MAPEAMENTO DA CRÍTICA LITERÁRIA RUSSA DO SÉCULO XIX E A DISCUSSÃO SOBRE ESTÉTICA

Sonia Branco Soares

Setor de Letras Russas ― Universidade Federal do Rio de Janeiro

sbranco@letras.ufrj.br

Resumo: Na Rússia, o século XIX foi marcado por amplas reflexões crítico-filosóficas e poderosas disputas sobre arte e realidade, que concorreram para o status excepcional que a literatura russa alcançou mundialmente. O ponto alto ocorreu entre os anos de 1850-70, quando escritores e críticos literários polemizaram a respeito de todo um conjunto de ideias e expressaram seus diferentes pontos de vista nos ensaios, nas páginas dos mais prestigiosos periódicos, em correspondências pessoais e, por fim, na própria literatura que produziram. Dessas contendas, emergiram as principais linhas do pensamento que conduziu os intelectuais russos pelas décadas seguintes.

Palavras-chave: crítica; literatura; estética

Abstract: The nineteenth century in Russia was characterized by intense disputes and a wide spectrum of critical and theoretical reflections upon the relationship between art and reality, and these disputes widely contributed to the extraordinary status that Russian literature was granted in the international sphere. These controversies reach their zenith between 1850-70, when writers and literary critics contend about a whole set of ideas and express their different points of view in critical essays and articles, in the pages of the most prestigious periodicals, in personal letters and, last but not least in the literature itself they produced. This contest forms the basis of the main lines of thought that will hold the minds of Russian intellectuals in the following decades.

Keywords: criticism; literature; aesthetics

Questões de estética estiveram em primeiro plano na vida intelectual russa a partir de 1855 e durante os quinze anos que se seguiram à ascensão de Alexandre II ao trono. Após os “anos sombrios”, como são chamados os sete anos posteriores às Revoluções Burguesas de 1848, marcados pelo recrudescimento da repressão estatal, a censura então afrouxava, mas mantinham-se interditas as discussões públicas sobre assuntos religiosos, filosóficos e políticos. Em resposta, os intelectuais se voltaram para a literatura e crítica literária como meio de atingir essas questões. Imaginavam que se o romance ou o conto descrevia a realidade, poderia também apresentar ideias sobre as reformas necessárias para o aperfeiçoamento dessa realidade, ainda que de forma subliminar; e a crítica literária, ao discutir tais obras, impulsionaria as ideias de mudança. O que atribui a esse período um interesse especial é justamente o fato de um grande número de intelectuais bastante distintos entre si, as “melhores mentes”, ocuparem-se com literatura e crítica literária, levantando pontos fundamentais com relação à natureza da arte e da literatura, e de o terem feito com tamanho compromisso, que as controvérsias vieram a alcançar uma intensidade incomum, violenta em certos momentos, como no caso da publicação dos romances Pais e filhos (1862) de Ivan Turguêniev e O que fazer? (1863) de Nikolai Tchernichévski, com motivações políticas diversas. Mas o problema geral de estética – especialmente no que se refere à literatura - envolvia não apenas paixões políticas, mas também metafísicas, entre o ideal e o real. Isso era claramente reconhecido à época pelas partes. As disputas sobre arte naqueles anos incendiaram a Rússia com uma intensidade incompreensível para o Ocidente, mas que tornou esse período de interesse único para a investigação, sobretudo porque os problemas abordados em sua forma fundamental ainda estão entre nós.

Debates a respeito da “estética” e da “relação entre arte e realidade” há muito já se colocavam, mas foi o trabalho produzido nos anos quarenta pelo crítico Vissarión Belínski, que se mostrou fundamental para a articulação dos problemas nesse momento. Em meio a confusões e desentendimentos a respeito do que poderia ou não ser considerado nacional, ou seja, em meio à falta de critérios para a definição de uma identidade propriamente russa, Belínski havia localizado o início da história literária russa na era petrina, negando acepção de “literatura” a toda produção cultural anterior. Visava com isso à constituição de um campo crítico independente e de um cânone literário compatíveis com um projeto de futuro, ao mesmo tempo em que inscrevia a Rússia na modernidade ocidental. Belínski tornou-se a presença intelectual mais proeminente nas controvérsias dos anos sessenta, como se pode depreender do fato de que quase todos os participantes se declararam seus herdeiros intelectuais.

As querelas dos anos de 1860 foram as mais intensas, envolvendo, de um lado, os intelectuais de origem nobre e, de outro, os novos intelectuais, advindos de camadas populares e com posições mais radicais. Nesse período de grandes controvérsias, atuaram os críticos mais conhecidos do Ocidente: N.Tchernichévski, N.Dobroliúbov e D.Píssariev – todos da tendência radical; mas não menos importantes foram também os críticos conservadores A.Grigóriev, E.Édelson, N. Soloviov, P.Ánnenski, V.Bótkin e A.Drujínin, cujas ideias não devem ser mensuradas em função de terem obtido menor popularidade em seu tempo, e sim por terem encontrado suporte justamente nos escritores mais criativos de sua época, que hoje se alinham entre os maiores da literatura mundial. Ocorre que, embora a essa altura os críticos radicais tivessem alcançado hegemonia sobre a opinião pública, os literatos de maior peso eram intelectuais politicamente conservadores ou moderados – fato que não passou despercebido, de acordo com as anotações do crítico conservador N.Soloviov, que observou, em 1864, o "cisma" entre os “pensadores mais vigorosos” e os “artistas mais talentosos” da Rússia. Também comprova esse fato a produção dos maiores periódicos da época: Mensageiro russo (Rússki viêstnik), o primeiro a publicar um número extraordinário de trabalhos de ficção de autores como I.Turguêniev, L.Tolstói e F.Dostoiévski, além de clássicos da literatura mundial, mas que não possuía críticos reputados entre os seus contribuintes; e O contemporâneo (Sovremiênnik) e Palavra russa (Rússkoe Slovo), que publicavam artigos críticos altamente influentes, mas obras ficcionais que hoje são pouco ou nada conhecidas mesmo por especialistas.

Definindo posições

Já em 1855, ano dominado por um otimismo contagiante com a troca do monarca, ocorreu um fato de grande relevância: a publicação da dissertação de mestrado de Tchernichévski, Relações estéticas da arte com a realidade - documento que orientou todo o debate estético que se seguiu, conforme atestam as palavras do pesquisador Charles Moser1: “Esse pequeno livro definiu os parâmetros de toda a discussão da época, embora seu autor não se considerasse nenhum expert em estética, não tenha escrito nada de fundamental sobre o assunto e tenha abandonado a crítica literária em 1859”.

Embora a dissertação não tenha sido aprovada pela banca da Universidade de S. Petersburgo2, os argumentos de Tchernichévski não só foram logo aceitos pela intelligentsia radical, como vieram a adquirir “força de lei intelectual”, segundo afirmou posteriormente o escritor K.Slutchévski. A verdadeira força intelectual daquele texto estava na simplicidade dos seus princípios básicos - uma simplicidade que, por sua vez, derivava da visão monista, unitária, de seu autor. Tchernichévski rejeitava de inicio qualquer noção de dualismo filosófico, qualquer separação entre o natural e o sobrenatural, o real e o ideal: a verdade é uma só, não pode haver caminhos diversos na busca da verdade e, por extensão, da realidade; só há um caminho, e a força da razão deve conduzir a todos através dele. Assim, ao se voltar para a arte, Tchernichévski eliminava o dualismo do pensamento estético que se manifestava na dicotomia forma/conteúdo, isto é, na noção de “dar corpo” a uma ideia através de uma forma material – importante elemento na então dominante doutrina hegeliana da estética, conforme elaborada por F. T. Vischer e publicada na Rússia entre 1846 e 57.

Tchernichévski rejeitou também o dualismo do argumento hegeliano de que “o belo é a correspondência perfeita entre ideia e imagem”, e a definição de sublime como a “preponderância da ideia sobre a forma”. À definição dualista do belo, Tchernichévski contrapôs uma definição monista simples o bastante para se tornar slogan político: “O belo é a vida”. Ao equalizar o belo com a vida e, por extensão, com a realidade, Tchernichévski estabeleceu o campo para uma estética monista consistente. Mas apesar disso, o dualismo reaparece, quando ele se afasta das noções básicas: “A criatura é bela naquilo que recebe da vida como esta deve ser, de acordo com a nossa concepção sobre ela”. De fato, o fulcro de toda a controvérsia estética dos anos 1855-70 está contido na contradição entre essas duas definições do belo: “O belo é a vida” - em que supomos que seja “a vida como atualmente ela é” – e “o belo é a vida, como ela deve ser” – onde introduz a noção de ideal. Essa é uma dicotomia que importuna todos os sistemas de estética monista, antes e depois, até a doutrina oficialmente propagada do realismo socialista na União Soviética.

Mas Tchernichévski distingue cuidadosamente a sua noção de ideal, do conceito platônico de ideal abstrato. Ele insiste em que o ideal deve estar firmemente fincado na realidade e deve ser logicamente inferior à realidade: “a beleza de uma estátua não pode ser maior do que a beleza de um indivíduo, assim como uma foto não pode ser mais bela que o original”. O ideal está vinculado à realidade, ou, no limite, à realidade como deve ser considerada, e não a alguma obra de arte irrealisticamente bela. A arte tem como utilidade servir de paliativo à realidade: permite certa satisfação pessoal em ver algo que não se pode vivenciar. Mas se uma pessoa normal puder escolher entre a imagem de uma maçã e a própria maçã, escolherá a última. Diz ainda, mais tarde, que “a arte deve aproximar a vida, como o faz a história”, que “a arte deve admitir sua inferioridade, como o faz a ciência”.

O que está implícito em seu argumento é que na sociedade ideal do futuro a arte deve meramente descrever a realidade, como a história, já que “para um pleno desenvolvimento do intelecto conta apenas a verdade e não coisas como o belo”. Na época em que escreveu sua dissertação, acreditava que uma sociedade humana perfeita, no futuro, não teria mais necessidade da arte e da literatura para corporificar um ideal, já que não haveria mais distinção entre o real e o ideal. Essa visão negativa da arte atravessa seus artigos. Tchernichévski em sua dissertação elege as artes mais representativas de sua época, pintura e escultura, e as compara diretamente com a realidade em que se basearam. É interessante o fato de que o crítico devota pouco espaço justamente à literatura, expressão artística que maior influência recebeu de sua dissertação. Para ele, a literatura pode apenas evocar imagens da realidade pela “fantasia” do leitor. Considera que a literatura não produz mais do que uma pálida cópia da realidade, e ainda assim, inferior a ela.

A natureza unitária do seu pensamento deu à intelligentsia um poder singular entre aqueles que buscavam uma verdade inquestionável e um ideal secular a ser realizado na sociedade do futuro. A obra Relações estéticas... foi imediatamente reconhecida como de importância por todos os que se debatiam com essa matéria. Dentre as muitas críticas publicadas, a de E.Édelson traz uma curiosa conclusão: a de que a teoria de Tchernichévski era fracassada porque derivava da ultrapassada “escola natural” de Belínski, dos anos quarenta. Mais tarde Édelson pôde verificar o “dano” que a “teoria fracassada” estava causando à vida intelectual russa e teve de reconhecer a contribuição da dissertação de Tchernichévski para a discussão sobre estética que se iniciava naquela época.

