Narciso e Eco

Medialidade do amor e da morte

Christian Kiening

Universidade de Zurique

ckiening@ds.uzh.ch

Tradução do alemão: Eduardo Guerreiro B. Losso (UFRJ)

Revisão técnica: Luciana Villas Bôas (UFRJ)

Resumo: Este artigo questiona a leitura, que se estabeleceu ao longo da Modernidade, segundo a qual a famosa história de Ovídio é tomada como exemplo de auto-conhecimento, auto-referência e auto-destruição, situando-a no âmbito de discussões antigas sobre medialidade e comunicação, assim como do caráter ilusório dos sons e das imagens. Compreende-se que a história, que oscila entre natureza e arte, mito e reflexão, tematiza esta oscilação no âmbito das formas de percepção. Na medida em que estas formas se tornam transparentes, prestam-se à determinação das condições de discursos e demonstrações, textos, imagens e fenômenos.

Palavras-chave: Morte por amor; Medialidade; Percepção; Reflexão; Eco

Abstract: Der Aufsatz liest die berühmte Geschichte Ovids nicht sosehr, wie die Moderne es lange getan hat, als eine von Selbsterkenntnis, Selbstbezogenheit und Selbstverfallenheit, sondern stellt sie in den Kontext antiker Diskussionen von Medialität und Kommunikation, von Täuschungen der Töne und Bilder. Begriffen wird die Geschichte als eine zwischen Natur und Kunst, Mythos und Reflexion oszillierende, die eben dieses Oszillieren in Formen der Wahrnehmung übersetzt – Formen, die ihrerseits transparent sind für die Verhandlung der Bedingungen von Reden und Zeigen, Text und Bild, Figur und Erscheinung.

Schlüsselbegriffe: Liebestod; Medialität; Wahrnehmung; Reflexion; Echo

I

Semânticas do amor oscilam entre unidade, dualidade, ou multiplicidade. Ao mesmo tempo, oscilam entre definições e suspensões do medial. De um lado, circunscrevem o que está entre os amantes – espaços e muros, olhares e palavras, documentos e objetos – ou, de um modo geral, formas do entremeio, dos meios e das medialidades que separam e unem, diferenciam e transmitem (Cf. SCHNEIDER, 1992). De outro lado, circunscrevem aquilo que poderia suprimir estas formas do entremeio – a proximidade corporal, a união sexual, os momentos extáticos, ou até mesmo morte a dois. “Quem contemplou beleza com olhos, / abandonou-se à morte”, diz o início do famoso poema “Tristão” (1825), de August von Platen; e, no fim, o contraponto: “Quem contempla a beleza com olhos, / Ah, gostaria de secar como uma fonte!” (PLATEN, 1982, p. 69).

No âmbito de uma narrativa, a morte por amor só transcende o meio pontualmente, por exemplo, na união das almas que não necessitariam mais da comunicação (terrena). O fato de que em geral não há muito o que contar sobre a união das almas evidencia que o fascínio desta união (unio) como narrativa reside mais em sua potencialidade do que em sua realidade. A morte por amor aparece em obras famosas da literatura ocidental como uma morte protelada, não-simultânea, ou unilateral. Interessam os seus adiamentos e deslocamentos, pois através deles é possível indicar que o que está em jogo na morte não são apenas os limites da existência, mas também os limites do medial.

A morte permite superar no âmbito da ação qualquer entremeio mas, poetologicamente, estabelece e caracteriza as intermediações como tais. A morte é uma figura que possibilita intensidades mediais na medida em que fixa o meio em seu paradoxismo (Cf. KIENING, 2003) – à semelhança do amor, um código que, de modo paradoxal, “intensifica a comunicação através de uma ampla renúncia à comunicação” (LUHMANN, 1982, p. 29). Amor e morte revelam-se complementares em sua medialidade. Um parece realizar o que o outro quer alcançar: a superação do que é somente indireto e mediado. De fato, evidenciam o meio, na medida em que pretendem ultrapassá-lo. Por isso, observa-se neles o que caracteriza as encenações mediais de um modo geral: o entrelaçamento da autotransgressão e da autoexposição.

Cartas de amor jogam com a tensão entre a ausência fática do(a) amado(a) e a sua presença metonímica na escrita (Cf. STAUF; SIMONIS; PAULUS, 2008). A materialidade da escrita aparece como rastro do outro. A escrita pode ser traçada com sangue e lágrimas, apta a transmitir afetos, os mais intensos aliás, quando o rastro ameaça não reconduzir mais à sua origem. Mediante a alusão à morte do escritor, a escrita não pode mais dar um lugar ao corpo que ela substituiria. Ainda assim, pode se tornar o lugar de uma proteção, de uma duração, de uma latência, de uma possibilidade sempre nova de renovar, no imaginário, o que foi subtraído do real. Nas Heróides, de Ovídio, Dido escreve a Enéias: “Oxalá pudesses ver o rosto desta que te escreve. Escrevo, e próximo de meu colo está um espada troiana. As lágrimas me caem da face sobre a espada desembainhada, que logo estará tingida de sangue no lugar das lágrimas" (OVÍDIO, 2000, p. 183-186).1 Uma outra suicida, Canace, escreve ao seu amado irmão Macareus: “Se o que escrevo se perder por borrões ilegíveis, é porque a folha terá se manchado do sangue da sua senhora. Minha mão direita toma a pena, a outra mão, a espada desembainhada, e jaz em meu colo a folha desenrolada. Esta é a imagem da filha de Éolo, enquanto escreve a seu irmão” (Idem, p. 1-5).2

A escrita sugere ser o autêntico testemunho de um amor desesperado, preserva o último instante e remete para além do fim, imaginando o que ela mesma se tornará, borrada de lágrimas, suja de sangue. Assim, a escrita aparece, ao mesmo tempo, como produto da pluma e da espada: a primeira é a sua condição de possibilidade, a segunda é a manifestação de seu fim e de seu limite. Ambas juntas marcam a discrepância entre uma participação voltada para a imediação e uma reflexão que visa à mediação. Esta mediação mostra-se, por exemplo, quando a escrita medializa o momento que se está presentificando, compreendendo-o como algo figurativo: “Oxalá pudesses ver o rosto desta que te escreve”; “Esta é a imagem da filha de Éolo, enquanto escreve a seu irmão”.

II

De um modo refinado, os textos entrelaçam presença e ausência, imediação e mediação e, assim, ao mesmo tempo, estabelecem e expõem os dados do meio. A narrativa de amor, desejo e morte alcança o seu mais alto apelo não a despeito, mas através e dentro da reflexividade medial que a acompanha. Dificilmente se pode observar isso melhor do que na narrativa de Narciso e Eco nas Metamorfoses de Ovídio, que, aliás, aparece como pano de fundo do poema Tristão de Platen, citado anteriormente. Em Ovídio a situação foi, sem dúvida, modificada: nenhum encontro consigo mesmo se realiza, o anseio de morte resulta diretamente do caráter do belo. O amante não contempla a si mesmo na água, ele se transforma metaforicamente na água e gostaria de fundir-se com ela na natureza. Uma estética agridoce da morte situa-se aqui no quiasmo de duas oposições: vida e morte, arte e natureza, e apresenta, ao mesmo tempo, o seu teor classicista: evoca a “fonte” de uma tradição cujo “afogamento” é a realização da própria poesia.

