André Luiz Pinto da Rocha
Universidade Estácio de Sá ― Teresópolis
andreluizpinto75@gmail.com
Resumo: O objetivo desse artigo é analisar a instauração da filosofia contemporânea tendo como enfoque dois movimentos, a Ilustração e o Romantismo. A filosofia kantiana será levada em conta, em especial, a analítica do Belo. A tese então defendida é mostrar que um ponto que distingue o contemporâneo dos períodos anteriores é a associação feita entre universalidade e comunicabilidade, o que explica parte do rechaço do kantismo à mística cristã.
Palavras-chave: Belo; Mística; Ilustração; Romantismo.
Abstract: The aim of this article is to analyze the establishment of contemporary philosophy, focusing on two movements, Enlightenment and Romanticism. The Kantian philosophy will be taken into account, especially the analytic of beauty. The thesis then defended is to show that a point that distinguishes the contemporary from the previous periods is the association between universality and communicability, which explains part of the rejection of Kantianism to the Christian mystique.
Keywords: Beauty; Mystique; Enlightenment; Romanticism.
O império da razão e a verdade da revelação serão tão díspares como a princípio se mostram? Não haverá um teor comum que os unifique numa experiência sólida e originária? Que confluências as separam e que outras as estreitam? Uma característica da modernidade entre os séculos XVI e XVII é o de ter sido um preparativo em que se abolira, ou, pelo menos se pretendia abolir, a febre da ignorância, a clausura da fé. O racionalismo e o empirismo culminaram na derrocada de um passado supersticioso. A crença no oculto foi substituída por uma crença não menos desmedida no progresso. Outros deuses se ergueram e ditaram as suas regras. O século das Luzes foi o principal representante dessa mudança que se deu inicialmente na Europa. Um discurso cada vez mais teórico, abstrato e impessoal, leis cada vez mais fundadas em princípios do que na tradição, e mesmo uma teologia cada vez mais simbólica do que histórica, como no catolicismo do Padre Drewermann ou no judaísmo de Emmanuel Lévinas, colocam em xeque a ideia de verdades inabaláveis que não se sujeitassem aos modismos da hermenêutica. Mas esta foi uma mudança que encontrou seus entraves. O integrismo trata-se de “um fenômeno único e inquietante” que se encontra espalhado nas mais diversas designações religiosas: no “islã de Khomeini”, no “cristianismo do reverendíssimo Lefebvre ou o judaísmo da extrema direita israelense”1. O fundamentalismo tem sido no mínimo preocupante para quem defende o liberalismo e a democracia; mesmo o conservadorismo de João Paulo II nas encíclicas Fides et ratio e Veritatis splendor guardam alguma reserva à laicização. Há receio de que a própria teologia acabe reduzida a uma psicoteologia, numa psicanálise do fenômeno da fé, na degradação da narrativa dos Evangelhos à mitologia, dos êxtases a apenas mais um gozo ou jorro do inconsciente, e da iconografia católica a apenas mais uma exposição dos arquétipos; trata-se de situação mais perigosa do que as vociferações do luteranismo, pois, pior do que o ódio que se deposita a uma religião acontece quando a iconografia e a mitologia são tidas como triviais. O século das Luzes foi determinante para mudar de uma transcendência vertical, “antigamente” reservada “à divindade” e mesmo durante as revoluções liberais a “entidades superiores aos homens, como a Pátria ou a Revolução”, para uma transcendência cada vez mais horizontalizada. Depara-se na filosofia contemporânea, em diferentes feições, com o mesmo dilema: o místico agora se realizava no indivíduo e em nome do indivíduo, como que a lhe preencher o vazio da existência. Os pretendentes a substituírem a religião propõem uma solução terapêutica: ora se dirige à pessoa, como na psicanálise, ora ao coletivo, como nos arquétipos de Jung, e mesmo em doutrinas a princípio contra individualistas como o marxismo, ingressa-se o elemento religioso da conversão.
O homem passa a ser o último refugo ante o materialismo. As soluções serão as mais diversas: tome o inconsciente como universo a princípio ilógico e estranho; ali se depositam para a psicanálise as razões de nosso ser, ainda que elas estivessem escondidas e volta e meia reaparecessem na forma de lapsos e chistes; ou então, as filosofias da existência que afirmam o primado da liberdade e da consciência. Ainda se procura o oculto, o sagrado e o religioso apesar das apostas seculares a favor da ciência. O Antigo Regime e o que ele significou insistem nos corações dos modernos. Cabe perguntar: a modernidade superou mesmo o medievalismo? Não terá a essência do passado sido conservada com nova roupagem? A modernidade não se alimenta das mesmas raízes que nutriam o passado aparentemente rejeitado? Por moderno, entendo o desafio que a humanidade se impôs em atingir a autonomia. Recusam-se assim os preconceitos, a tradição imposta, a transcendência para além do humano. Afirma-se o sujeito e a exigência de um método rigoroso; ademais, a emancipação, promessa de superação da barbárie, da violência religiosa e da servidão, encara também alguns revezes. Qual o limite da violência? Precisa ser monopolizada pelo estado? Como assegurar ao mesmo tempo a liberdade e a segurança? São questões que nos perturbam até hoje. O iluminismo e o romantismo, como também, antes do século XVIII, o racionalismo, o empirismo e o contratualismo, e depois, como o idealismo, o utilitarismo e mesmo o marxismo e o existencialismo cristalizam o desafio de assegurar um sujeito autônomo em meio a um projeto evidente de cientificidade. Uma saída para a crise foi aquela iniciada por Descartes, depois estendida por Kant até as últimas consequências: a alma se assegurava desde que a isolássemos do mundo. O niilismo configura-se como um drama inevitável, em que todo sentido, valor e verdade só são viáveis a partir de um sujeito absolutizado. O subjetivismo se apoiava na razão como garantia de um mundo, mesmo no campo da ética e da política, cada vez mais materializado e matematizado; além do mais, é indiscutível o êxito que a ciência moderna teve. A racionalidade incide numa dupla mensagem: ao mesmo tempo em que se firma a partir da hegemonia do eu, coloca em questão a validade do sujeito como fundamento do saber. A ciência não poderia ser mais burguesa. Assim como a burguesia se aliou à nobreza na formação dos estados gerais para se opor ao clero, e, nas revoluções dos séculos XVII e XVIII, romperá com o antigo aliado, a ciência moderna agirá também de forma pragmática: o mesmo sujeito que no século XVII fora imprescindível para que a racionalidade cientifica se firmasse, nos séculos XVIII e XIX será objeto de crítica. A ciência moderna expulsa os filósofos da república, como Platão fizera com os poetas. Descartes jamais sonharia que o autômato diria também respeito ao homem. La Mettrie (1709-1751) com L’homme machine será nesse aspecto muito mais influente que o racionalismo francês.
Uma reação a esse estado de coisas será o romantismo. Este verá no naturalismo um modelo alienante que rompe com o vínculo para com a natureza e a sociedade. Postula-se com o romantismo o místico, o selvagem, o espontâneo, a emoção acima da razão. Se, por um lado, o mundo alemão se caracterizava pelo atraso econômico, político, científico e técnico, o que em parte justifica o tom medievalista do romantismo, por outro, o que viria a ser a Alemanha era uma região superpovoada, marcada pelo estímulo, desde Lutero, à leitura direta das Escrituras, além de uma classe trabalhadora de mentalidade já reforçada pelo calvinismo. A reforma protestante antecipa as aspirações do iluminismo no que tange à autonomia do pensamento. Como Gonçal Mayos observa em Ilustración y Romantismo, aos intelectuais alemães restava a tarefa especulativa no campo da cultura e das ideias em comparação ao que os franceses realizavam no campo político2. Para os alemães, a batalha por um novo mundo não ocorreria nas ruas, mas no interior do sujeito. Este era visto não só como agente pensante, mas acima de tudo, criativo. A subjetividade para o romantismo não se colocava nos mesmos termos que para o iluminismo; pelo contrário, o romantismo aprofunda em vários aspectos a subjetividade moderna para criticar a ciência e a racionalidade. Mas, ainda que o romantismo e o iluminismo se oponham, serão tão díspares como se mostram?
Começo com Kant. Creio que esse ensaio poderia ser definido como uma meditação sobre como a filosofia kantiana e os dilemas por ela impostos servem de reflexão para pensar a mística. Para começar, defendo que a doutrina kantiana não pode ser completamente enquadrada como iluminista; pelo contrário, nela há elementos estranhos à Ilustração, em especial, na Crítica da faculdade do juízo no atinente à analítica do belo e do sublime. Dizem que para entender um filósofo basta compreender a pedra angular da qual parte, o coração em que pulsa sua doutrina. Na doutrina platônica será a teoria das ideias, da qual se espraiam, como as sombras iluminadas pelo sol, os matizes do platonismo, seja de ordem cosmológica, estética ou mesmo política; da mesma forma, quando se trata de Aristóteles, será a teleologia, e assim por diante. E, no caso de Kant, a diferença entre a priori e a posteriori, transcendental e empírico, mas principalmente entre númeno e fenômeno que se cristaliza o problema-chave do kantismo: qual o limite do conhecimento? Uma pergunta simples mas que acompanha o pensamento kantiano desde o início. Só quando trata da moral, Kant se mostra um otimista, um típico filósofo da Ilustração. A viragem começa com a “revolução copernicana”, mas a crítica kantiana só se eleva ao posto de ciência quando a subjetividade se coloca como legisladora.
Os estoicos sugeriam abordar a filosofia em três etapas: a física equivalia às raízes, a lógica ao caule e a ética aos frutos extraídos das ciências anteriores, analogamente, a moral deduzida na Crítica da razão prática e na Fundamentação da metafísica dos costumes decorre da epistemologia levantada pelo criticismo. A moral kantiana afirma a autonomia da subjetividade como condição necessária para a vida ética. Baseia-se em decisões determinadas independentemente das circunstâncias externas; para Kant, a moral não se subordina a valores sociais, o que implicaria no abandono da própria responsabilidade em favor da submissão à heteronomia, mas antes, ela aponta para a necessidade de o homem se tornar senhor de si; por exemplo, ao tratar da menoridade: “o iluminismo é a liberação do homem de sua menoridade da qual ele próprio é culpado”3. Na Crítica da Razão Prática, como em O que é o esclarecimento? e A paz perpétua, Kant não poderia ser mais iluminista: a subjetividade era notória, atrevia-se a julgar o mundo e as instituições.
Uma aparente ausência de parâmetro levou conservadores como Joseph de Maistre (1753-1821) a culparem os ideais iluministas pela violência da Revolução Francesa; claro que sem considerar o que antecedeu: a fome que assolou a França, o aumento abusivo dos impostos e as condições precárias da servidão. Evidentemente, a demolição de tantos ídolos e em tão pouco tempo determinou e acelerou a queda da divindade que elegera. Românticos como Johann Gottfried von Herder (1744- 1803) notam e apontam tais falhas no Iluminismo, cuja razão já não cumpria a promessa da emancipação e ainda separava o homem ao mesmo tempo da πόλις e da Φύσις.
Há uma imensa diferença, por exemplo, no tratamento jurídico europeu conferido aos animais nos séculos XV, XVI e XVII e aqueles que advieram com a Ilustração e o cientificismo. Em A nova ordem ecológica, Luc Ferry mostra como o clero e o sistema jurídico vigente concedia aos animais concessões que hoje seriam tidas como exóticas. Em 1545, foi aberto pelos habitantes de um vilarejo da França junto ao juizado episcopal da cidade “um processo contra uma colônia de gorgulhos”, tendo sido “o caso [...] resolvido com a vitória dos insetos”4. O argumento do advogado de defesa era o de que os animais, também criados por Deus, devem ser assistidos no direito ao alimento assim como os homens... julgamentos como esse eram prática comum na Europa até o século XVIII. Condenou-se não apenas invertebrados, mas “répteis, ratos, camundongos”5; houve inclusive “em Marselha uma excomunhão de golfinhos que obstruíam o porto e o tornaram impraticável”6. Causa estranheza esse comportamento uma vez que se herdou do iluminismo o entendimento de que os animais constituem seres da natureza, desprovidos de liberdade e que, portanto, não podem ser tratados como pessoas jurídicas7. O humanismo moderno conduziu à separação do homem e da natureza de forma mais definitiva que no cristianismo. Os românticos, escandalizados pela subordinação da sociedade ao indivíduo e da natureza ao homem, defenderam também o subjetivismo mas em nome de um fim absolutamente oposto ao dos iluministas. Outro ponto será a influência da religião. O pietismo, movimento de renovação da fé cristã que surgiu na Igreja Luterana alemã no século XVII e que defendia o valor das emoções e dos sentimentos, geralmente de conotação mística, na experiência religiosa, em distinção à teologia racionalista, será ingrediente. O romantismo significou uma aposta no subjetivo, a fala se revela como expressão e a arte como válvula de escape de nossas energias.
A universalidade dos românticos distingue-se da buscada por Kant e o iluminismo, fundada na racionalidade. Contudo, alguns pontos devem ser observados. Kant reconhece o papel diferenciador do que se entende, à maneira dos românticos, por universalidade nas artes. Esclarece que, distinto do agradável (angenehme), o juízo que define alguma coisa como belo é universal, pois atribui o valor estético da beleza ao objeto como se fosse mais uma das suas características físicas. Assim, para quem contempla o Davi de Michelangelo, a beleza é tão certa na escultura quanto a brancura do seu mármore; há, portanto, diferença significativa, ou, no linguajar kantiano, diferença de assentimento entre o agradável, ditado pelo sentimento de prazer e desprazer, portanto, particularizado e o belo, determinado como universal. O texto original não poderia ser mais claro: “com respeito ao agradável, cada um resigna-se com o fato de que seu juízo, que ele funda sobre um sentimento privado e mediante o qual ele diz de um objeto que lhe apraz, limita-se também simplesmente a sua pessoa”8, ao passo que “com o belo passa-se de modo totalmente diverso”, ou seja, se alguém “toma algo por belo, então atribui a outros precisamente a mesma complacência: ele não julga simplesmente por si, mas por qualquer um e neste caso fala da beleza como se ela fosse uma propriedade da coisa”9. O que era mais uma crítica de Kant sobre outro setor da vida revelava-se como um obstáculo para a razão: a existência de proposições universais isentas de conceito. A Crítica da Faculdade do Juízo é nesse ponto de uma honestidade intelectual que só encontrei nos textos de Wittgenstein: não cede às prerrogativas da primeira crítica, não se acomoda aos preceitos já estabelecidos pelo próprio autor, encara o problema. As pessoas julgam as coisas belas e não há como negar. O que Kant então precisa demonstrar é a mecânica das faculdades que resulta nisso. A questão não está primeiramente em saber se quando alguém afirma que algo é belo corresponde a um valor publicamente reconhecido, mas em saber que a universalidade coligada à complacência típica da beleza ocorre sem necessitar da anuência de terceiros. Quem vê a beleza não precisa de ninguém que lhe confirme... apreensão a priori por princípio, independentemente da intersubjetividade e da constituição comunitária dos valores.
Segundo Kant, prova maior desse apriorismo se deve a que “o juízo de outros desfavorável a nós na verdade pode com razão tornar-nos hesitantes com respeito ao nosso juízo, jamais porém pode convencer-nos de sua incorreção”10. O universal na beleza constitui um calcanhar em alguns aspectos mais complicado para o criticismo do que o próprio dilema da coisa em si (Ding an sich); além do mais, a beleza distingue-se de outros valores tais como o bom e o útil. Enquanto que o bom e o útil constituem juízos de conhecimento, o belo não oferece conhecimento algum. A beleza surge como uma revelação decorrente da atividade contemplativa. Nela, há uma aura de mistério. Como na experiência religiosa, a beleza é também experiência singular e irrepetível não apenas para o artista, como também para quem o frui.
O belo aponta para o próprio Kant desconexões em sua obra. O problema está em compreender como uma experiência ocorre sem o assentimento da cognição; nesse caso, torna-se inclusive inexplicável como uma sensação produz certo prazer ou mesmo como o prazer se filia a uma determinada sensação:
[...] estipular a priori a conexão do sentimento de um prazer ou desprazer, como um efeito, com qualquer representação (sensação ou conceito), como sua causa, é absolutamente impossível; pois esta seria uma relação de causalidade, que [...] sempre pode ser conhecida, somente a posteriori e através da própria experiência”11.
Há, portanto, um desconhecido, mesmo quando trata do maior pináculo das explicações kantianas: o esquematismo das faculdades. O próprio transcendental apresentado por Kant é determinado pela contingência:
[...]nenhum fundamento pode ser fornecido seja para a peculiaridade do nosso entendimento realizar a priori a unidade da apercepção apenas mediante as categorias e precisamente através dessa espécie e de número delas, seja porque tempo e espaço são as únicas formas de nossa intuição possível12.
Ademais, a experiência estética da beleza, na medida em que para Kant aponta para o universal mas sem apresentar conceitos ou, se preferir, constitui uma ‘experiência’ mas sem determinar nenhum conhecimento, indicia o que Martin Heidegger (1889-1976) denominará em Ser e Tempo de compreensão (verstehen). A compreensão, segundo Heidegger, não trata de uma forma de conhecimento, pelo contrário, o conhecimento que seria mais uma derivação ôntica. O § 31 de Ser e Tempo, quando aborda o Ser-aí (Dasein) segundo o existencial da compreensão é lapidar no assunto: “no sentido, porém, de um modo possível de conhecimento entre outros, [...] o ‘compreender’ deve ser interpretado [...] como um derivado existencial do compreender primordial”13. Recorrendo a Heidegger, entende-se o porquê de Kant identificar certos saberes não propriamente epistêmicos: Kant esbarra na analítica do belo com modos de ser constitutivos da relação do homem no mundo irredutíveis à cognição. Cotejar os dois autores permitiu demonstrar isso. No mesmo § 31, Heidegger afirma: “daß dieses Sein an ihm selbst das woran des mit ihm selbst seins erschließt”14, traduzido por Fausto Castilho por “este ser abre em si mesmo o que lhe toca”15 e, na primeira tradução brasileira feita por Márcia de Sá Cavalcanti Schuback de forma mais livre por “esse ser abre e mostra a quantas anda seu próprio ser”16. Ao considerar a resistência de quem identifica a beleza num objeto mesmo quando desaprovado pelos demais, fica claro que, mais que de um estado de humor ou mesmo de uma personalidade específicos, tem-se diante um sentido que se mostra evidente na nossa relação com o mundo. O homem sabe “a quantas anda seu próprio ser”, quer dizer, ainda que não consiga explicar, sabe quando uma coisa é bela, a razão de certas aferições. Heidegger estende o valor da compreensão para além das cercanias da epistemologia. Não constitui intenção aqui entrar no debate que os estudiosos da obra heideggeriana costumam adotar, mas apontar para uma chave da obra kantiana que o lança para além das linhas do Iluminismo: uma visão que responde ontologicamente por uma compreensão mais ampla que a linguagem já viciosa da tradição que persiste em sentenças ainda baseadas na ideia de conhecimento. No atinente ao que há de ontológico-existencial na visão, Heidegger considera no mesmo parágrafo em que trata da verstehen:
Para o significado existencial de visão, a única coisa a ser levada em conta é a particularidade do ser em que o ente a ele acessível se deixa encontrar descoberto em si mesmo. É o que todo ‘sentido’ realiza em seu setor genuíno de descoberta. A tradição da filosofia, porém, orienta-se, [...] pelo ‘ver’ enquanto modo de acesso para o ente e para o ser. A fim de manter um nexo com a tradição, pode se formalizar a visão e o ver de modo tão amplo a ponto de se conquistar um termo universal capaz de caracterizar como acesso todo acesso ao ser17.
Sabe-se que para entender Heidegger é preciso quase reorganizar a língua que se fala; e, ainda que essa análise seja pertinente, escamoteia algumas questões. A ontologia heideggeriana ainda se atrela, talvez por se vincular à fenomenologia, ao destino da Ilustração e ao primado da razão, mesmo que à maneira, digamos, de uma epistemologia radical. Apesar das enormes diferenças entre os períodos e mesmo entre os autores, se há algo em comum entre a maiêutica socrática que reduz a fala do proponente ao discurso do mestre, o racionalismo cartesiano que retira todas as certezas a partir da certeza do cogito, o criticismo kantiano que insiste no privilégio da subjetividade transcendental, o que dará ensejo ao idealismo, a dialética hegeliana que reduz a alteridade a uma etapa da consciência, e Heidegger no atinente à compreensão ontológica, está em essas filosofias partirem de uma estrutura autoreferenciada, em que tanto a compreensão quanto o conhecimento surgem como atividades de assimilação. Nas palavras de Benjamin Hutchens, a história do pensamento ocidental caracteriza-se por “um reducionismo metafísico que luta para erradicar as diferenças a fim de garantir o conhecimento”18. Conceitos e paradigmas surgem como estratégias que reduzem a diferença através de um termo intermediário que a neutralize; até mesmo a ontologia heideggeriana, que desponta, na década de 1950, como crítica ao “mundo da técnica” que destinaria a atividade humana à dominação da Terra e do próprio homem, contem algo de abusivo e autoritário. Por outro lado, a “Analítica do Belo” constitui um contraponto às epistemologias: ser incapaz de explicar por que se considera a beleza é o mesmo que cair numa zona em que a linguagem não ressoa; o motivo, aliás, da referência feita a Wittgenstein. Como o filósofo pontua no famoso item 7, “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”19, é talvez mais do que necessário, quando diante de certas vivências, o silêncio, o mesmo silêncio que aproxima o contemplativo dos museus, das exposições de arte e dos concertos e o lúgubre dos museus. Ponto central para entender o quanto a Crítica da Faculdade do Juízo rompe em vários aspectos com o programa instituído pela Ilustração.
