José Flávio da Paz1
Universidade Federal de Rondônia
jfp1971@gmail.com
A humanidade vive uma continua e persistente corrida em busca da verdade, ainda que uma verdade paliativa para enganar o seu inconsciente e fazê-la acreditar na idealização da verdade. Embora, o que seja verdade para um ser, grupo, nação e outros, não necessariamente o será para os demais. Isto porque, não há como definirmos o termo verdade, afinal, qualquer possível tentativa de definição nos conduzirá naturalmente a muitas outras subjetividades. Logo, algumas alternativas e bem poucas soluções.
Quando aliamos tal posicionamento acerca do que seja a verdade frente à realidade ora vivida pela maior parte da população mundial e acrescentamos o termo violência, damo-nos conta de que o cenário fica ainda mais difícil, uma vez que com a banalização da violência não conseguimos perceber o caos que se instaura. Ficcionamos a violência, porque a nossa percepção de verdade, não nos permite assimilar a realidade como tal, ainda que “a verdade não [seja] necessariamente o contrário da ficção e que, quando optamos pela prática da ficção, não o fazemos com o propósito turvo de tergiversar a verdade...” (SAER, 2012, p. 2)
Nesse sentido e considerando que este é um estudo comparado entre obras de períodos distintos e de línguas, culturas, histórias e cenários opositores, em dados momentos, é importante salientar que na Literatura
[...] não se escrevem ficções para eludir, por imaturidade ou irresponsabilidade, os rigores que o tratamento da “verdade” exige, mas sim para evidenciar o caráter complexo da situação, complexidade esta em que o tratamento limitado ao verificável implica uma redução abusiva e um empoderamento. Ao ir em direção ao não verificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento [...]. (Idem, 2012, p. 2-3)
Desse modo, este trabalho pretende trazer à baila algumas reflexões entre ficção e realidade e sobre como a violência assola grupos sociais e seus indivíduos, com especial atenção aos países de origens dos escritores aqui eleitos para a análise, mas consciente do mal que tem tirado o direito à vida e a paz de muitos angolanos, moçambicanos e estadunidenses durante os últimos três ou quatro séculos.
Para isso, dividiremos este artigo em três tópicos, a saber:
No primeiro tópico a discussão perpassará pelo Estudo de Gênero nas Literaturas de Língua Portuguesa: Rosário Ngunza, Conceição Evaristo e Mia Couto, ocasião que apresentaremos as fortunas críticas dos autores, bem como encontraremos em seus contos fatores comuns e específicos quando o trato for sobre os elementos da narrativa e a violência de gênero, os quais analisaremos à luz dos estudos culturais, historiográficos e literários.
No tópico Focalização, Ficção e História “Na noite do tic tac”, “Os olhos dos mortos” e “Shirley Paixão” nos deteremos em uma breve análise estrutural das narrativas, considerando que
[...] a obra literária tem dois aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimento que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com a vida real. (...) é ao mesmo tempo discurso: existe um narrador que relata a história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam mas a maneira pela qual o narrador nos faz conhece-los. As noções de história e de discurso foram definitivamente introduzidas nos estudos da linguagem após sua formulação categórica por Emile Benveniste. (TODOROV, 1972, p. 211-212).
Finalmente, no quarto tópico versaremos sobre Literatura e Violência de Gênero: interfaces entre ficção e realidade, ocasião que a metodologia comparatista tomará mais fôlego e demonstrará as possíveis aproximações e distanciamentos entre as obras pesquisadas, a realidade e o processo de mimesis presentes no cotidiano do leitor, conscientes, toda e quaisquer história advém de uma narrativa, uma contação de um acontecimento real, imaginário ou com esses dois mecanismos conjuntamente elaborados. Todavia, conforme Kearney (2012), citando indiretamente a obra Poética, de Aristóteles, em seu artigo “Narrativas”,
A mimesis pode ser vista como uma redescrição imaginativa que captura aquilo que Aristóteles chamava de a essência (eidos) de nossas vidas. A mimesis não significa um escapismo idealista ou um realismo servil. Ela é uma trilha em direção à revelação dos universais inerentes à existência que compõem a verdade humana. Longe de ser uma cópia passiva da realidade, a mimesis reencena o mundo real da ação ao ampliar seus traços essenciais. Ela refaz o mundo, por assim dizer, à luz de suas verdades potenciais. (KEARNEY, 2012, p. 413-414).
Isto exposto, de certo modo, síntese o cerne da nossa pesquisa e o modo como percebemos as reflexões aqui resultantes dos estudos, ou seja, a realidade e a ficção são coirmãs e caminham juntas, mas possuem campos de interesses distintos, ainda que sejam solidárias em seus feitos.
A forma com que os autores aqui eleitos escrevem, alardeiam e chamam a atenção para as práticas cotidianas em seus universos foi fator determinante na escolha para direcionar esta pesquisa, bem como de leituras e interpretações que a subsidiaram, desde o, ainda pouco expressivo, mas em fase de ascensão, escritor angolano Rosário Ngunza, até o moçambicano mais lido mundo a fora, nossa intenção foi trazer essas obras à mesa para um debate proveitoso é sobre a Literatura de Língua Portuguesa e as relação com o dia a dia das pessoas nos seus mais diversos cenários.