Essa apropriação transformadora atesta, mais uma vez, o inesgotável fascínio da narrativa de Ovídio, seja no que diz respeito à ligação entre o amor e a morte ou ao subtexto poetológico. Dificilmente alguma outra das várias histórias marcantes das Metamorfoses impregnou tanto o imaginário do Ocidente quanto a de Narciso e Eco: o jovem que despreza qualquer adoradora ou adorador rejeita a ninfa Eco (que se transforma em pedra) e é punido por isso, sucumbe ao seu próprio reflexo, morre de um amor impossível lamentado por Eco e, por fim, metamorfoseia-se numa flor, o narciso (OVÍDIO, 1994, III, 339–5103). O conteúdo dessa história assumiu tradicionalmente uma fórmula icônica: aquele que conhece sem se reconhecer a si mesmo no espelho d'água (cf. ORLOWSKY; ORLOWSKY, 1992; RENGER; 1999). Esta equação permitiu que a história fosse citada e apreendida, modificada e alegorizada nos mais distintos contextos: Narciso como a advertência exemplar da vaidade e do amor próprio, personificação do cortesão moralmente ameaçado, inventor da pintura, imagem de poeta, modelo de autorreferencialidade literária, ou, na modernidade, como paradigma de história individual e, sobretudo, de autoconhecimento, de egoísmo e de autoenfatuação; Eco, como princípio de uma verdade histórico-natural, modelo de um acoplamento paradoxal do emudecimento e da compulsão à repetição (GEHRING, 2006, p. 85-110), ou como metáfora da opressão da voz feminina (LAWRENCE, 1991). Toma-se a história de Narciso e Eco como exemplo da tolice dos amantes, de um sofrimento de amor inaudito, da reflexão estetizada sobre a morte ou, mais recentemente, como exemplo de um paradoxismo medial.

Cada época inventou a sua própria imagem de Narciso e Eco e a destacou do pano de fundo da tradição. A cada vez que se renova a configuração dos elementos da história, mostra-se uma pretensão não somente de atualizá-la, mas também de reinterpretá-la, de trazer novas facetas de um mito de origem à luz. A pesquisa mais recente realça essas facetas com maior nitidez, ao buscar determinar com mais precisão o momento histórico decisivo da narrativa. Esta adquire maior profundidade à luz de modelos que lhe eram atuais: a ligação corrente, desde Platão, entre Eros, espelho e autoconhecimento, o modelo projetado por Lucrécio da ilusão dos sentidos ou aquele da antropologia calcado na voz (HARDIE, 1988, p. 71-89; e mais recentemente HARDIE, 2002, p. 150-165; BARTSCH, 2006, especialmente p. 84-96; VOGT-SPIRA, 2002, p. 27-40). Também seria possível estabelecer uma ligação com a antiga prática da adivinhação na qual, com a ajuda de um medium (um jovem, em geral) que fita imóvel a superfície d’água, produz-se um contato mágico com os mortos (NELSON, 2000, p. 363-389). O autoconhecimento de Narciso manifesta-se, portanto, como o conhecimento dos meios, como apreensão da “inacessibilidade e intangibilidade daquilo que está presente na imagem” (KRUSE, 1999, p. 99-116; mais especificado em KRUSE, 2003, p. 307-343), como experiência gradual do meio como meio: primeiramente, Narciso ignora o entremeio, em seguida o reconhece como imagem e começa a entender que não se pode “partilhar com a imagem do espelho um espaço comum”. Por fim, sucumbe ao entrelaçamento, que só se desfaz na morte, entre a destruição e a restauração da imagem, entre a entrega à aparência e a consciência do seu caráter ilusório (DE RIEDMATTEN, 2008, p. 195-215; especialmente p. 195-203; a citação encontra-se na p. 201). A pesquisa mais recente refere-se à “poética da ilusão” de Ovídio, ou ao seu “cinema na cabeça” (HARDIE, 2002; FONDERMANN, 2008).

Se se quiser ver nessas abordagens algo mais do que interpretações da moda, influenciadas pela nossa própria cultura medial, será necessário aliar a leitura precisa do texto à sua contextualização histórica. A história não se reduz ao cenário de um encontro solipsista. Ela cruza, de modo intrincado, duas figuras e liga, ao mesmo tempo, dois aspectos muito diferentes: o foco num fatal equívoco amoroso e a encenação de condições mediais básicas. Nela são delineadas relações entre o desejo e a percepção nas quais a percepção visual e a auditiva estão tão entrelaçadas que se cria uma fina rede de ligações e separações, desejo e frustração, identidade e diferença. Tanto o monólogo dos jovens quanto os comentários do narrador que o permeiam giram em torno do problema de uma intensidade, que é igualmente fática e fantasmática – e, assim, a história alterna constantemente entre conteúdo e linguagem, referência ao objeto e autorreferência. Repetidamente o texto desloca a atenção da ação para a superfície, para o jogo dos sons e palavras, das repetições e deslocamentos. A tensão entre os múltiplos desejos direcionados para Narciso, e a sua reação de total recusa é aguçada por Ovídio desde o início, em dois versos construídos paralelamente: “Muitos rapazes, muitas moças o desejaram / nenhum rapaz, nenhuma moça o tocou” (353/355).4 Em geral, a história oscila entre acontecimento e reflexão, narrativa e comentário, mundo e linguagem. Cria ambiguidades semânticas e complexidades mediais.5 Combinam-se elementos de diferentes discursos – erótico, histórico-natural, filosófico – que são, de igual modo, poetizados, mitologizados e refletidos. A leitura a seguir procura contemplar tanto as relações discursivas e as dinâmicas intertextuais, quanto os seus pontos de interseção com o medial.

III

No cerne da história encontra-se a clássica tensão entre unidade e dualidade, que é, nesse caso, tão aguda, que a segunda diante da primeira é tanto seu espelho quanto seu outro. Próximo do fim de seu longo monólogo, Narciso assinala: nunc duo concordes anima moriemur in una ("agora morremos os dois, concordes, uma única alma" [III, 473]). No entanto, os dois aqui mencionados não são Narciso e Eco. E a unidade também só existe como fantasma. Não combina duas entidades distintas. Não contém mas, mesmo assim, produz uma certa plenitude. Ovídio usa a palavra copia, que pode significar tanto a proximidade corporal quanto a abundância verbal: a proximidade corporal, que Narciso desdenha, não é concedida a Eco e, finalmente, tampouco ao próprio Narciso; a abundância verbal é o que é excessivamente posto em jogo no texto. Ao mesmo tempo, Ovídio introduz uma nova dimensão do fantasma da unidade, ao minimizar aquele problemático entremeio que separa os amantes e revelá-lo, justamente deste modo, como um princípio: o que separa Narciso do seu oposto não é um “mar extenso, um caminho, uma serra, muralhas com portões fechados” (448) como era comum na elegia de amor romana de contemporâneos de Ovídio como Propércio (I, 16-18), mas somente uma miudeza, um minimum, um pouco de água, exigua aqua, permeável até, algo reflexivo e receptivo, da ordem do transparente ou opaco e, portanto, suscetível a enganos, a confusões entre e essência e aparência, que fascinaram a época de Ovídio. Lucrécio tinha dedicado o quarto livro do De rerum natura às imagens e seus reflexos, suas aparências e transposições, suas cegueiras e ilusões. As suas descrições voltadas para uma teoria da audição e dos demais sentidos o levaram a discorrer sobre a excitação, o desejo e o amor (cf. HARDIE, 2002).