Os fenômenos estéticos colocam em xeque o racionalismo kantiano, apontam para vivências tidas como universais ainda que privativas, reclamam pelo místico que o kantismo tomaria por ilusório. A referência anterior que fizemos a Heidegger tinha por objetivo ver em Kant algo mais que o Iluminismo e a precedência do conhecimento. Como se sabe, “a experiência subjetiva dos místicos medievais” diz respeito à “pretensão de autoconhecimento voltado para a comunhão com Deus, ou seja, centrado na descoberta de si mesmo para estabelecer, através do êxtase da visão beatífica, um elo com o divino”20. A palavra ‘mística’, abrangente por sinal, entende-se “como sinônimo de esoterismo, ou, de forma mais singela, como mero sinônimo de religião”21. Sugere, como Rogério Garcia Mesquita considera em seu artigo em que coteja a doutrina kantiana e o misticismo, desde uma “energia ou poder interior que impulsiona o sujeito” até “um sentimento, uma sensação ou uma emoção”22. O conhecimento de Deus ganharia ares de uma vivência. Aproxima-se da loucura e do devaneio, portanto, da arte, em vários aspectos. Para os místicos, “uma forma de estabelecer um elo com o inefável, de tentar expressar aquilo que é inexprimível”23. Como Henrique Cláudio de Lima Vaz observa em Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, a linguagem dos místicos é paradoxal, da ordem de “um savoir incommunicable”24. Ainda que a experiência mística medieval busque o autoconhecimento, em nada se aproxima do socratismo, pois ainda que a filosofia grega preconize o autoconhecimento, está longe do registro de uma experiência incomunicável; pelo contrário, o autoconhecimento no socratismo é por princípio público, passível de ser ensinado, enquanto que a experiência mística por dizer respeito à “união extática da alma com Deus [...] quem não a experimentou não pode saber o que ela é e quem a experimentou é incapaz de descrevê-la”25. Gilson completa que “o êxtase é estritamente individual e a experiência de nada informaria sobre o que pode ser a dos outros”26. Comparativamente, a mística parece querer tornar factível o silêncio proposto por Górgias de Leontinos: “nada existe, se existisse, não poderia ser pensado e se existisse e pudesse ser pensado, não poderia ser explicado”27. Na condição de Deus absconditus, Deus tornaria a aporia apresentada pelo sofista uma vivência possível pelo espírito humano.
A mensagem crística nesse ponto não se explica, anuncia-se. O tema do silêncio, do estar em silêncio com Deus, diante d’Ele, desenvolveu-se no cenário medieval como experiência subjetiva, “busca da centelha divina dentro da alma”28. Como Mariani observa em Mística e Teologia, “de Bernardo de Claraval (1091-1153) até Mestre Eckhart (1260-1328) estende-se uma grande corrente de teólogos, especialmente de teólogas [...] que vão falar de Deus absolutamente transcendente a partir da transformação operada por Ele, nelas”29. A modernidade não pouparia essa ciência oculta, fruto do indizível. Não se trata evidentemente de uma posição unânime, ainda que seja hegemônica na academia a partir de então. No século XIX, alguns nomes destoaram em parte dessa perspectiva. O filósofo estadunidense William James (1842-1910) em As variedades da experiência mística (1902) examina o que ele denominava de estados místicos da consciência. Segundo James, entender esses estados era a chave que permitiria à filosofia pensar o místico sem ultrapassar os pressupostos da ciência empírica. Outro autor será Henri Bergson (1859-1941) em As duas fontes da moral e da religião. O misticismo é apresentado nessa obra como um contraponto ao cientificismo e ao materialismo; no caso, o místico envolve uma experiência que levaria a um conhecimento interior da realidade. Bergson identifica três momentos na história do misticismo: grego, oriental e cristão. De qualquer forma, sabe-se que a perspectiva que vigorou foi a kantiana. Kant afirma em O conflito das faculdades que a mística não pode ser levada filosoficamente a sério; como Mesquita assinala, “dado a impossibilidade de demonstração da efetiva existência dessas experiências que poderiam não passar de imaginação de indivíduos”30. Na palavra de Kant, “uma experiência da qual nem sequer se pode convencer que é, de fato, experiência [...] é uma interpretação de certas sensações, a cujo respeito não se sabe a que com elas se há-de-fazer, se terão um objeto efetivo para o conhecimento ou se serão simples devaneios”31. Por sinal, Kant foi um dos primeiros autores a relacionar o êxtase com a loucura, o que o coloca não apenas como iluminista, mas um precursor da psiquiatria moderna. Em Ensaio sobre as doenças da cabeça, de 1764, escrito, portanto, na fase pré-crítica, Kant menciona que, quando se trata de um fanático, este “é, no fundo, um louco que se atribui uma inspiração imediata e uma intimidade com os poderes do céu”32. Estão presentes, como tratei no início do ensaio, os traços de uma psicoteologia, em que a vivência mística se reduz a epifenômenos de uma mente convulsa. A mística é, portanto, excluída da esfera do racional, o racional agora diz respeito à “interação de categorias inatas a faculdades cognitivas humanas – espaço e tempo – com os dados brutos da experiência sensível”33. O conhecimento envolveria um limite intransponível. Colocam-se as seguintes questões: 1º, “se a mística medieval insere-se na tradição da filosofia kantiana, enquadra-se no campo do irracionalismo”34, e, 2º, se a filosofia kantiana tem sido o tempo todo fiel à prerrogativa de que não existe conhecimento privativo, infenso à compreensão e à comunicação, como situar, por exemplo, a analítica do belo nesse contexto?
Um detalhe no misticismo cristão está na relação desde o platonismo entre a alma e o corpo, que não constituíam na Antiguidade e nem na Idade Média, entidades separadas; antes, uma decantação do concreto para o abstrato, do bruto para o inteligível, presente em Platão na teoria da alma como subsídio para a defesa da estratificação social, e em Aristóteles, quando a trata mais como um princípio do que propriamente, na modernidade, à maneira de Descartes, como uma substância de características diametralmente opostas à matéria e que Kant assume de forma radical quando analisa, por sua vez, a estrutura a priori da subjetividade. Há, portanto, diferença no contexto como se compreendia na modernidade o organismo em comparação com períodos anteriores, o que não os torna menos racionais. Kant não deixa de estar medindo a mística cristã e a filosofia medieval com a lupa do cartesianismo, declaradamente dualista, não deixa de estar reproduzindo o preconceito já propugnado pelos modernos de sempre tomar o anterior por obsoleto. Explica-se assim os risos do leitor nos relatos que consideram os animais como passíveis de julgamento; ademais, a crítica de Kant à experiência mística poderia ser também dirigida ao ilustre cidadão de Königsberg: se não há como assegurar certeza alguma sobre o que se relata, como então se assegurar de que o descrito pelo sujeito filosofante na Crítica da Razão Pura não constitui outra forma, muito elegante, por sinal, do delírio ditado por nossas pretensões metafísicas?
