?” de forma oblíqua, transversal, por meio da criação de “egos experimentais”, “egos imaginários”. Ou seja, a criação de duplos (Miramar, Belmiro) talvez seja uma forma de experimentar a subjetividade por meio de uma variação de si, de uma alteração em um sujeito outro. E nessa experiência, a melhor perspectiva sobre si mesmo (Oswald, Cyro dos Anjos) e o mundo se revela a do outro: “Sou um anti-Narciso”, afirma Cyro numa entrevista (cf. STEEN, 2013), ecoando uma famosa frase oswaldiana, “Só me interessa o que não é meu”.
“Uma das faculdades que mais admiro em Osvaldo”, dizia Mário (2004:8), “é esse poder certeiro de interessar e divertir”. Até hoje, se continua acentuando exageradamente o segundo termo, o humor oswaldiano (muitas vezes com o pretexto explícito ou não de desmerecê-lo), quando o primeiro talvez constitua uma das chaves de sua poética e seu pensamento (para não dizer de sua vida). De fato, “interesse” é um termo central para Oswald (mas também para Mário: pense-se no “Prefácio interessantíssimo”), a ponto de ele afirmar, em uma entrevista, que “Só o escritor interessado pode interessar” (ANDRADE, 1990, p.86). A nosso ver, ele permite também entender melhor a relação entre o autor e o seu duplo, Miramar, e o que está em jogo nessas “interessantíssimas memórias” (p. 161). O interesse oswaldiano não implica necessariamente um engajamento político, muito menos um narcisismo interesseiro (o “interesse próprio” é um oximoro moderno18), mas uma relação existencial, de desejo ou vontade, com o mundo: uma fome pelo outro (Antropofagia). Ou seja, para Oswald, o inter-esse é a relação entre os seres, aquilo que está entre os sujeitos (e o mundo), não sendo propriamente de ninguém, mas o impróprio que os conecta. E os personagens literários talvez sejam uma das formas de objetivá-lo por meio da sua personificação como um duplo do sujeito no mundo e do mundo no sujeito, permitindo aos sujeitos (tanto os autores quanto os leitores) vagamundear (variar) em um cenário em que tudo pode ter lugar. Pois os personagens literários se situam de forma oblíqua entre o sujeito e o mundo, como variações possíveis do eu (e do outro). Entre-seres, eles são índices de que nossa própria subjetividade é a resultante de outras subjetividades (reais, possíveis, imaginárias), de que nossa perspectiva é composta de um entrecruzamento de perspectivas.19 São, desse modo, duplos de seus autores, mas também de seus leitores, na medida em que toda narrativa é o “fluxograma indicial (...) da vida de alguém (o leitor) e suas inúmeras biografias possíveis” (PIGNATARI, 2004b, p.27). Daí a esterilidade dos debates sobre a gênese dos personagens, se são criações/projeções do autor no mundo ou a impressão deixada pelos outros (pelo mundo) nele ou um misto de ambos: eles constituem um devir-mundo do sujeito e um devir-eu do mundo, estando entre um e outro, entre nós. Ao menos, é o que parece afirmar Oswald ao encerrar o seu discurso no primeiro Congresso de Escritores, realizado em janeiro de 1945, em São Paulo:
[...] aqui está o Brasil. Estão aqui João Ternura, Cobra Norato, o amanuense Belmiro, Ataxerxes e a filha nos seus desdobramentos lorqueanos. Aqui estão o presidiário João Miguel e os homens sem paisagem. Estão aqui o feiticeiro Jubiabá e o preto Balduíno, os mata-mosquitos e as estrelas que sobem para o Mangue. Estão aqui a suicida do Edifício Império, o gato Sardanapalo e a cachorra Baleia. Estão aqui tanto os sensacionais e os inquietos de José Geraldo Vieira como os corumbás, o alugado Ranulfo, os vencidos de Osvaldo Alves e todos os trabalhadores do Brasil. Estão aqui os sonhos castigados, as vidas tolhidas, as porteiras fechadas, os recalques seculares, as transferências, as moléstias e os vícios. Mas estão também as esperanças que não morrem. Está aqui, pessoalmente, o menino que beijou por nós a mão agonizante de Machado de Assis – Astrojildo Pereira. Está aqui a tradição do humor que é a flor cáustica da liberdade. E está também a fé na democracia, a fé no futuro, a fé nos teimosos destinos do Brasil.
(ANDRADE, 2011b, p.136).
Esqueceu de dizer que ali também estava João Miramar, ecoando sua voz, soprando em seu ouvido as palavras que proferia, ou até mesmo, como “Brasileiro do Século XXI”, rindo da obstinada fé de seu descrente criador nessa “República Federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus” (ANDRADE, 2007, p.64).
