A MORTE DE HILDA HILST E GEORGES BATAILLE

Aline Leal Fernandes Barbosa1
PUC-Rio.
alinelfbarbosa@gmail.com

Ivan Ilitch está cara a cara com a morte, ele percebe sua presença, sente que ela lhe rouba aos poucos a vida, sua vitalidade pinga como goteira, escorre ralo abaixo seu líquido escuro, seu corpo minguando, os olhos encovados, o coração desfalecendo. Juiz bem-sucedido na tarefa de aplicar as leis, cabe agora a Ilitch obedecer esta que não exime homem algum de sua condenação, e ele caminha sozinho para o cadafalso com a angústia e o ressentimento da constatação de uma vida condenada – escrava e desprovida de sentido.
“Ehud, por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo” (Hilst, 1993, p. 36). Hillé2e Ivan Ilitch parecem afundados na mesma lama reflexiva que tem a morte como horizonte da vida, seu relógio em contagem regressiva, sua aproximação de passos silenciosos, sua hora solitária, como foram solitárias todas as horas da vida. Se miram a morte, e são dela mirada, é a partir da vida humana que flertam com seu abismo fascinante e sua desordem latente.
A obra-prima de Tolstói3, verdadeiro tratado sobre a morte, comparece no imaginário de mais de uma personagem hilstiana; também o protagonista de Cartas de um sedutor (1991) menciona a novela russa: “Que leituras! Que gente de primeira! O que jogaram de Tolstói e de filosofia não dá para acreditar! Tenho meia dúzia daquela obra- prima A morte de Ivan Ilitch e a obra completa de Kierkegaard” (Hilst, 2013, p. 139)4. E na entrevista a Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst diz: “Existe uma novela que eu acho perfeita: A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. Ele conseguiu chegar ao centro, usando as palavras mais ortodoxas e tal, mas chegou” (Diniz, 2013, p. 99). Este centro de que se fala aqui remete à resposta anterior de Hilst, que diz: “Fiquei toda minha vida procurando esse centro, ou uma espécie de tranquilidade – não uma tranquilidade idiota, mas uma certa tolerância com tudo o que te rodeia, com a tua condição de mortal, de apodrecimento” (Ibid, p. 99). E se Hilda Hilst menciona a linguagem “ortodoxa” do russo, isso aparece em contraste com a sua própria linguagem, avessa ao pensamento discursivo, operando um verdadeiro sacrifício do discurso, de modo que toda a sua escrita em prosa foi contaminada pela poesia.
A morte é um dos temas centrais de Hilda Hilst; sua literatura, por vezes relacionada sem pudores à própria vida da autora, com relances autobiográficos, tem na mortalidade um eixo de reflexão que conduz seus personagens aos extremos, uma aproximação desesperada frente à vida em seu embate implacável com o perecimento. E se ela diz na entrevista da busca de um certo lugar de apaziguamento – esse centro que Tolstói atingira – isso deve corresponder a uma investigação da escrita em relação à morte e seus temas circundantes que pode ser sintetizada na frase que deve ter sido dita com variações por mais de um escritor: “Escrevo para não morrer”, na medida em que a escrita é, de certa forma, a condenação e a salvação da vida, seu momento de angústia e alívio5. Se o perecível é aquilo que é possível, a limitação do ser humano, nossa individualidade e sua duração, então o movimento do escritor remete à experiência do impossível, à transgressão dos limites da vida na antecipação da morte, sua suspensão dos dispositivos repressores na pressão do contínuo.
Em entrevista para o Estado de São Paulo, de 1975, HH confirma a intuição de que a morte é a problemática constante de toda a sua obra; ela diz: “Quero dizer que ela esteve constante, presente, em toda minha poesia, em todos os homens e mulheres, meus personagens; todos eles, em muitos momentos, se perguntam ou meditam sobre a morte. Porque eles não estão conformados” (Diniz, 2013, p.32). Em seguida, Hilst afirma também sua inconformidade com a finitude e discorre a respeito das experiências transcomunicacionais que vinha realizando e que tinham por objetivo mudar o conceito que se tem de morte. “Na verdade, não morremos, passamos para outra dimensão – e as coisas só me interessam na medida em que, justamente, pode ser lançada uma ponte dessa dimensão em que estamos para outra. Conservamos uma individualidade na morte” (Ibid, p. 45). Tencionava fazer na Casa do Sol a Fundação Apolonio de Almeida Prado Hilst, que cuidaria de estudos psíquicos e de imortalidade, e dizia querer ir para Marduk, um planeta onde seres geniais se encaminhariam após a estada na Terra. Vejamos trecho de outra entrevista de Hilda Hilst, desta vez para o Cadernos de Literatura, em resposta a Millôr Fernandes, que lhe perguntara se a “literatura é a vida ou até mais importante do que isso”:

A vida é uma coisa absurda, que a gente não sabe como é. De certa forma nos deram uma compreensão para entender a vida, mas a gente não consegue. Então nos deram uma cabeça para poder compreender as coisas, mas sempre é a terra, né? É sempre o túmulo, sempre o sepulcro. Então, é por isso que eu fico impressionada com essa coisa de Deus. Eu tenho medo da solidão, do sepulcro. Mesmo sabendo que tem alguma coisa depois. Tenho medo de ser enterrada, por isso vou pedir para ser cremada. (Cadernos de Literatura, 1999, p. 38)

Hilda Hilst acabou sendo enterrada, no cemitério Parque das Aléas, em Campinas, no dia 05 de fevereiro de 2004. Na entrevista para o Cadernos, publicado cinco anos antes de sua morte, deparamo-nos com uma Hilda evasiva, impaciente e de respostas curtas, que por vezes não condiziam com o que lhe era perguntado. Ela parece já conformada, ou indiferente ao fato de que seus livros não atingiram um grande público, queixa e cicatriz que exibira na maioria das entrevistas precedentes. Como se diz dos artistas incompreendidos por seu tempo, aposta-se aqui também em um possível reconhecimento póstumo por parte do público. No entanto, ela diz: “Talvez daqui a 100 anos alguém me leia. Mas eu não tenho esperança. Eu continuo vivendo porque tenho que continuar vivendo. Tenho medo de morrer” (Ibid, p. 41). A crença na imortalidade, na permanência da vida após a morte, no entanto, não faz da dama escura6uma senhora menos temível, do seu encontro fugimos como o diabo da cruz.
Georges Bataille foi enterrado em um pequeno cemitério em Vézelay, com uma lápide simples, em que estavam escritos apenas seu nome e as datas: Georges Bataille, 1897-1962. Sabemos que também Bataille gozou de um prestígio em vida aquém da obra que realizava, e que somente postumamente foi tratado como grande pensador do século XX, como ficou registrado nas conhecidas palavras de Michel Foucault na apresentação às suas obras completas: “Hoje nós sabemos: Bataille é um dos mais importantes escritores do nosso século, a ele devemos em grande parte o momento onde estamos; mas tudo o que falta fazer, pensar e dizer, isso também lhe devemos e ainda o faremos durante um longo tempo”7.
No ensaio “Georges Bataille e a Maldição da Literatura” (1974), François Warin aponta para a permanência da obra como contradição à sua soberania almejada. Se a soberania é o projeto de insubordinação frente à autoridade, à normatividade e mesmo à duração, então o destino natural da obra seria a morte. Mas este é um destino que poucos tiveram a disposição de aceitar, a presença de espírito de Kafka8. De modo que a obra, e o autor, estão condenados ao desaparecimento, mesmo que a qualquer custo preferissem permanecer, mesmo que, de todo modo, permaneçam. Warin aponta para a grande ironia deste paradoxo:

A literatura não seria soberana se o autor não desaparecesse, esquecido, como a morte, aceitando apagar seus traços, consagrando ao fogo sua obra como Kafka morrendo o quis. Mas esse é um limite impossível e a literatura não pode dar mais que o simulacro da soberania. No inferno das bibliotecas a obra maldita permanece conservada, escapando ao excesso que deveria destruí-la. A soberania é uma comédia e Bataille soube rir dela, ele fez do riso o que há de mais divino e de mais mortal. (Warin, 1974, p. 62-63)9

A variação da frase de Bataille que aponta para as motivações da escrita – o escrever para não morrer – é esta: “Escrevo para apagar meu nome”, e sabemos que escrevia para depurar sua mente de obsessões perturbadoras, sugestão de seu psicanalista Adrian Borel, em um tratamento alternativo que acabou resultando na escrita de A história do olho (1928), publicado sob pseudônimo de Lord Auch. Se para Bataille o gesto de escrever é contíguo ao gesto de apagar-se, e a transgressão é o lugar do apagamento do sujeito, trata-se aí de ir em direção ao silêncio – palavra-paradoxo que nomeia o que não deveria ser capturado10– e em direção à própria morte, também como movimento de deixar-se escapar. Logo, se escreve-se para não morrer, também para morrer é que se escreve. E, se a solidão de Ivan Ilitch é o fator maior de angústia da novela de Tolstói, a solidão do moribundo é a própria solidão do ser posta em evidência; angústia e isolamento que tenta-se violar no movimento da morte – da poesia, do erotismo, do sagrado.
Não à toa o encontro com a morte será frequentemente erótico, sua aproximação como transgressão ao fechamento do indivíduo em si mesmo. Bataille cita o Marquês de Sade, para quem havia uma óbvia relação entre morte e excitação sexual: “Não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que aliá-la a uma ideia libertina” (Sade apud Bataille, 2014, p. 36). Pois também o eu-poético das odes mínimas de Hilda Hilst encena com a morte uma relação quase carnal, incitando uma ideia de atração recíproca, aqui uma aproximação entre duas mulheres que a princípio se tateiam a fim de encontrar o ponto exato de encaixe em que então se unirão como uma só no beijo fatal, cópula entre vida e morte, gozo final:

II
Demora-te sobre minha hora.
Antes de me tomar, demora
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.

