TRAÇO E RUÍNA NA OBRA DE NUNO JÚDICE

Maria João Cantinho

Professora Auxiliar do IADE (Lisboa)

mjcantinho@gmail.com

Resumo: Estudo sobre a poética de Nuno Júdice pondo em relevância o funcionamento das categorias benjaminianas de traço e ruína em sua obra.

Palavras-Chave: Nuno Júdice; Spur; Walter Benjamin

Abstract: This paper is a study on portuguese poet Nuno Júdice’s poetics. I try to stablish the importance of Walter Benjamin’s categories of trace and ruin in his work as a index of the dialogue and influence of the later on the former.

Keywords: Nuno Júdice; Spur; Walter Benjamin

§1

No seu texto “Le Murmure”, escreve Francis Ponge: “a função do artista é assim bastante clara: deve abrir uma oficina e aí tomar em reparação o mundo, fragmento a fragmento, tal como ele lhe aparece. Não por que se tenha por um mágico. Apenas como um relojoeiro.1” A minúcia é uma arte que se forja na paciência e, na tarefa poética, no trabalho incansável e na astúcia, ao nível da produção dos seus efeitos. É neste quadro, o de uma tarefa de reparação minuciosa e metódica2, que se instaura a poesia de Nuno Júdice, incansável obreiro e que assume a sua obra poética como o resultado de um trabalho oficinal, diário e metódico. E é também neste contexto, o de uma reparação do mundo, que lhe reconheço a tonalidade saturnina que irradia em toda a sua obra, podendo aludir-se a uma espécie de luz crepuscular que convoca elos secretos, cifras de um universo assombrado e arruinado e que nos remete para uma configuração peculiar da estética e da crítica literárias, isto é, resultante dessa exigência de “reparação” do mundo e essencialmente da memória das coisas, num sentido alegórico, tal como se explicará adiante. Por detrás do olhar de reconhecimento de um mundo fragmentado, esconde-se essa vontade de restituição de sentido, que é irrecusável no poeta, esse desejo de fazer “parar o tempo”, para salvar as coisas arruinadas.

“Desde os seus primeiros livros que o poeta procura dar-nos conta de um mundo em que se reconhece a perda, não só do mundo e da experiência, como das próprias certezas, das ideologias e da linguagem. E quando me refiro à perda, remeto também o leitor para a ideia de uma ausência que se encontra sempre presente na sua poesia: seja a ausência do amor ou de uma harmonia primordial, que se apresenta aqui fragmentada (e fragmentária), tal como o poeta refere no poema “Princípio de Retórica”:

Na poesia, a perfeição tem o nome de

harmonia; pelo menos na estética clássica […]

Na
poesia, porém, essa regra nem sempre se

verifica; e ver-se-á, na análise do poema, a dissonância entre as palavras e o mundo

quebrar a vontade da beleza/quebrar a vontade de beleza, e trazer

de volta a inquietação do inacabado, ou/do que nunca chega a começar. 3

Esta “dissonância entre as palavras e o mundo” que quebra a “vontade da beleza” é uma condição essencial que move e alimenta a escrita e, em particular, a poética de Nuno Júdice, de forma bem assumida na sua obra. E também aqui expressa a ideia de que o verso “não faz senão romper essa totalidade,/lembrando na insistência da sílaba a/pura impossibilidade do regresso”4. Desde logo, o percurso judiciano inscreve-se neste princípio de irrevocabilidade do passado e de um regresso a um passado. No entanto, o poeta reserva à memória esta tarefa de restauração daquele, no sentido em que essa memória concentra no poema o indício ou a marca do ocorrido. A recordação restitui, como sabemos, essa possibilidade do passado, como Walter Benjamin bem explica na célebre carta que escreve a Adorno, em que diz o seguinte: “O que a ciência “constatou”, a rememoração pode transformar. A rememoração pode transformar o que é inacabado (a felicidade) em qualquer coisa de acabado e o que é acabado (o sofrimento) em qualquer coisa de inacabado.”5 Também a poética judiciana anseia por esta tarefa de restituição do passado, pela rememoração, como fica claro, ainda, nesse mesmo poema: “Não há aqui repetição, mas a nostalgia/do único, um arquétipo que se confunde com a imagem/inscrita no fundo da memória, de que todas/as outras constituem o reflexo degradado.”6