Rosario Ngunza é o pseudônimo literário de Edilson do Rosario Jorge de Ngunza, nascido em 20 de abril 1983, na cidade do Sumbe, província do Kwanza Sul (Luanda, Angola), cresceu no seio de uma família de cinco irmãos e foi educado pela sua mãe Maria Joana Jorge e seu Padrasto Antonio de Sousa Gouveia Paim. Desde cedo despontou a sua veia artística e criativa, participando em programas culturais e recreativos do Centro Infantil 17 de Setembro e na emissora de rádio do Kwanza Sul, aonde cantava, declamava e fazia pequenas dramatizações teatrais.
Ngunza fundou, na companhia de seu irmão mais velho Francisco Ngunza, o coletivo de artes cênicas Picantes-Teatro, do qual foi diretor, ator e dramaturgo nos espetáculos: “O velho Antonio” e “A água da haha” – prêmio revelação no festival de teatro do Casenga Luanda. Instalou também a agência de formação e divulgação artística Globo Ngunza, cujo escritório localiza-se no bairro Maianga, em Luanda, onde lecionou aulas de teatro. Nesse período viajou pelo país por meio dos inúmeros convites para ministrar palestras e oficinas literárias e teatrais, entre as quais destacamos: “A queda do avião” e “Homens e mulheres”.
Ngunza possui formação em teatro. É organizador de eventos culturais do Ministério da Cultura de Angola, envolvido com a poesia, a música, o cinema, o teatro, o rádio e o desenvolvimento sociocultural do seu país. Participou do Festival Amador Carel Filmes com a película “Sofia e o mar” e realizou o ensaio cinematográfico “Dima e a casa dos rapazes” pela Mong TV e o documentário “Picantes 11 anos” pela Gil Produções.
Seu lançamento no Brasil ocorreu por ocasião das publicações dos contos “O Jacaré Velho”, “A Noite Tic-Tac” e “Maria Rapaz”, na coletânea Cadernos Negros, em sua trigésima edição, no ano de 2007. Seus romances são de uma criatividade ímpar e seu grupo de leitores cresce a cada nova publicação.
A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte-MG, no dia 29 de novembro de 1946 e morou durante grande parte da sua vida numa favela da zona sul da capital mineira. Foi obrigada a conciliar os estudos com o trabalho duro de empregada doméstica e diarista até concluir o antigo Curso Normal, em 1971.
Aos 25 anos de idade, mudou-se para o Rio de Janeiro-RJ, onde passou em um concurso público para o magistério da educação infantil e séries iniciais. Aliando o tempo de trabalho a formação acadêmica de Letras, na Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. Concluiu seu mestrado em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense-UFF.
Entre seus trabalhos literários, destacam-se o romance “Ponciá Vicêncio”, de 2003, cuja obra aborda tema como a discriminação racial, de gênero e de classe. Esta obra foi traduzida para o inglês e publicada nos Estados Unidos em 2007. É autora do romance “Becos da Memória” (2006); dos livros de poemas: “Poemas da recordação e outros movimentos” (2008) e; “Do velho e do Jovem”; dos livros de contos: “Insubmissas lágrimas de mulheres” (Nandyala, 2011) e “Olhos d’água” (Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2014). Acumula ainda participações em antologias, como: “Cadernos Negros” (Quilombhoje, 1990); “Contos Afros” (Quilombhoje, 2007); “Contos do mar sem fim” (Editora Pallas, 1993); “Questão de Pele” (Língua Geral, 1993); “Schwarze prosa” (Alemanha, 1993); “Moving beyond boundaries: international dimension of black women’s writing”, (1995); “Women righting – Afro-brazilian Women’s Short Fiction”, (Inglaterra, 2005); “Finally Us: contemporary black brazilian women writers”, (1995); “Callaloo”, vols. 18 e 30 (1995, 2008); “Fourteen female voices from Brazil” (EUA, 2002), “Estados Unidos Chimurenga People”, (África do Sul, 2007) e “Brasil-África” (2007).
Atualmente leciona na Universidade Federal de Minas Gerais como professora visitante e difunde a sua produção literária nos mais diversos países das Américas e da Europa, bem como milita nas causas da negritude e das mulheres negras.
Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, nasceu e foi escolarizado em Beira, na capital da província de Sofala, em Moçambique. Filho de portugueses emigrantes que seguiram para Moçambique ainda em meados do século XX e experiência que renderia a Mia Couto às características essências e o estilo que daria origem ao primeiro romance - “Terra Sonâmbula”, em 1992. Sua moçambicanidade o elevou à posição de um dos escritores mais importantes e influentes de Moçambique, uma vez que suas produções propiciaram uma nova narrativa sobre a África, a cultura dos seus habitantes e a forma como a Língua Portuguesa interferiu diretamente naquele Continente, valorizando os hábitos, costumes e crenças dos povos luso falantes.
Mia Couto é biólogo de formação, mas se rendeu aos encantos das letras tornando-se escritor, poeta, contista, cronista e romancista. Sua obra é extensa e ganhou notoriedade e importância mundial, não somente por meio da difusão do seu envolvimento literário. Participou ativamente da luta pela independência do seu país, militando na Frente de Libertação de Moçambique – Frelimo. Depois de vivenciar períodos intensos de guerra, tornou–se a recuperação da identidade cultural do país.
Nesse sentido, o conto analisado neste trabalho será “Os olhos dos mortos”, publicado em 2009 na obra “O fio das missangas”, compota por outros 28 contos, cujas temáticas, assim como nos contos “Na noite do tic tac” e “Shirley Paixão” provocam indagações, críticas e acentuadas reflexões por tratarem de problemáticas contemporâneas, tais como a violência contra a mulher, a indiferença doméstica, a embriaguez, o abandono da esposa, dos filhos e do lar, as intrigas e abusos sexuais no interior e fora do contexto familiar, os medos e as práticas de subordinação do outro em suas mais diversas formas, contextos e situações cotidianas.
Concernente à metodologia, far-se-á uso do método comparatista, cujo nome é atribuído a todas as metodologias comparatistas ou comparatismo em geral. Na Literatura e na Linguística se tornou campo disciplinar de maneira distinta e na história contemporânea das produções científicas tem caminhado ao lado das mais diversas temáticas e metodologias. É uma disciplina jovem e moderna na historiografia dos componentes curriculares e quando, especificamente nos voltamos para a Literatura Comparada caracterizada como
[...] o estudo das obras de várias literaturas em seu inter-relacionamento. Concebida em termos gerais, ela compreende – para falarmos apenas do mundo ocidental – as relações mútuas entre a literatura grega e latina, a dívida da literatura moderna (desde a Idade Média) para com a literatura antiga, e, finalmente, as ligações entre as diversas literaturas modernas. Este último campo de investigação, que é o mais extenso e complexo dos três, é aquele que a literatura comparada, no sentido em que geralmente entendemos adota para si. (VAN TIEGHEN, 2006, p. 57).
Nesta perspectiva, Carré (1956) afirma que a Literatura Comparada “não considera essencialmente as obras no seu valor original, mas dedica-se principalmente às transformações que cada nação, cada autor impõe a seus empréstimos.” (CARRÉ, 1956, p. 8).
As obras “Na noite do tic tac”, "Os olhos dos mortos" e “Shirley Paixão” apresentam em comum cenários de pobreza, abusos e explorações humanas, mortes, violências psicológicas e outras situações que chegam a nos confundir com a realidade. Alias, neste sentido, cumprem suas funções como narrativas, visto que “[...] definir-se- á sem dificuldade a narrativa como a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos reais e ficcionais, por meio da linguagem, e mais particularmente da linguagem escrita”. (GENETTE, 1972, p. 255).
Os enredos são simples e em lugares comuns. “Na noite do tic tac”, por exemplo, a trama acontece numa madrugada, quando uma personagem, sem nome ou característica pessoal alguma, logo poderia ser qualquer pessoa do sexo ou gênero2 feminino, pois a única referência que se faz dela é o uso do pronome pessoal “ela” (p. 195 e 196) que ao regressar para sua casa, numa madrugada fria e após uma jornada intensa de trabalho e assassinada a facadas e seu corpo estendido sobre um poste sem luz que havia na rua. Embora todos os vizinhos ouvissem seus gritos e pedidos de socorro, ninguém foi capaz de socorrê-la.
A mulher morreu sozinha e sem socorro, só após a sua morte e o sague inocente escorrer é que os moradores aparecem para remover o cadáver. O medo os fez inertes e a morte violenta da personagem parecia ser mais uma naquele cenário de pobreza, tristeza e dor.
Em “Os olhos dos mortos” e em “Shirley Paixão” os enredos são desenvolvidos em lares tradicionais onde os homens detêm os rótulos de “chefes de família” e as mulheres se ocupam de servi-los e cuidar da manutenção do lar e dos filhos. Em ambos, as mulheres fazem uso do pronome possessivo “meu” para fazer referência aos seus maridos, provedores do lar e reforçando, ainda mais, o caráter subserviente que ocupam na condição senhoril: “O perdoar a meu homem foi medida do desespero.” e “Se o meu homem me chorasse, nessa vida, seria para melhor me esquecer.” (p. 33-35).
No conto "Os olhos dos mortos" a protagonista não tem nome, enquanto seu oponente responde pelo nome de Venâncio, homem violento, que costumava chegar em casa embriagado e, por consequência espancara sua esposa com golpes “com inusitada força, pontapés cruzaram o escuro do quarto entre gritos meus” (p. 34), em especial
[...] quando descobriu, em estilhaços, a emoldurada fotografia na nossa sala. Era um retrato antigo, parecia estar ali mesmo antes de haver parede. Nele figurava Venâncio, ainda magro e moço, posando na nossa varanda. Pelo olhar se via que sempre fora dono e patrão. (p. 34).
A mulher apanha de tal maneira que se vê obrigada a gritar que está grávida para ver se o marido para de bater. Consegue o feito e, em seguida, se dirige a um hospital, em busca de socorro. Segue sozinha, com o sol no ponto mais alto do céu, um calor escaldante sobre a sua cabeça e seu corpo gelado ensanguentado o que a levou a desmaiar, antes mesmo de chegar ao pronto atendimento hospitalar.
Ficou internada e durante sua permanência ali, Venâncio sequer apareceu, o que lhe alimentou magoa, rancores e demais sentimos de tristeza e desilusão. Ao receber alta hospitalar repensou sua vida e tomou a iniciativa de matar o marido, pois se assim não fizesse, seria ele a acabar com a sua vida.