Que me tomes sem pena
Mais voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.

E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens. (Hilst, 2013, p. 30)

De carga erótica notável, nos poemas das odes mínimas não há, entretanto, um teor de forte violência que acompanhe a fusão dos corpos, característico da transgressão; o clima é antes de preliminares, um aquecimento para quando de fato se der a hora do encontro entre os dois entes, cujos corpos ardem na medida em que se aproxima o momento inescapável em que coincidirão. Há momentos de sensualidade, quando o ser que morre e morte buscam-se, tateiam flanco, dentes, língua, ânus, regaço, em um processo cujo desfecho se anuncia uma e diversas vezes, mas que permanece como indagação e anseio da hora exata: como me tomarás? Assim que a vida pauta-se por sua iminência, consumindo-se lentamente e conservando aquilo que resta de sua incessante ameaça: “Procura, na minha hora,/ Entre sarrafos e palha// O que restou de mim/ À tua procura” (Hilst, 2013, p. 68).
A suspensão em que se habita é a antessala do encontro com esta velha conhecida, que permanece, entrementes, incompreendida: “Não compreendo. Apenas/ Tento/ Somar meu corpo/ A teu corpo negro/ Minhas águas/ A teu remo” (Ibid, p. 65). A intimidade desenvolve-se no processo de conhecimento – que transpõe as vias da razão –, e seu método de investigação debruça-se nos meandros da linguagem, do que resta da fuga dos processos de dominação, por isso sua abordagem minoritária, das sobras, migalhas, resquícios: mínima. Se está propensa ao encontro dos corpos, ao momento erótico em que eles se tocarão, a morte, por sua vez, recusa-se a deixar-se conhecer pelo nome, quando ela então repousaria em sua sepultura, seu atestado de redundância. Assim, interlocutora e morte estão que nem gato e rato, porque a morte foge à sua apreensão, sendo possível conhecê-la apenas por suas beiradas.

XIX
Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro

Te tomaria
Úmida, tênue

E então descansarias.

Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono

Te prometo, morte
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.

Se me tocares,
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens

Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte. (Hilst, 2013, p. 47)

Mas se a morte foge à dominação verbal, é a partir do próprio verbo que ela escapa, sugerindo uma linguagem desviante, marginal, sem finalidade ou concessões, sem teleologia ou propósito: soberana. A poesia é a expressão de um estado de perda, “criação por meio da perda”, apontou Bataille, destacando seu caráter improdutivo, dispendioso, e aproximando a poesia do sacrifício. Sacrifício, poesia, erotismo, morte: mo(vi)mentos de excesso, do que excede o humano no desafio à razão: “O luxo da morte, nesse aspecto, é encarado por nós assim como encaramos o luxo da sexualidade: inicialmente, como uma negação de nós mesmos e, depois, em súbita inversão, como a verdade profunda do movimento de que a vida é a exposição” (Bataille, 2013, p. 54). Daí o interesse de Bataille por esses movimentos, no que eles têm de reveladores na negação da negação da natureza, seu paradoxo anunciado, porque se a morte – a sua consciência – constitui o ser humano destacado da natureza, ela é também o seu processo de dissolução na natureza, seu estado de perda.
A morte é central no longo poema O túmulo (1944), de Georges Bataille, em que se destaca a imensidade a que o homem está destinado, o impiedoso lançar de dados, lançar de sorte: a “ruína sem limites”, a “imensidade flácida”, o “deserto sem saída” a que se tende no olho a olho com a morte, contato visual sem trégua, risco exagerado de fusão. Se os poemas de Hilda Hilst sobre a morte encaram a inevitabilidade de sua chegada com expectativa construída, através de elementos épicos que anunciam esse encontro esperado, em Bataille se reforça o aspecto abismático desta noite definitiva, o homem lançado nas trevas, em toda a sua tragicidade. Vejamos o trecho inicial de O túmulo:

I
Imensidade criminosa
vaso rachado da imensidade
ruína sem limites

imensidade flácida que me esmaga
sou fraco
o universo é culpado

loucura alada minha loucura
rasga a imensidade
e a imensidade me rasga

estou só
cegos lerão estas linhas em
intermináveis túneis

caio na imensidade
que cai em si mesma
ela é mais negra que minha morte

o sol é negro
a beleza de um ser é o fundo dos porões
um grito da noite definitiva

o que ama na luz
o arrepio com o qual ela se congela
é o desejo da noite (Bataille, 2015, p. 29)11

A cena expansiva da imensidade evocada sugere a sensação deslimitadora da morte, sua dimensão infinita, em meio a qual o ser se torna ínfimo, quase nada. Aliado a isso a sensação de queda, o perigo iminente de transitar na beirada desse buraco fundo, ou buraco sem fundo. Assim que a morte é o tombo sem duração de um processo vertiginoso, que tende a uma clareira sem proporções, de um espaço/tempo sem esperanças. Essa sugestão caótica e selvagem inaugura o poema e o atravessa, apostando bem no “excesso de trevas”, bem no “brilho das estrelas”, com cenas brutais, passagens angustiantes, desejos ardentes e trechos escatológicos: essa a paisagem batailliana da morte.

o excesso de trevas
é o brilho das estrelas
o frio da tumba é um dado

a morte jogou o dado
e o fundo dos céus jubilou-se
da noite que tombou em mim.12(Ibid, p. 41)

Relaciona-se a imensidade – cenário acachapante – ao crime, ao que ele representa em termos de transgressão à lei; à loucura – alada loucura – no que ela não se deixa simbolizar; aos elementos associados ao improdutivo, aos excrementos, à obscenidade, no que excedem à representação. Também neste poema evoca-se o movimento paródico de O ânus solar, em que “o amor é paródia no não-amor/ a verdade paródia da mentira/ o universo um alegre suicídio”13(Bataille, 2015, p. 33), aliando o senso ao contrassenso e gerando fluxos de contaminação poética. Aqui também um exemplo desse fio de Ariana:

o nada não é mais que em mim eu mesmo
o universo não é mais que minha tumba
o sol não é mais que minha morte

meus olhos são raios cegos
meu coração é o céu
onde a tempestade eclode

em mim mesmo
no fundo de um abismo
o universo imenso é a morte (Bataille, 2015, p. 51)14

Possibilidade da morte

O ser humano encontra-se no limite do eu ao nada, ideia que Bataille explora em seu ensaio sobre Hegel, o sacrifício e a morte, em que o Nada se manifesta como ação negativa ou criativa, no momento em que se instala a morte na natureza, portanto como um vetor da existência humana, também de seu dilaceramento absoluto. Bataille cita Kojève, a partir de quem ele aborda Hegel neste ensaio: “o pensamento e o discurso, revelador do real, nascem da Ação negadora que realiza o Nada aniquilando [anéantissant] o Ser: o ser dado do Homem (na Luta) e o ser dado da Natureza (pelo Trabalho – que resulta aliás do contato real com a morte na Luta). Quer dizer então que o próprio ser humano não é nada além dessa Ação: ele é a morte que vive uma vida humana” (Kojève apud Bataille, 2013, s/p). Essa frase final é citada três vezes ao longo do ensaio, apostando na constituição inseparável entre morte, vida e humano, tripé da experiência do real, por vezes forçada ao limite até a experiência do impossível, de dissolução e de apagamento do sujeito.
Mas, se a morte é uma experiência extrema, ela é ainda assim possibilidade, “uma vez que só o homem pode morrer, de sorte que a morte ainda é para ele uma possibilidade, uma potência, porque a rigor ela é a possibilidade da impossibilidade.” (Blanchot apud Antelo; Bataille, 2014, p. 24), como sublinha Raúl Antelo, citando Maurice Blanchot, no prefácio à edição brasileira de O erotismo. Ou seja, a experiência do impossível, como a morte de fato, são movimentos e não paradas, não se pode conhecê-las de fato senão por subterfúgios de visibilidade.
Ora, são justamente as experiências de intensidade máxima que Bataille vai valorizar, como empreendimento de deslocamento e dessubjetivação. Moraes e Paixão, na apresentação à tradução dos poemas de O arcangélico, vão sublinhar esta tendência radical que já se encontrava nos ensaios filosóficos de Bataille: “Estranha eloquência, a desse ‘eu-lírico’ que se apaga em cada verso, condenando seu próprio enunciado ao mais profundo silêncio. Aliás, é em torno do silêncio que essa poesia gravita o tempo todo, como que buscando avizinhar-se da morte. (Moraes, Paixão; Bataille, 2015, p. 19)”.
A morte consiste, portanto, no lugar privilegiado para essa experiência extrema – impossibilidade possível –, e parece oportuno que tenha sido tema central do único livro de poemas de Bataille, em que o pensamento ensaia questões-chave de sua filosofia de forma ainda mais selvagem. Igualmente notável que Hilda Hilst, interessada nas questões- limite do humano, tenha dedicado um livro de poemas à morte, também um dos grandes temas de sua obra. E, embora o tratamento a essa questão tenha adquirido tonalidade diferente entre os dois autores, o espectro incansável da morte que vive uma vida humana, do ser que vive para a morte, ronda o limite que abre para a imensidade esmagadora, “criminosa”, de modo que HH e Bataille delinearam de certa forma essa vastidão (des)conhecida, apostando na dramatização da morte como condição da vida, e na mortalidade como condição da poesia.
Na apresentação às odes, Alcir Pécora comenta: “Construir a interlocução da morte significa, para Hilda, permanecer atento ao seu trote de cascos enfaixados, que trabalham em silêncio pela aniquilação. Importa sobretudo a observação minuciosa de seu lento consumir da vida, à maneira da ferrugem, que não dorme nunca” (Pécora; Hilst, 2013, p. 09). Assim, este encontro, embora de expectativa assustadora, envolve também certa suavidade, um movimento de lentidão intensiva no trajeto até a hora marcada. Trata- se nestas odes de uma “espia cuidadosa da morte em vida”, mais uma vez nas palavras de Pécora, apontando para a observação tateante deste eu-poético, este o seu método de trazer conforto frente às indagações sucessivas e infindáveis.
Uma série de perguntas, portanto, é feita para esta interlocutora: “Como virás, morte minha?”, “Como te emoldurar?”, “Como me tomarás?” (Ibid, p. 33), “Por que te desprezei?”, “Por que te fiz rainha?”, “Quando é que vem?” (Ibid, p. 37), “Onde nasceste, morte?”, “Que cores, ocaso e monte?”, “Por que não partes?” (Ibid, p. 53), “Que rumos? Que calmarias?”, “Me levas pra qual desgosto?”, “Há luz, há um deus que me espia?” (Ibid, p. 56), “Por que me fiz poeta?” (Ibid, p. 60), “Devo eu morrer?”, “Deves me perseguir?” (Ibid, p. 62). E aqui o único momento em que a morte digna-se a prestar contas a que veio: “Que queres, morte,/ Vestida de flor e fonte?// – Olhar a vida” (Ibid, p. 54).
Mas a morte não chega de fato, e, se chegasse, já não encontraria uma poeta falante, capaz de dizê-la. Daí a linguagem, diante da morte, ser sempre linguagem da iminência. A morte é miragem, zona de contemplação, interlocutora fantasma. Interpela- se a morte: “Pertencente te carrego:/ Dorso mutante, morte. / Há milênios te sei/ E nunca te conheço.” (Hilst, 2013, p. 31), ressaltando seu caráter esquivo, inapreensível, porque, por mais que possamos contemplar a sua aproximação, caminhar em direção a ela enquanto ela caminha em nossa direção, este encontro é fugidio e incompleto, um raio de luz numa noite escura. De modo que a consciência da morte – pré-requisito do ser – não pode prescindir da representação, do espetáculo, “sem cuja repetição poderíamos, diante da morte, permanecer estrangeiros, ignorantes, como aparentemente o são os animais. Nada é menos animal, de fato, do que a ficção, mais ou menos distanciada do real, da morte” (Bataille, 2013, s/p).
De modo que, se a morte, como experiência extrema, é algo que escapa ao símbolo e excede à representação, no entanto é tema de uma enxurrada de publicações, dramatizações, ficções, e eixo central que conduz a vida que conduz à morte. No ensaio Tonalités mortelles (2016)15, de José Thomaz Brum, somos apresentados a algumas paisagens da morte a partir de grandes figuras do pensamento. Segundo Thomaz Brum, para Giacomo Casanova, a vida é uma espécie de ópera, um divertimento musical. E a morte, por sua vez, é a intrusa que vem interromper os prazeres da vida. Para Vladimir Jankélévitch, a morte é um monstro que revela o não-ser, e é tão difícil pensá-la como é difícil pensar Deus, o tempo, a liberdade ou o mistério musical. Para o romeno Emil Cioran, a “utilidade” da morte é denunciar a ilusão da vida, e morrer – o que sem nenhum esforço fazemos – pode ser uma vantagem. O ensaio fecha com a visão de Annemarie Schwarzenbach sobre a morte, afirmando que ela é inelutável, incompreensível, inumana. Bataille e Hilst também deixaram sua contribuição neste campo, explorando seu imaginário, demarcando a consciência da morte, e apontando para a impossível tarefa de lhe atribuir sentido, sua incoerência abissal. Hilst sobre a morte:

XIII
Funda, no mais profundo do osso.
Fina, na tua medula
No teu centro-ovo. Rasa, poça d’água
Tina. Longa, pele de cobra, casca.
Clara numas verticais, num vazado sol
Da tua pupila. Paciente, colada às pontes
Onde devo passar atada aos pertences da vida.
Em tudo és e estás.
meus olhos são raios cegos
meu coração é o céu
onde a tempestade eclode (Hilst, 2013, p. 41)

E Bataille:

eu sou o morto
o cego
a sombra sem ar
como os rios no mar
em mim o ruído e a luz
se perdem sem fim
eu sou o pai
e o túmulo
céu (Bataille, 2015, p. 39)16

Incorporada morte

Como horizonte de expectativa, destino inalcançável a que se tende, vazio e ausência, e por sua inclinação erótica, a morte situa-se no campo do fetiche e do desejo, na medida em que o homem é atraído pelo que o repugna e o assusta. E a interdição de que é alvo, que trata da vontade do homem de querer durar, impõe sobre a morte os limites que ativam o desejo. Pierre Klossowski, no ensaio “O monstro”, do primeiro número de Acéphale17, observa: “não é na presença, mas na espera dos objetos ausentes que se gozará desses objetos – isso quer dizer que se gozará desses objetos destruindo sua presença real” (Acéphale, 1936, p. 5), de modo que há um esforço para se escapar ao objeto da espera. Ora, para reforçar a hipótese de que a Lei ativa nosso próprio desejo, Bataille cita Sade, em Cento e vinte dias de Sodoma: “a verdadeira maneira de estender e multiplicar seus desejos é querer impor-lhe limites” (Sade apud Bataille, 2014, p. 72). Assim, o homem não apenas teme, mas também busca e deseja a morte, por vezes tendendo a ela voluntariamente, consciente ou inconscientemente, e opera no sentido de criar um rico imaginário para a sua espera. Mas a morte não chega de fato, ela é da ordem do desejo. É também na epígrafe ao ensaio de Klossowski que lemos a dramaturgia que Sade criou para a sua morte:

Será enviado um mensageiro ao senhor Lenormand, mercador de madeira... para pedir- lhe que venha ele próprio, com uma charrete, buscar meu corpo para ser transportado... ao bosque de minhas terras da Malmaison... onde quero que seja colocado, sem cerimônia alguma, na primeira mata de corte cerrada que se encontra à direita no dito bosque... Minha fossa será aberta nessa mata pelo caseiro da Malmaison, sob a inspeção do Sr. Lenormand, que só deixará meu corpo após tê-lo colocado dentro da dita fossa... A fossa uma vez recoberta, serão semeadas bolotas de carvalho, a fim de que, em seguida, o terreno da dita fossa se achando reguarnecido e a mata se achando cerrada como era antes, os vestígios de meu túmulo desapareçam da superfície da terra, como me gabo de que minha memória se apagará do espírito dos homens. (Acéphale, p. 5)

O ritual que Sade deixa registrado em seu testamento tem como objetivo final o apagamento do indivíduo, seu descolamento da memória da humanidade, o que soa coerente com o projeto de desindividuação e dissolução do sujeito que Bataille atribui à poesia e à literatura (ao erotismo, ao sacrifício, à morte), e assim Sade ensaia uma saída literária da vid18, discorre a respeito deste testamento, na chave do que ele chama de “vontade de destruição de si” como sentido da obra sadiana: “o sentido de uma obra infinitamente profunda está no desejo que o autor teve de desaparecer (de se dissolver sem deixar nenhum vestígio humano): pois não havia nada mais à sua altura” (Bataille, 2015, p. 104/105). Mas é curioso que tenha se dado ao trabalho de deixar registrado a teatralização de seu enterro, como grand finale da vida, seu clímax, ponto máximo, o que por outro lado contribui para a consolidação de sua memória. E assim como o desejo final de Kafka não foi respeitado e seus manuscritos sobreviveram, Sade foi enterrado no cemitério do asilo de Chareton, em uma cova com uma cruz e sem nenhuma inscrição. E, mais que isso: sua obra eternizou-se.
Em Contos d’escárnio, textos grotescos, o testamento de Crasso, por sua vez, reivindica um ritual funerário bastante criativo. Ele dispensa todo culto sobre a morte e apronta uma cerimônia cujo centro gravitacional é o desejo sexual: o cadáver imaginado, embora morto para algumas coisas, continua vivíssimo quando o assunto é ter o sexo estimulado. Em mais esta passagem, fica claro que as cenas pornográficas hilstianas são, em boa parte, uma grande comédia:

Quando eu morrer, quero que ao invés das bolinhas de algodão que usualmente colocam nas narinas do morto, que você providencie bolinhas de pentelho virgem. Sei que será uma estafante tarefa porque primeiro: não há virgens. Segundo: as que seriam virgens seriam impúberes e portanto sem pentelhos: glabras. Vá pensando nisso tudo. Outra coisa importante: pinte uma vagina dentro de uma casca de ovo, com nuances bleu foncé e negro, e estando eu morto coloque a pequena tela no bolso da minha calça. Do lado direito. Enquanto coloca, alise com brandura meu caralho-prega (este que eu agora aliso enquanto te escrevo e que está tudo aquilo túrgido, duro, aceso, pulsante, vibrátil, túmido, sem que os amigos ao redor do esquife percebam, para não ficar constrangedor para mim, percebes?) (Hilst, 2014, p. 106)

Mas se a morte, tão banal e cotidiana quanto extrema e insana, é representada de forma solene, também ela está ligada ao aniquilamento do ser e à podridão do corpo. O cadáver – o que resta do ser destituído de vida – em um primeiro momento semelhante ao corpo vivo, está em trânsito para virar matéria fétida e comida de verme, quando então já não terá nome algum na língua humana. Mas há algo de muito estranho, bastante perturbador: aquele recipiente que abrigava a vida de um ser, sua identidade de tantas formas manifestada, agora é vazio, ausência, impossibilidade, nada. Mas o cadáver é sempre um terceiro, e, por isso, espetáculo da morte. Bataille discorre sobre este espanto:

Na morte de outro alguém, enquanto esperávamos, nós que sobrevivemos, que se mantivesse a vida daquele que, perto de nós, repousa imóvel, nossa espera, de repente, se resolve em nada. Não que um cadáver seja nada, mas esse objeto, esse cadáver está marcado desde o princípio pelo signo nada. Para nós que sobrevivemos, esse cadáver, cuja purulência próxima nos ameaça, não corresponde ele próprio a nenhuma expectativa semelhante àquela que tínhamos desse homem estendido, quando estava vivo, mas a um temor: assim, esse objeto é menos que nada, pior que nada. (Bataille, 2014, p. 82)

