DA CENA DA IMPOSSIBILIDADE À IMAGEM DO IMPOSSÍVEL: O RISCO COMO PRÁTICA DA LETRA EM MARGUERITE DURAS

Marina Sereno1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
magorayeb@gmail.com

Anna Carolina Lo Bianco2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
aclobianco@uol.com.br

Escrever o impossível

Poderíamos nomear como um limite, como um encontro com o que é impossível de dizer, o que se evidencia de um novo tratamento da linguagem ao final do século XIX. Provavelmente, quando falamos desse momento inicial, é disso que se trata: um ponto limite da linguagem, aí onde não é mais possível apreender toda a significação, onde um significante não corresponde a um significado, onde a representação não se sustenta mais pela similaridade – no passo de Foucault (FOUCAULT, 2007, p. 23). No entanto, seguindo mais além, voltemos o olhar para o que Marguerite Duras traz como marca em sua escrita. O passo que ela pode dar a partir desse limite nos permite atravessar o nível do próprio limite e ler a dimensão de excesso, da presentificação disso que está perdido.
A força da ruptura se impõe imediatamente na afirmação da narradora de O Amante: “A história da minha vida não existe” (DURAS, 2007, p. 12). De saída, a dimensão da representação está em questão: como uma história que não existe pode ser contada? É precisamente essa impossibilidade que Duras escreve. Vemos surgir uma literatura que, para além de representar uma realidade e mais além do passo freudiano de fundar uma realidade psíquica, interroga as leis da representação.

O sujeito de que se trata na arte há muito não é mais aquele olho soberano capaz de ordenar a representação em regras mais ou menos fixas. Ele é outro: descentrado, não coincide mais com um centro organizador da representação. [...] [C]ontudo, uma vez abandonado seu lugar como origem inequívoca da representação, ele volta de fora da representação, como corpo real – o que reconfigura suas relações consigo próprio, com o objeto e com o espaço (RIVERA, 2013, p. 21).

Esse sujeito, ao se posicionar fora daquele lugar do eu que pode ver tudo, “perde seu lugar de direito para retornar como questão, em uma convocação direta do espectador” (RIVERA, 2013, p. 21). No momento em que não se trata mais de representar, é do lugar de leitores que somos convocados: será preciso ler, não apenas observar a história que é contada.3
A história, ora narrada em primeira pessoa, ora em terceira – num olhar exterior da narradora sobre si mesma –, tece-se por fragmentos, pedaços de memória desconexos. Não há linearidade, uma vez que cada pedaço de texto não é estritamente dependente do outro. Já diferente do texto de Proust, que talvez inaugure algo da realidade psíquica num fluxo maciço de associações, no qual cada cena abre um leque de outras cenas, o texto de Duras é apresentado assim, com intervalos abismais entre um fragmento e outro, muitas vezes desarticulados, com personagens não nomeados.
O tempo verbal varia constantemente: por vezes uma cena do passado vivido pela menina aparece no presente do indicativo, na força do acontecimento que se faz no mesmo momento em que é narrado: “Permitam-me dizer, tenho quinze anos e meio. Uma balsa desliza sobre o Mekong.” (DURAS, 2007, p. 10). Esses acontecimentos são materialmente imagéticos: se dão a ver, como num golpe do olhar, uma aparição; e subvertem, em cenas comuns, aquilo a que nossa visão está habituada. Destacaremos, aqui, um erro e algumas imagens que saltaram aos olhos no encontro com essa escrita.

Percebo que o desejo

há que se pagar um preço
pela tentativa risível
de erigir uma pessoa
sobre uma falha sísmica

Rita Isadora Pessoa

“Percebo que o desejo” (DURAS, 2007, p. 32). É a partir de um equívoco que começa esta leitura. Um engano permitido pela tradução, que a frase em sua forma original não permitiria1. Trata-se de uma frase que, sozinha, faz um parágrafo, entre dois outros. Essa frase, em sua solidão, lê-se interminável – percebo que: o desejo. O desejo assim, só, sem complemento, permanece vivo ao fim da frase, interrogando. A frase lateja como um enigma. Só depois olharemos o sentido contido no o como pronome oblíquo, objeto direto – percebo que desejo a ele – mas mesmo assim preferimos ficar com a frase fora do sentido, ali onde o desejo pulsa, um rasgo na página, entre dois parágrafos. Esse erro marca um encontro com a escrita de Marguerite Duras e mais, ainda, diz do lugar de um leitor em relação a ela. Diz de um “rumo imprevisto” (DURAS, 2007, p. 9) ao qual é preciso se colocar em risco para que se possa sustentar um “esforço de olhar” (DURAS, 2007, p. 39) na direção dessa escrita. Esforço de olhar será aqui poder ler. E ler será ler outra coisa.
Na narrativa de O amante, podemos dizer, é mesmo de um rumo imprevisto que se trata a cada instante, seja no ato de tornar comum uma “história de ruína e de morte” ou mesmo na construção de um rosto para a narradora. Só é possível fazer corpo, fazer história, a partir da ruína, da “destruição da matéria”: os contornos se mantêm ali onde o conteúdo está apagado. “Um rosto destruído” é o mais próximo que se pode desenhar de uma imagem.
No rumo do imprevisto, as imagens têm um lugar diferente do que talvez pudéssemos chamar de cena. Há a grande cena, um enredo, personagens que compõem a estrutura de um romance. No fundo, um romance familiar, a própria história de ruína e de morte que é a dessa família. Mas é de encontro às imagens que o leitor é lançado. É preciso atentar para o fato de que essa imagem que encontramos aqui coloca em questão o que na psicanálise se entende por uma imagem referente ao registro imaginário – a que vela, que faz anteparo ao real.
A especificidade dessas imagens consiste na própria inconsistência delas. Diferente da cena, “conjunto do que se oferece à vista”, do que é representável dessa história, as imagens que permeiam o livro fazem furo nas páginas, no sentido, no texto. E, no entanto, apostaremos que as próprias imagens em sua inconsistência, nessa condição de furo, fazem escrita.