Ovídio explora a fascinação por esses fenômenos e a direciona para o âmbito da própria narrativa, ao levantar a seguinte questão: como as formas de mediação entre desejo, amor, percepção e metamorfose se inscrevem na própria natureza? Como podem ser criadas e, ao mesmo tempo, observadas? Como se relaciona o que se sabe dessas formas de mediação com o que ocorre nelas e através delas? A conexão entre olhar, espelho, desejo e autoconhecimento é fundamental no Fedro de Platão, ao qual se refere Ovídio na Ars amatoria. No Fedro, Sócrates descreve a aquisição da reciprocidade amorosa da seguinte maneira:

Do mesmo modo que o sopro ou um som refletido por um corpo sólido e resistente, também as emanações da Beleza, entrando pelos olhos, através dos quais se refletem, atingem a alma. Quando, seguindo o caminho natural que leva à alma, aí chega, enche totalmente a alma e as aberturas das asas que, a recebendo nova vitalidade, ganha nova plumagem e, por sua vez, a alma do amado fica também cheia de amor! Assim ama o que ama: sem saber o que ama! Nem sabe, nem pode dizer o que se passou consigo. Tal como um doente de oftalmia, que desconhece a causa da moléstia, embora a sinta, assim também o amado não se dá conta de que se viu mesmo no espelho do amante! Quando este se encontra presente, termina a sua dor e, logo que se ausenta, imediatamente mergulha no sofrimento. (255c-e).6

Amor através do olhar, inflamação através do olho flamejado, ausência, ignorância, imagens de silhuetas, Eco e espelho – todos esses elementos reaparecem em Ovídio, porém, relacionados agora à ilusão dos sentidos e à perda de si. Não se trata das condições filosóficas da máxima nosce te ipsum, mas das suas profundezas eróticas.7 Para além de tudo isso, os elementos previamente dados tornam-se parte de uma história natural, cujo auge encontra-se não no ser humano vindo da natureza, mas no fato de que a natureza origina-se do ser humano: daí, portanto, a famosa flor vinda de Narciso (cf. SCHMIDT, 1991).

Há, em relação a outras histórias conhecidas no tempo de Ovídio (conservou-se a versão fragmentária de Konon), sobretudo dois aspectos que conferem à narrativa um caráter totalmente novo (cf. MANUWALD, 1975, p. 349-372). Em primeiro lugar, a narrativa de Ovídio é dotada de uma moldura ligada à tradição grega, longamente estabelecida, da figura de Tirésias, o adivinho cego. Graças a uma metamorfose temporária, Tirésias conhece o amor da perspectiva de ambos os sexos e pode, por isso, comprovar a opinião de Júpiter, de que a mulher sente sempre mais prazer no amor. Por isso, Juno o castiga, fazendo-o perder a visão, e Júpiter, em compensação, concede-lhe o dom da profecia. Este dom é confirmado pela própria história de Narciso – e através disso evidencia-se a história enquanto tal, enquanto história que se cumpre. “A primeira prova” de sua fala profética, de suas inequívocas sentenças oraculares, e “o primeiro cumprimento de seu vaticínio” (prima fide vocisque ratae temptamina) teriam sido feitas pela ninfa Liríope, a mãe de Narciso (III, 339-342). “O acontecimento ficou conhecido”, disse, por fim, “e já tinha rendido ao vidente a fama merecida no Estado de Acaia, e o adivinho tinha um grande nome” (Cognita res meritam vati per Achaidas urbes / attulerat famam, nomenque erat auguris ingens [III, 511 s.]).

Estes emolduramentos fazem com que sejamos reconduzidos a um momento originário do poder profético do discurso. E este momento originário também conduz à iconização posterior da história de Narciso. Ovídio oferece, bem no início, uma fórmula temática sintética dos acontecimentos. Indagado se a criança teria uma vida longa, Tirésias responde: “si se non noverit” (348); uma frase repleta de ambivalência. Típica de declarações proféticas, explicita e, ao mesmo tempo, encobre as circunstâncias. O ponto é que todas as nuances de significado convergem na história: “se ele não se perceber”, “se ele não se encontrar fisicamente”, “se ele não se reconhecer” – tudo que deveria ter sido evitado para que a criança tivesse uma longa vida acontece e constitui a fatalidade da história: Narciso se vê, deseja o seu próprio corpo como se fosse um outro, reconhece a situação, sem conseguir enfrentá-la.

A profecia de Tirésias chama a atenção para a tensão entre processo e resultado, causalidade e finalidade, ação e texto. O cumprimento da profecia parece de início adiado e, no entanto, ocorre no instante em que se constata o adiamento. “[V]ana diu visa est vox auguris” diz a profecia (“por longo tempo pareceu vazia a voz do vidente”) – ou, se se considerar o momento metafórico, “sem transformação visível” (349). Deste modo, não apenas se pressupõe paradoxalmente o que ainda está por acontecer; os acontecimentos mostram-se, de antemão, como acoplamento do ver e do ouvir. Vinculam-se uma vox poderosa e um visus que lhe corresponde e a concretiza, e este vínculo mostra-se logo intrincado: a visão da beleza de Narciso provoca o desejo que as palavras de Eco devolvem e ao mesmo tempo transferem para Narciso. O cumprimento da profecia também é transferido para um certo limiar: a idade, na fronteira entre o menino e o jovem – “puer iuvenisque videri” (352) – e a situação de um desejo dirigido a ambos os sexos (“multi illum iuvenes, multae cupiere puellae” [353]). Na história de Narciso persiste um momento da história de Tirésias: a questão de um desejo específico de gênero, que em vez de respondida é deslocada para a questão mais fundamental da relação, união e mediação entre o eu e o outro.

Esta é a segunda mudança de ênfase em relação à tradição. Ovídio acrescentou a ela novas camadas de sentido com a introdução da figura de Eco na história de Narciso.8 Numa tradição mais antiga, Eco era frequentemente vista como a adorada de Pã, que por sua vez se vinga ao ser desprezado pela ninfa. Se o lugar de Eco, os sátiros, as ninfas e o flautista Pã (IV, 580-589) são citados num fôlego por Lucrécio, no romance helenístico tardio de Longo, Dáfnis e Cloé, Eco aparece numa pequena história intercalada como um ser musical e cultivado, que Pã, “por invejar o seu canto e não conseguir fruir os seus encantos”, atira a pastores e cabreiros tomados de loucura:

E eles, como cães ou lobos, a dilaceraram e espalharam por toda a terra seus membros que ainda cantavam. E a Terra, por amor às Ninfas, recobriu cada um de seus membros, para que conservassem o seu canto e, por vontade das Musas, entoassem a sua voz que, como antes fazia a jovem, tudo imitassem: os deuses, os homens, os instrumentos de som e os animais; imitassem até mesmo Pã tocando a siringe. (III, 23).9

Em Ovídio a justificação mítica para o fenômeno físico do eco é outra: a condição de possibilidade da ressonância ubíqua não é o desmembramento, mas o desaparecimento do corpo. Os papéis também são trocados: aquilo que é inacessível não é Eco, mas Narciso. Ao mesmo tempo, as formas de aparecimento e de comunicação de ambos os personagens estão intimamente entrelaçadas.

