A história continua — John Barth: meio século de pós-modernismo

André Rangel Rios

Instituto de Medicina Social | Universidade do Estado do Rio de Janeiro — Rio de Janeiro

Resumo: Por meio sobretudo da discussão do conto “On with the story” é mostrado o virtuosismo literário de Barth, sobretudo o recurso à metaficção e à mise-en-abîme, que possibilitam que a narrativa se desenvolva em múltiplos níveis e em direções diversas, criando uma peculiar densidade de histórias que tanto intensificam o efeito cômico quanto dão destaque particularmente saboroso aos sofrimentos da classe média americana.

Palavras-chave: Literatura norte-americana; metaficção; pós-modernismo; John Barth

Abstract: “On with the story. John Barth: half-century of postmodernism”

Focusing mainly on the short story “On with the story”, this paper highlights the literary virtuosity of Barth. His skilful handling of metafiction and mise-en-abîme is brought to the fore as well as the rhetoric resources which lead to a narrative in multiple levels and diverse directions, bringing about a peculiar story density, which intensifies the comic effects and points up the particularly savory sufferings of the American middle class.

Keywords: American literature; metafiction; post-modernism; John Barth

Mais outra história [“story”] sobre um escritor escrevendo uma história! Mais outro regresso ad infinitum! Quem não prefere a arte que claramente imita alguma outra coisa que não seja seus próprios processos? Que não fique repetidamente proclamando “Não esqueça que sou um artifício!”?
Trecho de “Life-story”. (BARTH, 1988 [1968] p. 117)1

Por Zeus!, ele exclamou para si mesmo. É particularmente inquietante suspeitar não somente que se é um personagem ficcional, mas também que a ficção dentro da qual se está – a ficção que é aquilo que se é – é bem do tipo daquela que se aprecia menos.

Trecho de “Life-story”. (BARTH, 1988 [1968], p. 118)

1. A obra de John Barth

John Barth já é escritor há mais de meio século. Seus primeiros livros, The Floating Opera2 e The End of the Road, datam respectivamente de 1956 e 1958. Os críticos em geral (assim como o próprio Barth) descrevem esses dois romances como realistas. De fato, eles não apresentam as proezas metaficcionais e tiradas fantasiosas de obras posteriores. Seria, portanto, na década de 1960 que, com o, digamos, amadurecimento de sua escrita, o verdadeiro Barth entra em cena, passando do humor negro existencialista de seus primeiros romances, de um modo consistente, para o que veio a ser chamado de pós-modernismo. Ainda que o último romance de Barth, Every Third Thought: A Novel in Five Seasons (2011) seja, em vista a seu passado linguística e autorreferencialmente exuberante, relativamente modesto, e, portanto, de leitura tranquila, também para aqueles que, ou nunca apreciaram ou, velhos guerreiros, estão cansados dos gracejos, ou das gracinhas, metaficcionais, que, de toda forma, provavelmente eram realmente degustadas só pelo público de, por assim dizer, aficcionados. Considerando que, até o momento, poucos livros de Barth foram traduzidos no Brasil (e logo se ausentam dos catálogos das livrarias), seu público cativo é escasso. No entanto, não digo que isso seja exclusivamente falha dos editores e livreiros, porque, de fato, há a suspeita de que o pós-modernismo literário seja fundamentalmente um gênero norte-americano, enfim, temos aqui uma questão teórica e mercadológica. De fato, se levarmos em conta o grande elenco dos autores e autoras que se prestam – ou, antes, que, talvez devido ao exemplo da persistência semi-secular de escritores como Barth, mantêm-se fiéis praticantes ou leitores de tal esbórnia verborrágica, academicamente denominada de pós-moderno ou metaficção, deveríamos questionar se isso não se trata de uma consequência perversa dessa outra idiossincrasia eruditoide ianque, que são os inúmeros cursos de creative writing esparramados pelas mais diversas universidades das mais remotas cidades daquele país, para onde até alguns de nossos escritores estiveram indo, tal como o jovem João Gilberto Noll, em 1982, na Universidade de Iowa3.