Freud faz da reprodução mnêmica uma construção que encobre a verdade, mas de alguma maneira a deixa entrever, e pode portanto ser perscrutada em uma tentativa de desvelamento. Com isso, ele acentua a distância entre vivência e representação. A imagem é obstáculo, véu sobre a trama, e podemos chamá-la, nessa vertente, de imagem- muro. Mas por entre sua trama, em suas lacunas, encontra-se, in-visível, um acontecimento terrível – em sua vertente, digamos, de imagem-furo (RIVERA, 2013, p. 52).

A ideia de imagem-furo nos será cara, servindo como uma chave de leitura para as imagens durasianas. Ela nos aparece, aliás, como uma abertura por onde poderíamos avançar com a psicanálise – cujo registro imaginário, em Lacan, se articula como véu, como preenchimento da distância entre real e simbólico. Essa imagem surge aqui como algo novo, diferente de um limite do que se pode ver, um ponto opaco, mas como janela para o real, furo por onde se olha.
Rivera (2013) faz ainda uma importante inflexão na leitura de Freud, a partir da formulação do sonho como “realização de desejo”, Wunscherfüllung. No mesmo lugar em que o sonho, imagem pictórica, põe em cena e realiza o desejo inconsciente, a autora aponta para outro sentido do verbo erfüllen: aparecer. “O sonho consiste em uma realização de desejo na medida em que ele torna visual – faz aparecer – o desejo. Talvez se possa generalizar a fórmula e afirmar que a imagem é um trabalho que faz aparecer o desejo.” (RIVERA, 2013, p. 58).
Essa formulação, consequência da formulação freudiana, não parece nada óbvia quando estamos trabalhando com a teoria psicanalítica, e parece que pode nos aproximar das imagens de Duras, permitindo um importante reposicionamento no encontro com sua escrita.

Em volta da balsa, o rio

É do acontecimento terrível que Duras parte. As imagens também, como a cena, se oferecem à vista, mas não fazem conjunto. Não há um conjunto de imagens, uma série que formaria uma totalidade. Elas insistem e fazem resistência, no texto, a um sentido. Fazem corte na cena. “Em volta da balsa, o rio” (DURAS, 2007, p. 21) – numa frase, a subversão do olhar: aí onde poderíamos ver uma balsa sobre um rio, temos o inesperado encontro com a imagem de um rio que dá contorno à balsa, esse buraco na paisagem, onde se inaugura toda a memória.
É pela imagem fundadora do romance, que localiza o encontro da menina com o amante, na balsa sobre o rio, que poderemos começar a pontuar algo da abertura em questão. Esta imagem – a travessia da menina, aos quinze anos, pelo rio Mekong – porta um vazio, diz a narradora:

Poderia ter existido, poderiam ter tirado uma foto, como qualquer outra, em outro lugar, em outras circunstâncias. Mas não tiraram. O objeto era miúdo demais para tanto. Ela só poderia ter sido tirada se fosse possível prever a importância daquele acontecimento em minha vida, aquela travessia do rio. Ora, enquanto esta ocorria, até mesmo sua existência era ainda ignorada. Só Deus a conhecia. É por isso que essa imagem, e não podia ser de outra forma, não existe. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, subtraída ao conjunto. É a essa falta de ter sido registrada que ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamente a sua autora (DURAS, 2007, p. 13).

A construção é erigida diante de nossos olhos, não com cenas consistentes que fazem unidade e preenchem os espaços vazios, mas precisamente com imagens que faltam, que estão perdidas, que não existem em nenhum registro. Assim se tece o texto, sempre no impacto da perda. Toda a narrativa porta o paradoxo de só ser possível enquanto inexistente, construída a partir dessa imagem que teria existido, se alguém pudesse registrar.
Foucault nomeará esse efeito Duras de “memória sem lembrança”: “uma memória que não passa de uma espécie de bruma, remetendo perpetuamente à memória, uma memória sobre a memória, e cada memória apagando qualquer lembrança” (FOUCAULT, 2001, p. 357): as marcas da memória se apresentam, mas o conteúdo da lembrança está esvaziado. Como não nos remetermos, de imediato, ao mecanismo psíquico do esquecimento, onde “o tema suprimido se esforça de todas as maneiras possíveis por estabelecer um vínculo com o que não é suprimido”? (FREUD, 2006, p. 278).
Freud discorre, a partir de um relato próprio, sobre os elementos em jogo no esquecimento, comum não apenas em casos patológicos, mas na vida cotidiana. Ele conta que, em viagem para a Herzegovina, ao falar de um pintor para um amigo, não pôde lembrar o nome do artista em questão – e aponta para a relação que esse nome mantinha, para ele, com temas relativos à morte e à sexualidade: “A influência que tornara o nome Signorelli inacessível à memória, ou, como costumo dizer, aquilo que o ‘recalcara’, só podia proceder da história que eu havia suprimido sobre o valor atribuído à morte e ao gozo sexual” (FREUD, 2006, p. 277).
Conclui que todos os temas que estavam em questão nessa viagem – bem como a obra do artista cujo nome foi suprimido – estavam ligados ao caso de um paciente que havia se suicidado recentemente. O ponto que Freud destaca, para além do limite das lembranças encobridoras, é o da impossibilidade, daquilo que não se pode dizer; o que não há de assimilável na morte e na sexualidade.
A subversão de Duras, a diferença em seu movimento é, a partir do que foi perdido, fazer imagem. No texto também temos acesso a fragmentos – como os pedaços do nome esquecido encontrados por Freud. No entanto, já esses restos só podem estar ali por terem sido tecidos em torno dessas imagens-furo, dando contorno a elas, como o rio que resta em volta da balsa. Com o que não pode ser contado, ela escreve: escreve o impossível, afirmando que uma história que não existe pode sim ser contada, mas na condição de que se mantenha em perda.

