Taís Salbé Carvalho
Doutoranda em Estudos Literários ― Universidade Federal do Pará
t.salbe@gmail.com
Antônio Máximo Ferraz
Instituto de Letras e Comunicação ― Universidade Federal do Pará
maximoferraz@gmail.com
Resumo: Este ensaio propõe um exercício crítico a partir da escuta das questões que se manifestam em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Para tanto, reflito sobre o que vem a ser o exercício de escuta crítica originária, pensando em escuta como o se deixar invadir pelo real acontecendo, e como podemos fazer uma leitura crítica poética, por meio do diálogo com a obra literária, que prevê o pensar como o deixar-se tomar pela linguagem, como logos.
Palavras-chave: Crítica Literária; Escuta Crítica; Grande Sertão: Veredas
Abstract: This essay proposes a critical exercise based on listening to the questions that are manifested in Grande Sertão: Veredas, by João Guimarães Rosa. For that, on what comes from an exercise of critical listening originating, thinking of listening as to empty the real movement, and how can make a critical poetic reading, through dialogue with a literary work, which provides the think how to leave Is taken by language, as logos.
Keywords: Literature critics; Critical Listening; Grande Sertão: Veredas
O Universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
Alberto Caeiro
O senhor reflita... O que venho mostrar com essas palavras do pensador-poeta e guardador de rebanhos Alberto Caeiro tem muito a ver com a questão do criticar do homem, visto que todo e qualquer ser humano já está lançado no horizonte da crítica, e esta orienta nossas possibilidades para que sejam transformadas em decisões, estabelecendo, assim, os princípios que regem nossas vidas.
Mire e veja... É a crítica que possibilita o homem julgar o que quer que seja, fazendo as opções para percorrer sua travessia. E a realidade como manifestação do real advém-nos no criticar, no momento em que separamos para distinguir e diferenciar, por meio da linguagem (logos), o que é característico e constitutivo do que está se manifestando. Acredite, disso, Riobaldo já sabia:
Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce pode de repente virar azangada — motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas — vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? (ROSA, 2006, p. 11).
E o senhor vê? Riobaldo está contando do acontecer das coisas no mundo, que pelo nosso criticar, damos resultado é na hora, e não “antesmente” de as coisas se manifestarem. E isso é que é o criticar original. O senhor me acompanhe? As possibilidades do ser das coisas não podem ser mapeadas e analisadas de forma exata, cartesiana, pois tanto o ser da coisa quanto o ser de quem diz a coisa são um sendo, estão acontecendo, são atravessados pelo tempo. E podemos pensar assim também quando queremos fazer um exercício de escuta crítica sobre uma obra de arte.
Pois bem, vamos então pensar o que diz a palavra “crítica”. E sei que o senhor é homem que pensa e repensa, por isso me escuta. Crítica, do grego krinein, remete às acepções de julgar, de examinar, de analisar, de discernir, de diferenciar. Essas são palavras que possuem sentidos bem diversos e dinâmicos, em função dos diferentes contextos em que são empregadas em nosso cotidiano, e podem ser usadas em diferentes áreas do conhecimento, além de serem empregadas também na vida prática, o senhor crê? Pois bem, segundo o moço pensador, Leandro Gama Junqueira,
[...] o ‘nascimento’ da crítica, ligada à Teoria do Conhecimento, e da Modernidade, são, filosoficamente, paralelos, pois é em Kant, o ‘pai’ da Modernidade, que o estudo da crítica mais se aprofunda e ganha corpo, sobretudo nas reflexões em torno da questão da Aufklärung, traduzida, grosso modo, por esclarecimento ou Iluminismo. A crítica é trazida para o cenário filosófico com a publicação das obras: Crítica da razão pura (1781), Crítica da razão prática (1788), Crítica da faculdade de julgar (1790). E suas reflexões giram em torno das questões ‘como é possível conhecer?’, ‘as formas do espaço e do tempo’, ‘categorias do entendimento’, ‘as antinomias da razão’, ‘o imperativo categórico’ e ‘a crítica da faculdade de julgar’, entre outras (JUNQUEIRA, 2014, p. 49).
Mas o senhor arrepare que o sentido de crítica na Modernidade, a partir dos pensamentos de Kant e Descartes, aponta para a ação de separar para distinguir e diferenciar, porém, com finalidade de determinar o valor do que se manifesta (“o que é”) e classificá-lo pelo modo como se manifesta ou se dá no mundo (“como é”), sempre a partir da apropriação intelectual das categorias metodológicas instituídas pela razão (“como se conhece”). Olhe o senhor, para Kant, a crítica deve ser mediada pela relação sujeito―objeto e determinada por categorias inerentes ao intelecto e pelas formas, a priori, de intuição, que são tempo e espaço, como condição de possibilidade do conhecimento ou meio pelo qual o sujeito pode conhecer.
Esse processo seria uma forma de determinação e de legitimidade da verdade e sua respectiva validade nos diversos âmbitos, de modo racional, mensurável, registrável e transmissível. Mas como podemos determinar a verdade de uma coisa (no caso aqui de uma obra de arte), que vigora no manifestar da phýsis1, por meio de uma análise lógica? Entretanto, como já nos alertou o demiurgo do ser-tão Guimarães Rosa: “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...” (ROSA, 2006, p. 8).