A fixação no próprio eu torna-se visível e articulada numa figura que já possui um status medial específico. Eco é uma ninfa que impede a deusa mãe Juno de apanhar em flagrante seu esposo infiel em relação amorosa com as ninfas. E ela se apaixona por Narciso, o filho da ninfa aquática Liríope, a ninfa mais bela, que leva outras ninfas aquáticas e montanhesas a perder a vergonha diante de homens e que, no limite de seu autoconhecimento, reconhece seu efeito sobre as ninfas: “amarunt me quoque nymphae” (“sim, também me amaram as ninfas” [456]). O episódio inteiro passa-se, portanto, no mundo das ninfas. Estas são seres intermediários no duplo sentido: de um lado, estão entre deuses e homens, por isso é possível perdurar em Eco o conflito, do mais alto grau olímpico, aquele entre Juno e Júpiter; de outro lado, as ninfas estão, ao menos em Ovídio, entre aparições figurativas e naturais (quiçá como as fontes). Como as sereias que conservam, além do rosto de menina, somente a voz (todavia sedutora) – “virginei vultus et vox humana remansit” (V, 563; cf. também WEIGEL, 2006, p. 16-39, aqui p. 28) – as ninfas são figuras de transição e de entremeio. Nelas se pode delinear especialmente bem a zona de contato entre deuses e homens e discutir a relação entre intermediação e imediação. Em sua explicação sobre o som e o eco, Lucrécio havia citado pejorativamente a opinião de moradores locais de que lugares cheios de eco seriam dominados por sátiros e ninfas (De rerum natura, IV, 580). Ovídio, ao contrário, dera ao fenômeno uma derivação mítica. Aquilo que está previamente dado desvenda-se agora como produto de lutas de poder e amor trágicas e multifacetadas, como acontecimento de uma catástrofe na fronteira entre natureza e cultura, que ao mesmo tempo funda um elemento natural: Narciso e Eco não podem superar as fronteiras entre os seus corpos e, por esta razão, perecem. Mas, certamente, sobrevivem na medida em que perdem os seus corpos humanos: ela como eco, que se encontra em qualquer lugar, ele como flor – aquela que, na Antiguidade, era associada ao reino dos mortos. Nela sobrevivem “o amor pela água e a atitude do rapaz que se inclina sobre a água; além disso, recorda o poder de sedução de Narciso que, ao voltar-se para si mesmo, o conduz ao reino dos mortos” (WALDE, 2006, p. 95).

IV

Quando se parte das duas ênfases conferidas por Ovídio – o contexto definido por Tirésias e o contraponto representado por Eco –, a complexidade da história torna-se reconhecível: o episódio de Narciso, que já se estendia em instâncias intrincadas de mediação e conhecimento, é intensificado narrativamente por espelhamentos internos e referências externas – e, torna-se paradoxal, pois tudo o que se passa na história, já está implícito na profecia do começo. Antes de retornar a esse contexto, gostaria de procurar elucidar as relações internas entre Narciso e Eco. Em Eco duplica-se a manifestação do desejo sem esperança de Narciso. Por um lado, ela representa os muitos que desejam Narciso e, entre os quais, depois da petrificação de Eco, virá o pretexto da vingança executada pela deusa do destino. Por outro lado, ela é a única cuja história entra na história de Narciso dando-lhe rumos novos e decisivos. Eco é representada como ninfa da voz (vocalis nymphe [357]), mas de uma voz restrita. Por causa das muitas palavras vazias que ela proferiu para impedir Juno de flagrar Júpiter, Eco foi punida com uma restrição da potestas linguae (366), a repetição dos últimos sons e palavras. Seu direito é, a partir daí, apenas o brevíssimo uso (brevissimus usus [367]) da voz. Ela não foi condenada à mudez completa, mas a uma restrição que é ainda mais dolorosa, pois, em tudo o que ela pode dizer, a redução da fala completa e independente está sempre presente. Eco está assim entre uma potência expropriada e uma potência limitada pelo hábito e a duração, entre sujeito e objeto (LOEWENSTEIN, 1984, p. 48). Sim, ela corporifica um entremeio, que parece talhado perfeitamente à lógica textual de Narciso. Em passagens cruciais Ovídio explicitou a ligação interna entre Narciso e Eco: 1) no encontro de ambos; 2) no encontro de Narciso consigo mesmo.

1) O encontro de Narciso e Eco. Narciso, que por seu aspecto desperta o desejo de todos, encontra Eco na floresta, “afastado do bando de seus conhecidos leais” (comitum seductus ab agmine fido [380]). Ele a encontra exatamente naquela situação à qual Lucrécio havia associado o eco: “quando nós procuramos por nossa comitiva, que vagueia por montanhas sombrias, e chamamos em alta voz os que se dispersam” (palantis comites cum montis inter opacos / quaerimus et magna dispersos voce ciemus; De rerum natura, IV, 575). Lucrécio contrapôs a opinião popular ao conhecimento científico no que diz respeito à qualidade própria do eco. Ovídio, em contrapartida, introduz uma diferença histórico-temporal: entre um ainda, pois ninfas são seres que povoam o mundo em toda a parte, e um não-mais, pois no lugar das ninfas, é possível observar o jogo da natureza. Esse entremeio se manifesta como transição entre figura e fenômeno: Eco ainda tem um corpo, porém não tem mais voz e, em breve, perderá também o seu corpo.

Através da sua voz Eco faz com que o jovem, que também é uma presa, pare durante a sua caçada na selva: alternae deceptus imagine vocis (“enganado pela impressão da voz que lhe responde” [385]). De novo, como na profecia de Tirésias, impõe-se a proximidade entre o auditivo e o visual, entre imago e vox. Ovídio segue, nesse sentido, modelos contemporâneos: assim como imago, no contexto romano, também podia designar echo, vox, por sua vez, era pensada como fenômeno, que só podia transportar palavras, sons ou ruídos para um outro lugar graças à sua corporeidade e materialidade (cf. GÖTTERT, 1998, especialmente cap. II). Precisamente este transporte era associado à incidência de perda de sentido, e nisso, segundo Lucrécio, alguns dos sons não imediatamente recebidos ressoariam de terrenos ásperos e, deste modo, iludiriam com a “imagem da palavra” (imagine verbi [IV, 571]). É isso que acontece com Narciso: ele se ilude com a forma das palavras (ou com as imagens que as palavras suscitam). Ele se mostra à ninfa que, por sua vez, encantada com as próprias suas palavras (verbis favet ipsa suis [388]), é seduzida a abandonar a segurança da floresta. Assim, o paradoxo do encontro alcança o seu ápice: Narciso permanece onde um outro se manifesta, o qual, repetindo suas palavras, na verdade não promete ser nenhum outro; Eco se revela justamente onde suas próprias palavras parecem articular uma nostalgia que também promete ser a do outro. Porém, precisamente no momento em que as repetições parecem dominar, as diferenças delas derivadas também se tornam visíveis: as palavras de Eco repetem as de Narciso, encurtam-nas em parte e mudam seu significado: quando se faz uma pergunta (equis adest, “alguém está aí”), ela constata um fato (adest, “ele está aí”). Quando ele preferiria morrer a conceder-lhe o poder de dispor sobre ambos – "Antes a morte – diz – do que tu te apoderes de mim" (“ante” ait “emoriar, quam sit tibi copia nostri” [391]), ela espera a mesma coisa: "Que tu te apoderes de mim" (sit tibi copia nostri [392]).10 As repetições introduzem matizes de sentido: ao “aqui, encontramo-nos” (huc coeamus) de Narciso, Eco responde “unamo-nos” (coeamus), fazendo sobressair o sentido de “acasalar-se”.

2) O encontro de Narciso consigo mesmo. Trata-se de um encontro em que se abre espaço para a alteridade que fora recusada. A abertura lapidar já sinaliza: enquanto Narciso saciava a sua sede, despertou nele “uma outra sede” (sitis altera [415]). A autoduplicação é acompanhada de um duplicação semântica. E ela constitui, na sequência, no âmbito da linguagem, uma pluralidade que, segundo a lógica do amor, torna-se um problema: em meio à famosa frase “iste ego sum” (463), Narciso fala num plural que se deixa transformar de novo em singular pela morte (nostras, nostro, abamus, moriemur). Eco, em contrapartida, ainda que petrificada e metamorfoseada em pura voz, não está presente nessas cenas em que Narciso se encontra com ele mesmo – entretanto, indiretamente, está. Primeiro, Narciso fugiu de quem o desejava, agora ele próprio experimenta ver o objeto desejado escapar. O texto discorreu sobre os braços (bracchia) de Eco que queriam enlaçar a nuca desejada. Agora discorre reiteradamente sobre os braços (bracchia) de Narciso que querem abraçar a imagem do espelho, mas também se estendem ao redor de toda a floresta – de onde, anteriormente, Eco havia surgido. Nesse sentido, o encontro consigo mesmo do jovem é justaposto ao encontro com a ninfa. Ao mesmo tempo, revela-se que o encontro consigo mesmo, por mais que esteja ligado ao olhar, ao espelho e à imagem, não se realiza, num meio estritamente visual. Antes, é acompanhado de constantes remissões à palavra ou a enlaces entre palavra e imagem. Antes do encontro com Eco, afirmou-se que Narciso fora "iludido pela impressão da voz que lhe responde" (alternae deceptus imagine vocis [385]). Em seguida afirma-se que ao beber pela primeira vez da fonte e deparar-se com a imagem na água, Narciso foi enfeitiçado pela aparência da imagem vista (visae conreptus imagine formae [416]).

O autoconhecimento realiza-se exatamente no momento em que Narciso se dá conta de que seu oposto, por mais que "replique" os seus próprios gestos, é deficitário: "tanto quanto posso supor pelos movimentos de tua atraente boca, me dizes palavras que não chegam aos meus/nossos ouvidos" (quantum motu formosi oris, / verba refers aures non pervenientia nostra [461 s.]). Precisamente no ponto em que um nós emerge na linguagem, a ausência de som é decisiva para o reconhecimento de que a forma que o jovem deseja é somente simulacrum e umbra de sua própria figura. O termo refers remete também àquela que antes repetira as palavras de Narciso: Eco. Ela está ao mesmo tempo ausente e presente: ausente enquanto voz e corpo, presente, contudo, enquanto princípio e alteridade, como o elemento incluído que está excluído do auto-enredamento tautológico de Narciso. O que é fatal nesse enredamento é que cada tentativa de solucioná-lo o agrava. O conhecimento de se ver a si mesmo espelhado na água não introduz, de fato, uma saída. Antes, aparece, como mais um elo decisivo da cadeia em que Narciso está preso.

Eco constitui, do ponto de vista de Narciso, um contraponto para o auto-espelhamento do jovem. De um lado, sons que não transmitem nada de novo mas apenas repetem o que já foi articulado, de outro, imagens que não representam um outro mas apenas a própria figura. Eco e espelho – enquanto meios do eu, são tão promissores quanto problemáticos. Eles se reproduzem sem produzir de fato um outro. Conservam informação mimeticamente, impedem, contudo, enquanto a devolvem ao eu, a comunicação. Tornam algo visível na medida em que a medialidade não apresenta simplesmente uma transmissão de A a B, antes, uma relação entre A e B, com aspectos de reacoplamento e autorrecorrência. O espelho é, como Foucault expôs, lugar e não lugar ao mesmo tempo: existe como algo concreto, como parte do espaço que pertence ao sujeito, como objeto que se deixa tocar e usar, que tem um reverso. É, por outro lado, uma forma do imaginário: faz do sujeito um objeto, mostra como ele mesmo não se pode observar, num lugar em que não está e numa distância que não corresponde à distância entre o espelho e o espelhado (FOUCAULT, 1993, p. 34-46; aqui p. 39). No sentido da doutrina atômica de Lucrécio são ambos, espelho e eco, meios de percepção corporal e fenômenos de transferência. Entre a pessoa e a imagem, diferentes quantidades de ar são impelidas para cá e para lá (De rerum natura, IV, 269 ss.). Entre o corpo dos articuladores e o ouvido dos ouvintes movimentam-se sons e palavras como formas morfológicas que são sentidas (IV, 560). Entre espelhos reproduzem-se várias imagens, entre colinas, vários ecos, para lá e para cá (IV, 327-577). Ainda assim, o eco não é, simplesmente, análogo ao reflexo. Existe somente em lugares específicos e não tem duração. Tampouco media, como o reflexo, entre A e A, mas entre um X (uma quantidade potencialmente infinita de fontes de som e sons) e um Y (uma quantidade potencialmente infinita de recipientes).

A relação assimétrica entre reverberação e reflexo torna-se, na história de Narciso e Eco, algo quiasmático: só é possível uma aproximação pontual no espaço, não o toque, muito menos a união.11 Em seu Fasti, Ovídio faz uma ninfa metamorfoseada de Clóris em Flora dirigir-se a Narciso como o infeliz, o não-outro que era ao mesmo tempo outro (quod non alter et alter eras [V, 226]). Nesse sentido, seria possível dizer que Eco é para Narciso a outra que, mesmo privada de uma alteridade verbal, ou mesmo de uma existência corporal, e justamente por isso, gera o paradoxo da identidade e alteridade simultâneas. Nesse sentido, Narciso e Eco revelam-se figuras ao mesmo tempo análogas, complementares e contrastivas. Análogas porque ambos são destruídos pelo amor, perdem o corpo e se metamorfoseiam em fenômenos da natureza. Complementares porque neles se encontram os meios do ar e da água, reúnem-se percepções visuais e auditivas. Contrastivas porque a duração dada a ambos é muito diferente. Enquanto a ninfa Eco torna-se o fenômeno dos ecos, o filho de ninfa Narciso não se torna um reflexo, mesmo no além continua submetido à visão no espelho. No final, diz o poema, as náiades, as dríades e Eco articulam a sua tristeza; Narciso, diferentemente, contempla a si mesmo nas águas estígias do reino dos mortos.

No final, Narciso e Eco acabam por encontrar-se na linguagem. Narciso ainda resistira ao abraço ameaçador (manus conplexibus aufer [390]), mas, finalmente, deixou arrebatar-se, associando um tu e um nós na mesma frase (sit tibi copia nostri [391]) – o que fora a desgraça de Eco. Agora ela, que não estava diretamente presente no encontro de Narciso consigo mesmo, reaparece, antes que o corpo amado desaparecesse. Padecendo junto dele, ela devolve o “ai” e a queixa – e, no entanto, mal está presente: “totidemque remisit / verba locus” (500 ss.). É o lugar (a floresta) que devolve as palavras. O eco já aparece como um fenômeno, mas também ainda como a voz de um personagem: “dictoque vale ‘vale’ inquit et Echo” (501). Eco repete o “adeus” de Narciso e, por um momento, o som original e eco chegam juntos, lado a lado, o que antes nunca acontecera: vale vale – o máximo em identidade e proximidade que uma língua da dualidade é capaz de exprimir.

V

O vale é a última palavra explícita dos personagens no texto. É a expressão da ultima vox daquele que se contempla na água habitual (499). E essa ultima vox chama mais uma vez aquela vox auguris na qual a história teve o seu início: na última palavra do amante, cego a tudo exceto a si mesmo, realiza-se também a palavra do adivinho cego. No entanto, a essa altura, a sua cegueira não é mais a mesma do começo. Não aparece apenas como pressuposto de uma visão interior e discurso fatídico. Revela-se também como proteção diante daquele poder da natureza cujo nascimento torna-se reconhecível imediatamente antes da história de Narciso e cuja entrada em cena acontece na história dionisíaca ou báquica. “Enquanto ocorrem na Terra esses fatos, governados pelas leis do destino, e que fica em seguro o berço de Baco, nascido duas vezes”12 (317 ss.), assim se inicia a história de Tirésias. E ela continua, quando Tirésias reage a Penteu, que despreza suas palavras proféticas. Ele responde com uma profecia que tem caráter drástico ainda maior que o “si se non noverit” da história de Narciso: Penteu poderia considerar-se feliz se ele também perdesse a visão:

[...]para não veres os mistérios de Baco! Porquanto chegará um dia, que prevejo não esteja longe, em que aqui aparecerá um novo deus, o filho de Semeie, Líber, e, se não te dignares de honrá-lo, elevando templos, com os membros despedaçados, espalhados por mil lugares, mancharás com teu sangue as florestas e tua mãe e tuas irmãs. [...] hás de lamentar-te, enquanto eu terei visto muito claro dentro das trevas. (III, 519-525).13

Este prosseguimento da história de Narciso a conduz ao limiar entre dois tempos: um, em que os deuses antigos dominam dentro de um conjunto apreensível de imagens, sons e metamorfoses, e outro, em que a natureza da horda de bacantes é revolvida de êxtase, loucura e delírio.14 As bacantes produzem o que Eco não é mais capaz de gerar: sons determinados por elas mesmas. O lugar das festas e da celebração dos mistérios, o monte Citerão, “soava” (sonabat, não resonabat), assim se diz na história de Penteu, “com cantos e com a clara voz das bacantes" (cantibus et clara bacchantum voce [703]). Elas encarnam um novo deus, um novo regime, um novo mundo, no qual não é o amor irrealizado, mas a crença recusada a Baco, que leva à metamorfose. As Mênades precisavam experimentar isso: “Esforçam-se para falar, mas só emitem uma voz fraca, de acordo com o tamanho do corpo, e seus débeis queixumes terminam como gritos agudos. [...] voam durante a noite, e tiram o nome da tardia Vésper” (IV, 412-415).15

Novamente, portanto, um reflexo da história de Eco que mostra, mais uma vez, o quanto Ovídio ultrapassa o que Lucrécio tinha escrito sobre as ilusões de sons e imagens. Ovídio não apenas transforma a cosmogonia em um conjunto de narrativas. Faz com que as narrativas oscilem entre natureza e arte, mito e reflexão, conhecimento e erro, união e separação medial. A palavra e o olhar não podem produzir nenhuma comunicação com o “exterior”. Podem indicar a comunicação “interior” em suas dimensões e fronteiras. Autorreferência fatal e reflexividade medial caminham juntas, lado a lado. O vazio e a abundância do discurso, o poder e a impotência das palavras, a repetição e a diferença tornam-se temas com a introdução da figura de Eco: “resonabilis Echo” intitula-se a primeira denominação, e verbos com prefixo re- caracterizam a movimentação de Eco também adiante (reportare, remittere, referre, reddere). Eles trazem para o ponto central a compulsão à repetição das personagens. Além disso, corporificam os vários “efeitos de eco” e “fenômenos de espelhamento” do texto.16 Com Eco dá-se uma multiplicação de sentidos. Com ela, a textura da história vem à tona. As repetições em diversos níveis explicitam relações paradigmáticas, tornam visíveis as condições de discursos e demonstrações. Estas são também as condições de uma relação específica com a tradição que – metaforicamente falando – é ao mesmo modo entoada e abafada, capturada e refletida.

É possível observar esta relação com a tradição na forma dos elementos figurativos. Ovídio esboça paradigmas da representação figurada do corpo belo, paradigmas de imobilidade e de dinamização. Primeiramente, Narciso contempla a si mesmo extático "como uma imagem perfeita de mármore de Paros” (ut e Pario formatum marmore signum [419]). Porém, a imagem não oscila apenas entre corpo e superfície. Ela própria escapa repetidamente: as lágrimas turvam o reflexo na água. Perto do fim, Narciso bate em seu peito com mãos de mármore – o que o narrador compara com a imagem de uma maçã bicolor ou um cacho de uvas sarapintado, ainda verde. No mesmo momento em que Narciso, ainda vivo, parece estarrecer, numa forma sepulcral, ainda parece estar no limiar da verdadeira florescência da vida: morte e vida aproximam-se através da figura reversível da imagem imóvel e móvel, factual e fantasmática. É delírio tomar por corpo o que é apenas sombra (umbra), mas também é delírio o que é capaz de gerar as manifestações mais poderosas: uma imagem com olhos que parecem duas estrelas, cabelos que seriam dignos de um Apolo e um Baco, uma figura sublime que nutre a esperança de se unir com o divino, e sublinha, ao mesmo tempo, o ofuscamento que causa essa esperança.