Escapar à lei do erro

Você pergunta como o sentimento de amar poderia sobrevir.
Ela lhe responde: Talvez de uma falha súbita na lógica do universo.
Ela diz: Por exemplo, de um erro. Ela diz: jamais de um querer.

Marguerite Duras

Aqui o amor, no mesmo ponto em que é terrível – e impossível –, aparece como uma espécie de recurso à condição de total aridez. O amante, um jovem chinês de família nobre, é “um homem que tem medo” e, portanto, “deve fazer muito amor para lutar contra o medo”; a jovem narradora, que já perdeu tudo, carrega a marca de que, após o seu primeiro amante, “amaria o amor” (DURAS, 2007, p. 34). Assume, então, o lugar que lhe é devido, e ama. É a única alternativa diante da proximidade com o mal que está “ali, à porta, contra a pele” (DURAS, 2007, p. 47-48).
Se n’A doença da morte, o amor só pode sobrevir de “uma falha súbita na lógica”
(DURAS, 2007, p. 81), na afirmação de um erro, em O amante, é também a lei do erro – que pressupõe que haja o certo – a origem de todo o medo. É preciso escapar à lei do erro (DURAS, 2007, p. 20), subvertê-la para poder amar: “encontrar forças para amar além do medo” (DURAS, 2007, p. 39). Esse amor não torna a história mais leve, consistente ou romântica, pois não se trata de querer, mas de desejo. O desejo opera reposicionando a narradora na cena do primeiro encontro com o amante, a princípio narrada em terceira pessoa, numa narrativa árida, em que “ela” participa como que de fora:

Não tem um sentimento muito definido, não sente ódio nem repugnância, então sem dúvida ali já existe desejo. Ela desconhece o desejo. Concordou em vir quando ele a convidou na tarde anterior. Está onde deve estar, deslocada.
[...] Ela não o olha no rosto. Não o olha. Ela o toca. Toca a suavidade do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a desconhecida novidade. Ele geme, chora. Sente um amor abominável.
E chorando ele faz (DURAS, 2007, p. 30-32).

Em seguida, junto à formulação que destacamos, “percebo que o desejo”, um corte para a cena narrada em primeira pessoa, onde aparece o olhar:

Eu me pergunto como tive a força de enfrentar a proibição posta por minha mãe. Com essa calma, essa determinação.
[...] Nos olhamos. Ele abraça meu corpo. Me pergunta por que vim. Digo que devia vir, que era como uma obrigação.
[...] Percebo que o desejo.
[...] Ele me chama de puta, de nojenta, diz que sou seu único amor, e é isso o que ele deve dizer e é isso que se diz quando se deixa o dizer acontecer, quando se deixa o corpo fazer e buscar e encontrar e tomar o que quer, e aí tudo é bom, não há restos, os restos são recobertos, tudo arrastado pela torrente, pela força do desejo (DURAS, 2007, p. 32-34).

Como escapar à lei do erro, e o que isso pode acrescentar para nós, que lemos com a psicanálise? No traço da letra de Duras, o desejo aparece como a única via que
subverte essa lei. A operação do desejo é fazer deslocamento da posição da interdição e do medo para a afirmação, de onde se pode tomar a palavra e narrar.

Prática da letra, uso do inconsciente

A literatura ganha lugar fundamental na construção da teoria freudiana, sendo a ela que Freud muitas vezes recorre para poder dizer do funcionamento psíquico. Lacan levará esse posicionamento às últimas consequências, extraindo da própria estrutura do texto literário o que também opera na psicanálise. É a partir da leitura de O arrebatamento de Lol V. Stein, de Marguerite Duras, que ele formula a frase que tomamos como questão fundamental. Que se possa dar testemunho de que “a prática da letra converge com o uso do inconsciente” (LACAN, 2001, p. 200), não nos parece muito esclarecedor a princípio. No que essa operação que identificamos como própria ao leitor pode nos esclarecer neste ponto?
A psicanálise está articulada de maneira muito particular ao saber que ela produz – que desde o início vem marcado por um ponto de opacidade, o inconsciente. Em seu seminário a respeito do ato psicanalítico, para transmitir algo sobre essa relação da prática com o saber, Lacan (1968) coloca em questão a produção de conhecimento e nos fala então de três formas de mathesis5, em três tempos: ler, escrever e perder. Esses três pontos nos chamam atenção, uma vez que estamos aqui tratando de como a literatura pode abrir caminho para pensarmos a psicanálise e falando precisamente de uma perda que está colocada para os dois campos.
Partindo do lugar-comum, poderíamos definir “ler”, imediatamente, como o lugar de um leitor que tem à sua frente um objeto. Tendo acesso a esse objeto, seria possível ler e adquirir conhecimento. No entanto, o que encontramos na prática – o que inaugura a nossa questão – é uma posição inteiramente diferente dessa. Talvez possamos afirmar que esse primeiro nível de apreensão do conhecimento seja próprio à escrita literária, se pudermos assumir esta outra postura, menos óbvia, em relação ao que é ler (GUTIÉRREZ, 2012, p. 56).
Falamos do encontro surpreendente com uma escrita em que não parece possível adquirir conhecimento algum; o leitor então assume o paradoxal lugar de objeto que, apesar de não ser nada óbvio, não parece tão distante se pensamos na maneira com que a escrita de Duras nos toma, nos lê. Rivera (2013) chama atenção para esse abalo dos conceitos produzido pela arte, propondo abrir mão da “tradicional diferenciação complementar entre sujeito e objeto”:

para poder espiar entre eles uma certa vertigem, uma fabulosa e perigosa oscilação. Não se trata de tornar-se outro como em um jogo de espelhos, sem restos e de forma inócua, numa complementar troca de papéis. Trata-se, para o sujeito, de assumir, por um breve instante quase insuportável, sua condição de quase-objeto, e com isso ver-se quase- sujeito: não propriamente sujeito de seus atos, mas assujeitado a eles. Paradoxalmente, ao assumir diante do outro sua condição de objeto – ao se assujeitar – pode-se engatar a posição de sujeito (e desejar, ou seja, reafirmar seu apetite do objeto) (RIVERA, 2013, p. 25).