O Barth pós-moderno estreou, há mais de meio século, com o romance satírico, The Sot-Weed Factor (1960), que, pode-se dizer, satiriza a própria sátira (aludindo a várias delas: especialmente Tom Jones e Tristam Shandy), uma narrativa passada no século XVII em Maryland. Nela várias pirotecnias tidas como próprias do pós-modernismo (ainda que de modo algum exclusivas dele, a não ser pelo uso enfaticamente ostensivo de as estar usando como paródia dos que já as usaram, porque, no caso, Fielding, Sterne ou Diderot também eram useiros e vezeiros das mesmas traquinagens), tais como digressões frequentes e, por vezes, descomunais, narrativas engavetadas, jogos verbais torrenciais, pastiche, citações etc. De fato, esse é um romance relativamente longo, que se passa em uma região de escasso interesse para os brasileiros, Maryland, e numa época da qual, por aqui, nos ocupamos pouco, além de fazer um uso ágil da língua inglesa que exige alguma proficiência no idioma; apesar disso ou, antes, por isso, recomendo que seja traduzido: sei que nossos tradutores, se traduzem Thomas Pynchon, darão, com pés nas costas, conta do recado, podendo, ao gosto do editor, adicionar até algumas notas explicativas. Giles Goat-Boy (1966) é um “campus novel”, ainda mais longo, referindo-se à vida da própria década de 1960, com alusões à guerra fria, à mitologia, à religião e sabe-se lá ao que mais. Se é divertida, e é, só o é se se tem gosto, e tempo, para imergir em complicações.

Assim, é a primeira coletânea de contos de Barth, Lost in the Funhouse (1968), seu livro mais popular. De fato, é de mais fácil leitura, tanto porque os contos requerem unidades menores de atenção, permitindo interrupções mais disciplinadas, quanto porque um conto pode ser, com mais facilidade e proveito, lido e discutido em sala de aula. Nos Estados Unidos é extremamente comum que em um curso sobre a literatura norte-americana do pós-guerra algum conto desse livro conste da ementa, visando caracterizar o que seria par excellence o pós-modernismo. Sem dúvida, as coletâneas de contos de Barth são diversão garantida, com a possibilidade de melhor dosar o uso do tempo e o esforço de atenção. Não que não tenham também seus truques. Afinal, Chimera (1972), On with the story (1996), The Book of Ten Nights and a Night: Eleven stories (2004) e Where three roads meet (2005), The Development (2008) são coletâneas de contos (por vezes, contos longos, chamados em inglês de “novellas”) que se imbricam de alguma forma. Há ainda a coletânea, com narrativas, digamos, independentes, das quais uma das narrativas de The Development se desdobrou no já mencionado romance, Every Third Thought: A Novel in Five Seasons (2011), sobre um casal de professores chegando à aposentadoria, que é, enfim, mais ou menos a mesma idade de Barth, hoje com 82 anos; esse romance, mais curto do que todos os outros, o lemos de um só mergulho, mas, não posso deixar de dizer, ainda que mais breve que os demais, é Barth legítimo. Depois de meio século de escrita travessamente pós-moderna, Barth, aos 80 anos, ainda exsuda élan juvenil verbal e temático, até no quanto, na narrativa, a sexualidade ainda encontra seu ardor.

Depois dos anos 1960, Barth publica mais romances: Letters (1979), Sabbatical (1982), The Tidewater Tales (1987), The Last Voyage of Somebody the Sailor (1991), Once Upon a Time (1994), Coming Soon!!! (2001) e Every Third Thought: A Novel in Five Seasons (2011). Desses livros, em Sabbatical, The Tidewater, The Last Voyage e Once upon a Time (já antes em The Floating Opera) a questão da navegação está marcantemente presente na narrativa. Em especial, a baía de Chesapeacke, mas também os mares do outro lado do globo, e de outra época, tal como em The Last Voyage, o que caracteriza Barth, o que voltarei a mencionar abaixo, como o último grande romancista náutico de língua inglesa. Com ele termina (por enquanto) a esplêndida tradição Melville, London e Conrad; no entanto, todos os meios de transporte acabam bem representados em seus livros. Até mesmo o tapete voador. De fato, na época das Mil e uma Noites, quando se passa parte da narrativa de The Last Voyage (onde também as Mil e uma Noites são renarradas), Ibn al-Hamra, faz uma reprimenda ao narrador, que está lá, mas pertence ao século XX, porque suas narrativas seriam por demais implausíveis, ou seja, o narrador moderno, encontrando-se lá nas arábias de outrora, deveria se manter mais restrito às regras do realismo islâmico:

Desde o ponto de vista privilegiado do realismo tradicional, caros irmãos, é – proclama Ibn al-Hamra – de onde falo! Peço assuntos familiares e substanciais: aves-roca e rinocerontes; ifrits, gênios e tapetes voadores; coisas assim que todos nós bebemos junto com o leite de nossas mães e beberemos – Inshallah! – até nosso último gole. Não deixemos nenhum estrangeiro imaginar que mentiras amalucadas tais como máquinas que marcam as horas [relógios de pulso] ou que se põem a rolar por si mesmas estrada abaixo [automóveis] poderão ocupar o lugar de nosso usual realismo islâmico...

De fato, se nos pusermos nos parâmetros que podemos supor seriam o do realismo de então (ainda que o realismo não tivesse sido inventado), temos de reconhecer que é muito mais plausível para Ibn al-Hamra que, sendo leves e, afinal, aerodinâmicos, tapetes voem, mas nunca que maçarocas de metal possam, estrepitosamente, se elevar, por si mesmas, até às nuvens. É extremamente divertido o efeito de estranheza que a narrativa sobre o século XX (que por si só já era interessante) provoca ao ser narrada e apreciada em outra época: nada se mostra mais implausível do que nosso presente. E não se trata de astúcia acadêmica metanarrativa, mas de histórias habilmente engavetadas. É pelo excesso de histórias que a narrativas de Barth decolam; nelas, as artimanhas pós-modernas basicamente potencializam a torrente de narrativas e seus efeitos trágico-jocosos e os temas cômico-existenciais.

The Last Voyage pode ainda exemplificar um outro aspecto da escrita rocambolesca, do pós-modernismo rococó de Barth, onde tudo é sempre mais complicado. Afinal, estou aceitando nesse meu rápido comentário que o narrador, que seria um jornalista do século XX, de nome Simon Behler, foi parar na Arábia medieval; no entanto, talvez fosse melhor dizer que ele foi parar é no universo que a tradução das Arabian Nights, de Richard Burton, no século XIX, acende na imaginação contemporânea, bem como no quanto do estilo linguístico do século XIX vem junto. Assim, em The Last Voyage teríamos, por um lado, a narrativa de Behler sobre sua infância, adolescência e vida de casado, tal como em, digamos, Updike, e, por outro, a narrativa de Burton. Sob esse ponto de vista, o livro seria uma sopa de Updike com Burton, temperada com Barth.

Pós-modernismo seria para Barth, tal como para alguns de seus colegas escritores, esparramar narrativas, criando e ocupando novos nichos ficcionais, estilísticos, referenciais e linguísticos. A paranoia, ao contrário de diversos colegas seus pós-modernistas, não é característica de seu estilo. Mesmo a guerra-fria, tão presente em vários de seus livros, é vista como uma grande proliferação de narrativas, de verdades e mentiras, no caso, de narrativas em que verdade e mentira, realidade e fabulações, parecem diferir pouco ou nada. Os pequenos e grandes dramas da existência individual também estão presentes. Mas tudo se passa como se todos os males do mundo pudessem ser redimidos se narrados e renarrados, enfim, se apropriados em uma pluralidade infindável de narrativas surgindo não somente em sequência, mas uma por dentro das outras, numa profusão inestancável delas, para que o mundo, com seu próprio mar de histórias, se divirta e ressurja após benéficas libações narrativas diluvianas4.