A rapidez com que se espalharam as teorias de Tchernichévski e a enorme influência que exerceu deve-se a seus poderosos defensores (como Saltikov-Schedrin, crítico e escritor mais próximo aos radicais) e detratores (como Ivan Turguêniev, escritor de origem nobre). Turguêniev condenava abertamente as ideias de Tchernichévski, chamando-as de “falsas e nocivas”. Já Saltikov-Schedrin, no periódico Mensageiro russo, defendeu as ideias de Tchernichévski e rebateu o artigo de Ánnenkov “Sobre o significado das obras de arte para a sociedade” (1856), que exprimia ponto de vista oposto ao de Tchernichévski. Dentre os intelectuais conservadores, Ánnenkov era um dos que mais defendiam a autonomia da arte em contraposição às doutrinas radicais, expressas principalmente nos artigos de Tchernichévski.

Nos anos 1855 e 56, as divergências que começavam a ocorrer em torno da questão da estética não pareciam ainda irremediáveis; havia certo clima de colaboração entre os membros da intelligentsia, que se congregavam em torno dos periódicos, sobretudo, O contemporâneo e Biblioteca para leitura; e havia certo respeito pelas posições do adversário. As diferenças de opinião nem sempre pareciam importantes, e certamente não mais importantes do que o amor e interesse patriótico pela literatura, ou do que a importância cívica do artista - legados das ideias de Belínski, de quem todos se consideravam herdeiros. A desintegração da comunidade literária veio a desencadear-se a partir de 1857. Nessa época, o crítico Drujínin passou a representar os intelectuais conservadores no debate com Tchernichévski. Em seus artigos, ambos tentavam estabelecer interpretações da literatura e da crítica russas, e prescrever o subsequente desenvolvimento delas. A primeira batalha se deu em torno da edição que o crítico Ánnenkov fizera das obras de Púchkin. Tchernichévski defendeu em uma série de artigos, publicados sob o título “Artigos sobre o período gogoliano da literatura russa”3, que as obras de Púchkin não tinham mais nenhuma importância nessa nova época literária, cujo principal representante seria Gógol. Em sua argumentação, inseria e interpretava citações dos artigos de Belínski para dar sustentação ao seu pensamento sobre a questão da utilidade social e da responsabilidade cívica na arte. Em defesa de Púchkin, Drujínin apresentou contra-argumentos em seu artigo “A crítica do período gogoliano da literatura russa e a nossa relação com ela”4, que serviram ao mesmo tempo de declaração programática para o periódico do qual era editor. A partir desse debate sobre os méritos de Púchkin e Gógol, e sobre o legado de Belínski, os credos estéticos e os métodos críticos foram surgindo de forma mais clara. Pela visão de Drujínin, existiam, no final das contas, dois tipos de escritores: o “artístico” e o “didata”. O escritor “artístico” é o que tem por lema a “arte pela arte”, acreditando que os interesses do momento são transitórios e que ele deve servir às ideias imutáveis do “bem, belo e verdade”. A arte não tem por objetivo beneficiar pessoas e nem visa qualquer moral mundana; a arte é objeto de si mesma e o artista, um ser olímpico. No entanto, a obra de arte, sempre gerada em momento de inspiração, pode se tornar fonte de conhecimento e edificação, a exemplo das obras de Homero, Shakespeare e Goethe e, nesse caso, o artista afigura-se mentor da humanidade. Já o artista “didata” parece à primeira vista mais atraente, por estar mergulhado no turbilhão da modernidade, possuindo maior número de fontes de inspiração, e por submeter seus dons ao interesse dos contemporâneos. Mas a influência dos eventos políticos, morais ou científicos sobre ele termina por enfraquecer a qualidade artística dos seus trabalhos, que, por isso, têm vida curta, ao contrário dos artistas da “arte pura”, que serão lembrados eternamente. Apesar de Drujínin ter defendido, contra a visão dos radicais, a presença das “verdades eternas” também nas obras de Gógol, este escritor teve o seu nome inelutavelmente associado à tendência “didática” na arte. O ponto de discórdia entre as duas tendências a respeito de Gógol girava em torno de algumas obras do ciclo petersburguês como O capote, Avenida Niévski e Almas mortas, e das declarações de Belínski de que estas seriam obras realistas e críticas da sociedade, no espírito da “escola natural”. Diga-se que Gógol sempre discordou dessa apreciação de Belínski e nunca aceitou sair dos marcos do Romantismo, tendo chamado o seu romance Almas Mortas de “poema”. E que, em caminho inverso, Púchkin chamou o seu longo poema Evguêni Oniéguin de “romance”, pretendendo se firmar na esfera realista. Importa entender que as tendências, radical e conservadora, buscavam legitimar-se, afirmando-se como herdeiras do legado de Belínski, mas não de todo o legado, e sim de certas ideias, desenvolvidas em fases diferentes do seu pensamento.

A disputa entre as tendências contribuiu para a futura predominância de Púchkin nas letras russas, uma vez que pôs o público em contato com sua obra e com as apreciações críticas da poética puchkiana. Para Drujínin, a defesa daquela obra poética significou não só a celebração da tendência artística, mas também a possibilidade de desenvolver suas próprias reflexões sobre arte. Tinha como procedimento, buscar “poesia” em todas as obras sobre as quais trabalhava: dos escritos de viagem às peças de teatro, das novelas à prosa satírica. O conceito de “poesia” para ele, embora não claramente definido, sugeria a ideia de independência no sentido de desapego das coisas terrenas; dizia respeito também à habilidade do escritor em enxergar todos os lados de uma questão e de apresentar a realidade em toda a sua complexidade. A visão do verdadeiro artista sobre a totalidade da experiência humana não seria idílica e nem melancólica, mas serena, de uma serenidade que expressasse amor à vida; e a experiência humana estaria, assim, profunda e fielmente descrita na obra de arte. Drujínin se interessava essencialmente pela apreciação artística da forma, e desconsiderava o contexto histórico e social da obra artística. Focava em seus artigos a estrutura, os personagens e a linguagem, e tendia a minimizar as peculiaridades dos tipos sociais consagrados pela literatura russa.

Após reconhecer a importância da publicação sobre Púchkin, Drujínin a declarou o primeiro monumento ao grande escritor, “uma homenagem da posteridade”, ao mesmo tempo em que via em Púchkin o grande poeta nacional, o poeta que poderia assumir o status de “poeta de todas as épocas e nações” por apresentar o entendimento correto sobre a independência da arte. Essas suas declarações prepararam terreno para a campanha que tornou Púchkin o mentor intelectual e artístico dos críticos conservadores, que passaram a buscar na visão puchkiniana da arte o suporte necessário às suas próprias ideias de supremacia da arte sobre a realidade, e do artista sobre o homem comum. Em contrapartida, os críticos radicais, seguindo os passos de Belínski e de sua “escola natural”, tomaram Gógol como modelo, vendo nele o criador da literatura social utilitária a clamar pela reestruturação da sociedade.

A partir de 1857, as linhas da batalha ideológica já estavam desenhadas. As paixões políticas então se impuseram e as controvérsias sobre a natureza da arte e da literatura esquentaram os debates. Nesse tempo, os críticos radicais haviam se tornado os mais ativos e o campo conservador enfraquecia; os intelectuais nobres, uma vez confrontados com as reformas sociais iminentes, silenciavam, cessavam de publicar ou passavam a duvidar de suas próprias convicções. Além disso, a causa radical havia encontrado uma voz poderosa: Nikolai Dobroliúbov.

Os artigos de Dobroliúbov, que assumem marca pessoal a partir de 1858 e até a sua morte em 61, deixaram impressão indelével na cultura russa, e suas interpretações não podem ser ignoradas. Dobroliúbov não produziu grandes artigos teóricos sobre literatura. Seus trabalhos mais importantes eram análises concretas de obras contemporâneas de diversos autores como Gontcharov, Turguêniev e Ostróvski, mas, ao produzir suas análises, ocasionalmente incluía passagens teóricas ou polêmicas de onde se podem extrair certas linhas de sua teoria da arte. Em um de seus artigos mais relevante “O que é oblomovismo?”, publicado em 1859 em O contemporâneo, Dobroliúbov, através da interpretação incisiva que faz da obra Oblómov e do talento literário de seu autor, Gontcharov, provoca os críticos conservadores ao declarar a inabilidade destes em produzir “crítica estética”. Com o objetivo de fazer a crítica da sociedade que engendrou o infeliz personagem Oblómov, Dobroliúbov usa a literatura para discutir a ordem social existente e, de certa forma, considera o romance mais real do que a realidade sobre a qual se baseia. Já em seu artigo “O reino das trevas”, publicado naquele mesmo ano, Dobroliúbov repassa a obra teatral do dramaturgo Ostróvski a partir de uma lista de críticas feitas pelos adeptos da “arte pela arte”, para depois voltar-se a uma breve e interessante digressão sobre a relação entre o talento artístico e as ideias abstratas do escritor. Nessas digressões é possível perceber que Dobroliúbov claramente aceita certas motivações dos seus oponentes, por exemplo, quando fala em “eternas demandas da arte” – frase extraída diretamente do vocabulário deles. Mas, em geral, Dobroliúbov era bastante hostil a seus antagonistas, que não eram apenas aqueles intelectuais. Já no artigo “Um raio de luz no reino das trevas” (1860), Dobroliúbov se lançou também contra os críticos acadêmicos, que reconheciam o “belo” a partir de regras formuladas por manuais de estética. Defende que o trabalho da crítica literária é algo muito mais vital: uma possível cooperação entre o crítico e o escritor para o estabelecimento de interpretações de uma determinada obra literária. A habilidade de Dobroliúbov foi reconhecida por adversários como Dostoiévski, que elogia a sua retórica, ou Gontcharov, que posteriormente explicou o insucesso de seu romance O Precipício (1869) da seguinte forma: um artista às vezes está tão envolvido com as imagens que cria, que só pode atinar com o sentido delas “com a ajuda de um intérprete crítico como Belínski ou Dobroliúbov”5. Gontcharov publicou em vida três romances: Uma história comum (1847), Oblómov (1859) e O precipício (1869). O primeiro foi recepcionado por Belínski, que criou a sua reputação; Dobroliúbov estabeleceu o padrão de leitura do segundo; mas não houve crítico para prestar qualquer serviço ao terceiro. Posteriormente é o crítico N. Chelgunov quem declara que sem esses “críticos-jornalistas” não teria havido tal literatura na Rússia:

Se não fossem os críticos-jornalistas a indicar o caminho aos nossos artistas, estes errariam por veredas diversas. Quem guiou os nossos romancistas Turguêniev, Dostoiévski, Gontcharov, Píssemski e todos os outros escritores desses anos mais recentes? Foram conduzidos por Belínski, Dobroliúbov, Píssariev. Os romancistas apenas recolhem a lenha e abastecem o motor da vida, mas o crítico-jornalista é o condutor6.