Teresa Almeida, na introdução de Poesia Reunida7, relembra o contexto da chegada de Nuno Júdice á poesia portuguesa, numa época de “intensa efervescência cultural e política”, em que o poeta conviveu, não apenas com a poesia do neo-realismo (sobretudo Carlos de Oliveira), mas também do surrealismo e com a poética de Sophia Mello Breyner Andresen, David Mourão Ferreira, Ruy Belo, Gastão Cruz, Herberto Helder, entre outros. Recusando tanto o neo-realismo quanto os experimentalismos, podemos afirmar que o seu percurso é claramente inovador na “utilização de um discurso próprio” (Ibidem) e “uma consciência aguda do fenómeno poético” (Ibidem). O poeta reagia essencialmente ao “carácter militante do neo-realismo”, afirmando “a absoluta inutilidade da poesia” e a sua autonomia absoluta. Pode dizer-se que Nuno Júdice jamais perfilhou a ideia de que a poesia deva submeter-se a qualquer ideologia e, para ele, “o poema não tinha outra justificação que não fosse ele próprio” (Ibidem), numa contra-corrente do que foram os anos pobres de uma poesia panfletária, sobretudo no pós-revolução. Durante esse período, a sua poesia concentrava um gesto subversivo, indo na contramão e proclamando o “triunfo absoluto da poesia sobre o mundo, o seu carácter sagrado, a sua dimensão sobrenatural num mundo onde a ausência de Deus se fazia sentir.”8

Desde os seus primeiros livros que Nuno Júdice toma a poesia como objecto de reflexão teórica, algo que se inicia logo no seu livro A Noção de Poema, reflexão que se torna cada vez mais precisa e se centra na própria experiência poética, ao confrontar-se com o acto da escrita. Em O Pavão Sonoro diz assim:

Ao apresentar a narrativa exacta do que aconteceu, descubro

que também aqui não tenho nenhum objectivo, nenhum

pretexto, nenhum facto que justifique o poema. Mas ele

existe apesar disso. E é por isso mesmo que, sem arte

poética e sem argumentos, o apresento e mantenho.9

Forma radical de questionamento e também enigmática, a sua origem revela-se como um mistério. E esse mistério joga-se na relação do sujeito lírico com a própria transcendência da linguagem e da poesia, que reclama do poeta a imersão. Ao mesmo tempo, faz-se imperioso o afastamento do quotidiano, como ele o escreve no poema “As inumeráveis águas”, que dá o título ao livro:

[…] Obtive assim um estranho universo,/que não o reflexo ou a imagem deste […]

despertando-me da letargia

da vida comum, incitando-me ao contacto físico

com essas outras realidades essenciais e primitivas.10

A pregnância das imagens e das figuras define a força imagética da sua poesia, cujo ritmo é o da natureza e dos seus elementos, em particular a presença obsessiva do mar, aproximando-se aqui de uma linguagem romântica11 e simbolista12, inscrevendo-se assim numa tradição lírica que não se limita apenas ao classicismo, mas que se integra numa teia intertextual que percorre toda a história da literatura ocidental. A aproximação ao simbolismo e ao seu imaginário de um universo decadente torna-se mais notória com A Partilha dos Mitos (1982) e A Lira de Líquen (1985), em que a exploração das imagens das mulheres mortas e de um universo contaminado pela doença e pela morte se fazem sentir ainda mais, reforçando-se assim a componente mais mórbida e alegórica.

Na obra de Nuno Júdice, o mar, lugar privilegiado pelo sujeito lírico, não nos aparece como um espaço luminoso e salvífico (como aparece em outras poéticas de contemporâneos seus), mas é o lugar do naufrágio e da catástrofe, dos temporais e da própria morte. Limiar ou passagem, remete para a tensão entre a viagem e a permanência, pela evocação de lugares de partida ou de chegada: os portos, os cais. Espaço de sonho e de deambulação onírica, mas também de pesadelo, de errância contínua e de inquietação constante, nas figuras dos bêbados e das prostitutas, dos nómadas ou viajantes sem destino, acossados pela vida. O uivo da morte ou o vento que percorre as costas desabrigadas traz consigo essa imagem constante da catástrofe. Prevalece ainda um registo nocturno da imagem, que confere essa dimensão saturnina à sua poesia. O universo poético de Júdice é o de uma descida ao mundo inconsciente, para dele extrair novas ligações e conexões que o real não deixa ver. Uma técnica que o surrealismo privilegiou, para explorar todas as potencialidades do sonho e da vida simbólica das suas imagens. Trata-se de mergulhar nesse mundo informe para, a partir da descoberta das conexões enigmáticas entre os seus elementos, lhe dar forma. Poderíamos, ainda, falar numa experiência do sublime13, no sentido em que ela brota desse abrasamento dos limites, isto é, a imaginação soçobra no abismo da razão e obtém, nesse combate com os limites, uma fruição estética. Há, na poesia de Júdice, esse estremecimento que ressalta do reconhecimento da incomensurabilidade do caos e da informidade da matéria.