Peço que continue me escutando a respeito da questão da crítica moderna. A Modernidade instaurou o poder autoritário da razão, a razão seria, a partir de então, a medida para todas as coisas; logo, temos aí o homem como medida, o senhor vê? Pois bem, como diria Riobaldo: “No viver tudo cabe” (ROSA, 2006, p. 69). Então, temos que a razão, nessa época, passa a ser crítica, e tudo passa a ser regido pela crítica, é ela que vai estabelecer o que é verdade do que não é, tendo como medida explicativa conhecimentos técnicos-científicos, provenientes de experimentos analíticos. O senhor crê, de fato, que podemos explicar o ser das coisas, o ético e o poético do humano por meio de análises científicas? Hem? Hem? Talvez isso careça de mais algumas palavras... Octavio Paz, poeta-pensador, fala um pouco sobre essa ditadura da crítica da razão pura, como a concebia Kant:
A modernidade começa como uma crítica da religião, da filosofia, da moral, do direito, da história, da economia e da política. A crítica é seu traço diferencial, seu sinal de nascimento. Tudo o que foi a Idade Moderna tem sido obra da crítica, entendida está como um método de pesquisa, criação e ação. Os conceitos e ideias cardeais da Idade Moderna ― progresso, evolução, liberdade, democracia, ciência, técnica ― nasceram da crítica. No século XVIII, a razão fez a crítica do mundo e de si própria; assim transformou pela raiz o antigo racionalismo e as suas geometrias intemporais. Crítica de si mesma: a razão renunciou às construções grandiosas que a identificavam com o Ser, o Bem e a Verdade; deixou de ser a Casa da Ideia e se converteu em caminho: foi um método de exploração (PAZ, 2001, p. 34).
O senhor pense, repense! As palavras de Octavio Paz levam-nos a entender que o que aconteceu com o direcionamento da crítica no mundo moderno atingiu também as obras de arte e de pensamento. E o senhor concedendo lhe digo que as obras literárias também passaram a ser analisadas de modo racional, e não mais como a própria realidade se manifestando em sua verdade, sua poiésis. Para o pensador Manuel A. de Castro, a análise não passa de uma filha desnaturada da crítica, pois caracteriza-se como
[...] um procedimento metodológico decorrente do postulado crítico-científico que concebe a obra como um organismo, construído de partes, cujo conhecimento dá acesso ao que a obra é em sua constituição e classificação (CASTRO, 2015, p. 128).
Mas então pergunto ao senhor, o que vem a ser o exercício da crítica originária? Como podemos chegar à verdade originária do ser das coisas? No nosso caso, de interpretação de uma obra literária, como poderemos fazer uma leitura crítica como leitura poética, que prevê o pensar como o deixar-se tomar pela entre-compreensão originária (em grego diá-noia) e pela linguagem (logos)? O homem pensador Manuel A. de Castro nos diz que criticar (do verbo grego krinein) é “um entre-compreender, discernir, dialogar, na e pela escuta da linguagem da realidade em sua manifestação: o sentido e verdade, em cada ser humano e seu experenciar-se no que é” (CASTRO, 2015, p. 128).
Mire e veja. Se pensarmos na relação que Riobaldo tem com o sertão, aí já está posta a questão do criticar. O jagunço, a todo momento, trata do ser-tão como algo inaugural, que se dá e se retira; e ele, Riobaldo, como um entre-acontecer, também está se dando e se retirando. Em Grande Sertão temos o real e o humano acontecendo e se relacionando: os caminhos pelos quais Riobaldo vai percorrendo não são certos, as decisões que ele toma diante dos acontecimentos que lhe chegam também não são estáticas, pois existe uma infinidade de possibilidades da realidade se mostrar e se velar e ele, atravessado pelo tempo e questionando-se, vai percebendo o mundo e co-respondendo a ele, mas não de forma lógica, e, sim, a partir de um agir ético2 e originário. Riobaldo questiona-se para tentar se entender. Veja:
Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada. Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Por que foi que eu conheci aquele Menino? [...] O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino? (ROSA, 2006, p. 110).
O senhor escute, anote aí, para realizar tal exercício de crítica ― que nesta pesquisa estou convidando o senhor a pensar se tratar de uma crítica a partir da escuta do apelo da linguagem, ou seja, da escuta do ser da obra ― fez-se urgente colocar-me em posição de abertura total do pensamento para que conseguisse me doar às questões que Grande Sertão estava, a todo momento, me mostrando, digo mais, foi preciso estar livre para me atirar ao abismo do não saber e iniciar minha travessia, com Riobaldo, pelo sertão e seus mistérios poéticos. Só assim conseguiria fazer uma travessia originária rumo à aprendizagem humana.
E perceba, foi nesse momento que comecei meu diálogo com a hermenêutica proposta por Heidegger (1966), que prevê uma dialética entre presença e ausência da verdade (alétheia) do ser, para a qual é de suma importância que o intérprete situe-se à terceira margem do pensamento, e não tenha medo de se lançar ao abismo do não conhecido. E digo ao senhor, que Rosa, homem que também pensa e repensa as questões do ser, já nos alertou sobre o “salto mortal” ao abismo do não conhecido de todo saber, para que possamos chegar a experienciar a vida de forma radical e original. Convido o senhor a escutar as palavras de Rosa, no conto “O espelho”:
Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será se? Apalpo o evidente? Trebusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?
Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”... — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... (ROSA, 2005, p. 120).
O senhor sabe? Mas, no meu entender, parece que o poeta-pensador mineiro está dizendo que é preciso tirar as camadas de cinza com que o pensamento foi encoberto neste mundo funcionalista, e vigiar para que a arte não mais seja reduzida à condição de objeto, instalação sobre a qual são realizadas análises científicas por meio de teorias prévias; é preciso que a própria obra de arte diga suas questões, e que o crítico, questionando-as, coloque-se num movimento de doação ao sagrado, que está presente, radicalmente, no homem, e que, por isso, faz-se humano. E é nesse movimento de doação, o qual vigora na dinâmica de receber as questões, acolhê-las e, então, retribuí-las com criatividade, que se dá a essência do humano.
O que estou propondo é pensar a obra de arte como sendo a própria criação da realidade (e ela é), em que o homem, ao percorrer sua travessia, a partir dos questionamentos na e pela arte, em busca de sua humanidade, já vigora na arte. “Na obra está em obra o acontecer da verdade, se aqui acontece uma abertura inaugurante do sendo naquilo que ele é e no como ele é. Na obra de arte, a verdade do sendo pôs-se em obra” (HEIDEGGER, 2010, p. 87).
Mire e veja, tem um particular que eu preciso lhe contar para que possamos seguir adiante em nossa travessia pelo sertão do pensamento proposta por este estudo, é preciso permanecer um pouco mais nessa vereda da crítica literária. É preciso questionar o sentido originário de crítica como escuta, pensando em escuta como o se deixar invadir pelo real acontecendo, como já nos contou o pensador Manuel A. de Castro, e diferenciá-la de outros modos de crítica fincados na representatividade da tradição metafísica.
E o senhor me desculpe de estar retrasando tantas minudências, mas para seguir no sertão de Riobaldo/Rosa carece de deixar os ouvidos atentos, porque “estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, por que esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar” (ROSA, 2006, p. 146).
O senhor arrepare, vou lhe contar: o pensador Manuel de Castro nos diz que o conceito de crítica é tanto antônimo como sinônimo do de teoria literária e que a percepção de sua relação mais nítida só acontece num movimento de aprofundamento. Vigie o senhor, se pararmos para pensar, iremos perceber que a palavra “crítica” possui um valor negativo, não é mesmo? Quando pensamos na palavra criticar, logo a relacionamos à ação de emitir um juízo de valor negativo sobre determinada coisa, não é? Arrepare, este conceito nasceu do mundo técnico-científico no qual estamos imersos. Mas se lhe mostrar que o juízo de valor é parte integrante da crítica, desde que se mova num mesmo nível ético, o senhor continua a acreditar? Então, vamos escutar o que nos diz Emmanuel Carneiro Leão sobre o referido assunto:
Etimologicamente, crítica provém do verbo grego krinein, cujo primeiro sentido é ‘separar para distinguir’ o que há de característico e constitutivo. Essa separação distinta se exerce, remontando à ordem fundamentos constituintes e por isso elevando-se a uma ordem superior, à originária (LEÃO, 1977, 164).
Escute o senhor, em diálogo com as palavras acima, Castro posiciona o criticar do humano como o lugar do acontecer ambíguo da realidade, por isso se constitui e se manifesta em sua essência originária. Isto é, o criticar do humano é, ele mesmo, o lugar e a referência originária da realidade (phýsis) e do ser humano. A ambiguidade que vigora neste criticar originário foge a qualquer relação sujeito―objeto presente na Modernidade. Krinein é lugar da dobra originária (diálogo), e não do duplo (dicotomia).
Se o senhor segue comigo, lhe digo, no duplo ― posição mais explícita na sofística e na Modernidade, em que temos o operar da linguagem em sua dimensão lógico-instrumental ou funcional ― o que está em jogo é o esquecimento do sentido do ser, que implica sempre, também, o sentido do humano do homem e da sua condição ontológica.
A dobra, ao contrário, vigora num movimento dialético entre o saber e o não saber. É esse movimento que faz Riobaldo, o jagunço, dizer-nos que vai falar de algo que mesmo sabendo ― visto que está dentro do sertão e o sertão está dentro dele ―, ainda não o sabe: “Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão” (ROSA, 2006, p. 100). E só por já saber é que pode se questionar e se atirar para o não saber. Viver é ou não é muito perigoso?
Arrepare, temos dois tipos de criticar: um poético, que escuta o apelo do ser e se deixa tomar pela dobra, ou seja, prevê uma relação de ambiguidade baseada no interstício do pensamento. O outro que se deixa tomar pelo duplo e prevê uma relação dicotômica, resultando num julgar que foca apenas situações binárias: certo/errado, verdadeiro/falso, belo/feio etc. Este foi o tipo de crítica que nos deu de herança o mundo moderno. E lhe pergunto: qual dos dois condiz mais com o operar de uma obra como Grande Sertão? O senhor sabe? Pois bem, eu escolhi para este trabalho o exercício de interpretação que vigora no jogo dialogal, a partir da dobra entre crítica e escuta.
O senhor segue comigo? É sobre esse movimento de escuta das questões da obra, que repousa o pensamento radical de Heidegger, no qual o filósofo afirma que para este tipo de hermenêutica se faz necessário um retorno à fonte originária da essencialização do ser, a partir da superação das tradições metafísicas do pensar e, por conseguinte, da investigação da questão sobre o sentido e sobre a verdade do ser. Mas é preciso ter atenção, o senhor veja, a hermenêutica proposta pelo filósofo alemão em nada se assemelha a uma hermenêutica científica, esta que se dá de forma arbitrária, positivista, sempre buscando um resultado que supra os anseios de quem, por meio dela, investiga algo. E isso fica mais claro nas palavras de Emmanuel Carneiro Leão:
A dialética de presença e ausência da Verdade do Ser na História da metafísica é o que distingue a Hermenêutica da Introdução [à metafísica] de qualquer hermenêutica científica. Essa se limita, em e por força de sua própria essencialização metafísica, ao pensado pelos filósofos da tradição. Visa com todo o rigor imposto por essa limitação reconstruir o que foi pensado. Para ela legado e pensado coincidem. Aquela, procurando pensar a essencialização da metafísica, situa-se aquém desses limites, na dimensão do não pensado mas legado pelo pensamento da tradição. Visa uma ‘re-petição’ do passado presente, embora não pensado pelos filósofos da tradição. É uma hermenêutica que é o Hermes do não pensado, i.é, que interpreta o pensado pela mensagem do não pensado (LEÃO apud HEIDEGGER, 1966, p. 31).
O senhor tolere, mas neste momento acho oportuno esclarecer o que quero dizer com “superação das tradições metafísicas do pensar”, para tanto, mais uma vez o convido a ouvir o que diz um dos grandes pensadores da arte, tendo sempre como ponto de partida e chegada a busca do originário do humano: “Assim, parece que falta ação e de modo algum pensamento... E, no entanto... Talvez, já desde séculos, o homem vem agindo demais e pensando de menos” (HEIDEGGER, 1964, p. 112).
O senhor me segue? Pensemos. O que será que Heidegger propõe-nos a refletir com essa afirmação? A mim, parece que o filósofo faz uma reflexão sobre a atividade do pensar, no sentido de ação, atividade esta que o homem vem afastando de seu cotidiano há bastante tempo, ou melhor, o homem tem pensado, sim, mas sempre a partir da lógica e da razão, que vislumbra um resultado final para cada pensar, em vez de exercer uma abertura radical do pensamento, pela qual as questões que se apresentam não têm resultados fixos, estanques, mas, ao contrário, o que fazem, na verdade, é levantar novos questionamentos, num movimento circular e, não, linear; ilimitado e, não, limitado; que inclui e, não, exclui.