Com esse olhar em vertigem podemos pensar com mais precisão que posição de leitura é essa de que estamos tratando, aí onde sujeito e objeto não são lugares complementares em oposição, mas participam, numa relação moebiana6– em que não há dentro e fora – da “subversão de nosso espaço comum de representação” (RIVERA, 2013, p. 158). Quando falamos de algo que subverte a noção comum de representação da realidade, estamos falando de poder “interrogar a própria natureza do real” (NAVAS, 2017, p. 18).
Lacan faz uma aproximação entre Freud e Champollion, quando afirma que ambos assumem uma nova maneira de ler ao suporem que “há texto e que o texto contém uma mensagem a que se pode aceder via leitura” (COSTA-MOURA, 2010). Tanto um, com a aposta de que há inconsciente, quanto o outro, que aposta na possibilidade de ler os textos hieroglíficos, estariam operando uma leitura que em si já questiona a ideia da representação. Fora da lógica da representação pela similaridade, é possível, então, ler outra coisa, como faz Champollion ao demonstrar que os hieróglifos
não se tratavam apenas de símbolos, numa correspondência icônica (COSTA-MOURA, 2010):

[ele] pôde conferir aos sinais da escrita hieroglífica valores de “ideogramas” [...] e, mais que isso, de “fonogramas”, ou seja: a utilização de coisas, ou, mais precisamente, suas imagens correspondentes, para representar “sons” e não as coisas mesmas. [...] Champollion pode finalmente “ler” os nomes de Ptolomeu e Cleópatra ali onde outros só “viram” o abutre ou o touro, como ícones (representação de algo por direta similaridade). (COSTA-MOURA, 2010).

É também esse o movimento de Freud, ao propor que as formações do inconsciente são feitas de imagens e apostar que essas imagens podem ser fragmentadas e lidas – como no caso do sonho e do esquecimento –, mas com a particularidade de que o texto produzido pelo inconsciente está fora do registro da consciência (COSTA- MOURA, 2010). É dessa leitura que vemos surgir o sujeito:

Quando eu leio o que o inconsciente dispõe, isso não está no almanaque. Não significa dizer que possuo um código que me possibilite explicar o lapso, o chiste... Por sua própria estrutura um lapso não pode ser explicado pois a perda que ele descortina e que caracteriza sua experiência não se pode escrever. Não há como de um lapso, fazer ciência, não há cartilha do que ali se lê. Pois dessa leitura é o sujeito que advém como efeito. (COSTA-MOURA, 2010).

Num segundo nível da apreensão do conhecimento temos então a escrita, e vemos aparecer algo que causa estranhamento. Lacan tomará “escrever” como a maneira mais próxima à produção de conhecimento da ciência, “no sentido de que a operação dela encontra-se baseada numa escrita que constitui uma formalização da linguagem”, que “se caracteriza pela redução do significante à letra” (GUTIÉRREZ, 2012, p. 52). A letra, na dimensão de letra da ciência, opera uma escrita, mas surpreende não vermos aí Lacan falar em uma “prática da letra”, o que pode nos fazer incluir neste ponto uma interrogação, se estamos justamente investigando de que trata a prática da letra.
Não se trata, então, de escrita literária, que por sua vez “se apoia na palavra” (GUTIÉRREZ, 2012, p. 52), mas daquela que escreve o que já está no mundo, porém não formalizado, que impõe o avanço sem retorno; funções, portanto, de foracluir o sujeito.
Essa operação de foraclusão realizada pela escrita científica produzirá um real ordenado, matematizado, em que qualquer dado referente ao sujeito é elidido. A operação consiste precisamente no apagamento da dimensão do equívoco. “Sem esta dimensão – sem o encadeamento significante que a produza – a possibilidade do sujeito emergir é eliminada” (GUTIÉRREZ, 2012, p. 55). Estamos, assim, diante de uma escrita que “não cessa de se escrever” (LACAN apud GUTIÉRREZ, 2012, p. 56): essas fórmulas operam sem cessar uma escrita sempre idêntica. Há, necessariamente, algo que sobra dessa escrita, o que nos permite afirmar que ela não escreve tudo, é preciso deixar isso de lado (COSTA-MOURA, 2010):

para que a ciência transpusesse os limites do mundo fechado nos confrontando ao universo infinito da precisão, foi necessário que a matematização pudesse ordenar o real, fazendo a natureza aparecer escrita em caracteres matemáticos [...]. Expulsando do real todo dado sensível, toda diversidade que seja irredutível como tal, a matematização estabelece, por sua rede, um real que prescinde da semântica e cujos problemas e impasses – longe de convocarem o ato do sujeito para seu desdobramento – podem ser remetidos ao jogo sintático próprio ao cálculo e da escrita (COSTA-MOURA, 2010).