Este é também o mundo em declínio, em que a morte invade a vida, sob as mais variadas formas (e imagens). Um mundo de fantasmas que nos perseguem e nos assombram, como o diz o poeta, por diversas vezes, aludindo ao modo como eles “nos chamam pelos nomes/ familiares”14. No seu poema “Decadência”, Nuno Júdice evoca essa condição de perda da experiência e do arrastamento da própria perda da linguagem, dizendo: “Quando um mundo acaba, não é só o vazio que/enche os nossos com o seu peso de dúvida;/também as palavras se desfazem no espírito/que interroga o passado.”15 Essa interrogação do passado, como o sujeito lírico o diz, no mesmo poema, “oferece como resposta um seco silêncio” (Ibidem). A ideia de um sujeito lírico, que se reconhece como “uma sombra sem memória”, logo no primeiro livro, A noção de poema, perdido “entre as recordações e as relíquias”16, como “parte de um outro/tempo e de outra gente, crepúsculo sem noite nos lugares abandonados” é assumida como uma condição poética que se repercute em toda a obra.

O exílio e o silêncio, a condição de espectralidade, o desamparo são estruturais na sua obra, como muito bem o notam Ricardo Marques17 e Pedro Serra18, acentuando a dimensão saturnina, enigmática e nocturna, desmedida e excessiva, razão pela qual a designa como uma “lição de trevas”19. A melancolia desenha-se, assim, na sua obra, como matriz primeira, onde convergem dois eixos que se sobrepõem: por um lado, esse exílio, que é dominante na nostalgia, que se confunde com o desejo de um espaço e de um tempo sempre outro e que é impulso para a criação; por outro, a consciência da finitude, que tanto pode estar na base da renúncia à vida, como constituir uma exigência de desprendimento, convertendo-se na condição impulsionadora do pensamento. Livros como A condescendência do ser (1988), Enumeração das sombras (1989) e As regras da perspectiva (1990) confirmam um percurso e uma configuração muito próprias, norteadas para a reflexão do fenómeno poético, no sentido de explorar as suas limitações, mas também as inúmeras possibilidades que aí se abrem, a partir de uma estrutura rizomática20, em que os conceitos e as temáticas se repetem em variantes.

O poema judiciano aparece, assim e deste ponto de vista, como um “litoral” ou um topos de abertura, ou melhor, “o rosto belíssimo de imagens mortas”21. Por ser nele que se resgata a decomposição e decadência, o rosto — imagem orgânica por excelência — confere, pela sua unidade, imposta pelo poema, um sentido ao que já se encontra morto. Nesta acepção reconhecemos uma das grandes figuras alegóricas de Walter Benjamin: o fisionomista, de que ele nos fala na sua obra magistral O Livro das Passagens, ao referir-se ao coleccionador.

É neste paradoxo, o da própria vida e da sua cisão com a arte, já que a vida é orgânica e a arte é de uma outra ordem, que jamais alcança a metamorfose e a evanescência da vida, que se crava a alegoria poética. Parto aqui, não de um conceito de alegoria clássico, mas sim do modo como Walter Benjamin o definiu, na sua obra A Origem do Drama Barroco Alemão e o aplicou posteriormente nos seus estudos sobre Charles Baudelaire22. Distinguindo assim o procedimento simbólico da alegoria, Walter Benjamin reabilitou a alegoria, que era desvalorizada por Goethe23, no sentido em que a experiência arruinada e fragmentária constitui o que já não é representável através do símbolo, mas que pode ainda ser compreendida e “salva” no olhar alegórico.

Se Benjamin já identifica essa compreensão enlutada no barroco alemão, pela dolorosa constatação da perda da Graça divina, então a emergência da modernidade reflecte em si a ruína do olhar humano, abandonado por Deus e entregue a si próprio. Quando falamos de modernidade, referimos essa experiência radical de perda (do sagrado e da transcendência)24 e, ainda, da fragmentação ou estilhaçamento, não apenas do espaço e do tempo, como também das próprias categorias da totalidade e de unidade, de sistema. Uma experiência de declínio da aura. Esta converte-se na vivência, totalmente diferente do homem moderno, da temporalidade e da espacialidade nas grandes cidades, a qual terá empurrado o homem para uma situação de derrocada do mundo familiar ou como ele o conhecia anteriormente.

