Sara Rojo
Faculdade de Letras da UFMG/CNPq
Tradução de Flávia Almeida Vieira Resende
Este trabalho fará uma aproximação à ditadura chilena, partindo da memória corporal e da vivência experimentada nesse período. Especificamente, no Chile existiu um teatro de resistência que lhe permitiu ao espectador respirar e aos criadores expressar por meio de uma experiência coletiva a mutilação que viviam. Desse período, nasceram peças que ainda repercutem na memória.
PALAVRAS CHAVES: ditadura chilena; teatro; experiência.
Este trabajohará una aproximación a la dictadura chilena, partiendo de la memoria corporal y de la vivencia experimentada en ese período. Específicamente, en Chile existió un teatro de resistencia que le permitió al espectador respirar y a los creadores expresar, por medio de una experiencia colectiva, la mutilación que vivían. De ese período, nascieron piezas que aún repercuten en la memoria.
PALABRAS LLAVES: dictadura chilena; teatro; experiencia.
This work will make an approach to the Chilean dictatorship, starting from the body memory and living experienced during this period.Specifically, in Chile there was a theater of opposition that allowed to the spectator to breathe and to the creators express through a collective experience the mutilation that they lived. From this period were borned plays that still reverberate in memory.
KEYWORDS: Chilean dictatorship; theater; experience.
Sara Rojo (http://lattes.cnpq.br/9036774611793986)
Possui graduação em Letras pela Pontificia Universidad Católica de Chile (1979), mestrado (Master of Arts) pela State University of New York (1989), mestrado (Magister en Letras Hispánicas) pela Pontificia Universidad Católica de Chile (1985) e doutorado em Literaturas Hispânicas pela State University of New York (1991). Realizou dois pós-doutorados, na Università degli Studi di Bologna (2001) e na Universidad de Chile (2007). Atualmente é bolsista de produtividade do CNPq e professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Letras e Artes, com ênfase em Crítica Teatral.
Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Superarão outros homens este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. (Salvador Allende).
Em setembro de 2013 completaram-se quarenta anos do nefasto onze de setembro que deu início à ditadura militar chilena e, em primeiro de abril de 2014, cinquenta anos da ditadura brasileira. Rememoração de datas que produzem demasiada dor e que precisam ser estudadas a fundo em todos os campos. O teatro, nesse sentido, cria zonas transitórias de indeterminação com possibilidades de abertura a outros espaços que oferecem os meios para refletir sobre o passado. É nelas que se pode pensar em uma meta-política dissidente e em seres ou obras vaga-lumes que resistam à grande luz, seguindo o pensamento de Didi-Huberman (2011, p. 154-155). O que se postula aqui é que ainda que o mundo dos grandes relatos, com verdades absolutas de mundos utópicos, tenha perdido seu lugar privilegiado, isso não significa o abandono das verdades relativizadas e/ou de micro esperanças a nível social nem das heterotopias no campo escritural.
O caminho para realizar a operação de construção imagética das obras apresentadas, neste contexto, passa pela análise da tomada de posições presente nas configurações das obras. É o imaginário criado o que permite visualizar distintos tempos e espaços, inclusive por meio do que não é apresentado. Aquilo que é negado à visualização diária e que se retoma na peça não necessariamente o mostrando. Os dramaturgos escolhidos, neste texto, têm uma posição muito clara de recusa ao espaço de enunciação repressivo e corrompido por uma estrutura autoritária.
A contribuição de Rancière, para pensar as formas de visualização da arte, possibilita uma reflexão, por outro viés, sobre este tema. Ele define que as “práticas artísticas são formas de fazer” (2009, p. 17) que “intervêm na distribuição geral das formas do fazer e em suas relações com as formas de ser e com as formas de visibilidade” (2009, p. 17). Portanto, não se trata de pensar que a obra deva propor uma microutopia (ou heterotopia, que é o que é possível nos textos) para abrir caminhos, é necessário também refletir sobre a relação que ela estabelece com as formas de ser de uma comunidade em um momento determinado.
Uma imagem capaz de criar uma zona de indeterminação reflexiva é aquela que atravessa o pessimismo para outro tipo de imagem. Aquela cuja particularidade, cuja precisão de sentido, cujo enquadramento, cuja forma de colocar em contato os corpos, cuja capacidade modificadora permite que se sobreponha às outras através de mecanismos que incorporam o diálogo entre quem a produz e quem a recebe. Dessa forma, existe uma relação entre o fazer e a imagem.