Essa escrita, então, a exemplo do cálculo, é a própria formalização que torna possível trabalhar no nível da precisão, e não mais de um conhecimento aproximado. Ela só pode operar na medida em que se estrutura como linguagem a premissa de que a natureza possa ser reduzida a uma rede de cálculo. É um esforço de apreensão para que não haja restos e que, no entanto, fracassa no momento mesmo em que se funda: na medida em que é preciso deixar de fora a marca do inapreensível, já está localizado aí algo que não se escreve, um ponto de perda no saber.
Enquanto isso, “o real colocado pela escrita literária se aproximaria mais àquilo que ‘não cessa de não se escrever’ (o impossível)” (GUTIÉRREZ, 2012, p. 56). Entre a escrita da ciência e a literária vemos duas formas de real com características opostas. O fazer artístico da literatura não consiste na produção de um real qualquer, “mas de uma escrita que aponta para o real como impossível”. Temos notícias, ainda, de “uma escrita que traz a impossibilidade impregnada nas entrelinhas”. Nossa aposta é que a escrita de Duras nos confronta neste ponto com uma inflexão: faz-se necessário distinguir o impossível da impossibilidade. Ali vemos, sem dúvida, a operação do que “não cessa de não se escrever” – ao passo que escreve. Trata-se menos do que não pode ser escrito, e mais do que é preciso que se escreva, se escreva, novamente, cada escrita riscando a anterior, apagando, escrevendo por cima. Essa aposta nos remete à terceira forma de apreensão do conhecimento.
A terceira forma de conhecimento, que Lacan identifica como sendo a mais próxima da psicanálise, é nada menos que perder. Essa afirmação é fundamental, pois implica que este saber a que a psicanálise está referida é marcado, de saída, por uma impossibilidade – não se trata de adquirir, de apreender. É com aquilo que se perde que se pode produzir conhecimento. Isso toma alguma forma quando pensamos, em contraposição, na inovação tecnológica que, diferente do movimento da psicanálise, não comporta o novo, mas se faz pela repetição de um mesmo caractere ao infinito7. Trata-se, neste caso, da inscrição da letra na ciência, uma vez que todo avanço já está deduzido na operação que o cálculo permite; não há surpresa.
Mesmo nesse ponto em que Lacan privilegia a discussão aberta com o conceito de letra não aparece nenhuma alusão à prática da letra que buscamos. A questão salta aos olhos: esta operação que se faz com a letra na ciência não pode ser definida, então, como uma prática da letra? Falar de letra e escrita na literatura seria, portanto, falar de uma outra maneira de operar com a letra, como acabamos de perceber.
Tratando da literatura de Duras, obviamente não estamos falando de uma escrita que escreve tudo, que pode dizer tudo, uma vez que já se está fora do regime da representação. No entanto, falamos de escrever o impossível, e é fundamental que essas duas posições não se confundam – afirmamos que há um passo além da dimensão do limite, do ponto de impedimento, e que aí não parece se tratar só de uma escrita que não pode escrever tudo, que chega até o ponto em que algo se perde. Falar em escrever o impossível não é o mesmo que afirmar que é possível escrever tudo. Novamente parece que, numa prática da letra, não é tanto a essa perda que se chega, mas é da perda que se parte.
Se o sujeito é o que resta como efeito da própria perda na escrita da ciência, na literatura esse ponto de perda é o começo, Duras afirmará. O interessante, aqui, é que o diga tirando consequências do que escuta na homenagem de Lacan: que “ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe” (DURAS, 1994, p. 19). Lacan teria ignorado que a catástrofe é o próprio fundamento dessa escrita?
Este ponto de perda nos coloca frente a um limite entre literatura e psicanálise? Ou estaria aí a diferença entre uma prática da letra – esta que converge com o uso do inconsciente – e a operação com a letra na ciência? “A partir do momento em que se está perdido e não se tem mais o que escrever, mais o que perder, é aí que se escreve.” (DURAS, 1994, p. 21):

Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve.
É o desconhecido que trazemos conosco: escrever, é isto o que se alcança. Isto ou nada. (DURAS, 1994, p. 47)

Dessa posição, partindo do impossível, a única possibilidade é ver surgir o novo. Há, certamente, um traço que se repete, disso que é a própria perda, e é preciso construir uma imagem que possa dar lugar, dar a ver essa perda – já nessa repetição, encontra-se a diferença. Seria a perda essa marca? A própria letra, ali, presente, marcando sempre a perda como ponto de partida? Poderíamos apostar numa prática da letra como uma prática que produz algo novo partindo da perda?

Litura: terra de rasura

Apontando uma saída para o ponto de perda em que nos encontramos e delimitando um pouco o que construímos até aqui, poderemos pensar que com a representação em queda se coloca, na arte e na psicanálise, um “regime da legibilidade” em contraposição a um “regime da interpretabilidade”, como sugere Branco (2007). Isso nos permite precisar a dimensão da leitura – aí onde o leitor não está inteiramente como sujeito e nem só como objeto, mas se encontra na tensão entre essas duas posições.

E a legibilidade não implica, necessariamente, o deciframento completo, a leitura até o fim. A legibilidade, grande parte das vezes, esbarrará forçosamente no ponto de irredutibilidade da letra, implicando, antes, a escriptibilidade. Diante do que já não se dá a ler, talvez só seja possível escrever. Lembremo-nos de Lacan que, no posfácio do Seminário 11, dirá: “um escrito, a meu ver, é feito para não se ler” (BRANCO, 2007. p. 131).

Mais além disso, podemos apostar, com Duras, que um escrito é feito para se ler outra coisa – “implica a perda de um lugar interpretativo” (TROCOLI, 2016). Há uma diferença colocada, e talvez possamos, com esse ponto de alteridade, avançar aí com a psicanálise. Diante do ilegível, colocado em cena pela prática de uma escrita que se faz com o impossível, manter vivo o ponto de opacidade para, a partir dele, criar uma imagem. Não mais a imagem representativa, espelhada, com a qual se corresponde; mas uma imagem com uso de letra. “Essa é a astúcia fundamental que está no centro da invenção da escrita: a morte da imagem como representação da realidade e sua utilização exclusivamente pelo valor fonético ou de letra” (MACHADO apud BRANCO, 2007, p. 131).
Entremos na terra de rasura, lituraterra, onde tentaremos desenhar essa imagem para a letra. Se a fronteira separa dois territórios da mesma natureza, iguais para quem a transpõe, o litoral, por outro lado, distingue campos que não têm continuidade entre si. Lacan é tocado pela imagem de litoral que vê do alto do avião nas planícies siberianas, e aí talvez haja uma clareza no limite entre água e terra. Mas se o referencial é o chão, ambos se misturam. Litoral é a relação entre literatura e psicanálise e também a função da letra: entre dois campos “estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos” (LACAN, 2003, p. 18). É fundamental que o litoral não conte com a fixidez da fronteira: ele é móvel – apesar de os materiais que compõem os dois campos serem completamente diferentes, eles se tocam, sobrepõem-se e se misturam. Só há trabalho possível no atrito entre os campos – não haverá, portanto, equivalência.
É então na sobreposição dos radicais litus – borda, beira, costa, margem (REGO, C. 2006, p. 208), e litura, “parte ilegível de um escrito (por efeito de rasura)” (HOUAISS, A; VILLAR, M. 2001, p. 277) – que se faz terra. No campo da letra, por efeito de rasura, trata-se de outro fazer, que atravessa o significante e a significação. É a partir de um risco que se pode fazer outra coisa, Lacan apostará: “que a literatura talvez vire em lituraterra” (2001, p. 20), quando não estiver reduzida a uma pura “acomodação de restos” da cultura, e podemos ler essa acomodação como a suposição de que escrever se trataria de transcrever, de acomodar no papel o que a cultura oferece.
Mas é, certamente, com os restos que se pode fazer alguma escrita, se é no deslizamento de letter (letra, carta) para litter (lixo) que o psicanalista localiza a letra. Que não se trate, portanto, de restos acomodados, não é o mesmo que negar que se trate de restos. Como vimos, é com isso que resta de um movimento em direção à certeza que os dois campos irão trabalhar. No entanto, sem acomodá-los, mas expondo-os, causando o incômodo de trazer à tona e devolver o lixo produzido.
É, então, uma dimensão muito precisa que o campo da letra abre. O movimento que estamos fazendo aqui é de bordejar, identificar o que pode ser essa terra de rasura, fazer balizas, marcar pontos em que possamos nos localizar. Numa breve retomada ao Seminário sobre a carta roubada8, em que Lacan extrai pontos fundamentais do conto de Poe, ele afirma algo que nos interessa: que o conto se sustenta sem nenhuma referência ao conteúdo da carta/letra. Não é, portanto, da significação da mensagem que se trata na dimensão da letra, mas, precisamente, do que faz furo na cena. O que importa a Lacan no conto, como sabemos, é a posição da carta na cena, seus deslocamentos e os efeitos dela sobre quem a detém.
Este furo produzido pela carta mostra algo do fracasso, algo que a psicanálise deve escutar. Lacan (1971) invoca a literatura para “demonstrar onde ela faz furo”. Assumindo esse lugar na relação com a literatura, a psicanálise pode enfim “justificar sua intrusão”: no que distingue verdade de saber, ganha aí uma função – fazer essa diferença implica em desnaturalizar a equivalência entre os dois termos. A crítica aqui se endereça a uma crítica literária que “reconhece seu ofício” na busca pela verdade do autor, mas que só poderia se renovar se fosse também atravessada por um “saber em fracasso” – que, afirma Lacan, “não é o fracasso do saber” (LACAN, 2003, p. 18). Um saber em fracasso não é a mesma coisa que o fracasso do saber, mas qual é a diferença?
É ao pé da letra que poderemos ler essa diferença, uma vez que ela desenha “a borda do furo no saber”. Um saber com furo, onde se mantém um enigma; na luz, se percebe o opaco. É função da letra desenhar a borda. O que implica que a letra propriamente seja diferente da borda: é uma operação com a letra que permite o
desenho. Desenhar uma borda seria poder ver o furo? Se pensamos no vazio de um furo, sem a borda, não há furo. Bordejá-lo, dar a ele um contorno, é um movimento que inaugura o próprio furo, que o faz existir como furo. No entanto, se falamos da letra numa dimensão de litoral, essa borda não pareceria consistente demais (talvez mais próxima da natureza da fronteira)?
Ocorre a imagem de um abismo. Tendo como referência uma posição desde a beira, pode-se olhar o furo, sem, no entanto, saber muito sobre sua borda. Para vê-la, é preciso percorrê-la e a cada passo em que ela se desenha, também se perde. Essa imagem traz a proposta de um desenho que precisa ser sempre refeito para que se veja e, mais ainda, se faça algo dessa borda. Um risco que se sobrepõe ao outro a cada vez apagando o risco anterior. “Rasura de traço algum que seja anterior, é isso que do litoral faz terra.” (LACAN, 2003, p. 21):

Rasuro, logo não é isso. [...] Rasurador – efeito da escuta de um dizer outro no meu dito. Rasurada – quando tomo por tarefa alçar aquilo que Paulo Fonseca Andrade nomeou de “fracasso da reconstituição” à dimensão de prática da letra para dar a ouvir a voz da extravagância (TROCOLI, 2016, p. 54-55).

O fracasso da reconstituição a que nos referimos aqui diz respeito ao fracasso do narrador Jacques Hold ao reconstituir a história de Lol V. Stein. No entanto, é assim mesmo, sobre o próprio fracasso, que a história se monta, como colagem de imagens e relatos entreouvidos, no movimento de “dizer sem retê-la, deixando tudo escapar para, nessa perda, narrar” (TROCOLI, 2016, p. 60).
Podemos, também em O amante, ver o fracasso da reconstituição se afirmar e operar como prática da letra? É já em fracasso que a reconstituição se apresenta, a partir do momento em que a história de uma vida não existe. A voz narrativa está deslocada aí também, pois a voz do eu não sustenta a inexistência dessa história. Nessa narrativa vemos um deslocamento do eu ao ela, talvez não tanto a confusão de vozes que desnivela o Arrebatamento, mas ainda assim, voz da extravagância, efeito de rasura, ali onde lemos um dizer outro:

São essas duas voltas da linguagem [o fracasso da reconstituição e a pura extravagância] que, mais tarde, me permitirão colocar em questão aquilo que Lacan testemunhou como convergência entre a prática da letra e o uso do inconsciente. Em outras palavras, a hipótese é de que essa pura extravagância não pode ser toda apreendida pelas leis, ou pelas formações, do inconsciente em seu fundamento fálico e, por isso, a ênfase precisa se deslocar para o uso, para diferir de lei e de formação (TROCOLI, 2016, p. 55).

Temos, então, que as formações do inconsciente estão regidas pelas leis do significante que operam de acordo com a lógica fálica e o complexo de castração – ambos marcas da impossibilidade. De fato, não é de se ignorar que Lacan escolha falar de “uso do inconsciente”, como aponta Trocoli, apostando numa posição de diferenciação das “leis” e “formações” do inconsciente a que estamos mais habituados.

O que inscrevi, com a ajuda de letras, sobre as formações do inconsciente, para recuperá- las de como Freud as formula, por serem o que são, efeitos de significante, não autoriza a fazer da letra um significante, nem a lhe atribuir, ainda por cima, uma primazia em relação ao significante (LACAN, 2003, p. 19).

O próprio Lacan faz essa diferença, afirmando que a letra não é “primária”, anterior, portanto não estaria na origem do significante. Aqui, ainda com Trocoli (2016), seguindo a construção de Lacan ao afirmar que “o inconsciente é inteiramente redutível a um saber” – que podemos localizar, justamente, nas leis do significante, “o que supõe o fato de ele poder ser interpretado” (LACAN, 2003, p. 127) – encontramos que, do lado de Marguerite Duras, ao contrário, “não há redutibilidade, nem interpretação. Há desfazer e fazer com – portanto, uso?” (TROCOLI, 2016, p. 60). Nesse fio, chegamos ao ponto da diferença: o inconsciente, mesmo que se trate de um saber em fracasso, um saber que se produz com alguma perda, pode, ainda assim, ser redutível a um saber. Do lado de uma prática da letra, onde se pode fazer uso do inconsciente – e de certa forma escapar às suas leis –, não é possível interpretar, construir um saber?

é certo que do lado do relator, Jacques Hold, em sua tentativa de reconstituição há saber, há narrativa, há substituição e deslocamento, no entanto, naquilo que a voz de Lol dá a ouvir em sua pura exceção, em sua pura exterioridade, o que se precisa justamente é colocar em suspensão o inconsciente, suas formações e interpretações. Da memória de Lol, não há vestígios. Não há interpretação. (TROCOLI, 2016, p. 63).

Em O amante há algum vestígio: ainda que não exista história a se contar, há imagens da perda dessa memória. Há a imagem vazia onde começa a história, aquela que existiria se tivesse sido registrada, traço que se faz e se desfaz em torno do vazio. A prática da letra, feito “rasura de traço algum que seja anterior”, aí opera, fazendo ecoar a exceção e o excesso numa convergência onde se pode produzir imagem, fazer do inconsciente algum outro uso. Imagem furada, falha sísmica que sustenta uma história que pode ser contada ainda que não exista uma narrativa inteira – e inteiramente despedaçada. Imagem que faz aparecer, que convoca o olhar.
É certo que numa prática da letra no uso literário – que contrapomos ao uso da letra pela ciência – é também de uma precisão que se trata. Dizer que a prática da letra é própria à literatura não é afirmar que seja algo que escapa à precisão, que seja um uso aproximativo. Como vimos em Duras, a imagem criada é de uma precisão finíssima, no ponto mesmo da subversão do olhar, uma precisão que dá a ver o impossível.
Assumindo o risco de ler outra coisa, ali onde encontramos com algo ilegível, o que se perde é a noção de poder – ler Duras só é possível se o poder estiver na condição de queda. Que no poder se leia o verbo. Não se pode, pois não se detém o poder sobre essa história. E se lê.
No ponto de um gozo árido e mortífero, a narradora se encontra submissa ao romance familiar, impossibilitada, sem recursos. O radical é que nesse mesmo ponto em que é terrível, aí mesmo onde está a morte, encontra o que causa a vida. Com o recurso à pura extravagância do encontro – atravessado pelo horror – com o amante chinês, transpõe-se o lugar do gozo solitário e mortificante para um gozo no sexual, que inclui a diferença radical, que produz um corte da cena imaginária da família, da impotência, da aridez, para uma chance de gozar desse corpo, com outro corpo: gozo mortífero, mas articulado ao prazer.
No que essa prática que aqui desenhamos pode nos ajudar a avançar? Vimos que a prática da letra implica um fazer que insiste naquilo que não é possível reconstituir. Com a psicanálise, que não se dissocia da clínica, alguma medida do fracasso da reconstituição também está sempre colocada. Badiou traz a lógica da transposição – retirada da poética de Mallarmé – para propor uma “estética da cura analítica”. Essa operação nada tem de natural ou espontânea e, como afirma o autor, a análise é uma situação “tão artificial quanto um poema” (BADIOU, 2002, p. 240), o que permite fazer a aproximação.

Creio que podemos chamar de psicologia a ideia de que há uma reparação natural da perda. E creio podermos chamar de psicanálise a ideia de que toda vitória sobre a perda supõe a construção de uma situação artificial. E é também por isso que há uma estética da cura analítica, como há uma estética do soneto, porque conseguir uma vitória sobre a perda exige a criação de uma forma (BADIOU, 2002, p. 240).

A transposição, como operação poética, consistiria num atravessamento da impotência para o impossível. Se pensarmos na condição de uma análise, fazer um deslocamento da posição de sujeito impotente diante de um conflito para assumir uma relação com o impossível do desejo. Badiou sustenta que, num poema, haveria o apagamento da subjetividade e do imaginário do poeta para que possa advir o “sujeito puro”, real (BADIOU, 2002, p. 241). Aposta que, se a análise pode se aproximar dessa operação, é nessa assunção do sujeito. Manteremos alguns passos atrás quanto a essa posição de leitura, pois apostar numa possível pureza do sujeito, mesmo que se fale em apagamento do ser, parece implicar alguma consistência que ainda não poderemos localizar muito bem – mas Badiou nos oferece, ainda assim, um olhar que pode ser interessante.
O que defendemos aqui coloca uma diferença: que Duras já parte do impossível. A narrativa da história inexistente não apresenta pontos em que se fica preso à impotência, ao conflito. O começo é: não se pode. Não existe. E é daí mesmo que se faz. Não há vacilação diante da impotência. Há a presença de horror do impossível. Talvez, então, não se trate de uma “vitória” sobre a perda, mas da rasura propriamente, do risco que não cessa de se fazer em torno desse vazio, de ler sempre outra coisa – a ideia da “criação de uma forma” nos é muito cara, portanto. É em forma de imagem que Marguerite Duras escreve com esse impossível.

Escrever apesar do desespero. Não: com o desespero. Que desespero, eu não sei, não sei o nome disso. Escrever ao lado daquilo que precede o escrito é sempre estragá-lo. E é preciso no entanto aceitar isto: estragar o fracasso significa retornar para um outro livro, para um outro possível deste mesmo livro. (DURAS, 1994, p. 27)

Com o desespero, impossível de nomear, Duras faz a extravagância de escrever. Nós fazemos a extravagância de ler. “Estragar o fracasso” permite dizer com mais precisão de que trata a rasura. Escapar à lei do erro, afirmar o erro como posição de leitura para que se possa ler outra coisa, fora do que está impresso.
Estragar o fracasso não será negar o fracasso, mas inventar para o fracasso um uso de começo, de ponto de partida. É também estragar o escrito, riscá-lo, despir-se de poder para poder ler, e assim afirmar a própria vida do escrito, deixá-lo encostar o olhar, tocar o corpo. Estragar o fracasso, dar uma forma de imagem ao impossível para, enfim, poder afirmar: “Com amor ou sem, é sempre terrível” e, no entanto, “Somos amantes, não podemos parar de amar” (DURAS, 2007, p. 48).

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Resumo: Com a afirmação de Lacan (1965) que faz convergir a prática da letra e o uso do inconsciente, propomos uma reflexão em torno da noção de imagem em O amante (1984), de Marguerite Duras. Nos dois campos, literário e psicanalítico, preservando as diferenças, identificamos uma especificidade das noções de escrita e de leitura, que trarão consequências para o que entendemos como representação. A escrita de Duras evidencia uma perda no lugar do saber. Com isso, podemos identificar um fazer com a letra muito singular – em que se transpõe o limite da impossibilidade para fazer imagem com esse mesmo impossível.
Palavras-chave: imagem; impossível; rasura; letra; Marguerite Duras.

Abstract: With Lacan’s (1965) affirmation that converges the practice of the letter and the use of the unconscious, we propose a reflection on the notion of image in The Lover (1984), by Marguerite Duras. In both fields, literature and psychoanalysis, beyond the differences, we identify a specificity of the notions of writing and lecture, that will have consequences for what we understand by representation. The writing of Duras shows us a loss in the place of knowledge. Thereby we can identify some very unique treatment with the letter – in which we transpass barriers of the impossibility to be able to make out an image of this same impossible.
Key-words: image; impossible; erasure; letter; Marguerite Duras.

  • 1 Psicóloga graduada pela UFRJ e mestre em Teoria Psicanalítica pela mesma instituição.

  • 2 PhD em Sociologia da Saúde Mental na University of London (1983). Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e coordena o Projeto Corpo e Finitude, sobre o sofrimento psíquico de pacientes com câncer, desenvolvido em parceria INCA/UFRJ.

  • 3 Temos notícias da radicalidade dessa subversão em O deslumbramento de Lol V. Stein (1964), livro de Duras que convocará Lacan no lugar de leitor, pego pela armadilha da enunciação. Neste romance há uma confusão em relação ao lugar de narrador. Há Jacques Hold que narra, num movimento de reconstituir a história da loucura de Lol, mas é com diversas outras vozes que ele pode contar a história.

  • 4 “Je m’aperçois que je le désire.” (DURAS, 1984, p. 37)

  • 5 Formas de conhecimento. (COSTA-MOURA, 2010)

  • 6 A banda de moebius consiste numa fita de duas faces em que, devido a sua torção, não se pode distinguir uma face da outra, o lado direito do avesso, o dentro do fora.

  • 7 “Neste domínio, não há mudança (nem transformação propriamente, ou estas são extremamente dificultadas), uma vez que todo resultado é dedutível e está sempre contido na operação que se reproduz continuamente. Há aí, ao contrário, esta iteração que não é sequer automática, exatamente. É, antes de tudo, acéfala: uma vez que são tais as premissas dadas, não há como “não-inovar”. Voltando ao exemplo mencionado anteriormente, de um telefone celular “inteligente”, podemos dizer que seus desdobramentos serão apenas questão de cálculo. E já estão dados, mesmo que em tese, desde que existe o iPhone 1. Cada resultado, cada output de sua replicação trará novas funcionalidades: a câmara terá mais pixels, o teclado aceitará o ditado de forma mais aperfeiçoada etc. A inovação é necessária e obrigatória. E tão indispensável que se torna necessário um ministério para geri-la; tão programada e dedutível a ponto de existirem “gestores de inovação” em várias instituições (governamentais ou não)”. (LO BIANCO E COSTA-MOURA, 2017).

  • 8 No francês La lettre volée, a palavra lettre permite tanto o significado de carta, como de letra.