John Barth não só não cultiva a paranoia quanto não é nem recluso nem evita a autorreflexão; ao contrário, escreve ensaios, vai a eventos literários e deu cursos de escrita durante toda sua vida acadêmica. Não sei como ele é pessoalmente, mas suas aparições públicas são bem humoradas e seus alunos o consideravam um excelente professor. Em todo caso, suas atividades extra-ficcionais o possibilitaram problematizar, digamos, até mesmo teorizar sua prática de escrita. Barth parece ter sempre se divertido muito com o fato não só de ser considerado um escritor pós-moderno, mas também — ou sobretudo — de ser considerado um exemplar da espécie, merecendo convites para ser posto em exibição pública. Além disso, ainda que em seus livros de ensaios, que tem muito de relatos anedóticos e de retórica pós-moderna, ele pode se pôr como um personagem dele mesmo, descrevendo sua reação frente a colegas e ao público. Talvez esse ensaios, em que ele é explicitamente personagem ficcional, ele se descubra como sendo personagem de um estilo que ele nem gosta tanto; no entanto, ele se retrata como divertindo-se.

Barth publicou três livros de ensaios: The Friday Book (1984), Further Fridays (1995) e Final Fridays (2012). Do primeiro desse livros há dois de ensaios que costumam ser incluídos em ementas de cursos em que o pós-modernismo é um dos itens: “The Literature of Exhaustion” (1967) e “The Literature of Replenishment” (1979) (BARTH 1984, p. 62-76 e 193-206). Neste último ensaio, Barth comenta sua participação em um colóquio na Universidade de Tübigen, em 1979:

Três supostos praticantes dessa modalidade [o pós-modernismo americano] — William Gass, John Hawkes e eu — até estávamos lá como peças vivas em exibição [“live exhibit”]. (BARTH 1984, p. 194)

Esse convite, porém, seria para Barth, que tantas vezes já recebera o rótulo de pós-moderno, uma ocasião para que, enquanto preparasse sua apresentação, pensasse o que seria, afinal, um escritor pós-moderno. De fato, sua experiência no colóquio foi enriquecedora:

O que rapidamente descobri é que, enquanto alguns escritores rotulados como pós-modernos, eu mesmo aí incluído, podem vir a aceitar o rótulo com uma certa circunspecção, a principal atividade dos críticos pós-modernistas (também chamados de “metacríticos” e “paracríticos”), escrevendo em revistas pós-modernistas ou falando em simpósios pós-modernistas, consiste em discordarem sobre o que o pós-modernismo é ou deveria ser, e, portanto, sobre quem deveria ser admitido no clube — ou posto no clube a pancadas [“or clubbed into admission”], dependendo do entendimento do crítico a respeito do fenômeno e do escritor em particular. (BARTH, 1984, p. 194)

Barth retrata, ainda que para efeitos humorísticos (diria que Barth seria capaz de perder amigos, mas nunca as anedotas, sobretudo as mais divertidas), que sua escrita vem antes da rotulação e que a atividade dos críticos é fútil e de utilidade nula, a não ser como tema para uma narrativa em que Barth entra como um personagem. No parágrafo seguinte a este que acabo de citar, Barth enumera os diferentes cânons sobre quais seriam os escritores pós-modernos. É uma babel de nomes, constituindo conjuntos diversos e de coerência duvidosa, mas que sugerem o quanto de animosidade existe entre críticos literários. Seja como for, ainda que a obra de Barth tenha surgido e se desenvolvido em décadas, embora economicamente prósperas, tumultuadas pela tensão apocalíptica da guerra-fria e de protestos anti-Guerra do Vietnã, enfim, embora, os “high sixties” sejam um momento importante para Barth, sua obra não é atormentada pelas sobras do fim do mundo, nem pela paranoia da onipresença do poder. Embora Barth considere que “a vida humana, sua felicidade e sua miséria” são o que o tema adequado para a literatura (“the proper subject of literature” — BARTH, 1984, p. 218), sua obra, e mesmo seus ensaios, são inundados de anedotas e narrativas. A literatura é o que revela o mundo, suas dores e felicidades, mas é o que, ao menos em parte, o redime. Um outro autor, dependendo da classificação do crítico, também rotulado de pós-moderno, descreve qual seria o clima do mundo ocidental nos anos formativos de Barth:

[...] os temas apocalípticos do “fim da história”, do “fim do marxismo”, do “fim da filosofia”, dos “fins do homem”, do “último homem”etc., eram, nos anos 1950, há 40 anos, nosso pão de cada dia. Era com naturalidade que nós tínhamos em nossa boca esse pão apocalíptico, que, mais tarde, em 1980, renomeei de “tom apocalíptico em filosofia”. Qual era sua consistência? Qual era seu gosto? Era, por um lado, a leitura ou a análise daqueles que podemos chamar de clássicos do fim. Eles formavam o cânon do apocalipse moderno (fim da História, fim do Homem, fim da Filosofia, Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger, com o codicilo kojeviano e os codicilos do próprio Kojève). Era, por outro lado, e indissociavelmente, aquilo que sabíamos, ou que alguns entre nós, havia muito tempo, não mais dissimulavam acerca do terror totalitário em todos os países do Leste Europeu, de todos os desastres socioeconômicos da burocracia soviética, do stalinismo do passado e do neostalinismo em curso (dos processos de Moscou à repressão na Hungria, apenas para me limitar a esses marcos mínimos). (DERRIDA 1993, p. 37-38)

Derrida nos apresenta aqui uma visão bastante sombria dos anos 1950 e do início dos 1960: do clima apocalíptico, segundo ele, indissociável da guerra-fira, no caso, da consciência da barbárie do comunismo, que, para muitos de seus colegas, chegou a parecer que seria o único caminho redentor possível. Já nos “high sixties”, em 1966, Foucault proclama, em seu estilo rebuscado de então, a “morte do homem.” E o homem ainda continuou morrendo por mais tempo: o “anti-humanismo” continuou sendo uma bandeira intelectual na França até a década de 1990. Derrida fez um longo trabalho crítico-filosófico para superar seus anos de formação entre zumbis filosófico-necrófilos, obcecados pelo fim de todas as coisas e conceitos. Mas nosso tema é a escrita literária. Se em seus romances existencialistas dos anos 1950, eivados de humor negro, ainda se possa dizer que Barth participou desse apocaliptismo, depois, no meu entender, ele seguiu, decididamente, o caminho da pujança narrativa, onde, sem deixar de lado as misérias e alegrias humanas, nunca assumiu um “tom apocalíptico”. Digamos que, frente ao apocaliptismo, o que Barth respondeu foi: “On with the story”, enfim, “contemos mais histórias”, ou seja, “a história continua”. É esse tom moderado e jocoso, em que as dores e alegrias, as esperanças e desilusões, dos personagens são narradas na complexidade que as minoram e as agudizam que exporei mais abaixo, ao analisar um conto exatamente do livro On with the story, um bom exemplo de sua destreza narrativa.

Assim, em vez de listar características do que seria o pós-moderno, analisarei abaixo, a título de exemplo exemplar, o conto: “On with the story”, do livro homônimo, quando, entre outras coisas, veremos um uso narrativo magistral, recambolescamente prazeroso, enfim, sóbria e elegantemente rococó, da mise-en-abîme.

2. A história continua

Em nosso rápido voo direto para o esquecimento [é o que Alice lê], ainda há, surpreendentemente, algumas pessoas entre nós que, de tempos em tempos, separam tempo para ler uma história inventada. Deste pequeno número, você que está aí lendo, é uma dessas pessoas.
(Barth, 1996, p. 71 — itálicos e colchetes no original)

É Alice, uma personagem do conto “On with the story” quem, entre colchetes, é indicada como sendo a leitora, embora a passagem logo mais abaixo no mesmo parágrafo, fora dos colchetes, portanto um pouco mais integrada ao fluxo narrativo, que traduzi como “você que está aí lendo” se refere a quem quer que seja que esteja lendo esse mesmo parágrafo. Assim, esse “você” pode ser a Alice, que faz parte do conto, pode ser eu, que também estava lendo as mesmas palavras no mesmo tempo em que Alice supostamente as estava lendo ou você, que está aí lendo (ou ouvindo) este texto, e que também, tal como Alice e eu, e ao mesmo tempo que nós, estava lendo o mesmo parágrafo citado acima. Todos nós — ela, eu e vocês — tiramos um tempo, e, de fato, de tempos em tempos, voltamos a fazê-lo, para ler alguma história.