Da morte não sabemos nada; assistimos todos os dias à morte. Alguns dias a morte está ao nosso lado, e podemos mirá-la bem de perto, esquadrinhá-la. A morte, esta velha senhora do tempo, cuja zona de influência estende-se indistintamente entre os distintos, condição da vida e da poesia. A morte, a quem Hilda Hilst dedicou odes, por sua ilustre presença, por sua passagem célebre. Voltando a pensar na personagem de Ivan Ilitch, a morte é a agonia de um burocrata, o jogo de uíste, a decência da vida, a hipocrisia das convenções sociais, a morte é a casa nova, a queda da escada, é a dor no rim, é a indiferença da esposa e dos filhos, é a cumplicidade do criado Gerasim. Seu obituário no jornal, e o seu velório.
Há algo que a morte leva, algo que acontece no corpo e nos deixa perplexos, seu componente sagrado: ela é o que não deve ser tocado, embora de forma recorrente seja alvo de profanação. A morte é ameaça, desconfiança e solenidade, mas é também náusea, repugnância e nojo. O corpo como primeiro espelho da morte: morrem-se dedos, mãos, braços, peitos, ancas, face, pés, pernas... e o que resta? O que cabe à vida e o que cabe à morte: o que nos pertence?

XI

Levarás contigo
Meus olhos tão velhos?
Ah, deixa-os comigo
De que te servirão?

Levarás contigo
Minha boca e ouvidos?
Ah, deixa-os comigo
Degustei, ouvi
Tudo o que conheces
Coisas tão antigas.

Levarás contigo
Meu exato nariz?
Ah, deixa-os comigo
Aspirou, torceu-se
Insignificante, mas meu.

E minha voz e cantiga?
Meu verso, meu dom
De poesia, sortilégio, vida?
Ah, leva-os contigo.
Por mim. (Hilst, 2013, p. 39)

Algum desapego se faz necessário, pois, à exceção de Lázaro, a quem Jesus ordenou que retornasse à vida, e à exceção do sol, que morre todos os dias para voltar a nascer no dia seguinte, a morte não parece muito afeita a devolver aquilo que tomou. Assim, nos rendemos: vem, morte, toma aquilo que é teu, pois, condenados de antemão, e sem a esperança de sermos absolvidos, com ansiedade aguardamos o dia em que, de forma silenciosa ou explosiva, pronunciarás o chamado final. Que a terra nos seja leve.

Referências bibliográficas:

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VÁRIOS AUTORES. Cadernos de literatura brasileira: Hilda Hilst. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1999.

Revista
Acéphale, vols. 1, 2, 3, 4. Tradução Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014.

Resumo: Este artigo quer tratar de algumas paisagens poéticas da morte apresentadas por Hilda Hilst e Georges Bataille. Tema central na obra dos dois autores, a morte, seu caráter irrevogável, será a experiência radical de continuidade a que o erotismo e o sagrado tendem. Assim, pretende-se relacionar os momentos em que morte e escrita cruzam e se fundem.
Palavras-chave: Morte; erotismo; sagrado; Hilda Hilst e Georges Bataille.

THE DEATH OF HILDA HILST AND GEORGES BATAILLE
Abstract: This article wants to participate some poetic landscapes of death presented by Hilda Hilst and Georges Bataille. A central theme in the work of the two authors, death, its irrevocable character, will be the radical experience of continuity to which eroticism and the sacred tend. Thus, it is intended to relate the moments in which death and writing cross and merge.
Keywords: Death, eroticism; sacred; Hilda Hilst; Georges Bataille.

  • 1 Doutora pelo programa de Literatura, cultura e contemporaneidade do departamento de Letras da PUC-Rio.

  • 2 Hillé é personagem-narradora do livro A obscena senhora D (1982), em que, habitando o vão da escada, estabelece um diálogo com seu marido recém-morto, Ehud. Este livro aparece com destaque na produção ficcional de Hilda Hilst: foi com ele que se inaugurou a edição das obras completas da autora pela editora Globo organizada por Alcir Pécora, que considerou que aí cruzavam-se os grandes temas da sua prosa de ficção.

  • 3 A Morte de Ivan Ilitch é uma novela de Liev Tolstói (1828-1910), publicada pela primeira vez em 1886 e considerada por alguns críticos como a novela mais perfeita da literatura mundial. A morte de Ivan Ilitch foi a primeira obra que Tolstói escreveu após seu retorno à atividade literária, tendo abandonado a literatura para se dedicar à vida espiritual.

  • 4 Olga Bilenky, viúva de José Mora Fuentes e residente da Casa do Sol, hoje diretora do Instituto Hilda Hilst, conta que a escritora, fascinada pela novela russa, distribuíra exemplares para diversas pessoas que frequentavam a casa, a fim de que pudessem discutir a obra.