O corpo que escapa, que não se alcança, ou se preserva, é também um fio condutor do texto: no começo Eco ainda tem um corpo, no fim Narciso, assim como Eco, não o tem mais. No lugar do corpo (pro corpore), os enlutados podem achar a flor – inveniunt, expressão que Ovídio usa aqui, também remete à categoria central na retórica, inventio, e desempenha um papel central. E a promessa do texto é bem essa: dar alguma coisa ao corpo que não deixa simplesmente morrer os corpos que amam, mas antes os transforma, na refinada alternância entre os níveis, entre ver, ouvir e falar: em “matéria” poética (flores e folhas), por um lado, em espaço de ressonância literária (eco), por outro.

VI

Que a associação cuidadosa entre perspectivas temáticas e mediais esteve circunscrita à antropologia e à mediologia romanas fica patente no fato de que por muito tempo a recepção de Ovídio pouco se interessou por isso.17 Desde a antiguidade tardia predominava um modo de ler moralista-alegorizante. Plotino já citava a história de Eco e Narciso como exemplo da devoção a imagens, sombras, rastros, em vez da devoção "àquilo de que são imagens”. Quem se concentrar na beleza exterior, viverá “não fisica, mas espiritualmente em profundezas escuras, contrárias ao espírito, às cegas no Hades” e já agora vive “somente com sombras” (Enéadas, I, 7, 38; cf. HADOT, 1976, p. 81-108; KRISTEVA, 1983, p. 101-117). Dentro da mesma tradição neoplatônica Marsilio Ficino recorre ao modelo clássico: ele compara o jovem com a alma do indivíduo imprudente e inexperiente, que admira “a beleza no corpo frágil”, “embora esta seja somente uma silhueta da alma. Abandona a sua própria figura, sem jamais perseguir a sua sombra: porque a alma persegue o corpo, renuncia a si mesma, e não se basta no uso do corpo” (FICINO, 1984, p. 286).18

A história da recepção de Ovídio, que se estende de Plotino a Ficino, ou desde o renascimento do autor no século XII e depois, é marcada por um modo de leitura alegorizante da narrativa. Narciso aparece como um modelo nocivo do amor próprio, da arrogância, da vaidade e da transitoriedade. Eco é interpretada como bona fama, ou como tagarelice censurável. As apropriações literárias renunciam frequentemente à figura de Eco, e entretanto tornam profícuo o potencial da história para o discurso do amor cortês. O espelho torna-se a materialização da dama cortesã, que por ser inatingível, leva o poeta à beira da loucura (Bertrand de Ventadorn). Ou serve como instrumento para pôr um processo de reflexão em curso, no qual o jovem acredita ver primeiramente uma ninfa no reflexo, em seguida reconhece a si mesmo e finalmente lembra a dama cortesã, que desejara o seu amor e fora rejeitada por ele; no final, encontra-se com a dama, e igualmente privado de voz, sucumbe junto com a amada à morte de amor (Conte de Narcisse; cf. VINGE, 1967, p. 58-66). A constelação ovidiana serve a novas histórias de amor infeliz ou perigoso que transformam os modelos anteriores. No Roman de la rose de Guillaume de Lorris o acontecimento-Narciso é, por um lado, historicizado: uma inscrição numa fonte no jardim do amor indica o lugar da morte de Narciso. Por outro lado, é universalizado: ao olhar a fonte, Amant não encontra reflexão, mas transparência. No fundo da água vê dois cristais maravilhosos. Irradiados de sol, oferecem mais de cem cores à vista. Um milagre ótico, que eleva o amor à categoria de poder cosmológico (cf. BLUMENFELD-KOSINSKI, 1997).

No início da era moderna, além de várias traduções, adaptações e dramatizações, há uma verdadeira redescoberta da figura de Eco – no contexto, também notável, de um novo interesse científico pelo fenômeno do eco e da voz, e de um novo fascínio pelos efeitos de eco literários e musicais (cf. LOEWENSTEIN, 1984; HOLLANDER, 1984; INGEN, 2002; WALD, 2008, p. 51-70). Enquanto Narciso continua a ser tomado como cifra da deformação do eu (por exemplo, na corte), Eco aparece agora como reflexo da respiração divina, sua voz como profecia celeste, na qual se articula a voz divina, ou como a mais pura forma de discurso filosófico (BLOOM, 2001, p. 129-154; aqui, p. 144 ss.] Com efeito, existem contrapontos audaciosos como o auto sacramental de Juana Inés de la Cruz, El divino Narciso, no qual Satã entra em cena na figura de Eco, e Narciso incorpora Cristo, que morre de amor próprio excessivo e, por fim, quando o mundo está acabando, transforma-se, no trono do Pai, na imaculada flor branca da eucaristia (cf. extrato de ORLOWSKY e ORLOWSKY, 1992, p. 298-306). Há, então, o predomínio de uma perspectiva positiva. Em Cynthia’s Revels, de Ben Jonson, um Júpiter entristecido com o destino de Eco, devolve-lhe, depois de 3.000 anos, ainda que por pouco tempo, figura e voz, para que possa articular o seu sofrimento (cf. Digangi, 2001, p. 94-110). Em Paradise Lost, de Milton, Eco é quem vê o reflexo de si mesma na água, mas não se perde nele, antes, segue a voz que a conduz em direção àquele de quem ela mesma é a imagem: Adão.

Na arte, a constelação ovidiana enseja a autorreflexividade medial. Nicolas Poussin re-presenta o mito, relacionando-o, de um lado, ao paragone da pintura e da escultura e, de outro, ao da pintura e da poesia. Estreita é a ligação com o texto de Ovídio, contudo, não aparece nenhum Narciso contemplando o seu próprio reflexo, mas o momento da metamorfose de Narciso e Eco, ambos num palco, unidos numa imagem. Poussin recorre a esboços de Ticiano e Michelangelo, sem deixar de marcar uma oposição aos modelos esculturais, ao revelar que a pintura “em sua corporificação, é capaz de mostrar a aparência da vida como algo fugidio”, é “a arte capaz de mostrar um processo, uma transformação” (BÄTSCHMANN, 1979, p. 31-47; aqui, p. 38). Poussin também se volta contra a concepção contemporânea segundo a qual o reflexo da voz só é representável na poesia, e não na pintura, pois transforma a repetição acústica do eco na repetição ótica da figura: a metamorfose de Eco entra numa relação de espelhamento com a metamorfose de Narciso (Idem, p. 39).

Uma contraparte literária a esta apropriação pictórica encontra-se em Lucinde, o romance fragmentário de Friedrich Schlegel (1799). Schlegel aposta de um modo contundente na importância da reflexão para a “metamorfose do temperamento amoroso” (p. 79) e o poder da universalidade poética. A história torna-se parte do jogo do desejo e da sua representação, do trato ligeiro com toda espécie de monumento do cânone literário e artístico clássico. Para Julius, “o jovem que olha o seu reflexo na água com um prazer secreto”, assim como jovens banhistas, ou a Madona com uma criança, pertence aos objetos pictóricos nos quais “uma certa graça serena, uma expressão profunda de existência tranquila e alegre e de gozo dessa existência” parecem unir-se: “plantas animadas na figura do ser humano, semelhante a deus” (SCHLEGEL, 1963, p. 75). Narciso perde em força trágica e ganha em força poética. Sua existência é invocada, não apreendida. Predomina o modo do como se. Num “idílio sobre a ociosidade” vê-se o sujeito numa supersexualidade mítica “como uma jovem pensativa num romanço irrefletido sentada ao lado do rio”, e “como se um Narciso se contemplasse na clara superfície e se embriagasse em seu belo egoísmo”. No entanto, esta possibilidade é interrompida: “[a superfície] também poderia ter me seduzido a me entregar cada vez mais profundamente à perspectiva interior de meu espírito, se minha natureza não fosse tão egoísta e tão prática, que até mesmo a minha especulação está constantemente ocupada com o bem comum”. Em vez de perder-se em “tocantes elegias infantis”, em “lendas variadas”, ou “belas mentiras”, o eu usufrui do reino infinito da reflexão a interação de desejo e imaginação, que, como “sereias irresistíveis no meu próprio peito, encantaram meus sentidos” (p. 32).