Assim,
Quando entro em casa, os estilhaços do retrato rebrilham no chão da sala. O fotografado olhar de Venâncio pousa sobre mim, assegurando os seus direitos de proprietário. Distraída, a minha mão recolhe um vidro. Na cama de casal, meu marido está enroscado, em fundo sono. Deito-me a seu lado e revejo a minha vida. Se errei, foi Deus que pecou em mim. Eu semeei, sim, mas para decepar. Se recolhi os grãos, foi para os deitar no moinho. Há quem chame isto de amor. Eu chamo a cruel dança do tempo. Nessa dança, quem bate o tambor é a mão da morte. (p. 35).
Em “Shirley Paixão”, a personagem de mesmo nome tem duas filhas de um primeiro relacionamento marcado pelo abandono. Ao encontrar um novo amor resolve se amasiar e seu parceiro, que não tem nome, muda-se para sua casa com as três filhas e vivem por muito tempo, uma situação aparentemente tranquila. “Vivíamos bem, as brigas e os desentendimentos que, às vezes, surgiam entre nós eram por questões corriqueiras, como na vida de qualquer casal. Nada demais.” (p. 25).
A trama acontece em torno de Sani, a filha do primeiro casamento do homem, a mais velha das meninas e enteada de Shirley Paixão que chegara a sua casa quando “faltavam três meses para completar cinco anos.” (p. 26). Garota tímida, calada e que se expressa mais por gestos a ações. Não tinha uma boa relação com o pai e “quando se dirigia à menina era sempre para desvalorizá-la, constantemente com palavras de deboche...” (p. 27). Todavia, permanecia amável com as irmãs e a madrasta.
A escola foi a primeira a chamar a atenção para o comportamento de Sani. A professora temia que algo estivesse acontecendo no interior daquele lar e chamou Shirley Paixão para algumas indagações, a qual saiu de lá bastante preocupada com o que pudesse estar ocorrendo em sua casa. Conversou com o esposo, pai de Sani e a reação deste frente a filha foi de fúria, só não bateu na garota, agora com 12 anos de idade, porque sua madrasta estava por perto.
Shirley Paixão grita com o seu esposo e pede para que saia de casa. O marido, prontamente obedece e sai. Entretanto,
(...) horas depois... o homem retornou à casa e, aproveitando que ela estava dormindo, se encaminhou devagar para o quarto das meninas. Então, puxou violentamente Seni da cama, modificando, naquela noite, a maneira silenciosa como retirava a filha do quarto e levava aos fundos da casa, para machucá-la, como vinha acontecendo há meses. Naquela noite, o animal estava tão furioso - afirma Shirley Paixão – que Seni para a sua salvação, fez do medo, do pavor, coragem. E se irrompeu em prantos e gritos. (p. 28 e 29).
O conto tem seu fechamento com a ação de Shirley Paixão pegando uma barra de ferro e golpeando certeiramente o seu esposo que, inicialmente imaginara tê-lo matado, mas não foi o que aconteceu. Ele sobrevive e Shirley Paixão ficou “três anos presa depois ganhou a condicional.” (p. 31).
Nos três contos, as personagens são limitadas a dois ou três apenas. Isto não implica na qualidade dos textos, temporalidade ou seus espaços. “Na noite do tic tac”, a personagem se reduz a uma pessoa, simplesmente tratada por “ela”. Nos "Os olhos dos mortos", são personagens “a mulher” e o seu marido Venâncio e, em “Shirley Paixão”, além da personagem que empresta seu nome ao título do conto, há o seu esposo - sem nome e que depois será chamado de apenas “o homem” por Shirley Paixão, a Seni, a mais velha das filhas e a amiga e vizinha Luzia.
O narrador, embora inventado como os demais elementos de uma narrativa, é parte integrante dela, sendo a sua ocupação a de contar a estória por ele vivida, presenciada, assistida, ou inventada, segundo a sua ótica, considerando o tempo, o espaço e envolvendo as personagens nos seus respectivos contextos, de modo que consiga prender a atenção do leitor para um determinado evento ou acontecimento e garanta a estrutura formal de uma narrativa.
Dessa maneira,
O narrador tanto pode interpretar, na posição de quem assiste aos fatos, a realidade que está sendo narrada, como também participar nessa realidade, desempenhando uma ação específica. Decorre daí a distinção tradicional entre narrador na primeira pessoa (aquele que exerce uma função de ação) e narrador na terceira pessoa (aquele cuja função se restringe à interpretação dos fatos). (CARDOSO, 2001. P. 36-37).
Ressalta-se, antes mesmo, que nenhuma relação - direta ou indireta, existe entre o escritor ou autor da narrativa com o seu narrador, estes ocupam papeis distintos no cenário literário.