  • 5 Na entrevista “Um diálogo com Hilda Hilst”, organizada por Nelly Novaes Coelho, encontramos a seguinte frase de Hilda Hilst: “Imagino que as pessoas escrevam por debilidade. Eu escrevo por debilidade. Não escrevo porque eu, realmente, tenha muita coisa a dizer. Escrevo porque preciso me salvar” (Diniz, 2013, p. 125).

  • 6 “Dama escura” é como chama-se a morte na novela Rútilo nada: “Antes do derradeiro, antes da sombra, o revólver em cima da mesa, queres me perguntar o que sente alguém diante da dama escura? Sinto frio, Lucius” (Hilst, 2003, p. 24).

  • 7 Aqui usamos a tradução de Eliane Robert Moraes no ensaio O Jardim Secreto: Notas Sobre Bataille e Foucault. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 7, n.1e2, p. 21-29, 1995. A referência para a apresentação de Foucault é: FOUCAULT, Michel. (1970) Apresentação. In: BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Tomo I. Paris, Gallimard.

  • 8 No entanto, no ensaio dedicado à Kafka em A literatura e o mal, Georges Bataille coloca em questão a própria decisão de Kafka de eliminar a sua obra. Em resposta à pergunta “É preciso queimar Kafka?”, Bataille elucubra: “A meu ver, até o final, Kafka não saiu da indecisão. Esses livros, para começar, ele os escreveu; é preciso imaginar algum tempo entre o dia em que se escreve e aquele em que se decide queimar. Depois ele ficou na decisão equívoca, confiando a execução do auto da fé àquele de seus amigos que o avisara: recusava-se a executá-lo. Não morreu, no entanto, sem ter exprimido essa vontade, de aparência decisiva: era preciso jogar no fogo aquilo que deixava” (Bataille, 2015, p. 143).

  • 9 WARIN, François. Georges Bataille e a maldição da literatura. Discurso. São Paulo: USP, ano 05, nº 5, 1974, p. 55-64. Acessado em 24/04/2017: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/viewFile/37779/40506.

  • 10 Aqui um trecho da apresentação à tradução de O arcangélico, “A Explosão do Silêncio”, de Eliane Robert Moraes e Fernando Paixão, que ajuda a entender este ponto: “A palavra silêncio, diz Bataille, carrega em si um paradoxo. O que ela diz nomear não se deixa capturar por nenhum nome; o que promete designar não pode jamais ser designado. Trata-se de um significante que, no limite, burla seu próprio significado, uma vez que toda palavra implica, por princípio, um ruído a desmentir o silêncio” (Moraes, Paixão; Bataille, 2015, p. 19).

  • 11 Le Tombeau// Immensité criminelle/ vase fêlé de l’immensité/ ruine sans limites// immensité qui m’accable molle/ je suis mou/ l’univers est coupable// la folie ailée ma folie/ déchire l’immensité/ et l’immensité me déchire// je suis seul/ les aveugles liront ces lignes/ en d’interminables tunnels// je tombe dans l’immensité/ qui tombe en elle-même/ elle est plus noir que ma mort// le soleil est noir/ la beauté d’un être est le fond des caves/ un cri de la nuit définitive// ce qui aime dans la lumière/ le frisson dont elle est glacée/ est le désir de la nuit.

  • 12 l’excès de ténèbres/ est l’éclat de l’étoile/ le froid de la tombe est un dé// la mort joua le dé/ et le fond des cieux jubile/ de la nuit qui tombe en moi.

  • 13 Em O ânus solar, temos: “O ar é a paródia da água./ o cérebro é a paródia do equador./ o coito é a paródia do crime” (Bataille, 2007, p. 46).

  • 14 le néant n’est que moi-même/ l’univers n’est que ma tombe/ le soleil n’est que la mort// mes yeux sont l’aveugle foudre/ mon cœur est le ciel/ où l’orage éclate// en moi-même/ au fond d’un abîme/ l’immense univers est la mort.

  • 15 José Thomaz Brum, Tonalités mortelles. Alkemie, 2016 - 2, n° 18, p. 65-67.

  • 16 je suis le mort/ l’aveugle/ l’ombre sans air// comme les fleuves dans la mer/ en moi le bruit et la lumière/ se perdent sans finir// je suis le père/ et le tombeau/ du ciel.

  • 17 A Conjuração Sagrada – 24 de junho de 1936. Neste ensaio, Klossowski reflete a respeito dos “modos de espera” em Sade, suas personagens estando inseridas em um universo que renega a imortalidade da alma. Ele observa: “negando assim a elaboração temporal de seu próprio eu, sua espera as recoloca paradoxalmente no estado de possessão de todas as possibilidades de desenvolvimento em potência, que se traduz por seu sentimento de potência incondicionada” (Acéphale, 1936, p. 6). A isso Klossowski chamará de candidatura à monstruosidade integral.

  • 18 Retomada do artigo “Le secret de Sade” [O segredo de Sade] publicado nos números 15-16 (ago-set) e 17 (out) da revista Critique, em 1947. (Nota dos editores da edição brasileira de La littérature et le mal).