O senhor crê? O senhor vê que o homem de hoje esqueceu-se de silenciar e de escutar. Esqueceu-se de ver e colocou-se a pensar a partir de pré-conceitos criados pela ciência, a partir de re-presentações que o mundo técnico científico criou para dizer o que é verdadeiro e o que é falso. Pense, repense, e então poderá ver que o homem está de olhos fechados ao aparecer das coisas e até de si mesmo, e o que faz é apenas dizer o que são as coisas, sem que elas o sejam de fato.
Sim? Não? Talvez o senhor esteja se perguntando o porquê disso tudo... Lhe digo que, muito provavelmente, isso aconteça porque o homem está deixando para trás de si todas as outras coisas do universo, distanciando-se em larga escala e colocando-se na posição de quem está em face das coisas (e não mais no “entre” originário). Melhor dizendo, a tradição metafísica joga no esquecimento a referência ontológica do ser e transforma o “ser” em “ente”; o homem passa a ser o sujeito diante de todas as outras coisas e, a estas, chama de objeto. A partir de então, começa a ditar definições e conceitos para tudo, a predicar os objetos, com a finalidade de domínio ― falso, que fique claro ― sobre tudo.
Talvez tudo o que falei até agora não agrade a muitas pessoas e corro o risco de parecer louca ou presunçosa aos olhos do mundo. Isso já aconteceu uma vez: Hölderlin, o poeta dos poetas (como concebia Heidegger), um pensador que se jogou no abismo das questões, também foi considerado louco e teve sua liberdade arrancada por não conseguir se calar diante da surdez humana. Mire e veja, não que eu queira me comparar a Hölderlin, aí, sim, estaria sendo presunçosa. Mas o fato é que, a partir do momento em que paramos para fazer a escuta originária das questões das quais somos doação, questionando-nos na e pela arte, passamos por uma mudança radical em nosso modo de viver.
O senhor ri certas risadas, muito provavelmente porque também esteja achando que pessoas assim possam, de fato, ser consideradas loucas. Contudo, digo ao senhor, mire e veja, pois sobre isso Riobaldo já falava e sabia muito bem a quem direcionar o seu narrar. Em certo momento do romance, o jagunço solicita mais uma vez a atenção do seu interlocutor e diz:
Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram meu passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é sua fineza de atenção (ROSA, 2016, p. 100).
A que será que Riobaldo refere-se quando diz que irá falar de algo que ainda não sabe? O senhor pense comigo, me acompanhe. Com essas palavras, o jagunço nos solicita a pensar que o ato de questionar é natural ao homem desde sempre, visto que somos o ser do entre-acontecer, vivemos no paradoxo (que não deixa de ser o interlúdio) entre o saber e o não saber, e só porque já sabemos o que não sabemos e que estamos pro-curando, é que nos questionamos, pois já vivemos/somos na/a liminaridade das possibilidades do ser.
Contudo, o homem está cada vez mais afastado da sua verdade originária, do seu real lugar, que é “entre” as coisas e não “em face” delas. Para que possa situá-lo sobre a questão da verdade originária, é necessário explicar que o meu entendimento de originário dialoga com o pensamento de Heidegger e coloca-se como “aquilo a partir de onde e através do que algo é o que ele é e como ele é. A isto (...) chamamos sua essência” (HEIDEGGER, 2010, p. 35).
Então, o senhor, que pensa e repensa, irá perguntar: como voltar a esse lugar? Como retornar à harmonia de viver no real? Arrisco dizer que para isso precisamos, de forma radical, silenciar e doarmo-nos, pela escuta, às questões de que somos doação. E que desde sempre percorremos: Vida, Morte, Amor, Verdade, Tempo, Linguagem, Ser...
Escutar é chocar a linguagem das palavras,
os acordes da música, as cores da pintura,
os gestos da dança, o instante da foto.
Eis porque na escuta o silêncio do sentido do ser
se faz verdade e mundo.
Eclode então a liberdade da finitude da solidão
Manuel Antônio de Castro
O senhor escute o que eu estou dizendo, e escute desarmado. Lhe pergunto: o que seria o exercício do interpretar como escuta do silêncio da obra? Para que possamos obter opinião, a coisa carece de um exercício de pensamento radical, num movimento para dentro do ser, para conseguirmos nos afastar do turbilhão de sons emitidos pelo mundo técnico-científico de que fazemos parte e penetrar no silêncio das palavras, no silêncio da linguagem, e ouvir a voz silenciosa do ser, a qual buscamos veementemente. O senhor aprova?
Estou contando o que carece de um explicado: na e pela escuta podemos dizer que existem tanto a fala quanto o apelo, este nada mais é do que a fala originária, a abertura liminar para o novo, o além-limite. “Por isso, toda interpretação só é hermenêutica enquanto desvelo do apelo. O apelo é a eclosão da linguagem em língua poética, na medida em que toda língua é filha da linguagem” (CASTRO: Interpretação, 5). O senhor percebe? Não? Sim? Carece de permanecer um pouco mais nessa veredazinha da escuta...
Mire e veja, para o filósofo Heráclito, esse movimento originário de escuta do ser nos leva de volta ao momento em que não nos encontrávamos tão distantes assim da essência do que somos como homem humano, e que só podemos chegar a este movimento, porque somos doação da linguagem. No fragmento 50, Heráclito diz: “Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um” (HERÁCLITO apud ANAXIMANDRO et al., 1991, p. 71). E o senhor verá porque... Pensemos juntos: talvez essa referência que o pensador grego atribua ao logos como escuta se dê pelo fato de que leguéin, além de significar “reunir”, também pode ser “falar”, e para todo falar é necessário que haja uma escuta. O senhor crê?
Agora, o senhor já viu uma estranhez? No mundo em que vivemos, no qual impera a tradição metafísica, e que o significado de escutar diz “ouvir algum ruído externo”, o homem (o mundo) da ciência e da razão não consegue entender que a verdadeira escuta é aquela que, na sua essência, silencia para ouvir o nada ― esse não poder ser entendido como a não coisa, a negação das coisas, presente no niilismo, pois o “Nada não pode ser niilismo porque só pode advir ao niilismo o ente, o vivente, a oração, o discurso, o significado, o tempo linear, a lembrança, o instante, o ente, que está, sem referência” (CASTRO: Nada, 4).