Quanto às características do narrador dependerá essencialmente das funções que este exercerá na narrativa. Estudiosos afirmam a existência de três tipos de narrador ou foco narrativo, como sendo: o narrador personagem, cuja narrativa acontece na 1ª pessoa, participa como personagem, depositando elemento da subjetividade e emoções em suas (re)ações e intimas relações com as demais personagens do texto; ao narrador observador cabe contar a história e se apresenta na 3ª pessoa sem participação alguma nas ações da narrativa e, embora conheça profundamente o enredo, as personagens, a focalização e outros, não interfere nas iniciativas deles, mantendo um posicionamento neutro e imparcial frente aos acontecimento da narrativa; e, finalmente, o narrador onisciente que, embora narre em 3ª pessoa, pode intervir diretamente na 1ª pessoa. É pleno conhecedor da narrativa, bem como conhece profundamente as personagens, seus caráteres, sentimentos, personalidades e com poderes de se posicionar em seu lugar, fazendo uso do discurso indireto livre.
Todavia, Genette (1995), afirma que há apenas dois tipos de narrativas. Considerando esta premissa, existirão somente dois narradores: um ausente da história narrada, denominado de narrador heterodiegético; e outro, presente, inclusive atuando como personagem da contação, nomeado de homodiegético.
No âmbito do nível narrativo ou plano da diegese3, Cardoso apud Genette (2013), apresenta
(...) quatro tipos fundamentais de estatuto do narrador: 1) extradiegético-heterodiegético, narrador do primeiro nível que conta uma história da qual está ausente; 2) extradiegético- homodiegético, narrador do primeiro nível que conta a sua própria história; 3) intradiegético-heterodiegético, narrador do segundo grau que conta história da qual está geralmente ausente; 4) intradiegético-homodiegético, narrador do segundo grau que conta sua própria história. (CARDOSO, 2013. p. 65)
Diante dessas considerações, podemos concluir que o foco narrativo da obra “Na noite do tic tac”, é expresso em 3ª pessoa onisciente, isto porque o narrador não é personagem da história. Logo, este é classificado como extradiegético-heterodiegético, pois não se envolve no (con)texto do conto. Ele o narra como aquele que presencia o acontecimento, conhece toda a história e intervém. Portanto, faz uso de um discurso indireto livre quando o considera necessário, ou seja, seja toma o lugar da personagem, sem o devido uso sinalizador da sua fala e lê os seus pensamentos, como apresentado no penúltimo paragrafo do conto: "Tic-tac, são 1h40, as pessoas vão saindo calmamente nas janelas, por trás das cortinas, afinal sempre o vizinho também ouviu! E por que não se levantou? Porque teve medo e eu também tive o maldito medo." (p. 197).
Nos contos "Os olhos dos mortos" e “Shirley Paixão” os narradores são extradiegético-homodiegético, ou ainda autodiegético elas vivenciam as ações propostas pela trama e, no caso bem específico, são as próprias vítimas das mais arbitrárias violências inimaginadas praticadas contra outro ser, seja ele real ou irreal. Utilizam de discurso direto, ou seja, a fala da personagem é transcrita, conforme esta pensara ou falara, chegando inclusive a se repetir ao longo do conto. Logo, se apresentam sempre na 1ª pessoa, considerando que “as formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza” Bakhtin, (2002, p. 124) determinam o foco narrativo, conforme exemplos: “Estou tão feliz que nem rio. Deito-me com desleixo, bastando-me: eu e eu. O regressar de meu marido mediu, até hoje, todas as minhas esperas. (...)”. Couto (p. 33), assim se expressara a personagem do conto “Os olhos dos mortos” ou “Foi assim – me contou Shirley Paixão. (...)” em Evaristo (p. 25).
A expressão cronotopo, conforme sua etimologia é o resultado da junção das palavras gregas cronos que significa tempo e topo igual lugar. Foi um conceito usado por Mikhail Bakhtin para tratar da relação espaço-tempo no âmbito literário. Ele considerou o cronotopo como um elemento da narrativa, cuja função seria relacionar os aspectos temporais e espaciais nas artes e pela literatura, de modo que estes dois aspectos indissociáveis no interior das suas produções. Nisto, o cronotopo artístico- literário passou a ser uma categoria conteudístico-formal que ocorre, conforme Bakhtin, com a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto:
Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN, 1988, p. 211).
Poderíamos afirmar que nos contos “Na noite do tic tac”, “Os olhos dos mortos” e “Shirley Paixão” a ideia de cronotopo está bem definida e corresponde aos propósitos bakhtinianos.
“Na noite do tic tac”, o tempo da narrativa tem duração de trinta minutos. Os acontecimentos são cronometrados a cada nova ação: “Noite isolada, o badalar do relógio, tic-tac-tic-tac, era o único som que soava, era 1h30, o medo estava estampado nas paredes das casas, dos carros, nos sonos das pessoas, em todo lugar, (p. 195) (...) ... São 1h35! Ele está quase a apanhá-la, vai apanhá-la, alguém acode, acudam, por favor. (p. 196) ... são 1h37, a almofada tapa os gritos de dor que vinham lá da rua... são 1h40, as pessoas vão saindo calmamente nas janelas (...). eram 2h da madrugada, uma alma subia para o céu, porque os homens tiveram medo! (p. 197)”.
Em “Os olhos dos mortos”, a personagem faz referência há um tempo passado “A semana passada foi quando o rasgão se deu. Venâncio ficou furioso quando descobriu, em estilhaços, a emoldurada fotografia na nossa sala.” (p. 34). Todavia, a narrativa em si, aconteça apena por alguns minutos.