Neste trabalho, a contribuição é feita a partir de uma análise de algumas imagens do teatro chileno marcado pelo período ditatorial. A dramaturgia, nesta situação de emergência, vinculou resistência e criatividade. Os artistas no Chile ditatorial viveram a prisão, o exílio e a perseguição e, apesar disso, continuaram criando, ainda que com mudanças na forma de realização e na linguagem empregada. Na década de sessenta, o trabalho teatral no Chile estava baseado principalmente na produção de grupo, com uma forte presença da criação coletiva (Ictus, Aleph). Ainda que esse tipo de produção não tenha sido extinta no período ditatorial, como mostra o trabalho do TIT – Taller de Investigación Teatral, foi praticamente substituído por uma dramaturgia mais de individualidades, mesmo que sempre vinculada ao trabalho cênico. Nesse período houve:
continuidades escriturais. A maior expoente é, sem dúvida, Isidora Aguirre, que escreveu peças marcadas pela estética brechtiana, desde os anos sessenta;
peças psicológicas com formato social. Marco Antonio de la Parra, psiquiatra-dramaturgo, foi quem mais se destacou nesta linha de trabalho;
uma produção herdeira das formas surgidas no exílio. Um diretor e dramaturgo nesta linha foi Ramón Griffero, que chegou ao Chile com uma bagagem teórico-prática que instalou no El Trolley, galpão dos ferroviários;
uma veia de continuidade histórica da criação popular. Um expoente foi o trabalhador tipógrafo Juan Radrigán (herdeiro dos escritores populares Antonio Acevedo Hernández e Manuel Rojas), que a manteve.
O subtítulo acima se relaciona com a capacidade desta autora de perdurar e refazer-se em diferentes épocas. Isidora Aguirre (1919-2011) escreveu o célebre musical La pérgola de las flores (1960), que a crítica considera tanto um ápice de sua carreira, iniciada em 1955 com Carolina, quanto do teatro chileno. A autora passou pelo cinema, a ilustração, o ensino universitário para ficar no teatro. Adquiriu novas energias ao aproximar sua dramaturgia do método brechtiano. O diálogo entre teatro e sociedade se transformou, em suas obras, em um campo de intensidades que perdura até hoje em seus textos. Los papeleros (1963) se situa no contexto do deslocamento do campo à cidade (ainda existente) e ensaia uma possibilidade de alterar as condições de vida das pessoas que recolhem resíduos. A estética brechtiana, com a qual se apresenta o conflito, culmina com uma imagem aberta que convoca o espectador/leitor a tomar uma posição.
Lautaro (1982) é um grito de resistência no período ditatorial. A obra baseou-se na imagem mítica do herói mapuche, Lautaro, que, como servo do conquistador espanhol, Pedro de Valdivia, estudou as estratégias de luta dos colonizadores e, desta forma, modificou a resistência indígena. Aguirre traz a imagem do passado ao presente, dos homens da terra (mapuches) aos dissidentes. A dramaturgia a resgatou como motor propulsor de uma peça de convocatória, de chamada à rebelião. A estética escolhida para realizar esta operação foi o teatro épico brechtiano, com direito a coros, cantos, prólogo contextualizador e historização do relato. A música escolhida para a montagem da peça foi a de um grupo alternativo, que combinava rock progressivo com ritmos folclóricos, os Jaivas. Esta banda tinha uma clara postura de enfrentamento às forças da ordem imperante e uma grande repercussão no público. O que, junto a outros elementos como a afetividade do espaço compartilhado, trouxe a obra para o presente dos anos oitenta. É fundamental esclarecer que, nesse momento, o Chile vivia as primeiras manifestações massivas contra o regime.
A peça se divide em partes, dentre as quais a primeira já estabelece uma relação entre passado e presente por meio de uma cena íntima entre Lautaro e sua mulher (Guacolda), cena que produz uma imagem empática com o discurso feminista, muito presente no período. Os personagens, subvertendo o costume de que os pais escolham o companheiro dos filhos, declaram que a decisão de estarem um com o outro foi deles, ou melhor, dela: “Guacolda: (Ri sedutora) Como está enganado… foi Guacolda que escolheu Lautaro! Quando saía para caçar no bosque, de propósito eu cruzava o seu caminho, e me fazia suave e doce para você”1 (AGUIRRE, 1982, p.24).
Uma segunda imagem é a de Pedro de Valdivia perante Lautaro. A capacidade de aprender e a altivez com a qual este declara que não pode ser seu amigo impressionam o conquistador. Valdivia, no relato de Aguirre, busca criar o laço afetivo que permitiria a consolidação do poder espanhol, Lautaro o recusa, convocando, com sua atitude, a independência de seu povo. A forma como se dá a partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009) entre esses dois personagens constrói uma das configurações fundamentais a nível nacional: poder central em mãos espanholas ou de seus descendentes versus povo mapuche subjugado. Essa configuração ainda se reflete nos sentimentos que surgem em eventos massivos como a Copa do Mundo de Futebol de 2014, quando o Chile ganha da Espanha e os torcedores saem às ruas gritando frases alusivas à independência. Esse jogo de futebol foi vivido como uma vitória política, uma imagem que se sobrepunha à imagem histórica. Por outro lado, essa mesma problemática, com um olhar mais questionador e menos unilateral, está presente em obras de autores mais jovens, como Diciembre (2009), de Guillermo Calderón.
Desde a década de setenta, quando o psiquiatra e dramaturgo chileno Marco Antonio de la Parra (1952) inicia sua produção dramática, sua obra produziu uma quantidade relevante de reflexões críticas na América Latina.
Sua peça Lo crudo, lo cocido y lo podrido (1978) foi censurada pela Reitoria da Universidade Católica depois de sua pré-estreia, e posteriormente chegou ao palco por via de seu diretor Gustavo Meza. Os personagens, nessa obra, são garçons de um restaurante de centro de cidade que sobrevive ao esquecimento; eles pululam entre os vivos e os mortos que enchem os reservados do velho local. Políticos e governantes do passado, homens do poder senhorial e excludente de um Chile que permitiu aos militares o acesso ao poder.
O restaurante funciona como uma analogia do apodrecimento da elite que o Chile ditatorial restaurou. Os garçons não têm vida própria, são um álbum velho de recordações de Arturo Alesandri Palma, Carlos Ibáñez del Campo e outros tantos nomes que povoaram a história chilena. Sua lógica de funcionamento é semelhante à militar: obedecer sem questionar, confundir-se no anonimato, crer, sobretudo, no que está anotado no livro permitido. Seu desejo reprimido é voltar ao passado, ou, ainda, é sair da reclusão e contaminar-se com o espaço externo, com os homens e mulheres comuns que buscam um sanduíche ao meio-dia para seguir trabalhando, mas a porta está fechada: “Evaristo: A porta está fechada para que ninguém entre/ Efraín: Não! Está fechada porque não entra ninguém.”2 (DE LA PARRA. In: HURTADO; BARRÍA, 2010, p.128). De la Parra toma posição e é ela que o leva a buscar pequenas luzes de esperança na rejeição da ordem pela ordem, na negação ao respeito à hierarquia, na porta que finalmente os garçons abrem, deixando passar o barulho de uma sociedade viva: “Vamos: (Saem. Escutam-se as dobradiças rangendo. Uma luz seca e descarnada invade o cenário vindo da porta. O ruído da rua: vendedores, transeuntes, veículos. Uma canção popular vai aumentando, pouco a pouco, até cobrir todo o som, persistindo ainda ao descer a cortina”3 (DE LA PARRA. In: HURTADO; BARRÍA, 2010, p.153). O mundo externo entra no reduto fechado de um passado que já não existe por meio de uma “luz seca e descarnada” e do barulho da cidade.
De la Parra cria um regime de visibilidade no qual combina os dramas pessoais com a subversão a um modelo social e político autoritário vigente na pós-ditadura. Sua linguagem, em duas obras muito próximas temporalmente, utiliza dispositivos diferentes. Em El continente negro, de 1994, corresponde à linguagem necessária para uma montagem realista stanislavskiana e, em La pequeña historia de Chile, de 1995, a uma linguagem hiper-realista que se intensifica por meio de uma proposta onírica. Por tanto, o que se coloca em jogo em sua dramaturgia não é a reafirmação de uma determinada estética teatral, mas sim um tipo de imagens que lhe permitem projetar uma crítica ao presente com o peso do passado e uma forma ética de entender o mundo.
Em La pequeña historia de Chile, as rubricas descrevem uma atmosfera densa e obscura (característica que também está presente na obra já analisada, Lo crudo, lo cocido y lo podrido). Essa atmosfera é criada pela visualização de uma escola pública em ruinas que adquire uma dimensão metafórica maior no contato com a trama. São os restos do autoritarismo, os restos de uma pátria em ruínas: “Um mar de carteiras ocupa todo o espaço do cenário, talvez até mesmo o público esteja sentado em carteiras. Janelas estreitas, pouca luz. Quadros negros, antigos. Retrato de algum fundador da pátria, velho, torto, mal pendurado. Paredes de madeira ou muros trincados. Cores de escola pública do interior”4 (DE LA PARRA, online5). A escola (um espaço fechado, sem saídas) é uma representação da violência externa, mas, se cabe alguma dúvida sobre o clima e a energia circulante, rapidamente vem uma segunda rubrica com a intensificação do mesmo tempo de visibilidade,“Estampido de rifles. Marcha fúnebre tocada por banda.”6 (DE LA PARRA, online) para adquirir em um in crescendo um caráter onírico e mais agressivo: “Escuta-se uma debandada de búfalos. Escondem-se embaixo das mesas, apavorados. Silêncio total. Denovo os náufragos sobem às mesas, empoleirados como nadadores exaustos, sobreviventes do afundamento do Titanic”7 (DE LA PARRA, online). Esta última frase, pela rubrica da imagem midiática, tem um tom irônico e sarcástico que também podemos reconhecer em outras obras do autor, como La secreta obscenidad de cada día (1984).
Não é acidental que De la Parra tenha escolhido esse espaço em La pequeña historia de Chile. De fato, a educação pública foi abandonada e reprimida durante o período ditatorial (sem um orçamento adequado, foi privatizada) e esta situação se mantém até hoje, quando o governo da Nueva Mayoría (coalizão de centro-esquerda) tenta realizar uma reforma de base pela gratuidade da educação, se deparando com inúmeros obstáculos. 2006 foi um ano emblemático para o movimento estudantil chileno, quando os jovens secundários romperam com a estagnação na qual se encontravam durante os governos de centro da Concertación e reivindicaram uma educação gratuita. Recuperaram a combatividade dos jovens dos anos oitenta e impulsionaram uma renovação do conjunto do movimento social. O interessante e triste é, então, que a peça não perde vigência, pois o problema ainda existe. De fato, novas marchas convulsionaram a sociedade chilena em maio de 2011, mas desta vez a pressão
se exerceu sobre um governo de direita. Os jovens se apoderaram das ruas de Santiago durante 2011 e 2012, descobrindo sua potência através do reconhecimento da sociedade civil. O movimento se iniciou com um chamado da Confederación de Estudiantes Universitarios em maio, ao qual se somaram os estudantes de ensino médio em junho e, finalmente, a sociedade e suas organizações sociais nos meses seguintes. Em 2014, continuaram as lutas estudantis para que, entre outras coisas, o governo de Bachelet incorpore os estudantes nas tomadas de decisão no campo educacional. De la Parra põe na mesa uma situação que durante as últimas décadas tem sido um dos objetivos de luta do movimento estudantil. Cada cena está construída em torno de uma imagem. A primeira, Mapa, se estabelece a partir daquilo que não se vê (alunos, mapas, vida escolar, memória). A situação dramática se constrói a partir das ausências, das carências do básico que definiria ontologicamente a um colégio:
Muñoz: os alunos, há quanto tempo não vemos os alunos?
Loureiro: a memória...
Muñoz: a história do Chile se perdeu...
Rector: isto é intolerável...
Loureiro: não há mapa...
Muñoz: não há colégio...
Loureiro: não há o que dizer...
Rector: Façam a chamada!
(DE LA PARRA, online)8
A segunda sequência, Todo se pierde, desde seu título nos remete ao esquecimento e, novamente, à ausência. A sétima se denomina Algo en el aire e se conecta com o medo e os desaparecimentos, forças e seres que não se veem, mas que pesam. A oitava, Fantasía, caminha em outra direção sempre presente na dramaturgia deste escritor, trata-se de uma imagem com conotação erótica. A sensibilidade caminha neste caso ao encontro de um olhar interior que submerge em nossas memórias adolescentes:
Muñoz: me olham.
Loureiro: nos olham.
Muñoz:olham as minhas pernas quando me sento.
Loureiro:olham nossas pernas quando nos sentamos.
Muñoz: sei que murmuram.
Loureiro: murmuram.
(DE LA PARRA,online) 9
Embora a situação dramática anterior estabeleça uma relação com esse mundo de desejos ocultos e dos olhares, transcende esse plano para o da projeção de uma sociedade baseada na hierarquia e na “temperança” das paixões. A nona, Las pruebas, traz o peso do controle sobre os indivíduos, e a décima primeira e décima quarta, La bandera e El acto civico, um patriotismo perdido, inclusive com seus símbolos, a bandeira e o hino. Mas, ainda que esta evolução conduza à morte, à ruptura da história e aos desaparecimentos, a obra dá um giro no desfecho e levanta uma pequena luz de esperança:
Loureiro:Vou mudar um pouco minhas aulas. Falarei sobre o Chile a partir de suas mulheres...
Sanhueza:E eu a partir de sua gente comum e simples...
Muñoz:e eu a partir de seus mortos anônimos... suas crianças... seus jovens...
Rector: Sobrou giz?
Muñoz: não, mas não nos faz falta...
Sanhueza: não há mapa.
Rector: não faz falta.
Muñoz: não há bandeira.
Sanhueza: também não é necessária.
Fredes: que faço?
Rector: faça memória
(DE LA PARRA, online)10
Essa cena final entrega um novo espaço para partilhar baseado na memória de um povo e não mais em seus símbolos externos. A educação pode e deve mudar, mas, para fazê-lo, cada sujeito deve fazer memória.
Ramón Griffero, tendo retornado do exílio em 1982, fundou o teatro Fin de siglo (1983-1987) com outros artistas como Alfredo Castro e Verónica García Huidobro. A configuração desta experiência buscava em si mesma ser um espaço de resistência à ditadura, inclusive com um formato de produção que envolvia o público, que participava de atividades alternativas, como festas punk para arrecadar fundos que financiassem as peças.
No prólogo de sua obra La morgue (1987), constrói-se uma imagem reveladora do acordo excludente que se realizava na sociedade pinochetista. A fórmula para realizá-lo é a evocação de outras histórias de morte:
Por que estando em 1986 percorrendo e percorrendo não somente esta colônia, mas também outras épocas, outras eras, pensando que desapareceremos com o fim do século.
Pensando na verdade da mentira, e nas mentiras da verdade.
Por que tinha que percorrer as ruas e os funerais pensando como aquele novo caído, mártir de uma tarde, escutaria, do interior de seu caixão, tantos gritos, tantas vezes que o chamavam presente, e já eram tantos os nomes e tantos os sobrenomes, por que já não existiam os funerais silenciosos como se já não se morresse por si mesmo, mas por algo.
(…) E os momentos precisos habitam o futuro e o passado, mas nunca o presente11
(GRIFFERO, online12).
A peça, cheia de indicações de cena, direciona o olhar para os mortos e cria uma “imagem intolerável” (RANCIÈRE, 2010), que se volta para o leitor/espectador obrigando-o a reconhecer-se nela, pois está no seu próprio mundo. Tudo converge para a morte. Desde a moça que canta uma aparente canção popular no necrotério,“Fernanda: Diz que é mentira que ele desapareceu que seu rosto ainda não foi apagado. Diz, por favor, que não pequei”13 (GRIFFERO,online), até uma cena de outro tempo em uma sala do século XVIII.
O jogo dos espaços (o necrotério – a sala), de estéticas (do melodrama ao hiper-realismo) e de linguagens (da popular à poética, passando pelas próprias da época) permite configurar passados e presentes na mesma trama imagética. Griffero utiliza essa técnica em várias obras, por exemplo, na sua obra mais reconhecida pela crítica, Cinema utoppia (1985), na qual combinou espaços e tempos (Chile dos anos quarenta, França dos anos oitenta, o espaço ficcional do cinema, o do público) com diferentes linguagens estéticas e sem medo dos cruzamentos. O que configura, como ele mesmo intitulou, dramaturgias do espaço.
Esse tipo de encenação possibilita ampliar o campo semântico e gerar paralelos para além das cronologias. No caso específico de La morgue, o da morte como fenômeno específico. Por outro lado, pela força de cada imagem, a peça é pontual com relação ao que a ditadura deixou: a tortura e a morte. Dessa forma, a imagem não é só intolerável por si mesma, depende, como assinala Rancière (2010, p. 104), do “dispositivo de visibilidade” no qual se encontra. Neste caso, o dispositivo era uma peça de um teatro independente que buscava resistir por meio de imagens deslocadas do fazer diário, mas presente na visibilidade da época (a morgue), ao discurso de força bruta que imperava não só entre os aparatos repressivos do estado, mas também em âmbitos aparentemente alheios a essa estrutura.
As obras deste autor estão marcadas pela quebra das utopias sociais, pela configuração de imaginários políticos questionadores e pela ruptura da temporalidade e espacialidade únicas no cenário. Isso se apresenta em suas peças, conjuntamente, com uma forte presença de uma palavra poética que encarna em si mesma uma heterotopia.
A última referência na qual se deterá este estudo é a produção de Juan Radrigán (1937-2016), um trabalhador tipógrafo que produziu uma mudança cênica ao levar para o palco os excluídos de todos os discursos e colocar no centro da problemática a questão da dignidade do marginalizado. Já não são os trabalhadores nem os estudantes dos anos sessenta nem tampouco as classes favorecidas que têm a palavra, são aqueles que a história esqueceu.
Juan Radrigán surge no mundo artístico-teatral chileno durante o regime de Pinochet, ainda que seu fazer teatral tenha se iniciado em 1970 com a estreia de Testimonios de las muertes de Sabina. Sua criatividade incansável segue remetendo até hoje ao Chile que não se mostra. Um dramaturgo e crítico chileno, Luis Barrales, aponta:
Radrigán surge como uma voz arrebatadora no final dos anos 1970 e início dos 80. É um teatro exangue de medo e de ditadura, quando poucas vozes foram as que enfrentaram a esse horror, tentando opor a beleza das letras e a subversão das imagens com um modo irrefutável de rebeldia, sobrevivência e negação da resignação. Nessa resistência, o acompanharam, entre outros, Griffero e de La Parra, mas o que distingue Juan do resto das vozes é a origem social de sua voz terna e talentosa.14
(BARRALES. In: HURTADO; BARRÍA, 2010, p. 299).
Sua dramaturgia se situa em um espaço de marginalidade, coloca, no palco, os despossuídos, com sua variante linguística, suas formas corporais e afetivas de estabelecer contatos. Entre eles, se reconhecem e terminam finalmente apoiando-se ou morrendo juntos. Mas não por isso são puros; ao contrário, estão cheios de contradições. Não podemos deixar de ver nesses textos o “sintoma” de uma sociedade enferma de individualismo e autoritarismo. Sua obra é de perda, de perda de democracia, de esperança, de ser. Os personagens radriganos não participam do movimento político organizado, são seres em situação limite. Esse limite, por analogia, se conectava, no período ditatorial, com aquele que viviam todos os chilenos e hoje se volta a corporizar nos setores marginalizados do sistema neoliberal. Assim o testemunham peças de uma força incalculável como El loco y la triste, de 1980, e Hechos consumados, de 1981.
Sua obra Las brutas (1983) está ambientada na pré-cordilheira, em um lugar abandonado nos montes durante 1974. É muito importante situar essas duas referências: a do isolamento e a de uma ditadura nascente, para entender o contexto de morte que as três irmãs Quispe Cardozo vivem (ou melhor, morrem lentamente). A mais jovem, Luciana, começa a peça cantando e perguntando sobre o amor, mas termina amarrada à morte como suas irmãs. A rubrica final propõe uma imagem que fecha qualquer esperança: “(O ideal é poder mostrar a rocha com os três laços. E melhor ainda se a rocha tiver uma vaga forma de forca)”15.(RADRIGÁN, 1993, p.135).
Grande parte do primeiro ato, para não dizer todo ele, se constrói com base em um diálogo das três irmãs que rememoram os mortos (do pai a uma cabra) e os que se foram do lugar em busca de outras terras onde pudessem viver e não apenas subsistir. Estes últimos, para Justa, a irmã mais velha, também estão mortos (inclusive sua filha). O segundo ato se estrutura em torno do medo do que não se vê, do que não se conhece. É uma forma de (in)visibilidade em que o político se assume, chocando o espectador/leitor com uma “imagem intolerável” que não está, uma imagem que atinge na subjetividade pela ausência.
As três mulheres velhas, atemorizadas e isoladas do mundo, optam pelo suicídio, portanto a analogia é possível e quase inevitável com as pessoas destruídas pela ditadura. De fato, os personagens se referem ao governo como a madrasta e reconhecem que a morte lhes chega por não terem sido capazes de abrir as comportas. Assim, os personagens são também responsáveis por seu próprio fim, não são só vítimas do sistema. O escritor tomou uma posição (DIDI-HUBERMAN, 2008) e julgou eticamente sua própria criação, seus personagens.
O percurso que fizemos por esses autores do período nos mostra que ainda que todos eles questionem o ar rarefeito de uma época, transcendem sua mera representação em direção ao questionamento do papel que cabe ao sujeito como o único agente possível de mudança. Isidora cria uma imagem dialética juntando passado e presente na figura de Lautaro e impregna com sua força cada membro da resistência antiditatorial. O coro o reconhece explicitamente: “Lautaro, você está aqui./Lautaro, estou com você./Lautaro, está comigo. Está em mim, Lautaro…”16 (AGUIRRE, 1982, 106). Em Lo crudo, lo cocido y lo podrido, os personagens partem ao exterior. Que acontecerá depois disso? Não sabemos, mas sabemos sim que passaram os portões e se transformaram em seres vaga-lumes, que iluminaram com uma pequena esperança no meio do confinamento. O mesmo acontece em La pequeña historia de Chile. Em La Morgue, de Griffero, o máximo que se consegue é o questionamento da morte e da ignomínia que assolam o país: “Três orifícios de chumbo, amálgama de nossas montanhas, isso é tudo o que valia, porque terão temido você, seus olhos são belos, será que não gostam dos seus lábios... acreditaram que você era mais poderosa que um exército, mais que uma bruxa ardendo em uma praça de Sevilha.”17(GRIFFERO, online). Radrigán, como Griffero, só salva a dignidade de seus personagens. Eles não persistem na memória social como os de Isidora Aguirre, nem por sua própria decisão, como os de Marco Antonio de la Parra, as irmãs morrem na agonia e na impotência.
Esta reflexão buscou pensar a imagem dentro do teatro chileno marcado pela ditadura. As produções analisadas funcionam como artistas de um todo maior que espreita uma vasta produção teatral que tem como denominador comum a resistência em um período escuro da história do Chile.
Dessa forma, reflete-se sobre as formas de criação imagética, mas dentro de um diálogo que amplia o espectro revisado e permite pensar sobre como se posicionam e/ou intervêm politicamente determinados autores, através do tipo de imagem que escolhem. As obras levam a refletir que, se se quer habitar um espaço democrático, é necessário modificar, de forma substancial, as bases estruturais que sustentam o poder, e sonhar que a arte pode jogar um papel importante nesse processo. O interessante é que, quando o fazem, como no caso das peças estudadas, construindo visibilidades oblíquas, exigem um olhar crítico.
Esta dramaturgia analisada dentro do dispositivo no qual nasceu é detonadora de memórias, de imagens que obrigam a cada leitor/espetador a olhar-se, de escritura do passado com vigência no presente. Os dramaturgos visitados deslocam o tema do histórico ao pessoal, do particular ao geral, e, dessa forma, tecem uma rede entre corpos específicos que se enfrentam a outros, entre dimensões pessoais que se expandem a um campo universal.
AGUIRRE, Isidora. Lautaro. Epopeya del pueblo mapuche. Santiago: Ed. Nascimento, 1982.
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ALLENDE, SALVADOR. Alocuciones radiales del 11 de septiembre de 1973. Santiago: Lom, 2003. pp. 69-75.
BARRALES, Luis.Hechos consumados: la tierna lucidez de todos los tiempos. In:HURTADO, María de la Luz; BARRÍA; Mauricio. Antología: Un siglo de dramaturgia chilena. Volumen III, 1973-1990. Santiago: Bicentenario, pp. 299 a 302.
BENJAMIN, Walter. La dialéctica en suspenso. Trad. e notas de Pablo Oyarzún. Santiago: Lom, 2009.
DE LA PARRA, Marco Antonio. Lo crudo, lo cocido y lo podrido. In: HURTADO, María de la Luz;BARRÍA, Mauricio. Antología: Un siglo de dramaturgia chilena. Volumen III, 1973-1990. Santiago: Bicentenario, pp. 117-153.
DE LA PARRA, Marco Antonio.La pequeña historia de Chile. Disponível em: <http://jbarret.5gbfree.com/juanbarret/LB/OB/056%20-%20Historia.pdf>.Acesso em: 10 mar. 20013.
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GRIFFERO, Ramón. Griffero.cl.Disponível em: <http://griffero.cl>. Acesso em: 15 abr. 2014.
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RADRIGÁN, JUAN. Teatro (11 0bras) Santiago, Ediciones Lom, Segunda edición ampliada, 1993.
RANCIÈRE, Jacques. RANCIÈRE. El espectador emancipado. Trad. Ariel Dilon. Pontevedra: Ellago Ensayo, 2010.
O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.
—————. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed.34, 2005 I ed. e 2009 II ed.
“Guacolda: (Ríe coqueta) Que te equivocas… ¡fue Guacolda quien escogió Lautaro! Cuando salías a cazar al bosque, de intento me cruzaba en tu camino y me hacía suave, dulce para ti”.↩
“Evaristo: La puerta está cerrada para que no entre nadie/ Efraín: ¡No! Está cerrada porque no entra nadie”.↩
“Vamos: (Salen. Se escuchan los goznes crujir. Una luz seca y descarnada invade el escenario desde la puerta. El ruido de la calle: vendedores, transeúntes, locomoción. Una canción popular va en aumento, poco a poco, hasta cubrir todo el sonido persistiendo aún al caer el telón)”.↩
“Un mar de pupitres ocupa todo el espacio del escenario, tal vez incluso el público está sentado en pupitres. Ventanas estrechas, poca luz. Pizarras negras, antiguas. Retrato de algún padre de la patria, ajado, torcido, mal colgado. Paredes de madera o muros trizados. Colores de liceo fiscal de provincia”.↩
Disponível em: <http://jbarret.5gbfree.com/juanbarret/LB/OB/056%20-%20Historia.pdf>.↩
“Estampida de rifles. Marcha fúnebre tocada por banda”.↩
“Se escucha una estampida de búfalos. Se cubren bajo los pupitres, despavoridos. Silencio total. De nuevo los náufragos subiendo a los pupitres, encaramados como exhaustos nadadores sobrevivientes del hundimiento del Titanic”.↩
“Muñoz: los alumnos, ¿cuánto tiempo que no vemos a los alumnos? / Loureiro: la memoria... / Muñoz: la historia de chile se ha perdido... / Rector: esto es intolerable... / Loureiro: no hay mapa... / Muñoz: no hay liceo... / Loureiro: no hay nada que decir... / Rector: ¡pasen lista!”↩
“Muñoz: me miran. / Loureiro: nos miran. / Muñoz: me miran las piernas cuando me siento. / Loureiro: nos miran las piernas cuando nos sentamos. / Muñoz: sé que murmuran. / Loureiro: murmuran”.↩
“Loureiro: yo voy a cambiar un poco mis clases. Contaré a Chile desde sus mujeres... / Sanhueza: y yo desde su gente común y corriente... / Muñoz: y yo desde sus muertos anónimos... sus niños... sus jóvenes... / Rector: ¿queda tiza? / Muñoz: no, pero no nos hace falta... / Sanhueza: no hay mapa. / Rector: no hace falta. / Muñoz: no hay bandera. / Sanhueza: tampoco es necesaria. / Fredes: ¿qué hago? / Rector: haga memoria”.↩
“Por qué estando en 1986 recorriendo y recorriendo no tan sólo esta colonia si no otras épocas, otras eras, pensando que desapareceremos con el fin de siglo.
Pensando en la verdad de la mentira, en las mentiras de la verdad.
Por qué había que recorrer las calles y los funerales pensando como aquel nuevo caído, mártir de una tarde, escucharía desde el interior de su urna, tantos gritos, tantas veces que lo llamaban presente, y ya eran tantos los nombres y tantos los apellidos, por qué ya no existían los funerales silenciosos como si ya no se muriera por sí, sino por algo.
(…) Y los momentos precisos habitan el futuro y el pasado pero nunca el presente”.↩
Disponível em: <http://Griffero.cl>.↩
“Fernanda: Dígame que es mentira que se fue, que su rostro aún no se ha esfumado. Dígame por favor que no he pecado”.↩
“Radrigán surge como una voz arrebatadora a fines de 1970 y principios de los 80. Es un teatro exangüe de miedo y dictadura, pocas fueron las voces que se enfrentaron a ese horror, intentando oponer la belleza de las letras y la subversión de las imágenes con un modo irrefutable de rebeldía, supervivencia y negación de la resignación. En esta resistencia lo acompañaron entre otros, Griffero y de La Parra, pero lo que lo distingue a Juan del resto de las voces es el origen social de su voz tierna y talentosa”.↩
“(El ideal es poder mostrar la roca con los tres dogales. Y mejor aún si la roca tiene una vaga forma de cadalzo)”.↩
“Lautaro, estás aquí./Lautaro, estoy contigo./Lautaro, estás conmigo. Estás en mí, Lautaro…”↩
“Tres orificios de plomo, amalgama de nuestras montañas, eso es todo lo que valías, por qué te habrán temido, tus ojos son bellos, será que no les gustan tus labios... Te habrán creído más poderosa que un ejército, más que una bruja ardiendo en una plaza de Sevilla”↩