O senhor escute, o nada a que estou me referindo é a clareira para as infinitas possibilidades de coisas, para as incontáveis maneiras de interpretar o mundo. E como já disse o homem pensador Manuel A. de Castro, o nada, aqui, significa a possibilidade das possibilidades, ele é sempre doação para novas realizações ― o tempo sendo ―, e essas voltam sempre ao nada, que é tudo.
O próprio Guimarães Rosa, no conto “O espelho”, já dizia que “quando nada está acontecendo, há um milagre que não estamos vendo” (ROSA, 2005, p. 113), e é nesse sentido de ir em busca do milagre, do mistério, do desconhecido, do nada que é tudo ― a abertura de possibilidades de sentido ―, é que sigo minha caminhada nessa travessia pelo Grande Sertão, porque no viver tudo cabe, o senhor já não sabe?
Daí que convido o senhor a escutar um entredizer... Agora, chegou a hora de assentarmos nosso pensamento sobre a questão da escuta originária e, para tanto, peço que o senhor anote aí, mais algumas páginas. O pensador francês, Jean-Luc Nancy, em À escuta (2013), pensa o gesto filosófico a partir da experiência da escuta e escreve sobre as relações entre o saber filosófico e conceitos como timbre, ressonância, vocalização, voz, silêncio, barulho. Nancy inicia seu ensaio questionando se ainda faz sentido em se colocar questões sobre os limites da filosofia e, para tanto, pergunta:
a escuta é um motivo com o qual a filosofia é capaz de lidar? Ou será [...] que a filosofia de antemão, e forçosamente, não superpôs ou substituiu à escuta por alguma coisa que seria sobretudo da ordem do entendimento? (NANCY, 2013, p. 160).
“O senhor escute, o senhor cumpra” (ROSA, 2006, p. 441), o que Nancy aborda em seu ensaio, e que dialoga bastante com este estudo, é que o mundo moderno da técnica cerrou olhos e ouvidos ― inclusive os da filosofia ― para as questões do ser e da essência da verdade. Sobre o agir do filósofo, Nancy nos diz:
Queremos aqui estender a orelha filosófica: puxar a orelha do filósofo para fazer com que ela tenda na direção daquilo que sempre em menor medida solicitou ou representou o saber filosófico do que isso que se apresenta à vista ― forma, ideia, quadro, representação, aspecto, fenômeno, composição ―, e que se eleva sobretudo no acento, no tom, no timbre, na ressonância e no ruído (NANCY, 2013, p. 161).
“O que digo e desdigo; o senhor escute” (ROSA, 2006, p. 581), o pensador começa a questionar-se sobre o que seria estar à escuta em sua tonalidade ontológica; e se isso não estaria relacionado a um ser que se entregasse à escuta, formado por ela e nela, escutando com todo o seu ser. Mas, pergunto ao senhor, como esse processo poderia acontecer? Então, lhe respondo, mas antes é preciso ir ao originário da questão.
Mire e veja as palavras do pensador Nancy: “‘Estar às escutas’ consistiu, a princípio, em estar localizado em um local oculto de onde é possível surpreender uma conversação ou uma confissão. ‘Estar à escuta’ foi uma expressão de espionagem militar” (NANCY, 2013, p. 162). Mas o que se escuta quando se “está à escuta”? De que segredo se trata quando alguém escuta propriamente? O senhor me desculpe o contar nos detalhes, mas carece de entendermos melhor essa questão.
“Estar à escuta” seria quando alguém se esforça para captar ou para surpreender muito mais a sonoridade do que a mensagem? Que segredo se revela quando escutamos em nós mesmos uma voz, um instrumento ou um ruído? Arrepare, o que é então estar à escuta, como se diz “estar3 no mundo”? O que seria, então, existir segundo a escuta, por ela e para ela? O que aí se coloca em jogo em termos de experiência e de verdade? O senhor carece de prestar atenção, nas palavras do filósofo:
[...] ao sentido do verbo escutar [...] combinam o uso de um órgão sensorial (o ouvido, a orelha, auris, palavra que fornece a primeiro parte do verbo auscultare, ‘prestar ouvidos’, ‘escutar atentamente’, de onde provém ‘escutar’) e uma tensão, uma intenção e uma atenção que a segunda parte do termo assinala. Escutar é estender a orelha [...] é uma intensificação e uma preocupação, uma curiosidade e uma inquietude (NANCY, 2013, p. 162).
Mas mire e veja, para Nancy, “escutar” também significa “compreender”, no sentido de “escutar dizer”, seja ou não o som percebido proveniente diante de uma fala. Sendo assim, convido o senhor a pensar comigo... Não seria “escutar” o permitir-se no abismo de possibilidades do pensar? Mire e veja! Se “escutar” é compreender o sentido, então escutar é estar inclinado para um sentido possível e, por conseguinte, não imediatamente acessível. Olhe, então lhe conto que “o sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (ROSA, 2016, p. 156).
O senhor continua a me acompanhar? Pois lhe digo que em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, em travessia pelo sertão, ausculta a voz do silêncio, a palavra cantada do mito. Arrisco em dizer que é no romance que podemos perceber a mais densa interpretação do mito poético enquanto travessia. “No mito, o real se dá e manifesta como palavra cantada, como escuta, como voz do silêncio e como travessia do homem. Na travessia, o saber do não-saber de toda sabedoria” (CASTRO, 2017a, p. 5).
O senhor saberia dizer o que é a palavra cantada artística, a palavra enquanto voz do silêncio? Pois bem, e como Riobaldo, lhe digo: “Eu escutei, tei. Em outras ocasiões, uma notícia dessas era capaz de me perturbar” (ROSA, 2016, p. 429). Mas essa questão carece de um explicado. E o senhor vá ouvindo desarmado. Segundo Manuel A. de Castro, de primeiro, fica parecendo que não existe uma reposta certa para definir o que seria a palavra cantada artística, pois existem vários e diversos conceitos de arte, fazendo parecer que tudo se torna relativo, o senhor crê? Pois lhe digo que não, o senhor vá vendo. Na palavra cantada artística
[...] há o apelo do poético pelo poético, há a sua vigência em obras que perduram para além dos modismos e das avaliações críticas, que também passam. Resta sempre aquela obra que se impõe pelo seu vigor poético e ultrapassa o seu contexto e qualquer classificação formal e estilística ou utilidade política e ideológica (CASTRO, 2017a, p. 2).
Caberá ao crítico/intérprete trabalhar em torno do vigor poético das obras, como escuta. A força, o vigor do poético está na própria obra e não na fala do crítico. É tal vigor que cria o seu próprio tempo e sua memória ― tempo e memória poéticos. O intérprete deve estar atento e aberto para a epifania das obras de arte. O senhor escute bem essas passagens que vou lhe narrar.
Pensemos juntos, se vigor das obras artísticas se manifestando nada mais é do que mítico irrompendo em nossas vidas, pois é o mito a dimensão mais profunda do que em nós é e teima em ser (apesar de a filosofia, a teologia e o saber científico tentarem insistentemente matarem o mito, dando a tudo uma explicação científica), por que nossos ouvidos, em relação às obras de arte, estão tão cheios de termos técnicos, de análises críticas e científicas e de classificações de gêneros e estilos, e somente com muito esforço é que conseguimos nos colocar à escuta da fala do poético, da voz do silêncio do mito?
Digo-lhe mais, o homem só é homem, ou seja, só consegue fazer sua travessia poética em busca do que lhe é próprio, pela escuta poética da voz do silêncio do mítico, e esta se encontra presente, sobretudo, nas obras de artes. Mas o mundo tecnicista ficou surdo à voz da palavra cantada dos mitos; e “deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim” (ROSA, 2006, p. 110), e que a arte é concebida de maneiras diferentes:
[...] pelo sistema científico, pelos sistemas religiosos e pelo tradicional senso comum. Apesar desses diferentes sistemas de realidade, há também a presença incontrolável e gratuita do imaginário, do extra-ordinário e da possibilidade do tempo poético em cada um: é quando a arte atua. A presença dos sistemas nos sufoca e nossa vida se sucede dentro de um tempo cronológico, onde tudo está predeterminado, onde nossas ações já estão previstas, onde não há lugar para o inesperado, e nossa travessia, como projeto de vida, se torna algo funcional, em que todas as nossas ações estão em função de uma finalidade, de algo que o sistema espera de nós. O que somos e não somos tem de ser funcional (CASTRO, 2017a, p. 2).
E como podemos reverter essa concepção? Digo ao senhor que só na e pela escuta originária poderíamos voltar a nos aproximar do ser e a fazer nossa travessia como travessia poética, em que, à medida que nos deparamos com os acontecimentos do real, que nos chegam por meio das questões da phýsis, vamos construindo nosso processo de aprendizagem poética, em busca do nosso próprio. E, como já lhe disse anteriormente, só a arte é que pode nos conduzir nessa travessia. O próprio Guimarães Rosa afirmou: “toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo” (ROSA, 2006, p. 170).
E para que possamos interpretar a magnitude poética de sua obra, digo ao senhor, não podemos ser escravos de apenas uma corrente teórica. A obra de Rosa convida o leitor a pensar e a refletir a todo instante, fazendo-o partícipe ativo do processo criador do escritor. Para que tal processo ocorra, carece de haver doação na e pela obra, por meio da escuta originária. É Eduardo Coutinho, em seu livro Grande Sertão: Veredas. Travessias (2013), quem nos afirma que “para Guimarães Rosa, o leitor, como aliás todo ser humano, é sempre um perseguidor, um indivíduo inteiramente construído sob o signo da busca, e é essa indagação que deve ser constantemente estimulada pelo escritor” (COUTINHO, 2013, p. 25).
Sendo assim, lhe digo, que a escuta crítica originária vigora no limite entre o saber e o não saber. A escuta, para tornar-se originária, precisa
do limite da fala, do limite como caminho de sentido e verdade no sem-limite, no sem-caminho, no sem-sentido, na não-verdade do ilimitado [...] da realidade. [...] Entre o limite da fala e o ilimitado da voz do silêncio se dá a escuta. Na escuta nos advém o ilimitado de nossos limites, da nossa finitude, nela e por ela sabemos o não-saber, somos e não-somos, daí o perigo iminente da morte, daí a necessidade de estarmos bem amarrados aos nossos limites, mas como os ouvidos bem abertos para o canto divino e encantados, para o canto das Sereias [de Ulisses, na Odisseia], para o vigor poético da palavra cantada” (CASTRO, 2017a, p. 2).
“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja” (ROSA, 2006, p. 7) e se detêm apenas em conceitos que não irão convocá-los ao pensar, pois os conceitos, como já nos disse certa vez um pensador, são os abortos das questões, já que matam o pensar. O livre-pensamento só nos advém pela escuta; é nela e por ela que nos chega o sentido e a verdade (alétheia) da nossa vida. Cabe a nós acolhê-la ou não e nos decidir por ela, e isso é o ético, a ação ética, como a morada no sagrado da linguagem, no logos. Mas carece de continuarmos nossa travessia.
O exercício da crítica originária como escuta, o qual proponho aqui, busca o autodiálogo gerador de uma aprendizagem poética do que somos e não somos e do podemos vir a ser. Mire e veja! Há uma disposição poética na própria elaboração da obra de Rosa, que se dispõe poeticamente numa fala entre Riobaldo e um ouvinte. Se nos lançarmos à escuta da obra, iremos perceber que, desde o início do romance e durante toda a narrativa, somos convocados, continuamente, ao diálogo. É no e pelo diálogo que Rosa/Riobaldo exercita a sua maiêutica ― a arte de fazer eclodir/nascer em cada um o seu próprio.
Peço que o senhor me escute desarmado! Não há em Grande Sertão: Veredas, em nenhum momento, uma fala direta do ouvinte/leitor. E digo ao senhor que esta nem precisa, pois o que Rosa quer menos é que o leitor se distraia com o que se narra, com eventos cronológicos ou biográficos. O escritor está propondo, radicalmente, a todo tempo, que ouvinte/leitor, ao dialogar com a obra, por meio de uma elaboração poético-narrativa das questões que ocupam e pre-ocupam o narrador Riobaldo, entre num processo profundo de autodiálogo, de modo igual, com as mesmas questões levantadas, e inicie sua travessia em busca de apropriar-se do seu ser, na e a partir da linguagem. Escute o que tem a nos dizer, a respeito da aprendizagem pelo autodiálogo, o pensador Manuel A. de Castro:
Auto-dialogar é manifestar as nossas possibilidades de ser no que somos enquanto seres humanos lançados desde que nascemos e por nascermos na vida, no ser-tão, no ser, no mundo, um mundo sempre inaugural para aqueles que fazem do viver um aprender e aprender o que já são como possibilidades. Para isso é necessário questionar. Ou como nos diz Riobaldo: ‘Vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas’ (CASTRO, 2017b, p. 5).
Grande Sertão: Veredas é o diálogo entre o nada e o tudo. O romance inicia com um travessão, mais a palavra “nonada”: “— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja” (ROSA, 2006, p. 7); e termina com a palavra “travessia” mais o sinal de infinito ∞: “Existe é o homem humano. Travessia. ∞” (ROSA, 2006, p. 608).
Portanto, voltemos ao narrar. O que estou contando é resumo, o senhor veja! No início do romance, Riobaldo já é um ex-jagunço, aposentado de suas atividades e vivendo junto com sua esposa, Otacília, em uma fazenda que herdou de seu padrinho, Seolorico Mendes. E as terras dos Gerais já estão mudadas, bem mais calmas, permitindo que ele conseguisse pensar e re-pensar na vida.
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe ou não existe? [...] Viver é negócio muito perigoso... (ROSA, 2006, p. 10).
E durante toda a narrativa Riobaldo vai travando um monólogo/diálogo, recordando, refletindo, questionando o sentido da vida, desde quando era um menino, e questionando-se sobre a existência do Diabo e se foi pactário ou não. E o senhor me escute, haja de contar o que foi... A questão da existência do diabo, juntamente com a afirmação do pacto, será a grande dúvida que permeia a narrativa do jagunço, e fato que se desvela responsável pela problemática central do romance, por meio da qual sairão todos os outros questionamentos sobre a existência humana: o ser ou não ser; o bem e o mal; vida e morte; deus e o diabo; o amor e a verdade. “O romance inteiro se constrói sob a forma de uma pergunta. Riobaldo, o protagonista-narrador, é um homem atormentado pela ideia de haver vendido a alma ao diabo, mas, ao mesmo tempo, não tem certeza se este realmente existe” (COUTINHO, 2013, p. 80).
E me inventei neste gosto de especular ideia. O diabo existe ou não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobre cachoeira alguma? Viver é um negócio muito perigoso... (ROSA, 2006, p. 10).
E conto mais, por menos não poder contar: mas a dúvida sobre o pacto com o diabo que permeia todo o romance configura-se em contínuos e diferentes questionamentos existenciais sobre o homem e sua relação com o real. Olhe o senhor: Riobaldo, ao fazer todas essas perguntas, além de supor um conhecer e um não conhecer da manifestação da realidade, manifesta uma eterna procura da essência do ser ― demanda não exclusiva ao jagunço somente, mas a todo e qualquer homem.
E lhe digo mais, “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (ROSA, 2006, p. 10), e todo esse narrar vem costurado por uma das questões mais importantes do romance: o suposto pacto com o diabo. Mire e veja, Riobaldo passa o romance inteiro sendo atormentado por esta dúvida, se o diabo existe ou não, e se existe, teria ele feito, de fato, um pacto, vendendo sua alma para o demo, o “Que-Diga”, para aludir ao próprio romance. Eh, pois, empós, o resto lhe contarei aos poucos. Por ora, vamos ouvir o que Benedito Nunes, homem estudioso das obras de Rosa, acha sobre a grande dúvida que Riobaldo carrega:
A interrogação de Riobaldo sobre a existência do Diabo, e consequentemente sobre a possibilidade de ter sido pactário, é a pergunta acerca do Destino, isto é, a pergunta em torno da predeterminação ou da liberdade de sua existência. “Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais ― a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o ‘Que-Diga’ existe’ (NUNES, 2013, p. 185-186).
Agora, o que lhe peço é uma escuta silenciosa, pois preciso mostrar ao senhor o que penso. E o senhor ache e não ache, tudo é e não é... A pro-cura de Riobaldo, fruto da dúvida sobre a existência ou não do diabo do pacto, se dá a partir do sentido de suas ações, e é uma pro-cura amorosa-existencial, em que o jagunço interroga-se a todo momento sobre seu ser possuir uma relação íntima com a questão da verdade e da ética.
O senhor vigie, a verdade deixa de se opor ao falso e se mostra como processo de desvelamento do sentido; a ética é resgatada em seu sentido grego, anterior à instância de reflexão sobre a moral, e se revela como morada (éthos) nas questões. O mal (o diabo) não existe. O que existe é o enraizamento do homem nas questões, nas quais faz a sua travessia poética pelo sertão da vida. É por isso que Riobaldo está o tempo todo se questionando sobre a existência do mal, na figura do diabo, e se ele era mesmo pactário do “capiroto”. Durante todo o romance, a existência ou não do demo aparece como questão:
Diadorim tinha citado alma. O que ele soubesse, não soubesse, não tinha ciência de coisa nenhuma, da arte em que eu tinha ido estipular o Oculto, nas Veredas Mortas, no ermo da encruzilhada... Aquilo não formava meu segredo? E, mesmo, na dita madrugada de noite, não tinha sucedido tão pois. O pacto nenhum — negócio não feito. A prova minha, era que o Demônio mesmo sabe que ele não há, só por só, que carece de existência. E eu estava livre limpo de contrato de culpa, podia carregar nômina; rezo o bendito! (ROSA, 2006, p. 469).
O senhor me acompanhe. Esse é o supremo penhor do empenho do homem em sua travessia poética: procurar-se, sabendo-se uma doação da poiésis, a ação do ser em retração, o que nos converte em questões para nós mesmos. Ou, como dito pelo poeta alemão Hölderlin, “poeticamente o homem habita esta Terra”4.
Em Grande Sertão: Veredas, poesia e pensamento se encontram (se miram no espelho) pela disponibilidade das questões, e se manifestam em uma obra que é criada na e pela linguagem, excedendo a mera reprodução da realidade, e se manifestando como poiésis da realidade tanto pelo artista, que a criou por meio da escuta da palavra cantada da arte, quanto pelo intérprete que a leu/escutou, se doando à voz do sagrado.
Digo ao senhor, o sertão está em toda parte, “Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa?” (ROSA, 2006, p. 309). Então, o que nos resta é seguir pelas veredas desse grande sertão de Riobaldo/Rosa e, junto com o jagunço, fazer nossa travessia poética em busca da aprendizagem do que somos, como entre-ser do acontecer da realidade.
Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo
Guimarães Rosa
E, assim, chegamos ao fim dessa narrativa, mas como eu lhe disse antes, nunca chegaremos, em vida, ao fim de nossa travessia. No início desta estória, eu lhe propus uma experienciação de escuta crítica originária de Grande Sertão: Veredas, atravessando, junto com Riobaldo, o sertão dos Gerais. Contudo, mire e veja, desde o começo eu lhe falei que o exercício de crítica como escuta originária que propus não era tarefa fácil, pois precisaríamos nos afastar dos falatórios e dos barulhos que a tradição metafísica tinha imposto, com todo o seu positivismo funcionalista, à obra de arte e, no nosso caso, aos estudos literários, que muito embora estejam num processo de mudança contínua, ainda engatinham de volta ao originário da arte, da crítica.
É preciso dizer também que a leitura que proponho é apenas uma, dentre tantas leituras ― umas poéticas; outras, nem tanto ― a respeito de Grande Sertão. E que o romance de Guimarães Rosa é tão repleto de questões, de poiésis, que nenhum exercício crítico irá conseguir esgotá-lo ― não conseguimos esgotar as questões de uma obra de arte pelo fato de elas excederem o humano que existe em nós. O que podemos fazer é sempre percorrer as questões de uma obra, num movimento radical de questionamento acerca do ser e da verdade, para, a cada nova leitura, atravessarmos mais um pouco o ser-tão, o nosso ser-tão. O senhor crê?
Mas re-digo o que importa, o senhor me acompanha? Para que possamos fazer um exercício crítico a partir da escuta originária das questões que se manifestam em Grande Sertão: Veredas, é preciso doar-se à escuta da palavra cantada da arte, é preciso ter coragem e deixar-se invadir pelo real acontecendo, fazendo da leitura uma travessia poética, por meio do diálogo com a obra literária, e que prevê o pensar a partir do vigor da linguagem como logos. E, por fim, o senhor me escute que, para viver no ser-tão, carece de ter coragem, muita coragem...
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ANAXIMANDRO. PARMÊNIDES. HERÁCLITO. Os pensadores originários. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1991.
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____________ “Nada, 4”. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br. Acessado em: 29/02/2016.
____________ “Physis, 1”. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br. Acessado em: 29/02/2016.
______________ “Palavra cantada: da escuta à fala do silêncio”. In: Travessia Poética. 2017a, no prelo.
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COUTINHO, Eduardo. Grande Sertão: Veredas: Travessias. São Paulo: Ed. Realizações: Biblioteca Textos Fundamentais, 2013.
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A phýsis no pensar de Heráclito é “o surgir incessante” (1), “o que literalmente significa: surgir no sentido de provir do que se acha escondido, velado e abrigado. Esse surgir torna-se imediatamente visível quando pensamos no surgimento da semente escondida dentro da terra, no rebento, no surgir dos brotos. A visão do nascer do sol também pertence à essência do surgimento. Podemos ainda pensar o surgir como quando o homem, concentrando o olhar, surge para si mesmo, como no discurso o mundo surge para o homem e com ele se reúne a fim de que o próprio homem se revele, como o ânimo se desdobra nos gestos, como sua essência persegue o desvelamento num jogo, como sua essência se manifesta na simples existência. Em toda parte – para não se falar do aceno dos deuses – dá-se um vigor recíproco de todas as essências, e em tudo isso o aparecimento, no sentido de mostrar-se a partir de e dentro de si mesmo. Isso é a phýsis (2). Referências: (1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Poiesis, sujeito e metafísica". In: ______ (org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7letras, 2004, p.28. (2) HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 101. (CASTRO: Phýsis, 1).↩
“Na e pela poiésis, o próprio real se constitui como linguagem, mundo, verdade, sentido, tempo e história, em qualquer cultura. As poéticas das obras são memória do real. Um conhecimento cultural e científico pode ser superado por outro. Em relação às obras poéticas não há, nunca houve jamais haverá superação. Nelas e por elas se perfaz o sentido do homem, isto é, nelas o humano do homem se abre para a escuta da linguagem e o homem se faz humano, isto é, ético. Pois ethos, em grego, diz a morada da linguagem, o lugar do humano do homem" (CASTRO: Ético, 2).↩
Estar, do verbo être, em francês, significa ser e estar. É nesse sentido que Jean-Luc Nancy está pensando e questionando sobre a questão da escuta. (Para aprofundar essa questão, conferir NANCY, Jean-Luc. À escuta. Tradução de Carlos Eduardo Schmidt Capela e Vinícius Nicastro Honesko. Revista Outra Travessia. Santa Catarina: PPGL/UFSC, 2013, p. 159-172. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/2176-8552.2013n15p159. Acesso em: 11/10/2016.↩
Esse verso pertence a um poema tardio de Hölderlin, intitulado “In lieblicher bläue”, que Márcia Sá Cavalcante Schuback traduziu para o português, cujo título é “No azul sereno floresce”, e pode ser encontrado na íntegra, em versão bilíngue, nas páginas 254 e 255, do livro Ensaios e conferências, de Martin Heidegger, o qual também foi traduzido por Schuback.↩