A personagem narra acontecimentos no interior de um lar, cuja trama tem início com o cair da noite ou com a chegada do marido até o amanhecer quando esta se dirige ao hospital e o seu retorno ao lar, já por volta do meio dia. “É de noite e falta-me apenas um quase para estar sozinha no quarto. Ou, no rigor: o quarto está sozinho comigo.” (p. 34). “... Era manhã, fazia chuva e caía o sol. (...). Quando entro em casa, os estilhaços do retrato rebrilham no chão da sala. (...). Na cama de casal, meu marido está enroscado, em fundo sono.” (p. 35).
No conto “Shirley Paixão” a personagem descreve a convivência familiar tranquila por um período de aproximadamente sete anos. Todavia, o ápice da trama acontece em um lapso de tempo de aproximadamente duas ou três horas. Tempo que vai da chegada do homem a sua casa, passando pelo pedido de saída, pela esposa até o seu retorno. “Horas depois de ter sido enxotado da sala por Shirley Paixão, o homem retornou a casa e, aproveitando que ela já estava dormindo, se encaminhou devagar para o quarto das meninas.” (p. 28).
As dinâmicas espaços-temporais apresentadas nos contos propiciam aos leitores uma experiência sequencial dos fatos, de maneira que estes possam perceber as naturezas desses eventos, vivenciem os dramas e tramas apresentados e se reconhecem, enquanto personagem da vida real, de tal maneira que a identificação e aproximação entre personagem e leitor ocorram, embora chamemos a atenção para a compreensão da verossimilhança.
Em uma leitura mais profunda acerca da realidade que se instala na sociedade, a cada novo instante, as narrativas “Na noite do tic tac”, “Os olhos dos mortos” e “Shirley Paixão” traduz “a ideia de vida sintetizada e de fugacidade numa permanência situa-nos o(s) conto(s) como um instantâneo da vida das personagens; fragmentos que, por sê- los, tem o poder de destacar uma circunstância, um acontecimento” (SILVA, 2017, p. 7).
Os contos apresentam ainda, intertextualidade e interdiscursividade quando o tema é a violência. Não apenas a violência física, mas aquelas de cunho psicológico que atormentam e se alastram vida a fora, deixando marcas indeléveis.
Dessa maneira, parece salutar compreender os sentidos da palavra violência e a sua etimologia, como define o professor francês, filósofo, cientista político e social, Yves Michaud (1989), cujas pesquisas envolvem o estudo da violência política e empirismo, sustentadas a partir do pensamento de John Locke e de David Hume:
Violência” vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento ou bravo, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis que quer dizer força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas também quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e, portanto a potência, o valor, a força vital. (MICHAUD, 1989, p. 8).
É com o uso da força brutal que as personagens dos contos são tratadas, como podemos constatar “Na noite do tic tac”:
E ela corria, (...), seus passos medonhos corriam, pedia socorro, socorro, socorro, alguém me acode! E ninguém saía, com medo, (...).
E a faca vinha, vinha ter com ela que corria, (...), as pessoas ouviram, mas tinham medo de sair, quem se atreveria a sair agora?
(...) Ele está quase a apanhá-la, vai apanhá-la, alguém acode, acudam, por favor.
Ela lutava contra ele, lutava, lutava e estava cansada, já não podia mais, perdia as forças.
(...), antes que a mate.
Lágrimas, tic-tac, violência na noite, muito barulho na rua. Alguém espreita, mas foge, acuda, acuda, é humana, é nossa.
Ela luta, fraca, mas luta, luta até o último golpe, o passeio sente seu corpo tocá-lo agressivo.
(...)
Ninguém, as pessoas veem pelas janelas, ela vai perdendo as forças e vai cedendo, a lua aumenta de intensidade, a árvore lança suas folhas e ninguém aparece.
(...) A faca perfura seu estômago e um grito áspero rompe a noite e vai calando triste e calmo, o poste sente seu corpo tocá-lo ainda quente, (...), o passeio guarda uma lágrima nos seus atritos e deixa o sangue inocente escorregar sobre si.
(...) o quadro, está lá embaixo deitado no meio da rua, sem alma fria, só, na escuridão, ninguém acudiu porque tiveram medo, o maldito medo, sempre o medo. Até quando o medo?
(...), alguém remove um cadáver, uma vida que a noite levou, a vergonha do ser humano domina os olhares. Ninguém falou, apenas o silêncio e a noite, (...), uma alma subia para o céu, porque os homens tiveram medo! (NGUNZA, 2007, p. 195-197).
No texto “Shirley Paixão”, Evaristo (2011):
(...), o homem retornou à casa e, (...). Então, puxou violentamente Sani da cama (...). Naquela noite, o animal estava tão furioso (...). E avançou sobre Sani, gritando, xingando os maiores impropérios, rasgando suas vestes e expondo à nudez aquele corpo ainda meio-menina, violentado diversas vezes por ele, desde que a mãe dela falecera. (...). Foi quando assisti à cena mais dolorosa da minha vida. Um homem esbravejando, tentando agarrar, possuir, violentar o corpo nu de uma menina, enquanto outras vozes suplicantes, desesperadas, desamparadas, chamavam por socorro. (...) Naquele instante, a vida para mim perdeu o sentido, ou ganhou mais, nem sei. (EVARISTO, 2011, p. 28-29),
no conto “Os olhos dos mortos”, de Couto (2004):
Durante anos, (...), os passos de meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta, mas era por pânico. Meu homem chegava do bar, mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de seu querer: me vergastava com socos e chutes. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena de suas mágoas. Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos assim de espaçadas costelas, entremeados de vãos e entrâncias para que o coração seja exposto e ferível.