Dobroliúbov melhor do que ninguém personificou o ideal da intelligentsia radical na crítica literária, o que explica a sua influência contínua sobre as visões que possuímos de muitos escritores do século XIX, como Ostróvski, Gontcharov e Dostoiévski7.

Anos 60: linhas traçadas

Historicamente o ano de 1861 pode ser considerado central para a Rússia do século XIX, pela emancipação dos servos. Mas é também o ano em que grande fermentação política e intelectual dominou os debates. Os radicais tomavam a frente, os conservadores silenciavam. A reclusão destes foi seguida pela dos poetas líricos (os “socialmente inúteis”) que cessaram de publicar, em meio à atmosfera antipoética daqueles tempos.

Um fenômeno extremamente interessante ocorreu a partir de 1862: sendo o grupo radical hegemônico no campo da crítica, os escritores discordantes daquela doutrina tornaram conhecidas as suas divergências através das suas próprias obras. Assim, Pais e filhos de Turguêniev inaugura de certa forma esse momento, ao representar a juventude radical através do personagem Bazárov e a ele associar o termo “niilista”8. A este romance, seguiram-se muitos outros de cunho “antiniilista” (Os demônios de Dostoiévski, O precipício de Gontcharov etc.) a descreverem as doutrinas e os personagens da geração radical em cores geralmente negativas. Mas quanto mais as discussões se acirravam, mais esses escritores viam-se obrigados a lidar com questões fundamentais de estética. Diferentemente dos anos precedentes, as linhas ideológicas já estavam aqui claramente demarcadas e o debate deixava de ser a província quase exclusiva de críticos e jornalistas para mover-se para dentro das páginas da literatura. Embora os críticos radicais tenham obtido sucesso em deslocar os oponentes, a rejeição em geral às suas ideias por luminares como Turguêniev, Dostoiévski, Tolstói, Gontcharov, Píssemski etc. restauraria o equilíbrio da discussão.

Dostoiévski participou da discussão também como jornalista, em seu periódico Tempo (Vrêmia), onde publicou grande número de artigos, dos quais o mais sugestivo é “Sr _bov e a questão da arte”9. Neste artigo, Dostoiévski observou que o problema da arte dividira a sociedade em dois campos hostis, e ofereceu sua síntese com base na noção de arte como um todo orgânico, o que não foi bem aceito. De fato, Dostoiévski era um polemista tão contumaz, que soava estranha qualquer tentativa sua de reconciliar diferenças, especialmente em um campo tão próximo de si como a estética. Em todo caso, seus periódicos Tempo e Época (Épokha) garantiram uma plataforma às visões de arte alternativas propostas por críticos como Grigóriev e N. Strákhov.

Nos início dos anos 60, o jornalismo russo já estava bem estabelecido: O contemporâneo era o órgão radical mais influente e assim se manteve até a sua supressão definitiva em 1866, após o atentado de Dmitri Karakózov ao tsar Alexandre II. Após a morte de Dobroliúbov em 1861, a seção de crítica desse periódico passou às mãos do crítico Antonóvitch, que manteve oposição à crítica estética à direita, mas também às “heresias radicais”, como a que propunha Dmitri Píssariev, à esquerda. Rival de Antonóvitch no campo radical, Píssariev foi quem melhor expressou a visão da intelligentsia radical de meados da década de 60. Seus artigos mais definitivos, pelos quais alcançou o ápice da sua influência intelectual, foram escritos enquanto estava confinado na Fortaleza de Pedro e Paulo, entre 1864 e 66. Píssariev, ao levar adiante o pensamento crítico de Tchernichévski e Dobroliúbov, tendia por vezes a levar a extremos algumas de suas ideias implícitas, e a formular conclusões diante das quais seus predecessores certamente recuariam; teve boas divergências com Tchernichévski, mas teceu querelas violentas com Antonóvitch a respeito de estética. Píssariev considerava, em um de seus artigos, não ter feito mais do que desenvolver duas ideias de Belínski: que a arte não deve servir a si mesma, e que a vida é maior do que a arte. No conjunto, há uma linha ideológica direta, embora não estreita, que brota da fase tardia de Belínski e percorre Tchernichévski e Dobroliúbov até Píssariev. Em 1862, o crítico conservador Strákhov já considerava Píssariev fruto das sementes que Tchernichévski plantara, o “fenômeno mais expressivo da nossa literatura contemporânea, no qual estão revelados seus mais profundos segredos”10; em 1864, Grigóriev dizia que Píssariev era a “única pessoa talentosa” entre os “teóricos”. Também Iákov Polônski, poeta que lutou artisticamente contra a atmosfera antipoética dos anos sessenta incrementada também por Píssariev, considerava que este crítico influenciava largamente seus leitores pelo brilhantismo de sua linguagem. Afirmou em seu artigo “Flores prosásticas de sementes poéticas” que Píssariev não fazia mais do que desenvolver uma série de noções liberais propostas desde há muito pelos poetas. Assim, concluía, se sua crítica era uma prosa que havia florescido de sementes poéticas, a poesia não poderia ser “nonsense” como o crítico costumava declarar.

O entendimento de Píssariev sobre o valor literário está presente em seu artigo “Bazárov”, quando defende a capacidade de observação da realidade presente no romance Pais e filhos. O crítico considera que Turguêniev, ao plasmar a geração mais jovem da intelligentsia russa ao tipo niilista do seu herói, mostrou compreendê-la “mais profundamente do que qualquer dos nossos realistas jamais o fez”. Essa sua recepção positiva do polêmico personagem Bazárov11 gerou uma discordância permanente entre ele e o grupo do O contemporâneo, para quem o herói de Turguêniev era uma grosseira caricatura e denegria a imagem do radical.

