O testemunho de Unica Zürn
Abdelhadi Elfakir
Universidade da Bretanha Ocidental
[Tradução]
Paulo Sérgio de Souza Jr.
Unicamp
contra_sujeito@yahoo.com.br
Resumo: Desde sua pequena infância, Unica Zürn experimentou sua inscrição subjetiva no registro da psicose. Para lutar contra os efeitos desestruturantes dos retornos do gozo que decorrem da foraclusão do Nome-do-Pai, teve de convocar personagens imaginários saídos das suas assíduas leituras desde a mais tenra infância. Essas, fortemente investidas subjetivamente em seu pedido de socorro, vão permitir, no segundo grau, que ela se sobressaia na expressão escrita. Seu interesse pela escrita e seu domínio da redação vão permitir, a partir da entrada na idade adulta, que ela utilize o seu amor da língua para se inserir profissionalmente e começar a ganhar a vida escrevendo histórias e contos, que ela publica nos jornais locais. O contato com os meios artísticos vão ser a oportunidade para ela conhecer Hans Bellmer, artista surrealista, com quem decide viver em Paris: aspirava encontrar, ao lado dele, a inspiração que lhe permitiria fazer eclodir, do sofrimento, uma obra de arte.
Através do exemplo de James Joyce, Lacan mostrou a que ponto a escrita pôde funcionar como suplência para esse sujeito, protegendo-o perfeitamente da loucura. Joyce — que era, segundo Lacan, de estrutura psicótica e testemunhava claramente a carência do NDP [Nome do Pai] — não teve de padecer dos tormentos das crises de loucura por conta, principalmente, da função de amarração que a sua escrita pôde operar para ele entre real, simbólico e imaginário.
Os diferentes domínios da atividade humana conheceram sujeitos — artistas, poetas, pensadores ou inventores — que puderam, em diferentes graus, se beneficiar dessa função de suplência que o ato criativo lhes proporcionou. Alguns desses criadores deixaram, de sua parte, uma obra que lhes permite dar testemunho daquilo que experimentaram no singular, e nos confiar as chaves e as coordenadas estruturais da paixão que dedicaram em sua experiência excepcional.
Excepcional, com efeito, essa experiência, pelo fato de que o sujeito, sem o significante do Nome-do-Pai, deve fazer frente ao seu Outro do significante sem lei. Excepcional, também, uma vez que esse sujeito encontra-se confrontado a esse significante sem encadeamento que retorna e acena para ele no real. Esse significante que se apresenta isolado, preso, entravado na alucinação — e, ao mesmo tempo, prenhe de uma significação tão enorme quanto enigmática —, o sujeito deverá tomar o encargo de fazer algo com ele. Vai tentar ligar esse significante errático e cortado fora da cadeia, procurando fazer com que ele circule na ronda dos discursos comuns, fazendo dele o endereçamento para os outros.
A trajetória de vida e de criação de Unica Zürn é dessa ordem. O escrito vai ser chamado para acudi-la em sua tentativa de agir nessa estrutura, esperando chegar a se arranjar um espaço para viver e sobreviver à doença. Mas até que ponto a sua arte de escrever pôde oferecer-lhe o tão esperado refúgio para abrigar o seu ser de sujeito, e por quanto tempo ela pôde protegê-la e preservá-la da destrutividade da loucura?
Antes de buscar articular algumas respostas para essas perguntas, primeiro farei uma breve apresentação da autora. Unica Zürn é uma artista e escritora alemã, tendo contribuído com o movimento surrealista entre os anos 40 e 70 do século passado. A sua obra é constituída de desenhos artísticos e textos literários que conjugam magistralmente a estética da criação e o testemunho pessoal sobre a vivência da loucura.
Unica nasceu em 1916, depois de um menino. Em um bairro chique de Berlim, cresceu numa casa grande e confortável, decorada com inúmeros objetos de arte trazidos pelo seu pai de suas repetidas e prologadas viagens pelo Oriente. O pai era, no começo, tenente de cavalaria nas colônias; e, depois de ser demitido dessa função, lança-se nos domínios do jornalismo e da edição. A mãe vem de uma família muito rica.
Após os estudos em administração, Unica Zürn trabalha em Berlim, em 1933, como estenotipista em estúdios de cinema; depois, entre 1936 e 1942, como roteirista e autora de filmes publicitários. Em seguida ao seu casamento, em 1942, com um homem rico, dá a luz a duas crianças: uma menina e um menino. Já nesse período, Unica escreve novelas para os jornais, contos radiofônicos e frequenta os meios artísticos.
Em 1949 o casal se divorcia e as crianças são confiadas à guarda do pai. Em seguida ao seu divórcio, “cai na vida de boemia berlinense de pós-guerra.”1 Nesse contexto, e quando de uma exposição organizada em Berlim, encontra, em 1952, o artista plástico surrealista Hans Bellmer — que ela vai acompanhar no ano seguinte, em Paris, para com ele ali ficar.