Podemos ir mais longe e dizer que, para que, interrompendo — ou desacelerando — esta vida, esse voo direto para o esquecimento (ou para a morte), há algumas pessoas que separam tempo para escrever essas histórias inventadas. Também há quem as traduza ou as comente, recontando-as, reescrevendo-as. Não traduzi literalmente, privilegiei a fluência, e, assim, afastando-me um pouco da história originalmente escrita, estive reinventando a história, contando uma outra história, além de me pôr a contar a história da história, continuando, ainda que, meta-narrativamente, a contar a história, levando a história adiante.

No entanto, fui um fiel tradutor ao trazer para cá, para o início desta segunda parte deste ensaio (parte que também se chama “A história continua”, estando contida neste ensaio que, mais uma vez, também se chama “A história continua”), exatamente o que está citado no início do conto. Ou seja, o parágrafo inicial do conto é uma citação, assim como o parágrafo inicial desta segunda parte do ensaio é também uma citação, no caso, é exatamente a mesma citação que abre o conto (ainda que, por ser a citação da citação, e não apenas a citação de um outro conto, numa espécie de efeito Pierre Menard, é, evidentemente, uma outra citação). Enfim, continuando com o “On with the story”, o que se passa é que o próprio conto, ao citar um outro conto, está lendo — está nos fazendo ler — o conto de onde foi citado seu parágrafo inicial. Antes, pode-se dizer também que o conto está se lendo, porque, afinal, o parágrafo citado só existe em um conto que foi apenas ficcionalmente escrito, mas que terá, ao longo do conto “On with the story”, algumas breves passagens citadas e muito de seu conteúdo comentado pelos personagens, isto é, o conto citado só existirá como parte do conto que o cita e que, na conversa dos personagens, o narra. A história, como vemos, continua não só porque depois de uma história pode vir uma outra história, mas também porque uma história pode conter dentro dela uma ou várias outras histórias. Não é apenas linearmente que a história continua — que as histórias, ao se sucederem, continuam —, mas é também retorcendo-se em si mesmas, numa topologia complexa que já é nela mesma uma outra história, que uma história pode contar e recontar a si mesma, transformando-se em mais uma outra história.

No entanto, uma história pode ser contada e recontada não apenas enquanto as abrimos como uma matrioshka, como bonecas russas, uma dentro da outra, sucessivamente menores e menores, mas também podemos contá-la em outra direção, vestindo-a com bonecas maiores e maiores, pondo o texto do conto num contexto sempre sujeito a ser recontextualizado em um outro ainda maior e em mais outro ainda maior. E uma boneca contextualizante maior de “On with the story” é, de um ponto de vista histórico-político, exatamente um contexto russo: o contexto em que a União Soviética, que era predominantemente controlada pela Rússia, se separou em diversos países menores; da União Soviética, tal como de uma matrioshka, foram retirados países menores e menores, dentre os quais, aliás, ainda hoje, há quem queira tirar países ainda menores.

Após o fim da guerra fria, em 1992, Francis Fukuyama publicou The End of History and the Last Man; John Barth, no entanto, publicou em 1996 a coletânea de contos On with the story, na qual há esse conto que se chama também “On with the story”. Ironicamente, em discordância com a logo famosa narrativa de Fukuyama, o conto de Barth surge como uma contestação de que as histórias acabem, ao mostrar que, não só sempre há uma história antes da história, assim como uma história depois de qualquer história, mas que também sempre há uma história dentro de uma outra história; ergo, também uma história por envolta dela. Enfim, contar história é sempre uma condição essencial para os humanos e que nos constitui enquanto indivíduos e seres sociais; além, é claro, de ser uma atividade eminentemente política ou, se preferirem, lúdico-política. De fato, para John Barth, em diversos livros seus, a guerra fria se mostra um infinito universo narrativo, com histórias e mais histórias de espiões e segredos, de medos e felicidades, assim como de viagens, no caso de Barth, preferencialmente, por mar — como em The Tidewater Tales, de 1987, um livro que narra uma viagem de barco e que é, por sua vez, um vasto mar de histórias – ou, além de por mar, também por ar — como em The Last Voyage of Somebody the Saylor, de 1991 (escrito quando a grande matrioshka União Soviética ainda estava montada em uma peça só), onde, além de em barcos, há viagens também em avião e em tapete voador —. Ou seja, não há por que temermos: com o fim da guerra fria, apesar do fim da KGB e do terror atômico, ainda assim, a proliferação de histórias — assim como também, hélas, a proliferação nuclear — não cessará.