Daí que ganhe a maior pertinência a expressão utilizada por Pedro Serra, como uma ‘lição de trevas’. Fala ainda o autor de um opus nigrum, referindo-se claramente ao procedimento alegórico utilizado pelo poeta, que apenas reconhece, como significante comum da experiência, essa noite escura e impenetrável e que é também a própria “noite da linguagem”. No poema “Exorcismo”, o sujeito lírico interroga-se: “Estarei preparado para a noite?”25 O trabalho poético escava através da memória, através de um “trabalho invisível” (ibidem, p. 599). Alude o sujeito a uma voz que abre o seu poço, “na brevidade de um eco; e a sua água negra/ reflecte-me um rosto cujos olhos cegos/não encontram o cimo.” Todo o poema se move numa atmosfera sonambúlica, mais de pesadelo do que de sonho, onde a poesia ronda uma “ferida abstracta”, lugar de onde sai “uma luz de fonte”. Mas esta noite, como o lembra Pedro Serra, é também a “obscura noite”, a noite mística de S. João da Cruz, a quem Nuno Júdice dedica um poema, intitulado “Homenagem a S. João da Cruz”26, aludindo à questão da nomeação, tão cara à poesia: “Noite sem fim – porque/ não teve um princípio – e definitiva no olhar /cego de um reflexo: dando/ o nome às coisas que nunca o tiveram”. Significa tal dizer que é no afundamento da noite e do sonho místico que nasce a possibilidade de nomear/salvar as coisas. Também aqui a ideia do sublime aflora, pois a imaginação é distendida ao seu limite, no seu combate com a razão e o sujeito lírico abisma-se em si próprio, procurando a transfiguração da noite informe em linguagem e forma.

Rosa Maria Martelo, num ensaio sagaz sobre Nuno Júdice27, referindo-se à questão do significado “abstracto” na poesia judiciana, diz que “Abstracto é, na poesia de Nuno Júdice, um qualificativo normalmente aplicado a nomes concretos, de forma a produzir um efeito de deslocamento dos significados envolvidos nesses mesmos nomes.”28 Na verdade, esse detalhe não é de menor importância, pois visa a demarcação de tudo o que se quisesse destacado da circunstancialidade ou da própria singularidade, para aceder a um outro plano de existência. Este é, sem dúvida, um dos recursos mais poderosos da construção alegórica do poema, que visa subtrair o seu objecto ao circunstancial e “permite ligar memórias e experiências aparentemente desligadas” (p. 114). Este procedimento, segundo a autora, já aparece explicitado num dos primeiros livros de Nuno Júdice, O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1975), onde se define assim o trabalho do poeta: “[a]lguém que possui o dom de comparar/ e que, perante realidades diversas, entrevê /a luminosidade distante do Idêntico”29.

Trata-se, como Rosa Maria Martelo sublinha de um “princípio construtivo” (p. 145), que estrutura a poética de Nuno Júdice e que permite, não apenas subtrair-se ao circunstancial e ao acidental, como igualmente aplicar-se ao que não aparece “naturalmente” ligado, criando desta forma uma construção poética escolhida e que aproxima e compara realidades diversas, numa estratégia de recomposição onde reconhecemos o procedimento alegórico. Por outro lado, este princípio construtivo permite a identificação do diálogo tão intensamente mantido com a tradição do Romantismo e do Simbolismo, como refere Ricardo Marques30.

Essa técnica de deslocamento, como o ressalta Rosa Maria Martelo, aproxima-se dos “mecanismos de deslocamento aproximáveis daqueles que Freud observou no sonho” (p. 147), algo que a técnica alegórica modernista explorou exaustivamente no surrealismo31. E este deslocamento, que se opera no discurso poético, obriga a um trabalho reflexivo constante e metapoético, inseparável da sua poesia. É justamente a partir de um mundo assombrado pela ruína e pela morte32, que urge a revisitação do detalhe e do fragmento, para o “obrigar a significar” num outro contexto. Importa restituir o sentido ao que já se apresenta amorfo e avulso e o trabalho do poeta é, com efeito, essa (re)constituição do sentido a partir do que já se encontra desmembrado, numa procura de salvar o que se encontra votado ao esquecimento, procurando inscrever as coisas numa ordem intemporal e absoluta, subtraindo-as ao tempo físico. Retomo ainda Pedro Serra, a esse propósito, onde o autor refere a dimensão escatológica que é própria do poema judiciano, numa tensão para o Absoluto33 e para a perfeição, como um anseio de circunscrever imageticamente o real.

Na verdade, o poema anela o Absoluto ou a Totalidade34, mas um “Absoluto possível”, já que ele não existe, ainda que a poesia não possa prescindir dessa tensão. É ela própria, como se há-de ver, que a alimenta, enquanto pulsão. Porém, este Absoluto não é teológico35, como o precisa Pedro Serra (p. 13), de carácter transcendente, mas o poema joga-se precisamente nesta sublimação, de que nos fala Jean-Luc Nancy, na sua obra Ivresse: “A embriaguez é condição do espírito, ela faz sentir a sua absolutidade, ou seja, a sua separação com tudo o que não é ele. […]. A embriaguez é ela mesma a absolutização, o desencadeamento, a ascensão livre para fora do mundo.”36 É também esse o desejo que o poema transporta consigo, configurando uma desestabilização que se instala no próprio poema, pela sua condição de excesso, e é ela que se constitui uma ponte de acesso àquele37.

§2

Se até aqui falámos nos efeitos da linguagem e no procedimento através do qual a poética de Nuno Júdice se constrói, não podemos fazê-lo senão assentando a análise num outro vector que não é menos importante: a teoria do traço, como um contexto a partir do qual se desenvolve a ideia de rememoração alegórica no trabalho poético e literário. A propósito da poesia de Baudelaire e da prosa de Proust, Walter Benjamin refere-se à ideia da rememoração, definindo-a como um procedimento específico da alegoria, na arte e literatura modernas. E, como veremos, a ideia de rememoração encontra-se profundamente articulada com a ideia de traço, numa contraposição, mas também numa justaposição, com o conceito de aura. Na sua obra Livro das Passagens, Walter Benjamin define o conceito de traço (Spur) da seguinte forma:

Traço e Aura. O traço é o aparecimento de uma proximidade, por longínquo que possa ser o que a deixou. A aura é o aparecimento de um longínquo, por próximo que possa ser o que o evoca. Com o traço nós apoderamo-nos da coisa; com a aura, é ela que se apodera de nós.38

E se retomarmos o texto “Escavar e Recordar” reconhecemos no texto benjaminiano a apresentação da figura daquele que visa aproximar-se do seu passado como a de um arqueólogo que escava: “Quem procura aproximar-se do seu passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava” 39. Escavar, seguir as pisadas e os vestígios dos antepassados podem ser definidas, no seu conjunto, como uma tarefa da arqueologia, isto é, o “trabalho da verdadeira recordação” (idem). Porém, ela dá-se no campo da linguagem e, sobretudo, trata-se de um trabalho de construção imagética40, como aquele que o próprio poema judiciano encena. Esta metáfora, a do arqueólogo que visa reconstruir o passado a partir desses traços e vestígios, é também apresentada por Freud, numa analogia com o trabalho do psicanalista e, ainda, por Husserl, ao aludir ao trabalho do fenomenólogo. Em qualquer dos casos, o traço corresponde a uma espécie de sedimento que, não sendo acessível directamente, pode ser (re)presentificado a partir da rememoração. E o traço ou o rastro configura-se como um arquétipo, no sentido de uma vivência originária. Também Jacques Derrida se refere a esta experiência matricial da escrita, em vários textos, sublinhemos, no entanto, a análise derrideana da arqueologia do traço, seguindo claramente as pisadas de Freud.41

Retome-se a ideia fundamental deste texto, a partir desse núcleo temático da contraposição aura/traço. O procedimento poético da rememoração que corresponde a esta compreensão pode ser caracterizado pelo desejo de se apoderar de algo, tornando-o próximo de nós, numa tentativa de restauração e reapropriação do passado. Tal como o arqueólogo – nas metáforas anteriormente citadas - detém o seu olhar nas ruínas do passado e demorando-se sobre os fragmentos, procurando a sua restauração, pela sua inscrição numa ordem de sentido, também o poeta recolhe as ruínas do passado (sejam elas vividas ou imaginadas) no poema. Poderíamos assim referirmo-nos ao poema como uma imagem ou uma constelação ou uma “figura” constituída pela afinidade recíproca dos elementos que o compõem. Acrescente-se, ainda, que o poema seria, não uma representação, mas uma apresentação do passado no seu carácter imagético.

Assim, retome-se a poesia de Nuno Júdice, onde perpassa esse anseio de restauração do passado e dos seus vestígios. Ele torna-se claramente visível nas suas obras Enumeração das sombras, Meditação sobre ruínas e em Um canto na espessura do tempo. O facto de remeter o leitor para estas obras não significa não significa que esse “sopro” não exista nas suas obras mais recentes, com uma tonalidade mais quotidiana. Nessas obras, como referi, a rememoração é estrutural e dá-se através da construção de poemas que se abrem como portas de acesso ao passado. Porém, o passado não se apresenta de forma cronológica e sim sob a forma de imagem, corroborando o significado de imagem como apresentação e leitura/reinterpretação do passado a partir do presente. Ainda na entrevista que Nuno Júdice me concedeu, o poeta afirma: “A memória, para mim, nunca corresponde a uma realidade objectiva, factual, invariável. O que se vive vai sendo modificado ao longo da vida, e é o presente que funciona sempre como a lente óptica que (de)forma aquilo que está no nosso passado.” (CANTINHO, Storm Magazine, 2005).

O sujeito lírico move-se, assim, num território onírico que o transporta, através das imagens, até ao seu passado (vivido ou não), num desejo de o restaurar e de lhe conferir um sentido, como uma exigência de reconhecimento, através das “faculdades da analogia”42. Todavia, se, por um lado, ele se move nessa tensão, por outro, como já dissemos, o final do poema acontece como um despertar desse sonho que o transporta até ao passado. No poema “Enumeração de Sombras”, o sujeito lírico interroga-se:

quem sois, sombras de uma insónia lenta,

corroendo o poema? Sento-me à vossa beira, descansando da viagem.

Conversais, sem que vos ouça, na equívoca obscuridade

da morte. Ou sou eu que me esqueci de vós e vos arrasto comigo,

intranquilos, pedindo-me em vão que vos despeça de uma vida/que o sonho contamina?43

Essa convocação, que se abre no espaço do sonho, diluindo todas as evidências espácio-temporais para se abrir num limbo que é também o território da imagem, corresponde ao modo como o sujeito lírico “obedece” ao chamamento e ao traço mnésico do passado44. Para o fixar no poema, entenda-se. Elas, “sombras de uma insónia lenta”, são ausentes, por pertencerem a um tempo arcaico, presentificando-se no poema. Porém, o despertar, também ele alegórico, no sentido em que é um reconhecimento do que já desapareceu, do ocorrido no tempo do outrora, não se faz esperar no poema: “Não vos assusteis. Alguém me disse/ quem éreis, e qual a vossa efémera vontade. Um sopro/de esquecimento agita os ciprestes. Ave alguma/cantou esta tarde.”45 Agamben, no seu texto “La Fin du Poème”46, ressalta esta suspensão que é instaurada no último verso. Evocando Proust e Baudelaire (que partilham entre si o procedimento alegórico), cita Walter Benjamin, que reconhecia nesta suspensão o aparecimento do fragmentário, ou seja, o elemento surpreendente que quebrava bruscamente a unidade e a organicidade do poema.

No poema de Nuno Júdice, intitulado “Exorcismo”, de que já aqui falámos, da sua obra Meditação sobre ruínas, confrontamo-nos com essa evidência. Nesse poema ressalta de imediato, no primeiro verso, o “regresso” à infância, território do qual se reclama a proximidade, no modo como esse arquétipo que se inscreve e se apresenta na imagem: “Uma linha de sombra traz-me, de novo, a voz/que ouvi numa infância de pedras e água. (…) ”. 47 O mesmo poema rasga o véu da nostalgia, no seu final, como se o sujeito lírico fosse acordado do sonho: “E volto a abrir a ferida de onde, como/ antiga nascente, corre o pus das vogais. Deito/vinagre e cinzas no centro da figura:/a videira seca da infância. E/a voz cala-se.”48 Mais uma vez, o último verso corta bruscamente a evocação do passado, relembrando a condição humana, votada à irreversibilidade do tempo e da sua passagem, mostrando no poema a sua dilaceração ou tensão alegórica, a sua clivagem interna, para sermos mais precisos.

Na verdade, e arriscando aqui a minha interpretação, esta tensão releva de um outro aspecto que se encontra tão entranhado na modernidade e que é o reconhecimento da perda da aura das coisas, isto é, da sua totalidade e organicidade. O olhar do poeta apenas tem acesso a uma visão arruinada do mundo, e isto é o mesmo que dizer uma visão não-aurática. O seu acesso faz-se a partir desses fragmentos. Faz-se também a partir de um estranhamento face ao mundo, onde tudo aparece contaminado por essa tristeza, convocando imagens como a infância perdida ou o amor que desapareceu. Mas, nesses fragmentos da vida vivida, ele procura o rosto possível, a fisionomia das coisas. Essa é a condição da modernidade (e também da pós-modernidade, na aceleração vertiginosa desse desamparo). Se, por um lado, o mundo aparece desprovido de aura, rompendo com uma visão harmoniosa do mesmo, por outro, mais o traço ou o vestígio pode assumir o seu potencial de remissão à origem, num anseio “arqueológico”. Porém, esta origem não é um início nem se confunde com ele, o ponto inicial em que algo veio a ser, mas antes, como Derrida bem o notou, uma falta originária49 que reclama a sua restauração, como também o é para Walter Benjamin, quando o autor se refere às coisas no mundo de Kafka50, que eram anteriores ao seu tempo ou demasiado velhas para ele.

No mundo da alegoria não há repouso para a linguagem, uma vez que todos os sinais reenviam para outros, as imagens repercutem-se ad infinitum, tudo se move para uma lenta decomposição, num mundo em que o vivo se apresenta ameaçado pelo dente da morte, encontrando na repetição mecânica e na irreversibilidade do tempo a marca derradeira. Porém, o gesto poético vive o sonho da interrupção e da suspensão do veredicto. Termino, citando os últimos versos do poema “Orfeu e Eurídice”, onde o sujeito lírico fala do regresso a casa e da morte da amada Eurídice e conclui: “Deito-te na estrofe – e deixo-te,/olhando para trás até ao fim do tempo que a respiração do verso/me concede.”