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* Agradeço a Eduardo Sterzi e Leandro Sarmatz o estímulo para a redação desse texto, e a Luciana María di Leone por aceitar publicá-lo na Terceira margem, apesar da sua relação apenas tangencial com a proposta do número.↩
“A que encontrei enfim, para ser toda minha, meu ciúme matou...” (ANDRADE, 2002, p.193). Oswald se refere ao aborto que induziu Daisy a fazer, desconfiado que o pai do feto pudesse ser outro. A bem da verdade, não foi só o ciúme que a matou, mas a proibição do aborto, o que continua matando mulheres brasileiras até hoje. Nesse sentido, vale notar que uma das teses (que incluíam a reforma agrária, a legalização da eutanásia, etc.) que o primeiro Congresso de Antropofagia discutiria em 1929 era justamente a legalização do aborto.↩
Cf. CHALMERS, 2004.↩
Cf. FONSECA, 2006, p. 43.↩
Para evitar uma poluição excessiva do texto, todas as citações de Memórias sentimentais de João Miramar (ANDRADE, 2004) virão referidas apenas com o número de páginas entre parênteses.↩
A expressão “cosmopolitismo de cais de porto” aparece numa carta de Jayme Adour da Câmara a Oswald, datada de 9 de agosto de 1929 (atualmente, o documento está no CEDAE do IEL/UNICAMP, onde o consultei). A definição de “exogamia” citada foi extraída da “Apresentação de Raul Bopp” feita por Oswald e publicada originalmente em março de 1929 na Feira Literária; recentemente, ela foi coligida em BOPP, 1998, p.37.↩
Sobre esse importante estudo, cf. ANTELO, 2010, em que se sugere um paralelo entre o romance oswaldiano e a Rua de mão única, de Walter Benjamin. Ainda está para ser feito um estudo sobre os pontos de coincidência entre esses dois pensadores heterodoxos (que tinham leituras incomuns em comum – Arthur Eddington, Edgard Dacqué, etc.), para além da possível, mas não concretizada, contratação de ambos pela USP.↩
Cf. NODARI, 2011↩
Nesse sentido, estariam sendo parodiados não só a primeira versão das Memórias, como também o tardo-romantismo convencional da Trilogia do exílio (publicada contemporaneamente ao par Miramar-Serafim e que apresenta em chave não-cômica muitas das mesmas situações), e mesmo o gosto de Oswald pelo gênero adotado no romance, já que ele “ocupa boa parte de sua produção literária com memórias e diários” (FONSECA, 2007, p.22).↩
Cf. o fragmento “161. História do Brasil” (p. 159): “E Celiazinha maleta pelas portas lampiões ia-me explicando que D. Pedro 1º era um perdulário que se arrependeu na hora da morte e mandou chamar o neto do seu neto para lhe dizer que não fizesse que nem ele. // - E D. Pedro 2º? // - Esse era um grande preguiçoso. Quando a professora chegava, dizia que ia jogar cartas e nem queria ver os livros. // A noite vinha e desembarcava meu anjo noturno”.↩
No primeiro dos “quatro erros” de Marx elencados por Oswald em uma entrevista essencial sobre a antropofagia, lemos: “O que interessa ao homem não é a produção e sim o consumo.” Mais adiante, continua: “Contra o homem econômico de Marx – a realidade opõe o antropófago turista, o homem perdulário” (ANDRADE, 1990 p.51 e 53).↩
A provável fonte parodiada são as Cartas de Inglaterra, em que o mesmo é dito, mas avaliado de forma inversa: “Dir-se-ia que o que o júri tem sido para a Inglaterra, o município para a Suíça, a justiça federal para os Estados Unidos – a arca histórica das liberdades nacionais – é, para as repúblicas latinas daquele continente, a lei marcial” (BARBOSA, 1946, p.40). Devo a Raúl Antelo essa passagem de Rui.↩
“Cabe ao mínimo realizar a máxima aspiração dos visionários – a posse contra a propriedade”, dirá Antelo (2006, p.27) a respeito do Primeiro Caderno: uma utopia vanguardista que diante da catástrofe ambiental em curso ganha um novo sentido político.↩
Importante notar que o capítulo é uma referência à “conquista do oeste” paulista que estava em curso e produzia “conflitos” entre fazendeiros e índios (em sua maioria, kaingang), a saber, o extermínio destes, que, resistindo à assimilação como mão de obra, resistiam com saques e invasões – um cenário de faroeste. O sertão, nesse sentido, se refere às terras ainda não “conquistadas”, dos índios, de modo que a promessa de felicidade (o eldorado) é ambígua, remetendo tanto à suposta riqueza a ser gerada com a expansão das plantações de café quanto à utopia de uma vida fora do circuito produtivo moderno (a indígena).↩
Tanto a subjetivação do ambiente quanto o recurso à fala alheia serão muito utilizados pelo companheiro de “metralhadoras de alta indagação” de Oswald, Raul Bopp, especialmente em Cobra Norato. “Para dar a ver, oculta-se na imensa paisagem do mundo, despersonalizando-se para que o diálogo brote naturalmente. O lirismo vinga quando o poeta se mete na pele elástica do ‘outro’”, diz Massi (2014), que conecta tal estratégia poética à importância da viagem para esse que foi o globetrotter por excelência: “Viajar é ler o poema do mundo. Antropólogos do texto, turistas aprendizes”.↩
Cf. a entrevista a Edla Van Steen (2013).↩
Mário de Andrade (2004, p.13) já assinalara como Oswald “[d]eforma para expressar com maior verdade; e tão hábil, com tamanha perfeição que o artifício e o exagero desaparecem. É como um verdadeiro que fosse mais exato que a verdade”.↩
Cf. Nodari, 2013.↩
Cf. Nodari, 2015a e 2015b.↩