Venâncio estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida. (COUTO, 2004, p. 34),
é com esta mesma força que a violência age cotidianamente na nossa sociedade mesmo no conto “Shirley Paixão”, onde a família se apresenta como modelo, dados dão conta que grande parte da violência sexual contra a mulher, criança e adolescente acontece no interior dos lares.
Na pesquisa realizada entre 2011 e 2014, do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde (MS):
Verificou-se uma estabilidade estatística preocupante ao longo do período analisado: 69,9% das vítimas eram crianças e adolescentes; (...). Outro dado estarrecedor mostrou que cerca de 40,0% dos estupradores das crianças pertenciam ao círculo familiar próximo, incluindo pai, padrasto, tio, irmão e avô. Os dados chamam a atenção para a gravidade do problema de violência de gênero no país e para a necessidade de se produzirem informações mais acuradas, de modo a possibilitar a elaboração de políticas públicas mitigadoras que envolvam as muitas agências do Estado, sobretudo no campo educacional. (IPEA, 2017, p. 29)
Em Angola, apenas no primeiro semestre de 2016 foram denunciados mais de 500 casos de violação sexual, que envolvem, sobretudo, crianças até aos 12 anos. Todavia, segundo a secretária de Estado da Assistência Social, Maria da Luz, em entrevista concedida ao periódico digital Rede Angola, em 10 de outubro de 2016, denuncia que este número está ainda muito aquém da realidade. (REDE ANGOLA, 2017).
O Ministério moçambicano da Saúde também divulgou no último dia 03 de janeiro de 2017, números preocupantes sobre o aumento de casos de violação sexual e de violência doméstica. Segundo o Diretor Nacional de Assistência Médica, Ussene Isse, em entrevista dada ao periódico digital Deutsche Welle - DW, mais de 60% dos casos de violação sexual tiveram como vítimas crianças com menos de 15 anos de idade. "Crianças dos zero aos 04 anos 11, crianças dos cinco aos 09 anos 25, crianças dos 10 aos 14 anos 44". (DW, 2017).
Exposta todas estas situações, não há como negar a dinâmica e predominância das diversas violências agravadas e crescentes na sociedade, independentemente de continente, embora nos restrinjamos aqui, apenas aos países falantes de Língua Portuguesa, nos continentes americano e africano.
Cabe, portanto, a cada agente trabalhar no combate a estas práticas sociais que assolam e dizimam indivíduos, lares, sociedades e toda uma estrutura de paz.
Mas destruir a causa imediata da violência é trabalho interminável, enquanto os pontos nodais dos conflitos submersos eu travam o mundo contemporâneo não forem revelados e atacados. A chamada globalização até agora aprofundou as diferenças regionais, relegando partes da humanidade à instabilidade ou à miséria permanente. Deste modo globaliza as sementes do terror, cria novos bárbaros capazes de ameaçar a tranquilidade das novas Romas. Não podem vencê-las, mas a ameaçam o mundo de uma nova barbárie. (GIANOTTI, 2001, p. 12-13)
Feitas estas conceituações e exemplificações, pensemos as possibilidades de intervenções sociológicas, bem como sobre a literatura e a história, cada uma cumprindo a sua função, ou seja, estas podem, através de seus registros imaginários ou reais desenvolverem estratégias argumentativas de persuasão e convencimento que criem efeitos de subjetividade de aproximação e distanciamento entre os seres e as suas ações no meio em que se inserem criando efeitos de verdade, jogos do ser em oposição ao parecer ser, a começar pela análise de mídias impressa e/ou televisiva, e, promovendo à adesão as leituras de obras literárias que bem ilustram uma época, um lugar e possibilita o pensamento criativo; assim, como a interpretação de pinturas, as quais refletem desejos, insinuam cores e viagens mentais; acesso as diversas pesquisas arqueológicas e histórico-geográficas; passeios ecológicos, visitas aos museus, a santuários e outros.
A ideia, portanto, é reconhecer que
(...) a função histórica ou social de uma obra depende da sua estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal de certas representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi escrita. Devemos levar em conta, pois, um nível de realidade e um nível de elaboração da realidade; e também a diferença de perspectiva dos contemporâneos da obra, inclusive o próprio autor, e a da posteridade que ela suscita, determinando variações históricas de função numa estrutura que permanece esteticamente invariável. Em face da ordem formal que o autor estabeleceu para sua matéria, as circunstâncias vão propiciando maneiras diferentes de interpretar, que constituem o destino da obra no tempo. (CANDIDO, 2006, p. 176)
Nesse sentido, os contos “Na noite do tic tac”, “Shirley Paixão” e “Os olhos dos mortos” nos possibilitam uma concepção histórico-real que não nos separa dos dramas vivenciados no cotidiano, tampouco dos registros oficiais de determinadas nações, quando o tema é a violência nos seus mais diversos formatos. Estamos, portanto, Angola, Brasil e Moçambique, entre os 25 países mais violentos do mundo com as maiores taxas de homicídio, inclusive, segundo a ONU (2012).