Bellmer a apresenta ao grupo de surrealistas do qual, a partir de então, ela fará parte. Lembro que a obra artística de Bellmer é essencialmente constituída de desenhos, gravuras e fotografias em torno de temas eróticos. Uma boa parte dessa obra está centrada na confecção de grandes bonecas que se aproximam do tamanho humano. Essas bonecas, desmembradas e recompostas, são fotografadas por Bellmer em diferentes lugares e adotando diversas posições eróticas.
Com os encorajamentos de Bellmer, e iniciada por ele, Unica se põe a produzir desenhos, colagens e a compor anagramas — dos quais ela publica, em 1954, uma antologia intitulada “Textes de sorcière” [Textos de bruxa], composta por 10 anagramas e 10 desenhos. Em seguida, e durante uma dúzia de anos, entre 1957 e 1970, a criação artística e literária alternará, para ela, com períodos de crises e internações em clínicas psiquiátricas. Durante essas internações ela desenha, pinta e, sobretudo, escreve textos literários. Em meio a esse período muito conturbado para ela, seus desenhos são expostos, em 1963 e 1964, numa importante galeria em Paris; e o catálogo, prefaciado por um dos representantes do surrealismo.
Logo antes do seu falecimento, em 1970, ela redige e publica, entre outras, uma pequena obra autobiográfica — intitulada Sombre printemps [Primavera sombria] — e consuma a redação de sua obra principal — intitulada L’Homme-Jasmin [O Homem-Jasmim] — para o qual ela projeta escrever uma sequência, com o título: L’Homme-Poubelle [O Homem-Lixeira].
No domínio da literatura, o nome de Unica ZÜRN é lembrado por suas obras que acabei de citar, mas também pela sua invenção de uma forma nova de escrita poética. É a poesia dita anagramática. (Nesse procedimento, os poemas são compostos unicamente a partir de uma combinação diferente das letras de uma mesma palavra ou de uma mesma frase dada no início). Um comentador atilado faz notar que os poemas de ZÜRN estão na origem da história desse gênero de poesia.2 Eles deram lugar a toda “uma descendência, na França e na Alemanha, que retomou esse modo de expressão, seguramente uma das futuras formas da poesia.”3
Por outro lado, toda a sua produção artística composta de desenhos, antologias poéticas e relatos literários nos oferece um testemunho pungente sobre a sua vivência da loucura e nos dá um esclarecimento muito preciso a respeito dos momentos e acontecimentos estruturais no advento da psicose. Ela fornece também uma compreensão, de um rigor extraordinário, dos momentos-chave no desencadeamento das crises, do seu agravo ou do seu apaziguamento.
É justamente o que não escapou à atenção de sua amiga e tradutora, que escreve com pertinência: “o que torna o destino dessa mulher tão excepcional nem é tanto a sua doença mental — que durou anos e vai obrigá-la a frequentar as clínicas psiquiátricas — quanto o fato de ela ter tido êxito, durante as fases de calmaria e de calma lucidez, em redigir um relatório fascinante das suas experiências fora do comum e, assim, em extrair uma obra do declínio crescente da sua existência.”4
Unica Zürn abre o relato de L’homme-Jasmin com um acontecimento que ocorre quando dos seus 6 anos. Trata-se de um sonho no qual ela se encontra em frente ao espelho de corpo inteiro pregado na parede do seu quarto. Esse espelho vai se transformar, para ela, numa porta que dá numa alameda — no fim da qual ela chega a uma casinha onde não encontra ninguém. Ela sobe a escada e se vê diante de uma mesa sobre a qual há um cartãozinho branco, um tipo de cartão de visita. Ela pega o cartão para ler o nome nele, mas daí o sonho se interrompe e, ao mesmo tempo, o sono a abandona.
Esse sonho lhe causa, como ela diz, uma impressão tão forte que ela se levanta imediatamente e se dirige ao espelho, que empurra para o lado para verificar se tem uma porta atrás. Mas “encontra, sim, a parede; só que nada de porta.”5 Mais inquietante ainda é que ela vai se ver, uma vez acordada, “extremamente só.”6 Dito de outro modo, ela se vê, pode-se dizer, sem o apoio do nome que teria podido ler no cartãozinho; e então, ela diz explicitamente, é “tomada por uma inexplicável sensação de solidão”.
Em Sombre printemps ela indica como essa solidão extrema, que sentiu depois desse sonho, não deixa de estar fundamentada numa nostalgia inconsolada e inconsolável da menininha pelo pai. Lembra-se de dois acontecimentos que remontam a uma idade mais precoce ainda e que me parecem ter preparado o advento desse sonho programado e a sensação de desamparo que dele resulta: “ela observa, com uma dolorosa surpresa, que ele quase nunca está na casa. Sente a falta dele. