“... uma espécie e forma completamente nova de autobiografia”

Especulações sobre os manuscritos e fotografias do espólio de Siegfried Kracauer

Maria Zinfert

Peter Szondi Institut – Universidade Livre de Berlim

maria@zinfert.com

Tradução: Douglas Valeriano Pompeu (Universidade Livre de Berlim)

Revisão técnica: Luciana Villas Bôas (UFRJ)

Resumo: A partir de um envelope vazio, que integra o espólio de Friedrich Kracauer no Arquivo Literário de Marbach, e que traz a inscrição “Curriculum Vitae in Pictures (Friedel)”, comentam-se algumas fotos que poderiam estar guardadas nele. Em seguida, tecem-se especulações sobre aspectos formais da autobiografia planejada por Kracauer.

Palavras-chave: Arquivo; Autobiografia; Fotografia; Teoria da fotografia; Estrangeiro.

Abstract: Ausgehend von einem leeren Kuvert, das zum Nachlass von Siegfried Kracauer im Deutschen Literaturarchiv Marbach gehört und die Aufschrift “Curriculum Vitae in Pictures (Friedel)” trägt, werden einige Fotos, die darin enthalten gewesen sein könnten, kommentiert und anschließend Spekulationen über formale Aspekte einer von Kracauer geplanten Autobiographie skizziert.

Schlagwörter: Archiv; Autobiographie; Fotografie; Fototheorie; Fremder.

No Arquivo de Literatura Alemã em Marbach, no sul da Alemanha, encontra-se um envelope com a inscrição “Curriculum Vitae in Pictures (Friedel)”. Ele pertence ao espólio de Siegfried Kracauer. O envelope foi etiquetado pela Sra. Elisabeth1, conhecida por “Lili”. “Friedel”, por sua vez, era o apelido de Kracauer usado pela família e pelos amigos íntimos.2 Este envelope, arquivado junto com suas fotografias, apesar de gerar uma grande expectativa no pesquisador, acaba, no entanto, decepcionado-o – está vazio. Quais as fotografias que estiveram ali dentro, ou mesmo se alguma vez uma única foto esteve dentro deste envelope, tornou-se hoje impossível determinar.3 A promissora inscrição sobre o envelope atesta, por si só, um plano, talvez um intento jamais realizado e, se iniciado, logo deixado de lado. Possivelmente, este envelope é o único vestígio físico de um livro planejado por Kracauer. Como sua viúva comenta em carta escrita em finais de 1969, o autor, falecido em novembro de 1966, queria escrever ainda mais três livros, “entre eles uma espécie e forma completamente nova de autobiografia, Hélas...”. 4

Especulações

Aceitar que as fotografias seriam um elemento fundamental desta espécie e forma completamente nova de autobiografia é assumidamente especulativo, no entanto, no caso de Kracauer, inteiramente plausível. Neste sentido, o envelope para fotos certamente pode ter servido como base ou material para uma autobiografia. Quem quis reunir tal coleção de fotos e em qual contexto o fez ainda não se sabe: o próprio Siegfried Kracauer? Ou Lili Kracauer? Sabe-se que desde o seu casamento em março de 1930, ela trabalhou como assistente do autor e, depois de sua morte, tornou-se a organizadora responsável pelo espólio. A lamentação de Lili sobre o fato de que Kracauer não tivera tempo de realizar o projeto autobiográfico parece tê-la motivado a dedicar-se a algo semelhante ao longo do seu trabalho com o espólio. Em todo caso, no verão de 1970, ela informou o editor Siegfried Unseld que sua iminente estadia na Alemanha também se devia a “investigações” no arquivo da cidade de Frankfurt e no arquivo do jornal Frankfurter Zeitung “para um eventual trabalho sobre o (seu) marido”.5 Já em fevereiro de 1970 ela perguntara no arquivo da cidade de Frankfurt am Main por fotos do liceu frequentado por Kracauer de 1898 a 1904 e do prédio do jornal Frankfurter Zeitung.6 Além disso, tudo indica que no mesmo ano ela tenha encomendado novas cópias de diversos retratos.7 No entanto, anotações sobre o trabalho relativo a essas pesquisas e materiais não se encontram entre os documentos do espólio. Poucos meses depois de sua volta da Europa, em 30 de março de 1971, Lili Kracauer faleceu em Nova Iorque.

Algumas poucas fotos provenientes do espólio de Kracauer são apresentadas e comentadas a seguir em ordem cronológica. Não se trata aqui de reconstruir o Curriculum Vitae planejado por Siegfried ou por Lili Kracauer e muito menos de tentar esboçar um texto biográfico seguindo um fio condutor através das imagens. Mais do que isso, a reprodução das fotos procura oferecer uma pequena amostra da parte fotográfica do espólio. A grande maioria das fotos no espólio foi tirada entre 1934 e 1964 por Lili. Além disso, há um pequeno sortimento de fotos da infância e juventude dos dois e algumas poucas fotos de parentes e amigos, em sua maioria de autoria anônima, datadas do fim do século XIX até meados dos anos 1960. Enquanto registros de arquivo, a função e o valor das fotografias tornaram-se algo distinto do que uma vez foram para o próprio Kracauer. É claro que para os pesquisadores de hoje elas não possuem nenhum valor de lembrança, mas antes o valor de documentos de uma história e/ou estória que remete a um passado cada vez mais remoto. “With the passing of time, these souvenirs undergo a significant change of meaning. As the recollections they embody fade away, they increasingly assume documentary functions; their impact as photographic records definitely overshadow their original appeal as memory aids.”8

Concebidas como impressões fotográficas (photographic records), as fotos do arquivo – para além de sua dimensão documental biográfica e histórica – falam por si mesmas. O que se pode ler das diversas provas enquanto objetos materiais merece atenção apropriada, como tentarei mostrar a seguir.

Os materiais fotográficos e os manuscritos do espólio

Da infância e juventude de Kracauer foram feitas cerca de 10 fotos no ateliê em Frankfurt, reveladas depois em papel cartão. Todas essas imagens exibem Kracauer, o filho único, sozinho – com uma única exceção:

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 5

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 5

Aqui se vê o pequeno “Friedel" ao lado de sua mãe, Rosette Kracauer9, fotografado diante de um fundo neutro no ateliê de Hermann Collischonn. Disparos fotográficos privados ainda não existiam nesta época. Pouco de individual pode ser resgatado nas fotos feitas no ateliê. A aparência exterior dos modelos fotografados dissolve-se cada vez mais em “detalhes então na moda tornados démodé” aos olhos do observador de hoje: “Como as pessoas se vestiam naquela época:”10 meninos em uniformes de marinheiros, mães em decentes blusas brancas com gola alta e laços extravagantes. Naquele tempo, as pessoas deixavam-se fotografar para registrar fases da vida dignas de serem lembradas. Em seus primeiros cinco anos de vida, Kracauer foi fotografado três vezes. Depois disso, fotografaram seu primeiro dia de escola na primavera de 1895, assim como o primeiro dia na outra escola que passou a frequentar a partir de 1898 e, finalmente, em 1904, posando dentro de um ateliê. O motivo do retrato com sua mãe pode ter sido o seu trigésimo aniversário, na primavera de 1897. Naquele momento, Kracauer tinha apenas oito anos de idade.

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 17

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 17

“De todas as suas fotografias”, Kracauer parece ter “gostado particularmente” desta imagem da juventude.11 Ela foi feita durante seus estudos em arquitetura,12 provavelmente no ano de 1912 e certamente em um ateliê fotográfico profissional. A encenação é um estereótipo. A poltrona na qual posa Kracauer era um requisito comum para fotógrafos profissionais da época. Em outros espólios literários também é possível encontrar originais de retratos semelhantes, carimbados no verso pelos fotógrafos. A reprodução aqui impressa mostra uma cópia ampliada décadas mais tarde em Nova Iorque. A reprodução do original usada neste caso servira antes em um documento pessoal. Seus indícios são as marcas visíveis dos carimbos nos dois cantos da fotografia. Na seção de manuscritos do espólio, encontra-se de fato um documento de identidade feito em Roma em 1912, válido para a entrada franca em museus e galerias italianas, sobre o qual a foto está colada. No outono do mesmo ano, Kracauer viajou por Assis, Florença, Gênova, Milão, Pádua, Perúgia, Veneza, Verona e por outras cidades italianas.

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 15

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 15

A foto acima foi tirada no outono de 1917. Nela se reconhece Kracauer no centro, de pé na terceira fileira.13 Seria ele mesmo? Ou antes aquele rapaz imaginado, atrás do qual ele mesmo se escondia.14 Como em uma imagem-enigma, na qual fundo e forma se alternam em um jogo ótico, surge de pé, de repente, Ginster, o protagonista do primeiro romance autobiográfico de Kracauer. Enquanto um "rapaz tímido e raquítico, que não suportava a vida militar”,15 esta fotografia o expõe em uma mistura crua, feita de realidade e fabulação: a encenação dispõe à sua direita a figura central na imagem, um sargento ou sub-oficial16 de óculos segurando um charuto sobre o colo, enquanto os soldados agrupados à sua volta ocupam as mãos com coisas diversas – os que emolduram de pé o grupo à esquerda e à direita seguram objetos longos, Kracauer prende um cigarro entre os dedos, um outro, na fileira à sua frente, segura uma chave, o que está mais adiante, no centro, parece costurar seu uniforme, o restante do grupo age como se estivesse limpando suas botas ou cortando um pão. Quem pensaria aqui na “guerra de trincheiras na sua última e mais aterradora fase […] na monotonia do inferno, na contínua vizinhança da morte”?17 A foto tem um componente da realidade da guerra na medida em que serve como instrumento de uma estratégia de distorção. Expor a retórica de guerra é um traço essencial do personagem Ginster. Ele se recusa insistentemente em reconhecer “porque todos se [ocupam] agora com patriotismo” e porque reclamam, desde que “um pedaço de terra dos inimigos foi ocupado no leste […], como se fosse sua propriedade privada”.18 Consequentemente, as ocorrências em torno da Batalha em Allenstein, que por desejo do caudilho Paul von Hindenburg – presidente da República de Weimar no tempo da composição e primeira publicação do romance – teve, para fins de propaganda política, o nome alterado para Batalha de Tannenberg, são comentadas de modo lacônico: “O pedaço de terra no leste estava novamente livre. Nos jornais lia-se que milhares de inimigos teriam sido acossados para os pântanos. Antes disso eles viviam abarracados no leste, inimigos sempre se abarracam.”19 Claro que Kracauer não é Ginster e o rapaz na foto acima é o arquiteto Kracauer convocado temporariamente ao serviço militar. Isto se passou “quando irrompeu a guerra […], um jovem de vinte e cinco anos”,20 no entanto, ele se distancia aqui de Ginster, num primeiro momento, completamente propenso ao patriotismo. Quando a foto foi tirada, ele já havia perdido na verdade um grande amigo na guerra: Otto Hainebach caiu em 16 de setembro na Batalha de Verdun. Uma outra foto arquivada, de maio de 1915, mostra o amigo Otto com seus camaradas agrupado em torno de ogivas usadas como vasos dos quais erguem-se flores brancas.21

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 23

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 23

Uma das poucas fotos de Kracauer com seus amigos foi tirada no verão de 1924, durante uma viagem às Dolomitas com Theodor Wiesengrund (Adorno). Há três pessoas reconhecíveis nesta foto: à direita “Teddy”, no centro uma dama, à esquerda “Friedel”, vestindo um sobretudo grosso, polainas e botas de caminhada. Uma fotografia quase idêntica encontra-se no arquivo Adorno: ela mostra os dois amigos, sem a dama, no mesmo lugar, de pé um ao lado do outro. Em uma publicação, ela aparece com uma legenda, citação de uma carta de Adorno a Kracauer de 28 de outubro de 1964: “deveriam afinal tentar erigir um monumento à figura que nós dois formamos”.22 Adorno não se referia retrospectivamente a esta fotografia, mas buscava acalentar Kracauer em relação à homenagem ambivalente que lhe prestou com o ensaio “O curioso realista”23 no seu aniversário de seus 75 anos – um “monumento” com o qual o homenageado ficou inteiramente insatisfeito. Como se pode ver, na cópia guardada por Kracauer, o segmento central da imagem está quase destacado devido aos traços verticais à lápis. Estas marcações foram feitas por Kracauer aparentemente para uma ampliação do recorte realizada anos depois. Em todo caso, a ampliação se encontra no arquivo: Kracauer aparece sozinho, extremamente recuado à margem da foto.

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 19

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 19

Entre os materiais fotográficos no espólio encontram-se também cacos de um negativo de vidro. Por ocasião da exposição em comemoração aos 100 anos do nascimento de Siegfried Kracauer, estes fragmentos foram montados como um quebra-cabeça no Arquivo de Literatura Alemã em Marbach, e do negativo foi feita (não integralmente) uma cópia. A imagem, publicada pela primeira vez no catálogo da exposição do centenário, em 1989, foi reproduzida amplamente e, neste meio tempo, já se tornou icônica. O que se encontra diante dos nossos olhos nesta imagem foi o que o Historiador da Arte Peter Geimer chamou de uma imagem por engano. O engano consiste no acidente anterior, no estilhaçar do negativo de vidro, que possibilitou a montagem, feita intencionalmente. Quando a imagem surgida do acidente traz “o dano real do suporte à vista”, somos obrigados a apreender duas coisas distintas: “a imagem fotográfica e a visibilidade do material, do qual esta imagem é feita”. A imagem faz com que o “olhar do observador oscile sem fim […] entre a representação e as rachaduras que a interrompem”.24 Entretanto, nas interpretações da foto icônica, a intervenção visível do material não é vista como interrupção da representação, mas, antes, como resultante de um elemento essencial.25 A cópia do negativo de vidro que em algum momento viajando de Frankfurt, passando por Berlim, Paris e Nova Iorque para chegar a Marbach trincou-se, torna o vidro visível e com isso também “a própria mídia deste tornar visível”, a fotografia. Lili e Siegfried Kracauer nunca viram de fato esta imagem, (re)construída muito tempo depois da morte de ambos. A revelação original do negativo de vidro ainda intacto arquivada por eles mostra apenas o corte central: apenas a fotografia de um busto em um meio perfil usual que Kracauer apresentava em suas publicações.26 Mas junto da cópia feita no arquivo também vêm à tona involuntariamente as circunstâncias do instante fotografado. Aparentemente, Kracauer permitia ser fotografado em recintos privados ou na redação do Frankfurter Zeitung, onde desde 1924 estava seu escritório de "redator". A circunstância causa um efeito próprio do improviso: ao lado de uma folha branca estranhamente dobrada, Kracauer sentado, as pernas cruzadas, sobre uma mesa pequena e simples, estabilizando a sua postura com o apoio das mãos, enquanto que na margem esquerda da imagem reconhece-se a lateral de um grande armário, que lança sua sombra sobre uma parede ao fundo, alongada por uma clarabóia. As roupas de Kracauer, a camisa com babado, a gola rígida e a gravada borboleta permitem determinar uma data aproximada em que a foto teria sido tirada, possivelmente meados dos anos 1920. Na década seguinte, o comum era posar para retratos com terno de três peças acompanhado de gravata.

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 25

Nos anos 1930, Kracauer posou para algumas fotos com cachimbo, que acompanha os retratos típicos do autor e que, ao mesmo tempo, é um objeto típico da época para ilustrar autores.27 A fotógrafa do retrato ilustrado feito em 1934 em Paris é Lili Kracauer. Trata-se de um dos primeiros de uma longa série de retratos fotográficos que ela fez de seu marido ao longo de quatro décadas. Na verdade, ela é a fotógrafa de todos os retratos feitos nos anos 1930 e que se encontram agora no espólio.28 Assim que o casal, imediatamente depois do incêndio do parlamento em 1933, fugiu de Berlim, Lili Kracauer, imigrante em Paris a partir de 1934, começou a fotografar.29 Quando se sabe que fotografias foram feitas por uma fotógrafa autodidata ao lado de um grande teórico da fotografia como Kracauer, passa-se a olhar esta e as fotos seguintes com outros olhos. Elas pertencem à prática fotográfica colaborativa do casal, que se estende de 1934 a 1964, formam a parte mais representativa e, em vários aspectos, a parte mais interessante do material fotográfico que integra o espólio. As fotos da segunda fase desta prática fotográfica foram feitas entre 1945 e 1964, durante as viagens de verão; a primeira fase, de 1934 até 1939, abrange, além de retratos posados feitos na Paris dos tempos de exílio, várias fotos de viagens.

Número de inventário no espólio Kracauern B 81.W 37 + B 81.W 123

De finais de julho a início de setembro de 1934, Lili e Siegfried Kracauer estiveram em Combloux (França). Durante esse tempo, em passeios pela região, surgiram algumas fotografias. Uma delas mostra Kracauer caminhando no campo, o sobretudo sobre o braço direito, na mão esquerda um livro.30 Na foto feita anteriormente, reproduzida aqui, o livro serve-lhe como apoio para anotações: com o olhar para baixo, ele escreve sentado sobre uma rocha ensolarada. Sob o galho de uma árvore que margeia o canto superior esquerdo da imagem, abre-se a vista para o vale. Um retrato muito semelhante mostra Lili na mesma posição. Foi Kracauer quem a fotografou. Ao se comparar as duas imagens, Kracauer parece representado como um escritor concentrado, dentro de uma composição fechada em si, enquanto a sua foto de Lili olhando para a objetiva se dissolve, de perspectivas levemente alteradas, em uma abertura inquietante. A comparação não é de todo justa. Lili e Siegfried Kracauer sempre se fotografaram mutuamente.31 E as fotografias consideradas bem sucedidas eram reveladas. Entre os originais do espólio, encontram-se também fotos que Kracauer fez de sua esposa. No entanto, o modelo para a imagem acima é uma reprodução que se encontra no Arquivo de Literatura Alemã.

Dos anos de fuga da Europa, sempre protelada devido a inúmeros entraves, e do difícil início em Nova Iorque a partir de abril de 1941 não se encontra nenhuma foto no espólio.32

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 52

Como a maioria dos retratos no espólio, este também foi feito ao ar livre durante uma viagem de verão. A fotografia feita em 1950 em Stamford (N.Y.) mostra Kracauer em uma varanda de madeira sentado a uma pequena mesa. A cena foi fotografada de um ângulo levemente elevado, que captura toda a forma do autor, ocultando no entanto o seu rosto em perfil. Ele parece compenetrado em seu trabalho, com uma caneta nas mãos, lendo através de seus óculos um bloco de papel. A composição e os elementos da imagem indicam claramente que Lili Kracauer buscou variar aqui, conscientemente, um dos topos notórios na representação do autor.33 Sem dúvida, ela conhecia os clichês estéticos da pintura acadêmica tradicional incorporados pela fotografia. Não se pode dizer com certeza, se se trata de uma foto instantânea ou de uma foto posada por Kracauer. Em outras fotografias que Lili Kracauer fez de seu marido trabalhando, a tradição imagética é muito menos presente. Certamente, a razão para isso é que, segundo a opinião de Kracauer, uma “propriedade do ato fotográfico é […]: aquela estilização indispensável, evocar o efeito semelhante a uma pintura, limitar-se a um mínimo”.34 Como se vê, o ato fotográfico de Lili Kracauer não pode ser considerado independentemente das reflexões teóricas de Kracauer sobre a mídia. Pois as imagens fotográficas de sua mulher são o resultado de um constante diálogo entre os dois, através do trabalho conjunto de pessoas íntimas entre si.

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 110

Uma das poucas fotos que mostra o casal Kracauer é esta imagem singular que, como nenhuma outra, parece ter sido recortada da vida dos dois. A polaroid na qual Siegfried e Lili são vistos com Maya Deren poderia ter sido feita em Nova Iorque em uma exibição do Cinema 16.35 Uma instantânea! Uma foto perfeita! Teria sido o acaso ou um olhar versado o autor deste instante decisivo? O fundo da imagem está dividido verticalmente em dois segmentos: o esquerdo, dois terços em branco, o direito, um terço em preto. Diante da superfície branca, o perfil de Lili e Siegfried, à frente de ambos, diante do fundo negro, o perfil de Maya Deren. Os botões claramente iluminados da jaqueta escura de Lili, no centro da imagem, duplicam ludicamente a linha vertical entre o preto e o branco. A geometria da composição é cruzada através dos rostos risonhos das figuras representadas, assim como através dos gestos vívidos de Lili e Maya. O primeiro plano é dominado pela mão exageradamente grande de Maya Derens, que em seu movimento em direção a Kracauer acaba se desfocando. O suporte da imagem permite determinar aproximadamente a data da pose: câmeras Polaroid de formato 64 x 83 mm foram comercializadas a partir de 1954 e, considerando os dados biográficos de Maya,36 pode-se dizer que o instantâneo foi feito na segunda metade dos anos 1950. Sobre a foto feita há décadas, o embaçado e o movimento borrado reproduzem um efeito típico da superfície lisa da Polaroid. Em gradações progressivas encontram-se sobre a imagem os vestígios sempre claros da materialidade do suporte, trazendo à tona uma nova imagem, uma imagem por engano. Neste ponto, a Polaroid é comparável ao negativo de vidro: aqui como lá, o olhar oscila entre imagem e interferência visual.

Número de inventário no espólio Kracauer B 81.W 115

O penúltimo retrato de Siegfried Kracauer foi feito por sua esposa em 1964 em Roma, no Forum Romanum. A câmera está tão próxima que as ruínas ao redor são reconhecidas apenas como relíquias da antiguidade, caso se conheça o lugar da foto. Sobre o envelope, onde se encontrava a foto, estão anotados ano e local: “Roma 1964 / Também retrato no Forum”. A partir de 1960 Kracauer trabalhou em seu último livro History. The Last Things before the Last, publicado postumamente, em 1969. A introdução ele já havia escrito no momento da fotografia,37 começa assim:

The ancient historians used to preface their histories by a short autobiographical statement – as if they wanted immediately to inform the reader of their location in time and society, that Archimedian point from which they would subsequently set out to roam the past. Following their example, I might as well mention that recently I suddenly discovered that my interest in history – […] – actually grew out of the ideas I tried to implement in my Theory of Film.38

Kracauer evitou, significativamente, uma tal fixação autobiográfica, seguindo, em vez disso, o exemplo do antigo historiador a seu próprio modo, ao esclarecer seu interesse pela História e permitir que seus esclarecimentos culminassem em uma iluminação fulminante: “I realized in a flash the many existing parallels between history and the photographic media, historical reality and camera-reality.”

O ponto de Arquimedes a partir do qual a História de Kracauer é considerada mostra-se disperso em muitas paralelas que, segundo a sua visão, oscilam entre a escrita da história e a mídia fotográfica, entre a realidade histórica e a realidade da câmera. Diante deste horizonte, o Portrait auf dem Forum tornar-se-ia interpretável. A postura e o olhar de Kracauer indicam uma zona do indeterminado. As mãos tocam-se, uma sobre a outra, assim como as pernas cruzadas. A face voltada para a câmera passa do olhar oblíquo inquisidor até alcançar o corte da imagem. O modelo retratado nas ruínas antigas parece se orientar cautelosamente para si mesmo e, ao mesmo tempo, para o exterior, para o passado e o futuro. O momento fixado fotograficamente parece atingir um, “sempre mais e sempre novamente de(vir)” decisivo de um instante, “que mantém o evento em suspenso: o instante decisivo do desenvolvimento humano é sempiterno. […] nada aconteceu ainda”. A proximidade com o hesitar, subordinada a esta interpretação, refere-se a um “lado ativo do hesitar”, que encerra uma “idiossincrasia contra a rigidez de disposições de mundo, contra a irrevogabilidade de julgamentos, contra o caráter definitivo de soluções”.39 Embora as frases citadas, que, por sua vez, incluem uma citação de Kafka, não tenham sido escritas em referência a Kracauer, elas correspondem a uma atitude característica para ele. Em History, Kracauer atribui aos historiadores “uma espécie de passividade ativa” (“a sort of active passivity”), um esperar em certo sentido. À espera de que as coisas tornem-se falantes, pois o historiador se vê – como o exilado – confrontado com a tarefa de penetrar a aparência exterior como um estranho, para aprender a entender o mundo a partir de seu interior. “A stranger to the world evoked by the sources, he is faced with the task – the exile’s task – of penetrating its outward appearances, so that he may learn to understand that world from within.”40 Neste caso supracitado o que se encontra no centro da discussão é o exilado, que abandonou seu país já adulto e cujo verdadeira forma de existência é a do estranho.

Outras especulações

Com a breve referência a History fica claro que em seu último livro Kracauer também escreveu indiretamente uma autobiografia intelectual.41 Facetas essenciais de si mesmo estão projetadas ali entre outros sob a figura de Erasmus de Rotterdam, a quem ele atribui um receio diante do consolidado, uma aversão a formas e a receitas, que manteve suas ideias em certa medida “in a fluid state”. Kracauer não aspira em History a um juízo final, senão decididamente provisório sobre as penúltimas coisas. O seu objetivo consiste, em última instância, em estabelecer histórias como uma zona intermediária independente.42 Se quiséssemos ir ainda mais adiante com as especulações acima, poderíamos estender este projeto de escrita para uma zona intermediária. Já em 1950 Kracauer tinha o desejo de registrar suas lembranças biográficas, como se pode ler em uma carta endereçada ao amigo Adorno:

Durante as últimas semanas eu e Lili organizamos muitos documentos antigos que jaziam caoticamente em uma caixa vinda de Paris. Fui assaltado por uma sensação real: the past revisited, le temps retrouvé. […] Mas o mais importante é este revolver no passado; o contato com tantas correspondências fez crescer em mim uma vontade desenfreada de escrever minhas memórias – quer dizer, realmente em grande estilo. Mas seria um luxo ao qual eu talvez nunca possa me entregar.43

Entre estas cartas e o plano de uma espécie e uma forma completamente novas de autobiografia passaram-se quase 15 anos. Com isso se deu o término do trabalho que remonta a 1940, Theory of Film, e o trabalho iniciado em seguida em History. Seu interesse pela história surgiu, segundo Kracauer, das idéias que ele esboçou em Theory of Film. Seu último livro permitiu-lhe desenvolver de modo consequente as reflexões que já tecia no passado.44 O livro autobiográfico, sobre o qual provavelmente discutiu com a sua mulher, pode ter sido planejado seguindo a mesma linha de reflexão. O que é tratado no capítulo 2 de History como “The Historical Approach” traça paralelos com “Photography” e com o capítulo introdutório em Theory of Film, publicado anteriormente sob o título de “The Photographic Approach”.45 Aqui como lá, o estranho torna-se uma figura central. Em um momento, o fotógrafo é comparado ao estranho em O Caminho de Guermantes de Proust: apesar de considerá-la unilateral, Kracauer concorda com a definição proustiana de que o procedimento do fotógrafo (the photographic approach) se iguala a um estado de alienação (state of alienation).46 Em outro momento, como já comentado acima, o historiador que Kracauer compara com o estrangeiro, que ele relaciona estreitamente com o exilado, vive em uma terra de ninguém, “which Marcel entered when he first caught sight of his grandmother”. Por meio desta referência ao trecho citado de Proust em Theory of Film, o exilado sobrepõe-se ao fotógrafo e, por conseguinte, também ao historiador caracterizado nesta passagem. Por trás desta sobreposição em três camadas é o estrangeiro que acaba sendo a figura central. O exilado é alguém sem pertencimento, seu habitat é o “near vacuum of extra-terrioriality, the very no man’s land which Marcel entered when he first caught sight of his grandmother. The exile’s true mode of existence ist that of a stranger.”47

Gostaria de terminar fazendo uma última especulação: seria consequente, se Kracauer tivesse erigido o estranho à posição central do seu projeto de fazer uma espécie e forma completamente nova de autobiografia. Kracauer – como um estranho – seria objeto e sujeito da autobiografia. Uma escrita autobiográfica de acordo com a experiência do exílio, na consciência de um constante fundir/fluir de uma identidade aprisionada.48 Um estranho sem contornos fixos por um fio no vácuo da extraterritorialidade.

No desembarcadouro, eu me encontrava a uma distância da qual nenhuma embarcação se aproxima. Um homem se despedia de uma mulher, que sequer chorava. Ele não estava mais em casa, mas ainda não estava a caminho, estava a uma distância inalcançável. Pelo menos por um instante, estava desligado de qualquer contexto, como novo. Na realidade, eu não o observava. Eu não observava nada, apenas deslizava, como se partisse. Trata-se daquele instante, em que um orifício mínimo se abre. Não sei se o senhor me entende.49


  1. Anna Elisabeth Kracauer (nome de solteira Ehrenreich) nasceu em 6 de maio de 1893 em Estrasburgo. Seus pais eram católicos. Sua mãe Maria Caroline (nome de solteira Amann) vinha de um vilarejo chamado Vendenheim, na Alsácia, e o pai August Ehrenreich vinha de Mainz, mas acabou migrando logo após a consolidação do Império Alemão. Estas e outras informações biográficas encontram-se nos documentos do espólio de Kracauer no Arquivo de Literatura Alemã em Marbach, ao qual se fará referência pela abreviação KN DLA.

  2. “O ‘Siegfried’ oficial foi eliminado logo no início, já o ‘Friedel’ privado vem de antes – [...] as pessoas que ainda me chamam assim trazem de um jeito ou de outro o apelido do passado para o presente. [...] Por favor, chamem-me de Krac.” Carta de Siegfried Kracauer a Ernst Bloch em início de janeiro de 1928, citada de: LEVIN, Thomas Y. Siegfried Kracauer. Eine Bibliographie seiner Schriften. Marbach am Neckar: Deutsche Schillergesellschaft, 1989. p. 18.

  3. A ordenação do material fotográfico feita por Lili Kracauer foi perdida quando as imagens do espólio de Kracauer, mantidas desde 1972 no Arquivo de Literatura Alemã em Marbach, foram submetidas nos anos 1980 à sistemática organização do arquivo literário. Ou seja, as fotos e contatos que estavam ordenadas no envelope estão hoje separadas por temas e ordenadas cronologicamente em pastas numeradas. Na última das pastas, estão preservados à parte os envelopes inscritos e toda uma série de notas manuscritas, quase como anexo para as fotos. Com base nisso pode-se reconstruir aproximadamente a ordem anterior, pois os números de inventário das fotos retiradas do envelope, agora vazio, foram anotados. O envelope em questão parece no entanto ter chegado vazio ao arquivo.

  4. Lili Kracauer a Annemarie e Fritz Wahl, carta de 25 de dezembro de 1969. KN DLA.

  5. Lili Kracauer a Siegfried Unseld, carta de 19 de junho de 1970. KN DLA.

  6. Lili Kracauer a Dietrich Andernacht (naquela época diretor do arquivo municipal de Frankfurt), carta de 5 de fevereiro de 1970. KN DLA. As fotos requeridas encontram-se no espólio.

  7. Como atestam notas no calendário de bolso de Lili Krakauer: diversas datas marcadas para visitas em seu laboratório fotográfico predileto em Nova Iorque, Modernage. KN DLA.

  8. KRACAUER, Siegfried. Theory of Film. The Redemption of Physical Reality. ed. Miriam Bratu Hansen. Princeton: Princeton University Press, 1997. p. 21.

  9. Rosette Kracauer nasceu em 2 de abril de 1867, em Frankfurt am Main, filha de Friederike e Falk Aron, chamado Ferdinand Oppenheim(er). Nos anos 1880 ela casou se com Adolf Kracauer, nascido em 16 de março de 1949 em Sagan (atual Polônia). Em 8 de fevereiro nasceu em Frankfurt sua única criança, Siegfried Kracauer.

  10. KRACAUER, S. “A fotografia”. In: O ornamento da massa. Trad. Carlos Eduardo Jordão Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 65.

  11. O título Jugendbildnis remonta a uma nota feita à mão por Lili Kracauer. A citação provém de uma carta de Lili a Ella Gabler de 4 de janeiro de 1969. KN DLA.

  12. Em abril de 1907, Kracauer inicia seu curso acadêmico de Arquitetura em Darmstadt. No outono, muda-se para Berlim e, no semestre de férias de 1909, para Munique, onde escreve seus exames finais. Seu doutorado, acompanhado pelas suas primeiras experiências como arquiteto, é entregue em julho de 1914 com um exame de doutorado na Universidade Técnica de Berlim. Sua tese, Die Entwicklung der Schmiedekunst in Berlin, Potsdam und einigen Städten der Mark vom 17. Jahrhundert bis zum Beginn des 19. Jahrhunderts, é publicada em 1915 pela editora Wormser Verlags- und Druckereigesellschaft. Foi reimpressa, com posfácio de Lorenz Jäger, em Berlim (Gebr. Mann Verlag) em 1997.

  13. Em meados de setembro de 1917, Kracauer foi convocado para a artilharia a pé em Mainz. No entanto, já em novembro foi liberado.

  14. Paráfrase de um momento de virada no romance autobiográfico de Kracauer sobre a época da Primeira Guerra mundial, Ginster: “não ele – mais um rapaz imaginado qualquer, atrás do qual ele mesmo se escondia” (KRACAUER, S. Ginster. Werke, Bd. 7. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. p. 32.).

  15. Cf. KRACAUER sobre uma figura coadjuvante mais empolgante que o “protagonista terrivelmente robusto” no filme West Point (1927), de Edward Sedgwick. Kleine Schriften zum Film. Werke, Bd. 6.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. p. 209.

  16. Uma formulação usada repetidamente no romance Ginster, que é tomada aqui na falta de conhecimento das patentes militares.

  17. Cf. KRACAUER sobre o filme Westfront 1918 (1930), de G. W. Pabst. Kleine Schriften zum Film. Werke, Bd. 6.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. p. 360.

  18. KRACAUER, S. Ginster. Werke, Bd. 7. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. p. 477.

  19. Idem, p. 55

  20. Idem, p. 11

  21. Ver ZINFERT, Maria (Org.). Kracauer. Fotoarchiv. Berlim: Diaphanes, 2014. p. 179, fig. 173.

  22. A foto do arquivo de Adorno está impressa em “Der Riß der Welt geht auch durch mich.” Theodor W. Adorno / Siegfried Kracauer. Briefwechsel. Org. Wolfgang Schopf. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008. p. 726, fig. 2.

  23. In: Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 85, p. 5-22, nov. 2009. [N. do E.]

  24. GEIMER, Peter. Bilder aus Versehen. Eine Geschichte fotografischer Erscheinungen. Hamburg: Philo Fine Arts, 2010, passim. Col. Fundus, 178.

  25. Ver ZINFERT, M. “Das Bild Siegfried Kracauers”. In: Op. cit, p. 11-17 ; aqui p. 14.

  26. Kracauer cedeu a foto para publicação em 1930 ao Reichshandbuch der Deutschen Gesellschaft, conforme consta no verso da reprodução dentro do envelope do periódico Marbacher Magazin, nº 47, 1988. No espólio há, além disso, duas reproduções da cópia original, recortadas de revistas por Kracauer.

  27. Nas décadas anteriores e posteriores à segunda grande guerra, o cachimbo estava em voga como insígnia do trabalho do escritor. A jovem Marie Luise Kaschnitz pousou para um retrato com um cachimbo, sinalizando sua adesão ao ofício dominado por homens. Siegfried Kracauer era de fato tão estreitamente ligado ao cachimbo que ele chega a ser claramente representado na pintura Bildnis Elisabeth Kracauer-Ehrenreich (1935), de Hanns Ludwig Katz. O pintor foi casado com a irmã mais velha de Lili, Franziska Katz-Ehrenreich (1992-1934). O retrato mostra Lili Kracauer sentada a uma mesa e ao lado de sua mão, sobre o tampo da mesa, encontra-se pintado um cachimbo de tabaco. Ver Hanns Ludwig Katz (Catálogo da exposição, Colônia, 1992).

  28. A estas fotos até então publicadas como retratos anônimos pertencem também o retrato, usado até hoje exclusivamente pela Suhrkamp Verlag, de 1953, assim como o "Portrait of a young Siegfried Kracauer”, do ano de 1937, publicado e datado equivocadamente na Wikipedia.

  29. A partir de 1934, Lili Kracauer passou a fotografar com a câmera portátil Leica III. Além dos livros sobre como fotografar com a Leica, encontram-se também na biblioteca de Kracauer manuais introdutórios para a câmera comercializada a partir de 1933. Junto dos documentos do espólio referentes a Lili há tabelas escritas à mão, nas quais a autodidata anotava, para os filmes das fotos feitas em Paris, cada pose, o motivo, a data e a luz, distância do motivo fotografado, tempo de exposição e objetiva usada. KN DLA.

  30. Esta foto se difundiu por meio de um cartão postal feito pelo DLA em Marbach.

  31. Ver ZINFERT, Maria. Fotografische Zwillinge. Wie sich der Filmtheoretiker Siegfried Kracauer und seine Frau Lili gegenseitig ablichteten/Double Exposure. The private photographs of Siegfried and Lili Kracauer. Frieze d/e, nº 7, Inverno de 2012.

  32. Em junho de 1940, Lili e Siegfried Kracauer puderam finalmente viajar de Paris para Marselha, depois de terem conseguido atravessar hordas de uma burocracia absurda. Em agosto do mesmo ano, também Walter Benjamin chega a Marselha e passa a se encontrar ali diariamente com os Kracauers. Em setembro, depois que o governo espanhol decidiu proibir a travessia de expatriados, o caminho para o último porto aberto em Lisboa foi alterado, permitindo que apenas se atravessasse a fronteira secretamente com documentos falsos ou através dos Pirineus. Diante desta situação, Walter Benjamin cometeu suicídio em 26 de setembro de 1940. Em março de 1941, os Kracauers finalmente alcançam Lisboa, de onde, após recorrentes adiamentos, partem a bordo do vapor Nyassa, completamente lotado, chegando a Nova Iorque em 25 de abril. Lili e Siegfried tornam-se cidadãos americanos em 1946.

  33. Sobre o desenvolvimento histórico da imagem do autor ver. DIERS, Michael. Der Autor ist im Bilde. Jahrbuch der Deutschen Schillergesellschaft, Marbach am Neckar, 2007, p. 551-586. No retrato de Kracauer se vê, enquanto ele finaliza seu ensaio, claras correspondências a uma representação autoral marcante da imagem de Petrarca de 1532, atribuídas, entretanto, a um acaso. Possivelmente, seu juízo seria outro, caso soubesse que a foto foi feita por Lili, que estudou história da arte por alguns semestres antes de se casar.

  34. KRACAUER, Siegfried. Anmerkungen zur Porträt-Photographie. In: Werke, Bd. 5.4. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. p. 361.

  35. Kracauer esteve lá regularmente devido a sessões de cinema. Ver VON MOLTKE, Johannes ; RAWSON, Kristy (Org.). Siegfried Kracauer’s American Writings. California: Universty of California Press, 2012. p. 256.

  36. Maya Deren, i.e. Eleanora Derenkowsky, nasceu em 1917 em Kiev e morreu em outubro de 1961 em Nova Iorque. Kracauer discutiu quatro de seus filmes em “Filming the Subconscious” (1948). In: VON MOLTKE, Johannes ; RAWSON, Kristy (Org.). Siegfried Kracauer’s American Writings. Op. cit. p. 57-62. Além disso, encontram-se inúmeras referências aos filmes de Maya Derens Filme em Theory of Film (1960).

  37. KRACAUER, Siegfried. History. The Last Things before the Last. Princeton: Markus Wiener Publishers, 1995. p. 3. Comentário do organizador Oskar Kristeller: “The Introduction was written from January 1961 to February 1962”.

  38. Idem, p. 3.

  39. VOGL, Joseph. Über das Zaudern. Zürich e Berlim : Diaphanes, 2007. p. 107; p. 127. Citação de KAFKA, Franz. Nachgelassene Schriften und Fragmente II. Apparatband. Frankfurt : S. Fischer, 1992. p. 63.

  40. KRACAUER, Siegfried. History. The Last Things before the Last. Op. cit. p. 84.

  41. Ver AGARD, Olivier. Les éléments d‘autobiographie intellectuelle. In: DESPOIX, Philippe e SCHÖTTLER, Peter (Org.). Siegfried Kracauer, penseur de l’histoire. Paris : Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme; Les Presses de Université Laval, 2006. p. 141-164; BAUMANN, Stephanie. Siegfried Kracauers History – The Last Things before the Last Geschichtsdenken als Vorraumdenken. Konstanz: Konstanz University Press, 2014.

  42. “My goal in doing so is to establish the intermediary area of history as an area in ist own right – that of provisional insight into the last things before the last. ” (KRACAUER, Siegfried. History. The Last Things before the Last. Op. cit. p. 16).

  43. Carta a Adorno de 1 de outubro de 1950. ADORNO, Theodor W. Adorno e KRACAUER, Siegfried Kracauer. “Der Riß der Welt geht auch durch mich.” Theodor W. Adorno / Siegfried Kracauer. Briefwechsel. Org. Wolfgang Schopf. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008. p. 449.

  44. “I might as well mention that recently I discovered that my interest in history – which began to assert itself about a year ago and which I had hitherto believed to be kindled by the impact of our contemporary situation on my mind – actually grew out of the ideas I tried to implement in my Theory of Film. In turning to history, I just continued to think along the lines manifest in that book.” (KRACAUER, Siegfried. History. The Last Things before the Last. Op. cit. p. 3).

  45. Publicado com esse título na edição de 1951 de The Magazine of Art, trata-se de uma versão resumida do futuro capítulo introdutório de Theory of Film.

  46. “And yet Proust is right in relating the photographic approach to a state of alienation.” KRACAUER, Siegfried. Theory of Film. The Redemption of Physical Reality. Princeton: Princeton University Press, 1997. p. 16. A primeira edição é da Oxford University Press (1960).

  47. KRACAUER, Siegfried. History. The Last Things before the Last. Op. cit. p. 83.

  48. “But since the self he was continues to smolder beneath the person he is about to become, his identity is bound to be in a state of flux […]” (Idem, p. 84).

  49. KRACAUER, Siegfried. Ginster. Op. cit. p. 329.