De fato, não há nenhuma comprovação de que Barth estivesse buscando com seu conto responder especificamente a Fukuyama. De toda forma, um tal tipo de literatura engajada nem de longe é uma proposta de Barth. Em todo caso, “On with the story” responde a todas as proclamações sobre o fim da história ou do que for, seja as dos anos 1950, que Derrida – com comedida paixão – nos relatou acima, seja o próprio livro de Fukuyama. Enfim, “On with the story”, tal como a escrita pós-moderna de Barth em geral, é um livro que vai contra o pathos apocalíptico, afirmando a plenitude (o replenishment) e o caráter positivo e ilimitável da escrita literária: uma prática sempre criativa, recriativa e, assim, dissipadora do pesadume apocalíptico.

O conto é uma história sobre os baby-boomers, referindo-se muito ao período da guerra fria, narrando — com ironia — a nostalgia pelos anos 1950. Assim, o contexto maior, que envolve a narrativa de “On with the story” não é o conflito USA vs. URSS, mas uma boneca menor, a sub-boneca norte-americana: apenas a vida da classe média americana do pós-guerra até o suposto fim da história que, no conto, surge, ao contrário, como uma explosão de histórias inter-relacionadas, envolvidas ou envolventes, imbricadas ou paralelas.

Continuemos com a história. Alice, com já narrado, está lendo uma história. Ela está lendo essa história em um voo (“in flight”) numa dessas revistas de voo (“in-flight mag”) que algumas companhias aéreas põem no encosto do assento a nossa frente. O passageiro ao lado, por coincidência ou não, também está lendo a mesma história, na qual, como Alice reparará pouco depois, está fazendo anotações pelas margens. O título da história que ela está lendo, aparentemente contrariando o título do livro e do conto, é “Freeze Frame”, que seria algo como “imagem congelada”. Se o conto de apenas 23 páginas, não chega a ser o dilúvio de histórias das 655 páginas de The Tidewater Tales, é, porém, uma considerável inundação. A primeira grande enxurrada narrativa jorra da vida de Alice: seus estudos, seu trabalho atual, seus planos incertos para uma nova vida pós-casamento, seu divórcio em curso (ainda no ar) que, de amigável, se tornou acrimonioso, a vida do, em breve, ex-marido, prossegue com a vida de seus filhos, a de seus pais, a de seus irmãos, a da casa de veraneio, vindo, enfim, a compor toda uma imagem dinâmica e multifacética da vida norte-americana do pós-Segunda Guerra até o pós-Guerra Fria. A segunda grande enxurrada é o conteúdo da história “Freeze Frame” do in-flight mag, em que uma mulher, de idade semelhante à de Alice, vindo de uma audiência a respeito de seu divórcio confrontando seu antes amável, agora taciturno, em breve, ex-marido, fica engarrafada no trânsito; de fato, há várias semelhanças entre a história da mulher parada no trânsito e a de Alice (parada na poltrona do avião), seu divórcio litigioso, sua perplexidade paralisante ao ter de recomeçar a vida profissional em condições desfavoráveis, a vida de seus pais e a de seus irmãos, com os respectivos e similares percalços: enfim, é mais uma história sobre o sucesso da geração pós-Segunda Guerra, que gerou os baby-boomers, que, segundo o narrador de “Freeze Frames”, passaria por um desconforto que ele designou “síndrome dos Boomers” por serem “a primeira [geração] do século [XX] a não superar seus progenitores em peso e em saúde” e que, apesar de exceções, tampouco sentiriam um bem-estar maior de ordem material ou mesmo espiritual (p. 77). Além dessas narrativas todas, há a própria conversa entre Alice e o passageiro ao lado, que, após perguntar o que Alice achou da história, se identificou como o autor de “Freeze Frame”; essa conversa tem, na verdade, ao menos duas partes, na primeira, os dois falam de “Freeze Frame” e, na segunda, conversam sobre suas vidas (portanto, também a biografia do autor de “Freeze Frame” e o relato de por que o escreveu entra na história de “On with the story”). E há, é claro, muito mais: a narrativa do que se passa no voo, ou seja, do que é servido pelas aeromoças, do vinho que é bebido, do desvio de rota etc. Enfim, histórias e mais histórias. Sendo que, quando a conversa entre os dois, por fim, declina, Alice volta a “Freeze Frames”, para ler o final, e o autor se põe, mais uma vez, a fazer anotações, que Alice supõe sejam anotações para uma nova história em que ela seria uma personagem, isto é, uma história que provavelmente viria a ser esta mesma história que estou comentando e que vocês, junto comigo e a própria Alice, leram, lá no início o início dela.