A realidade e a ficção ou a literatura e a história, como são de alguma maneira registros de um tempo, de um espaço e traz em si um desejo, seja o de verdade, seja o de denuncia, ou mesmo sem desejo algum, inicialmente intencionado. Isto porque, caberá ao leitor e/ou espectador assimilar onde determinados limites hão de se encontrar. Até onde se pode ir à interpretação ou relato de um acontecimento.
O certo é que na "concepção de história não se separava do registro de feitos individuais, ou familiares", como diria Antonio Candido (2006, p. 179). Logo, todo evento contém um pouco de verdade e de criação imaginária. Não há como dissociarmos isto.
Nos contos “Na noite do tic tac”, “Shirley Paixão” e “Os olhos dos mortos” podemos compreender, sentir e se sensibilizar com suas narrativas. As focalizações narrativas chamam a atenção para fatos sociais que se apresentam no cotidiano de muitos seres humanos neste grande planeta Terra e conduzem a um sentimento de revolta e inquietações, dadas as expressões de pobreza material e imaterial; de sobreposição daquele supostamente inferior; ausência auto reconhecimento e falta autoestima; insegurança no lar e fora dele; desejos de paz, amor, justiça e muitos outros; de lutas em favor da não-violência e pelo respeito à mulher, à criança e todos aqueles que deveriam receber carinho e atenção por parte de todos da sociedade.
BAKHTIN, Mikhail. (Voloshinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 10 ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
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Resumo: O presente trabalho tem por objetivo refletir a violência nas Literaturas de Língua Portuguesa e, mais precisamente, a de gênero presentes nos contos “Na noite do tic tac”, do escritor angolano Rosário Ngunza; “Shirley Paixão”, da brasileira Conceição Evaristo; e, “Os olhos dos mortos”, do moçambicano Mia Couto. A escolha do tema, dos contos e seus autores decorreram do fato da violência está diretamente representada nessas produções, constatando a premissa do desejo de ilustrar tal ato como uma condição extrema da humanidade e possível de reflexão por meio de narrativas curtas como as que submetemos nesta análise. Igualmente importante salientar, as ligações harmoniosas entre fatos, acontecimentos e ideias com o mundo imagético propiciado por estes contos. O desejo, portanto, é fomentar, uma discussão acerca do ficcional e do imaginário posto nas obras, mas também reconhecer seus graus de verossimilhanças para com a situação da violência de gênero na atualidade.
Palavras-chave: Estudos Comparados. Violência de gênero na literatura. Rosário Ngunza. Conceição Evaristo. Mia Couto.
Abstract: The present work aims to reflect the violence in the Portuguese Language Literatures and, more precisely, the genre present in the stories "Na noite do tic tac" by the angolan writer Rosário Ngunza; "Shirley Paixão", by the brazilian Conceição Evaristo; and, "Os olhos dos mortos" by mozambican Mia Couto. The choice of the theme, the stories and their authors stem from the fact that violence is directly represented in these productions, noting the premise of the desire to illustrate such an act as an extreme condition of humanity and possible reflection through short narratives such as those we submit in this analyze. Equally important, the harmonious connections between facts, events and ideas with the imaginary world provided by these tales. The desire, therefore, is to foster a discussion about the fictional and the imaginary put in the works, but also to recognize their degrees of likelihood for the current situation of gender violence.
Keywords: Comparative Studies. Gender violence in literature. Rosário Ngunza. Conceição Evaristo. Mia Couto.
1 Doutorando em Estudos Literários-UNEMAT. Mestre em Letras-UNIMAR; Mestre em Estudos Literários-UNIR. Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas-UnB; Psicopedagogia Institucional-UNICID; Educação Inclusiva-UNICID; Língua Portuguesa e Literatura Brasileira-FACEL; Linguística e Formação de Leitores- FACEL; Comunicação, Cultura Organizacional e Tecnologia-FACEL; Metodologia do Ensino em Língua Portuguesa, Literatura e Artes-FAVENI; Gestão do Trabalho Pedagógico (Administração, Inspeção, Orientação e Supervisão)-FAVENI; e, Ambiental e Geografia do Semiárido-IFRN. Habilitado para o Ensino de Língua Portuguesa-UNIFAP; Bacharel em Letras-LIBRAS-UFSC; Cursando Letras-Espanhol-FAEL; Membro da AINPGP - Associação Internacional de Pesquisa na Graduação em Pedagogia (Brasil); Membro da Red Iberoamericana de Docentes (Espanha); ANDEA - Associação Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem (Brasil); AJCS - Association des Jeunes Chercheurs en Sémiotique (França) e Red Federal de Poesía (Argentina). Atualmente é Professor do Magistério Superior das disciplinas de Língua Portuguesa e Linguística, lotado no Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.↩
2 O uso do termo gênero expressa todo um sistema de relações que inclui sexo, mas que transcende a diferença biológica. O termo sexo designa somente a caracterização genética e anátomo-fisiológica dos seres humanos. SCOTT (1994).↩
3 O termo diesege significa uma ação temporal que existe sempre que houver mudança de tempo, longa
ou curta, na estrutura narrativa. Diesege curta ocorre quando há um corte de um plano para outro e diesege longa, quando, de um plano para outro, a ação se passa em dias, meses ou anos. RODRIGUES (2002)↩