Com toda essa polêmica, o que mais importa é que, propositalmente ou não, Turguêniev conduziu o debate sobre literatura e estética para dentro da literatura. Em extensão, o impacto daquele romance atingiu não apenas a crítica, mas também o desenvolvimento da literatura posterior, com seus romances antiniilistas, se levarmos em conta a afirmação do crítico Chelgunov de que o protagonista do romance O precipício, de Gontcharov, teve como protótipo o niilista Bazárov, ou seja, um personagem de ficção e não um ser da vida real passara a ser modelo para outros personagens. O ponto da questão estética que se colocava é: obras literárias influenciam obras literárias, e as obras podem moldar a realidade – observação com que muitos passaram a concordar, ao menos em relação a Pais e filhos. Contribuíram para o prosseguimento dessas discussões duas novas obras: Mar agitado de Píssemski e, principalmente, O que fazer? de Tchernichévski.

No ano da publicação de Pais e filhos, 1862, a instabilidade política tomava conta do país. Um ano após a emancipação dos servos, distúrbios e agitações estudantis levaram o governo a fechar a Universidade de S. Petersburgo, a suprimir temporariamente os periódicos O contemporâneo e Palavra russa, e a confinar Píssariev e Tchernichévski na Fortaleza de Pedro e Paulo. Em 1864, Tchernichévski foi exilado para a Sibéria e Píssariev permaneceu preso até 66. Mas durante o período de confinamento, ambos continuaram a produzir, embora seus textos passassem pelo crivo de um censor especialmente designado. E este censor não soube perceber o que tinha nas mãos, quando autorizou em 1863 a publicação de O que fazer?

Tchernichévski considerava a arte como uma concessão temporária à fraqueza humana, algo que na sociedade do futuro não teria mais razão de ser. Mas no presente momento, compreendia que era através da literatura que deveria comunicar sua mensagem ao público. Sabia perfeitamente que embora os críticos radicais houvessem triunfado naqueles anos, poucos eram os literatos do campo radical verdadeiramente talentosos, e via necessidade em encorajar um tipo de criação literária que incorporasse imagens positivas da geração radical, que não se ocupasse tanto em condenar as deficiências da ordem existente, mas que apontasse caminhos para um futuro positivo. O romance Pais e filhos significou para Tchernichévski um golpe em sua campanha por objetivos revolucionários, porque a poderosa imagem de Bazárov, do seu ponto de vista, teria logrado enganar certa parte da própria intelligentsia de esquerda, que agora passava à influência de Píssariev. De fato Píssariev concluía seu artigo “Bazárov” com uma espécie de apelo:

O que fazer? Não estaremos nos infectando de propósito para termos prazer em morrer de forma bela e pacífica [assim como Bazárov]? Não! O que fazer? Viver, enquanto se vive, comer pão seco quando não há rosbife, estar com mulheres, quando não podemos amar uma mulher, e deixar de sonhar com laranjeiras e palmeiras quando não há mais que amontoados de neve e tundra gelada sob os pés12.

Como ninguém ousou responder à questão “O que fazer?” de Píssariev, Tchernichévski decidiu reagir a ambos, Píssariev e Turguêniev, com o seu romance, em que toma o título do primeiro e o nome de um de seus protagonistas do segundo. Como ninguém ousou apontar o caminho para a sociedade do futuro, ele o fez pela via literária. Esse seu romance, como uma resposta, se não artística, ao menos política e filosófica a Pais e filhos, exerceu enorme influência sobre o desenvolvimento posterior da intelligentsia russa.

A controvérsia em torno do tema “literatura e estética” prosseguiu nas páginas da literatura ficcional em Memórias do subsolo de Dostoiévski - obra publicada no periódico do próprio autor, Época, em 1864, e que contribuiu para a polêmica mais na esfera filosófica e ética do que propriamente artística. Nesse mesmo ano de 64 morreram Drujínin e Grigóriev. Com o exílio de Tchernichévski, a reclusão de Turguêniev e a retirada de Dostoiévski das discussões (logo viaja ao exterior para fugir de credores), Píssariev, embora confinado na fortaleza, ocupou o espaço aberto das discussões até 66, mas de uma perspectiva sempre mais teórica do que prática. Já Antonóvitch, respondendo pelos radicais, mas privado do apoio de Tchernichévski, manteve-se na defensiva contra Píssariev.

No artigo “Realistas” (ou: “Uma questão não decidida”), Píssariev, destituindo as ideias de Tchernichévski e Dobroliúbov de sua logicidade, proclama sua total indiferença à arte em todas as suas formas, com exceção da literatura. Mas crê que também esta desaparecerá da face da terra por sua inutilidade enquanto atividade humana. Contra tal extremismo projeta-se, nesse momento, pelo campo estético Nikolai Soloviov, que já havia trabalhado no periódico Época de Dostoiévski. Este crítico sugere que concepções éticas devem se vincular a sentimentos estéticos e não a cálculos intelectuais (como na opinião dos radicais). Embora sem o talento polêmico de Píssariev, foi por este reconhecido como o seu oponente do momento. Em 1865, ao pôr em discussão a disputa entre Píssariev e Antonóvitch (que Dostoiévski chamou de “cisma entre os niilistas”), Soloviov questionou as doutrinas radicais. Pela intolerância das partes, o debate estético terminou assumindo tintas pessoais. Em resposta a “Realistas”, Antônovitch fez publicar seu artigo “Pseudorrealistas”, onde proclama sua intenção de reparar o estrago feito à “imagem verdadeira do realismo”, e assim por diante.

Ainda em 1865, a reedição da obra de Tchernichévski Relações estéticas da arte com a realidade, e a publicação na Rússia da obra de Pierre-Joseph Proudhon Du principe de l’art et de sa destination social contribuíram significativamente para manter vivo o debate estético.

A republicação dessa obra de Tchernichévski – como homenagem ao décimo aniversário do seu surgimento, celebração das vitórias intelectuais ao longo desse tempo e tributo ao seu autor enviado ao exílio – respondeu à demanda pela obra, cuja pequena tiragem inicial surpreendentemente havia sido capaz de sustentar todo o debate até então. Essa segunda edição, no entanto, estimulou novas discussões em torno daqueles argumentos levantados na obra, dessa vez de uma perspectiva histórica diferente. Antonóvitch, reivindicando a herança intelectual de Tchernichévski ao seu grupo de O contemporâneo, tratou logo de fazer a revisão da obra desenvolvendo as ideias ali expostas, mas, ao mesmo tempo, defendendo, ainda que contra certas doutrinas do autor, sua própria ideia da importância da arte como atividade humana e de seu direito de existir. A impossível tarefa lógica de defender ambas, a arte e as ideias de Tchernichevski, despertou a ira do grupo ligado ao Palavra russa, que, por sua vez, considerava-se também o sucessor genuíno das ideias de Tchernichévski. O primeiro comentário deste grupo foi realizado por Varfolomiéi Záitsev, uma nova voz, alinhado a Píssariev, que situou Antonóvitch ao lado dos estetas, seus maiores opositores. Tirava seu argumento maior da ideia de Tchernichévski de que a arte declinaria na medida em que a humanidade se desenvolvesse rumo à perfeição, e que a arte merece total negação. Mas coube a Píssariev o artigo mais importante publicado pelo grupo: “A destruição da estética”. Píssariev de certa forma resgata Tchernichévski de si mesmo, ao sustentar que, para apresentar as suas novas teorias, o autor teve que enunciar seus argumentos em termos tradicionais a fim de ser compreendido na época, mas que agora, dez anos depois, tornava-se possível deixar de lado sua terminologia ultrapassada para constatar que o autor não pretendia propor uma nova teoria estética, mas simplesmente a erradicação de toda e qualquer teoria estética. A partir da definição de belo de Tchernichévski, Píssariev conclui que “a estética, para nossa grande satisfação, desaparece na fisiologia e na higiene”. Em outro artigo do mesmo ano, explica que “a estética está se tornando parte da fisiologia e higiene da mesma forma que a alquimia se transforma em química e a astrologia em astronomia”. Ou seja, a estética seria uma pseudociência do belo, a se dissolver em uma ciência legítima.

Uma vez que Antonóvitch (e o grupo de O contemporâneo) repudiava o personagem Bazárov que, entre outros, propugnava a eliminação da arte, não poderia deixar de condenar igualmente o grupo da Palavra russa e, em particular, Píssariev. O grupo de O contemporâneo hesitava a respeito da interpretação que eliminava a estética, já que seus predecessores foram também autores literários: Dobroliúbov escreveu poesias e Tchernichévski havia posteriormente moderado sua visão da arte, chegando a escrever obras de ficção. Apenas os extremados Záitsev e Píssariev jamais sucumbiram à tentação de escrever ficção ou poesia. Ao fim da sua existência, o periódico Palavra russa chegou a eliminar toda poesia de suas páginas e planejava fazer o mesmo com a prosa, tornando-se oposição teórica viva a O contemporâneo.

Importante para o desenvolvimento das controvérsias sobre estética no ano de 1865 foi também a segunda edição das obras completas de Dobroliúbov, que reforçou o poder de suas ideias. A partir de então, suas obras passaram a ser sistematicamente republicadas. Embora os conservadores tenham igualmente iniciado a primeira edição das obras completas de Drujínin, esta só alcançou os volumes mais interessantes em 1867, já tardiamente, sem chances de causar maior efeito nos debates. Apesar da menor capacidade do campo estético em promover seus líderes, Nikolai Soloviov continuava a trabalhar para preencher a lacuna.

A última contribuição significativa desse período foi a de Nikolai Chelgunov que, preso e exilado entre os anos 62 e 70, retornava para assumir o vácuo deixado pelo desaparecimento de Píssariev. O ano de 1870 testemunhou, então, a vigorosa discussão final das ideias de Píssariev entre o seu defensor Chelgunov e o seu obcecado oponente Soloviov.

Como principal adversário dos críticos conservadores daqueles anos, Píssariev havia levado as doutrinas da crítica literária radical aos seus extremos lógicos, forçando tanto seus oponentes, como seus colegas radicais a lidarem com problemas fundamentais da natureza da arte e da realidade. A lógica implacável de sua argumentação expôs o impulso fundamental do pensamento estético radical.

Mas a partir do artigo de Chelgunov “A duplicidade do conservadorismo estético”, evidenciou-se que a crítica radical começava a lidar com estética em termos políticos: o crítico acusava os “pregadores do conservadorismo estético” por seus esforços individualistas em distrair o povo, esforços camuflados em nome da ciência, do amor ao próximo e da moralidade; acusava-os de falta de compreensão da história, embora acreditassem servir ao bem comum. Como as discussões literárias passaram a estar envolvidas em doutrinas políticas, tornava-se impossível aos críticos oponentes conduzir discussões no nível estético.

No que diz respeito ao conde Liev Tolstói, embora uma das presenças literárias mais luminares da época, não tomou parte diretamente das querelas estéticas e ideológicas suas contemporâneas. Embora o grande sucesso de suas primeiras obras o tenha posto logo em contato com o mundo artístico e os escritores mais proeminentes, com os quais tinha afinidades estéticas, veio a criticar-lhes o excessivo culto ao belo e à elegância. Tolstói não considerava a escrita e a arte em geral como atividades superiores ou manifestações da ideia misteriosa do belo e de Deus, mas como formas de transmitir o conhecimento humano de acordo com as necessidades individuais. Em sua obra tardia O que é arte? (1897) afirma que “arte não é prazer, mas um meio de comunicação que, unindo pessoas pelo mesmo sentimento, torna-se indispensável à vida e ao progresso de cada indivíduo e de toda a humanidade”13 A mesma importância que dava à sua escrita, atribuía às muitas outras atividades que desempenhava socialmente, ocupando-se com a questão da terra, da alfabetização dos camponeses, das guerras, da fome, da religião.

Apesar de Tolstói ter vivido ao largo das batalhas estéticas da década de sessenta, é possível encontrar suas opiniões nas correspondências que manteve com o poeta Fiêt, com quem teve uma relação mais longeva, e com demais críticos e escritores como Bótkin, Nekrássov e Turguêniev. Rejeitando as ideias ocidentalistas por não acreditar no progresso científico como meio de transformar o homem e a sociedade, também não aceitava as ideias eslavófilas que exaltavam as formas arcaicas da vida rural russa. Opunha-se igualmente à nova corrente radical nas letras russas que, ao entender literatura como veículo para reformas sociais, descartava as preocupações estéticas, considerando-as ultrapassadas. Em seu conto Albert (1858), Tolstói defende que a arte deve lidar com a verdade moral eterna (ístina) e não com a efêmera verdade da política ideológica (pravda). Sempre polêmico, considerou o romance Pais e filhos extremamente tedioso, e desprezou nele o liberalismo e a “falta de paixão” de Turguêniev. Não tendo escrito matérias de crítica literária, Tolstói sistematizou seu pensamento sobre arte tardiamente.

Referências

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  1. Moser, 1989: xvii

  2. As dissertações deveriam ser previamente publicadas para assegurar seu direito ao julgamento da banca, conforme praxe nas Universidades russas. A sensação causada pelo texto, apesar da pequena tiragem, levou meio mundo estudantil e intelectual a presenciar a defesa.

  3. Publicados em O contemporâneo entre dezembro de 1855 e dezembro de 56.

  4. Publicado em Bibioteca para leitura ao final de 1856

  5. Moser,1989:28

  6. Moser,1989:29

  7. A imagem do Dostoiévski-humanista defensor dos oprimidos foi forjada inicialmente por Dobroliúbov. Trata disso o crítico N. Mikhilóvski em seu artigo “Um talento cruel”, de 1882, publicado na Antologia do pensamento crítico russo, p.433.

  8. A atitude negativa da nova geração de intelectuais em relação à ordem vigente e a necessidade de minar tanto a autoridade social e política quanto a fé em uma ordem sobrenatural estão certamente na base da escolha do termo “niilista” que lhes foi atribuído por seus oponentes. No entanto, isso não significa que os “niilistas” tivessem por princípio a não crença, ao contrário, essa geração de jovens radicais acreditava piamente que a ciência natural, enquanto sistematização da razão, estivesse destinada a resolver, por um viés materialista, todos os problemas da existência humana. Essa fé inabalável na ciência, ou “cientificismo”, é provavelmente o principal item da bagagem intelectual dos radicais dos anos sessenta. Esses jovens niilistas olhavam ainda de forma vaga para a ideia de “reconstrução socialista a conduzir a sociedade ao reino da justiça sobre a terra”, fosse por meios revolucionários, ou evolucionários, ocupados que estavam, naquele momento, com a tarefa de esclarecer a sociedade, livrá-la dos velhos preconceitos e costumes e iluminar o seu porvir, como falam por si mesmos certos títulos dos artigos de Dobroliúbov e Píssariev, respectivamente: “Um raio de luz no reino das trevas” e “A destruição da estética”. Aos “niilistas” não bastava diferenciar-se intelectualmente dos seus oponentes; buscavam também uma diferenciação externa, pelo uso de roupas desleixadas, falta de asseio e comportamento intencionalmente rude. Procuravam disseminar suas ideias diretamente nas “revistas grossas”, que abundavam nos anos 60, e indiretamente na literatura. Já a sua aproximação à literatura se deu de forma a desencorajar a produção da “arte pura”, ou seja, da literatura sem propósito social. No entanto, apesar de propugnarem a literatura social, esta vinha sendo produzida de forma tão acanhada e em número tão reduzido, que Tchernichévski procurou estimulá-la, escrevendo O que fazer? (1863), o que de fato alavancou esse tipo de escrita nos anos subsequentes. Ao consagrar o termo niilista como sinônimo de jovem radical, o romance Pais e filhos consagrou também a sua própria perspectiva antiniilista, que veio a ser adotada em diversas obras, por diversos autores.

  9. Resposta ao artigo de Dobroliúbov “Gente oprimida”, que consistiu em uma crítica ao romance Humilhados e ofendidos; “_bov” é como Dobroliúbov assinava seus artigos.

  10. Moser, 1989:36

  11. Essa postura de aceitação do niilista implicava também na aceitação dos movimentos sociais e políticos populistas que já se faziam presentes.

  12. Moser,1989:44

  13. Parini (org), 2011:98