No entanto, antes de chegarmos ao fim, continuemos, ao menos mais um pouco. O que Alice disse ao autor sobre o que ela havia entendido de “Freeze Frame”, dessa história com a qual ela se sentiu, segundo declarou, fortemente identificada?

A história se chama “Imagem Congelada”, não é? A mulher parada no trânsito do mesmo modo em que sua história de vida está parada, e o autor recua o foco da narrativa para nos apresentar a quadro geral... Há movimento dentro de movimento, mas também pausas dentro das pausas. Há imagens congeladas de imagens de imagens congeladas... E a questão é a de que essas imagens congeladas estão em movimento — pelo espaço afora [“Freeze Frames” se refere ao movimento da Terra no espaço e entorno de seu eixo] e pelo tempo afora – tal como nós, sentados aqui, também estamos... (BARTH, 1996, p. 89)

A conclusão — ou epílogo — deste comentário sobre “On with the story”, ou seja, sobre “Continuemos a história”, ou “Continuem a história”, ou “A história continua,” ou “Contemos mais histórias” et cetera, é, evidentemente, a de que não chegamos ao fim da história, e, assim, continuaremos a contar histórias: há oceanos de histórias acontecendo e sendo contadas, e todas são matrioshkas infinitas, sempre proliferantes. Enfim, a história continua.


Referências

Barth, John. On with the Story. Boston: Little, Brown, and Company, 1996

__________. The Tidewater Tales. A novel. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1987

__________. Last Voyage of Somebody the Saylor: New York: Anchor Books, 1991

__________. Lost in the Funhouse. New York: Anchor Books, 1988 [1968]

DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993

Fukuyama, Francis. The End of History and the Last Man. New York: Free Press, 2006

HITE, Molly. “Fun Actually Was Becoming Quite Subversive”: Herbert Marcuse, the Yippies, and the Value System of Gravity’s Rainbow. Contemporary Literature. 51, 4, p. 677-702, 2010.

RIOS, André Rangel. O ato de publicação. Rio de Janeiro: Booklink, 2007.


  1. Todas as traduções são de minha autoria.

  2. Este livro foi revisado por Barth na década de 1960. Nunca vi a edição original, a que seria, segundo a critica, realista.

  3. Sobre a obra de Noll, em especial Berkeley em Bellagio, frente à escrita literária e acadêmica, ver: “Rodrigues-Filho, Noll e Vonnegut. Escrita literária e linguagem acadêmica”, in: RIOS 2007, p. 103-152. Vonnegut, sempre dependendo do critico e de seus critérios é considerado pós-modernista.

  4. Seja como for, ainda que difiram quanto à paranoia, Barth e Pynchon têm muito em comum, além de publicarem livros voluminosos (uma característica, aliás, bem palpável, nada etérea, especulativa ou abstrata compartilhada por vários deles), que é o uso do prazer e da diversão literária como gesto político. Especificamente sobre Pynchon, ver: HITE 2010.