Cabe retomar a citação da Crítica da Razão Pura: “nenhum fundamento pode ser fornecido para a peculiaridade”35 de sermos o que somos, o que não significa que também não se poderia estabelecer outras formas de analisar a estrutura da subjetividade que não fossem as tradicionais do racionalismo. O argumento cartesiano do sonho que Kant fez uso para repreender a experiência mística, particularmente, quando insurge “contra relatos de Emmanuel Swendenborg sobre as visões do céu e do inferno”36 poderia ser perfeitamente dirigido a Kant. Em linguagem atual, Kant se encontra em posição vulnerável por analisar a estrutura da subjetividade levando em consideração a existência dos qualia. Ademais, determinado por um mundo absolutamente público, das apreciações platônico-aristotélicas, seria impossível extrair qualquer traço de interioridade psíquica como as descritas no cartesianismo e no criticismo. A εποχη cartesiana está longe da executada pelos céticos antigos. Enquanto na primeira está suspenso o juízo de existência conferido às coisas, só restando a certeza do cogito, a εποχη dos antigos está mais para uma terapêutica quando diante de opiniões opostas. Um recurso muito mais prático do que teórico na solução de conflitos. A problemática trazida por Kant soaria estranha para os ouvidos de um Platão ou mesmo de um Pirro. Situação diferente será a do cristianismo, mesmo entre os primeiros filósofos cristãos, que trazem a mensagem do Cristo que vence no coração do fiel a superfície do mundo. Um cristo, uma verdade e mesmo um reino que não estão à disposição no passeio público. Nesse ponto, a mística se coloca em bases que no fundo são as mesmas que a do cristianismo, ainda que o espírito moderno e iluminista que acompanha o criticismo olhe em geral, por um lado, com desconfiança para a mística e, por outro, desde a Renascença, com simpatia, para a sabedoria clássica dos gregos e romanos. Deve-se considerar, como Mesquita sugere, os “fundamentos platônico-aristotélicos-estoicos da mística medieval”37. A mística congrega não apenas Platão, Aristóteles e os estoicos, como também os neoplatônicos (Proclo e Plotino), “guarda”, conforme Hegel, “uma grande semelhança com o espinosismo”38.
O resultado não seria outro: Kant termina por restringir a religião a uma base desprovida de qualquer respaldo epistêmico.
De qualquer forma, corroboro com Mesquita que a “experiência subjetiva dos místicos medievais [...] não implicou no abandono da razão”39. Não há a menor dúvida. A escolástica não se distinguiu da mística na maior parte de sua existência. A influência de Pseudo-dionísio Areopagita sobre Tomás de Aquino (1225-1274) é uma evidência. No entanto, se na religião, Kant não abre mão da prerrogativa de uma razão atuante que deleita como corolário da liberdade, sempre restrita ao campo dos sentidos, por que o mesmo não acontece na arte? Por que a intransigência de quem afirma a beleza é atenuada enquanto quem sofre a experiência mística é abordada pejorativamente como um devaneio? Nesse sentido, trata-se de situar a mística na discussão estética. A resposta para essa pergunta está em dois aspectos abordados na Crítica da Faculdade do Juízo e que não por acaso serão alguns dos temas mais investigados pela filosofia contemporânea: o primeiro diz respeito à criatividade, que reaparece como elemento capital entre os românticos e mesmo na filosofia desenvolvida ao longo do século XIX nas figuras de Schiller, Schopenhauer e Hegel quanto ao papel do gênio criador, o segundo aspecto diz respeito à temática da intersubjetividade, capital dessa vez na obra hegeliana, mas que compõe tema central da tradição fenomenológica começada por Husserl e depois continuada por Heidegger, Sartre, Lévinas e Merleau-Ponty. Por ser um ato de criação, a arte não imputa demérito ao artista pois parte do princípio que o ato criativo não se trata de um contato com o extra-sensorial, mas sim, no linguajar kantiano, de um livre jogo das faculdades, ao passo que o místico aparece como charlatanismo porque se recusa a reconhecer o papel da imaginação na constituição dessas ‘vivências’. Alguns pontos devem ser observados. Em vez de buscarem, como os renascentistas, a obra acabada, perfeita, os românticos visam o que ainda está em devir... o que foi teorizado não só pelos românticos, como também por Shaftesbury (1671-1713), Edmund Burke (1729-1797) e, como vimos, por Kant. O artístico mostra-se cada vez mais como força de expressão do que propriamente como uma capacidade de obter objetivamente o belo na arte. Sobre o gênio artístico, vale a definição kantiana que “gênio é o talento (dom natural) que dá regra à arte”40; este é determinado por uma “inata disposição de ânimo (ingenium)”41. Opõe-se ao que Kant chamava de espírito de imitação (Nachahmung), só admissível na ciência, não na arte, porque, diferente do gênio das belas artes, em que a originalidade precisa “ser sua primeira propriedade”42, ‘um grande cérebro’ – esse o termo adotado por Kant para tratar do assunto – como Isaac Newton, mais do que criar, está no fundo investigando e refletindo sobre as leis da natureza, o que “não se distingue especificamente do que com aplicação pode ser adquirido mediante a imitação”43. Restringindo a genialidade ao artista, Kant não está apenas protegendo – no sentido de delimitando – as artes, mas ratificando o princípio iluminista da laicização, pois agora o que é produto primeiramente não da sensibilidade, mas da imaginação, possui lugar próprio entre os saberes. Distinguem-se assim os juízos determinantes próprios das ciências naturais e aqueles que no fundo são apenas reflexões. O místico nesse ponto é rejeitado por Kant como mais uma consequência de uma teologia física que não prova a existência de Deus e que só mascara seu real valor no campo da moral. Mas para a arte se livrar definitivamente do supersticioso dependeria de um segundo atributo: a propriedade de ser comunicável, de se situar, como na mística, no interior de uma experiência singular, mas ao mesmo tempo universal, quer dizer, não só no sentido de ser efetiva para quem a frui, como também ditada por um sentido comum que situe a beleza como um valor estético reconhecido pelos demais.
No § 9 da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant esclarece que a comoção ou mesmo o prazer que se tenha ao contemplar um objeto de arte é determinado pelo julgamento universal que dirijo ao objeto e não o contrário. O filósofo escreve: “se o prazer no objeto dado fosse o antecedente [...] então um tal procedimento estaria em contradição consigo mesmo”44; e assim explica: “pois tal prazer não seria nenhum outro que o simples agrado na sensação sensorial, e, por isso, [...] somente poderia ter validade privada”45, ao que conclui, “é a universal capacidade de comunicação do estado de ânimo na apresentação dada que [...] tem de jazer como fundamento do mesmo e ter como consequência o prazer no objeto”46.
Para sustentar a universalidade da arte, Kant apoia-se no mesmo argumento que depois os fenomenólogos também se apoiarão para explicar o universal: um senso comum (sensus comunis) que se destaca como um princípio. O título mesmo do § 22 esclarece a mensagem: “a necessidade do assentimento universal, que é pensada em um juízo de gosto, é uma necessidade subjetiva, que sob a pressuposição de um sentido comum é representação como objeto”47. O senso comum abordado por Kant está diretamente relacionado à atual temática da intersubjetividade. No que diz respeito à constituição do intersubjetivo, ainda que haja diferenças conceituais entre os autores que abordaram o assunto após Kant, em um ponto são unânimes: o universal envolve a contemporização do outro. Segundo Edmund Husserl (1859-1938), não apenas estamos consolidados em base a priori e transcendental, mas também, o que aparentemente soa contraditório, de forma pluricéfala e conectada48. Se Kant acusa o misticismo de estar baseado numa vivência por princípio privativa ao entendimento dos demais, o que se consolida no século XX será o entendimento de que ser capaz de se comunicar que constitui o verdadeiro mistério. Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi quem melhor expressou esse estranho mundo aos olhos da Ilustração com o emblemático “L’enfer, c’est les autres” da peça de teatro Huis Clos. Há, portanto, comparando o século das Luzes com o das máquinas que foi o século XX um distanciamento em curso. As palavras do místico soam mais ponderadas que o otimismo na razão. Nesse caso, considero de suma importância discutir a relação entre a mística e os diversos momentos da tradição filosófica. Aos olhos do homem contemporâneo, em especial, ao homem do século XXI, que sobreviveu ao fim das utopias, o místico é um desiludido, que separou, como nenhum outro, a religiosidade e as instituições. Ora celebrado pela Igreja como santo, ora condenado como herético, o místico assume o contraditório da linguagem, entende, o que o aproxima do contemporâneo e também da arte, que existe uma dimensão incomunicável da vida, o que não a torna menos verdadeira que as demais dimensões. Dito de outro modo, o intersubjetivo será abordado pelos filósofos contemporâneos como um paradoxo que termina por ferir mortalmente qualquer sistema. Coloca a própria perspectiva da lógica como um jogo irresponsável. O racional opta por transformar o intersubjetivo e as nossas experiências mais íntimas, cito Emil Cioran (1911-1995) quando trata do assunto em Amurgul Gânduritor, de 1940, traduzido para o espanhol por El ocaso del pensamento, na “elegância do paradoxo para mascarar sua origem”49. O paradoxo não é uma solução e a princípio não resolve nada. Constitui uma forma de contornar o irreparável50; de algum modo, o sentido dos títulos que os gregos adotavam quando tratavam da natureza: Περὶ Φύσεως... circunvolução de quem sabe que está próximo da alçada dos deuses, de quem possui ciência dos limites da linguagem. Nas palavras de Cioran, “no paradoxo a razão se anula para sofrer a invasão dos erros palpitantes, do erros que latem”51.
Por esse motivo, os teólogos, nas palavras de Cioran nesse aforismo lapidar sobre o assunto, “são parasitas do paradoxo”, ainda persistem quando já se deveria ter deposto as armas52; tanto os paradoxos do vocabulário típico do misticismo quanto a descoberta contemporânea da intersubjetividade como problema filosófico, assim como o teor monadológico das nossas apreensões sensíveis (qualia) introduzem um conteúdo diferenciado às formas, como dão curso oficial ao absurdo53; em suma, prestam “à vida o encanto de um absurdo expressivo”54.
Ainda no concernente ao incomunicável das nossas expressões, Heidegger no § 7 de Ser e Tempo chama a atenção para a αἴσθησις enquanto esfera da verdade que não se contrapõe ao falso por estar firmada no irremediável que constitui o sensorial55; Hume também chama a atenção no Tratado da Natureza Humana para a intensidade que haveria nas impressões em comparação com as ideias e talvez seja esse o ponto a ser colocado em relação aos místicos e românticos em distinção aos revezes do racionalismo e do iluminismo: a universalidade talvez se ache não só em termos de conhecimento, mas de intensidade; enquanto que no conhecimento, o universal é determinado objetivamente, segundo coordenadas que conferem um conjunto de saberes a princípio públicos, no segundo caso, o que acontece nos fenômenos da fé e nas apreensões da arte (mas não teria problema em estender aos demais relatos feitos por alguns sobre o chamado sobrenatural, como os que afirmam ter visto espíritos e os relatos de abdução no polêmico campo da ufologia) está em o universal se apresentar como verídico vide a intensidade, o teor de beleza, de sublimidade ou mesmo de terror ante o que solapa justamente a lógica operante. Alguma região do verídico se concretiza em certos momentos febris; neles, a neutralidade não se aplica, mesmo quando tratando da percepção... talvez porque trate justamente da percepção. Seja no caso da experiência mística ou da contemplação da arte, ou nos arrebatamentos não analisados nesse ensaio do descrito por Kant sobre o sublime, qualquer intensificação de nossas sensações constitui em certa medida sinal de religiosidade56. Mais que situar historicamente a discussão kantiana sobre o tema da mística ocidental, creio que as referências feitas a Kant foram imprescindíveis não só porque mostrou que existe um preconceito do próprio Kant – do Iluminismo como um todo – à experiência privativa tida como duvidosa da mística comparada ao paradoxo entre o privativo e o universal do belo, estranhamente apreciado pelo filósofo prussiano. Pode-se dizer que o comportamento racional apresenta-se quase como uma higienização de nossa fisiologia, uma vez que, cito novamente Cioran, tido por alguns como o mais expressivo nome da mística balcânica do século XX, “um homem lúcido controla ‘suas febres’ a cada passo, como espectador de sua própria paixão, eternamente sobre seus traços, entregando-se de forma equívoca às fantasias de sua tristeza”57.
Recorrendo de novo a Heidegger, não tendo como explicar as fontes e nem como demonstrar aquilo com o que se deparou, o homem sabe, apesar de tudo, a quantas anda seu próprio ser, o quanto viu e assistiu, o quanto se encantou e o quanto lhe aterrorizou. Registro de uma intensidade sem igual, de um quantitativo que não quantifica e nem há como ser devidamente comparado.
A associação do universal com a comunicação: esta pode ser entendida como característica que aproxima a Antiguidade e a modernidade e que distancia a modernidade do medievalismo. Seja o animismo de um universo totalmente consciente, esteja ele configurado em experiências privativas mas irrevogáveis, eis uma visão em vários aspectos antagônicos ao que atualmente pensamos. Quando um único caso justificava a regra, o anormal explicava o normal. No medievalismo, detinha-se no testemunho ao passo que a modernidade reformada pelo contratualismo político e pelo convencionalismo no plano científico, funda-se no público. Depende-se da fidedignidade na informação agora garantida pela imprensa. O romantismo por sua vez explode como contrarreforma à Ilustração. Assim como a contrarreforma, apoiada nas ações jesuíticas da catequese, comparáveis à conversão no protestantismo, os românticos reabilitam o sujeito como força combativa ao primado da razão. A arte foi seu território. A filosofia kantiana instala-se nessa encruzilhada: defende o iluminismo e o democratismo do saber ao mesmo tempo em que ainda constata o valor de experiências a princípio incomunicáveis em seu ser.
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FERRY, Luc. O homem-Deus ou o sentido da vida, p. 57.↩
MAYOS, Gonçal. Ilustración y Romantismo, p. 366↩
KANT, Immanuel. O que é o esclarecimento?, p. 1↩
FERRY, Luc. A nova ordem ecológica, p. 9-10↩
Ibidem, p. 16.↩
Idem.↩
Ibidem, p. 19.↩
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo, p. 56.↩
Ibidem, p. 57.↩
Ibidem, p. 131↩
Ibidem, p. 67-68.↩
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, p. 90. Grifo meu.↩
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, 2007, p. 202-203.↩
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, 2012, p. 410↩
Ibidem, p. 411.↩
Ser e Tempo, 2007, p. 204-205.↩
Ibidem, p. 207.↩
HUTCHENS, Benjamin C. Compreender Lévinas, p. 59.↩
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus, p. 281.↩
MESQUITA, Rogério Garcia. “Mística Medieval e Crítica kantiana à metafísica”, p. 120.↩
Idem.↩
Idem.↩
Idem.↩
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 33.↩
GILSON, Étienne. A filosofia na idade média, p. 365.↩
Idem.↩
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia, p. 44.↩
“Mística cristã e crítica kantiana à metafísica”, p. 121.↩
MARIANI, C. M. C. B. “Mística e Teologia: desafios contemporâneos e contribuições”, p. 367.↩
“Mística Medieval e Crítica kantiana à metafísica”, p. 121.↩
KANT, Immanuel. Conflito das faculdades, p. 75.↩
KANT, Immanuel. Ensaio sobre as doenças da cabeça, p. 219↩
“Mística cristã e crítica kantiana à metafísica”, p. 122.↩
Ibidem, p. 123.↩
Cf. nota 12↩
“Mística cristã e crítica kantiana à metafísica”, p. 122.↩
Ibidem, p. 123.↩
HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la historia de la filosofia III, p. 148.↩
Mística cristã e crítica kantiana à metafísica”, p. 124.↩
Crítica da Faculdade do Juízo, p. 153.↩
Idem.↩
Idem.↩
Ibidem, p. 154.↩
Ibidem, p. 61.↩
Idem.↩
Idem. Grifo meu.↩
Idem.↩
HUSSERL, Edmund. Crise e renovação, p. 40.↩
CIORAN, Emil. El ocaso del pensamento, p.5.↩
Idem.↩
Idem.↩
Idem.↩
Idem.↩
Idem.↩
Ser e Tempo, p. 64.↩
Rudolf Otto em O sagrado situa o conceito de sublime (Erhaben, traduzido por Walter O. Schlupp por ‘excelso’) à esfera da arte e ao religioso o conceito de numinoso. Otto não confere à religião, como Kant confere, o papel de dirigente moral; pelo contrário, a religião envolve a aferição de certos êxtases que a aproximam da estética e a colocam em situação mais primitiva que esta. Nas palavras de Otto, o princípio explicativo da estética é “o prazer dos sentidos” e o da religião, “a função de impulsos gregários” (O sagrado, p. 40). Os estados psíquicos do religioso vêm acompanhados “de solene devoção e arrebatamento”, estes não devem ser confundidos com “estados de embevecimento moral ao contemplar uma boa ação” (O sagrado, p. 40).↩
El ocaso del pensamento, p.6.↩