Concluímos que a salvação do Amor, esse gesto derradeiro de fidelidade capaz de resgatar a fragilidade dos corpos, se define na imagem poética, inscrevendo-se nela, de forma intemporal e absoluta, que é o “fim do tempo da respiração do verso” concede ao poeta. Esse é o gesto alegórico por excelência, resgatando o traço e arrancando-o ao esquecimento, isto é, subtraindo-o as ruínas do passado.

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  1. Ponge, Francis, “Le Murmure”, in Méthodes, ed. Idées Nrf, Paris, 1971, p. 193.

  2. Relembro a entrevista que Nuno Júdice me concedeu para a revista Zunaí, em 2010, onde fala do seu trabalho poético: “A inspiração é a parte menor da criação. O poema nasce em geral de um objeto, uma memória, uma imagem - e é a partir daí que a sua construção vai sendo desenvolvida. Pode ser um quadro ou uma escultura, como pode ser uma fotografia, ou uma simples cena do quotidiano. No entanto, é a palavra que vai guiar a escrita poética; e por palavra entendo também o lado fónico, sonoro, que obriga à procura de um ritmo e de uma respiração que vão buscar à música as suas regras. Mas também não me considero um artesão dado que não preciso de trabalhar demasiado o objeto poético: o poema nasce praticamente já acabado, e se há um trabalho ele dá-se na cabeça, antes de passar à página o texto.” (Cantinho, Revista Zunai 2010).

  3. Júdice, Nuno, Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 380.

  4. Ibidem.

  5. Benjamin, Walter, « Passgen-Werk”, in Gesammelte Schriften, V, [N 8, 1].

  6. Júdice, Nuno, Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 380.

  7. Júdice, Nuno, Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 34.

  8. Ibidem, p. 35.

  9. Júdice, Nuno, in “Poema”, Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 108.

  10. Júdice, Nuno, Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 157.

  11. Na entrevista que Nuno Júdice deu a Ricardo Marques, in Na Teia do Poema, um percurso intertextual na Poesia de Nuno Júdice, ed. Chiado, Lisboa, 2013, p. 516, o poeta esclarece qual a sua relação com o Romantismo, de modo a que não se gerem equívocos. A sua aproximação ao romantismo nasce da sua relação com o Pré-romantismo alemão, isto é, com Novalis, Hölderlin, com esse mundo nocturno, mas numa tradição contida e sóbria, sem deixar “o poema perder o norte”. Também quero deixar aqui o meu agradecimento ao Doutor Ricardo Marques pelas sugestões e leitura atenta do meu texto.

  12. Desta intertextualidade nos dá conta Ricardo Marques, no seu livro, Na Teia do Poema, abordando de forma notável a questão da intertextualidade, refere toda a tradição desde a Antiguidade Clássica grega e romana, como Homero, Platão, Ovídio, passando pelo Renascimento, maneirismo, etc.

  13. Tal como Kant a define, na sua obra Crítica da Faculdade do Juízo, tradução do original alemão por António Marques e Valério Rohden, Estudos Gerais – Série Universitária. Clássicos de Filosofia, INCM, Lisboa, 1992. A passagem a que me refiro desenvolve-se entre os parágrafos 25 e 29.

  14. Júdice, Nuno, Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 267.

  15. Júdice, Nuno, Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 569.

  16. “Os corredores do poema”, p. 86.

  17. Tema que Nuno Júdice vai beber a Ovídio e que é uma figura fundamental da poesia e da literatura para Nuno Júdice, de acordo com Ricardo Marques. V. Op. Cit., pp. 215/217. Aqui, a poesia de Nuno Júdice também me faz lembrar esse longo poema que é A Morte de Virgílio, de Hermann Broch, sobretudo no olhar devastado de Ovídio, a caminho do exílio. Expressão judiciana dessa devastação é sobretudo o poema “Exílio” (p. 61) e “A respiração do exílio” (p. 570). Dante e Camões são também as outras figuras aqui vislumbradas. Recordo, ainda, o poema “Ovídio, escrevendo do ponto euxino” (p. 911).

  18. Serra, Pedro, in Devastación de Sílabas, p. 10: “Lo que conlleva que en el poema de la soledad, tópica estructural de la obra judiciana, se hace monumento de silencio, de exilio (…)”.

  19. Serra, Pedro, Devastación de Sílabas, ed. Universidade de Salamanca, Salamanca, p. 10: “la obra poética de Nuno Júdice supone una ‘lección de tinieblas’.”

  20. Tomo aqui o conceito abordado por Gilles Deleuze, na sua obra Capitalisme et Schizophrénie 2. Mille Plateaux, Les Éditions, Paris, 1980, pp. 13/37.

  21. V. Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 86: “Durmo na perpétua/imobilidade do poema, nos recantos esquecidos de uma praia inacessível,/litoral eterno de viajantes sem navio./E o poema é esta casa/abandonada, o rosto belíssimo de imagens mortas.”

  22. Os textos que Walter Benjamin consagrou a Baudelaire encontram-se reunidos num volume intitulado A Modernidade, traduzidos por João Barrento, na editora Assírio e Alvim.

  23. Benjamin, Walter, Gesammelte Schriften, Band I, 1, pp. 400-401.

  24. Refiro-me ao diagnóstico nietszchiano da « morte de Deus ”, sentimento que também é subjacente à poética de Nuno Júdice.

  25. Júdice, Nuno, Poesia Reunida, p. 598.

  26. V. Poesia Reunida, p. 529.

  27. Martelo, Rosa Maria, “As pontes abstractas do poema”, A Forma Informe, Leituras de poesia, ed. Assírio, Lisboa, 2010, pp. 143/151

  28. Idem, p. 143.

  29. Apud Martelo, Rosa Maria, Op. Cit., p. 144.

  30. Ricardo Marques, Op. Cit, Ibidem.

  31. Benjamin refere-se a esta técnica da montagem surrealista na sua obra magistral O Livro das Passagens, onde se dedica ao estudo das imagens do inconsciente colectivo e também ao estudo da rememoração proustiana. Nesta técnica da rememoração reconhece o autor a sua importância para a construção alegórica do texto.

  32. Recordo também o belo livro de Nuno Júdice e de Duarte Belo, Geografia do Caos, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005, em que é abordada a relação das ruínas actuais com o seu passado, num diálogo entre a poesia e a fotografia.

  33. V. Op. Cit., pp 11, 12: “El poema, para Nuno Júdice, es la realidade absoluta, es la realidade de um Absoluto posible.”

  34. Numa entrevista que Nuno Júdice me concedeu em 2005, para a Storm-Magazine, ele refere essa aspiração à Totalidade como o que move o poema, dizendo: “A totalidade é o objectivo, o alvo inatingível. Ela encontra-se no poema – ou a sua ilusão (…)” (Cantinho, Storm Magazine 2005). Entenda-se aqui a Totalidade como o Absoluto.

  35. Para corroborar esta ideia, veja-se o que Nuno Júdice diz sobre a religião na entrevista que dá a Ricardo Marques, Op. Cit., p. 520. O poeta afirma que a sua ruptura com a religião vem dos tempos da adolescência, por razões filosóficas e políticas.

  36. Nancy, Jean-Luc, Ivresse, Bibliothèque Rivages, Éditions Payot & Rivages, Paris, 2013, p. « 37 : « L’ivresse est condition de l’esprit, elle donne à sentir son absoluité, c’est-à-dire sa séparation d’avec tout ce qui n’est pas lui (…). L’ivresse est elle-même l’absolutisation, le désenchaînement, l’ascension libre jusqu’au dehors du monde. ”

  37. Idem, p. 40.

  38. Benjamin, Walter, Das Passagenwerk, [M 16 a, 5]. O conceito de “traço” é bastante equívoco, mas sigo aqui a acepção específica do conceito alemão de Spur, que designa traço, vestígio.

  39. Benjamin, Walter, Imagens de Pensamento, trad. de João Barrento, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, 219, 220.

  40. Aí a sua obra Geografia do Caos tem um papel paradigmático, nesta relação com a ruína e o traço, do ponto de vista arqueológico.

  41. Derrida, Jacques, « Freud et la Scène de l’écriture ”, in L’écriture et la différence, éd. Seuil, Paris, 2006, p. 293-240.

  42. Poesia Reunida, p. 164.

  43. Poesia Reunida, p. 334.

  44. Retomo aqui uma categoria da psicanálise freudiana que se encontra certamente na base da teoria benjaminiana, pois sabemos o quão importantes foram as investigações freudianas para o estudo benjaminiano da percepção e da compreensão da experiência de choque, que caracteriza toda a modernidade e o seu desencanto.

  45. Poesia Reunida, p. 335.

  46. Agamben, Giorgio, La Fin du Poème, p. 136.

  47. Poesia Reunida, p. 598.

  48. Poesia Reunida, p. 599.

  49. Derrida, Jacques, « Signature événement contexte ”, in Marges de la Philosophie, ed. Minuit, Paris, 1972, pp. 365-393.

  50. Num texto intitulado “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário da sua morte”, in Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, trad. Sérgio Rouanet, ed. Brasiliense, S. Paulo, 1994, pp. 137-164.