A história de Ovídio é para Schlegel um texto de referência e, ao mesmo tempo, de contraste. Sob o título do capítulo “Metamorfoses” ele a retoma diretamente e a comprime em duas fases (p. 79 ss.) A primeira é a fase acústica: a transição do espírito infantil do mundo interior para o mundo exterior efetua-se de tal modo que “o estímulo da vida exterior [...] se multiplica e fortalece através de um eco interior" e assim penetra “todo o seu ser”. A transição também suscita uma aspiração que não se realiza. “A voz maravilhosa que o desperta, [...] em lugar de entoar uma resposta, ressoa de volta os objetos exteriores”; ele ouve “somente o eco de sua própria aspiração”. Em seguida, a fase ótica: a percepção do mundo revela-se como algo que existe somente enquanto reflexo – na água, “a figura do observador submerso em si mesmo”. Mesmo sem encontrar um amor correspondido, o ser humano deixa-se “atrair e iludir pela magia da visão que o leva a amar a própria sombra. Então veio o instante da graça, a alma forma seu invólucro mais uma vez, e respira o último sopro de perfeição por meio da forma. O espírito perde-se em sua clara profundidade e se encontra como Narciso feito flor”.

A história de Narciso e Eco oscila entre interior e exterior, sonho e realidade, mistério da existência e ilusão da verdade. No entanto, ela marca uma fronteira inequívoca: mais altamente estimado do que a graça ou a beleza torna-se o amor, sobretudo o amor correspondido. Tanto de um ponto de vista emocional quanto medial, os fenômenos do eco e do reflexo, relacionados ao eu, fornecem o modelo para uma reflexividade que se intensifica infinitamente. Ao mesmo tempo, estes fenômenos revelam o que falta ao modelo: uma vitalidade capaz de transformar a arte em vida, ou de apagar a fronteira entre arte e vida. Schlegel encontra esta vitalidade numa outra história de Ovídio: a de Pigmaleão, na qual “o espírito” vê “o jogo e as leis da arbitrariedade e da vida”: “a obra de Pigmaleão move-se, e o artista, pasmo, é tomado por um arrepio jubiloso na consciência de sua própria imortalidade” (SCHLEGEL, 1963, p. 81). A medialidade “narcisista” é, comparativamente, mais ambivalente: a promessa de explicitar a constituição medial do eu traz o risco da permanência na autorreferência e da perda da relação com o mundo. A modernidade estética partirá desta ambivalência.

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  1. adspicias utinam, quae sit scribentis imago! / scribimus, et gremio Troicus ensis adest, / perque genas lacrimae strictum labuntur in ensem, / qui iam pro lacrimis sanguine tinctus erit”

  2. Siqua tamen caecis errabunt scripta lituris, / oblitus a dominae caede libellus erit. / dextra tenet calamum, strictum tenet altera ferrum, | et iacet in gremio charta soluta meo. / haec est Aeolidos fratri scribentis imago” 

  3. N. do E.: A partir de agora, o autor indica apenas os números dos versos nas citações de Metamorfoses.

  4. multi illum iuvenes, multae cupiere puellae / nulli illum iuvenes, nullae tetigere puellae”

  5. Por exemplo, foram introduzidas metáforas lexicalizadas da audição e da visão (videri [em alemão, scheinen]) com novo significado.

  6. N. do T. : Para a tradução em português seguiu-se a seguinte edição: PLATÃO. Fedro. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1986. p. 75-76.

  7. Parte da pesquisa dedica-se à questão do autoconhecimento na história de Ovídio enquanto reescritura do Édipo de Sófocles. Ver GILDENHARD e ZISSOS, 2000; WALDE, 2006.

  8. Sobre o cruzamento das histórias cf. DÖRRIE, 1967, p. 54-75; mais recentemente VOGT-SPIRA, 2002; sobre o papel de Eco na cultura grega e romana, BONADEO, 2003.

  9. N. do T. : Para a tradução em português seguiu-se a seguinte edição: LONGO, Dáfnis e Cloé. Trad. Denise Bottmann. Campinas: Pontes, 1990. p. 67.

  10. Walde (2006, p. 91) vê no jogo de palavras um momento cômico.

  11. Cf. RINGLEBEN, 2004; aqui p. 375: “Eco ama realmente um outro, não pode, por si mesma, chegar a ele. Narciso, pelo contrário, pensa (primeiramente) amar realmente um outro, não pode, contudo, alcançá-lo, porque ele mesmo é (também) esse outro. Assim, ambos permanecem em seus amores, no fim das contas, sozinhos, mas por motivos diversos: Eco, porque remete o outro somente a ele mesmo; Narciso, porque de fato é, diante do outro, somente ele mesmo”.

  12. N. do T. : Para a tradução em português seguiu-se a seguinte edição: OVÍDIO. As metamorfoses. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Ediouro), 1983. p. 57.

  13. OVÍDIO. As metamorfoses. Op. cit., p. 62. No original: “namque dies aderit, quam non procul auguror esse, / qua novus huc veniat, proles Semeleia, Liber; / quem nisi templorum fueris dignatus honore, /mille lacer spargere locis et sanguine silvas / foedabis […] meque sub his tenebris nimium vidisse quereris”.

  14. A imagem do "jovem deus" Dioniso não corresponde aos dados históricos, segundo os quais Dionísio pertence ao grupo dos deuses mais antigos nomeadamente gerados no espaço grego (cf. SCHLESIER, 1997, p. 651-664).

  15. OVÍDIO. As metamorfoses. Op. cit., p. 77. No original: conataeque loqui minimam et pro corpore vocem / emittunt peraguntque leves stridore querellas / tectaque, non silvas celebrunt lucemque perosae / nocte volant seroque tenent a vespere nomen.

  16. O que se manifesta, também, por exemplo, nas expressões de contato desejado: tetigere (355), protegit (394), contigerant (409), tangere (478).

  17. Para um panorama da recepção: VINGE, 196); HADORN, 1984; KNOESPEL, 1985; SPAAS e SELOUS, 2000; RENGER, 2002; FELTEN e NELTING, 2003.

  18. Sed eius umbram in aqua prosequitur et amplecti conatur, id est, pulchritudinem in fragili corpore et instar aque fluenti, que ipsius animi umbra est, ammiratur. Suam quidem figuram deserit. Umbram nunquam assequitur. Quoniam animus corpus sectando se negligit et usu corporis non impletur.”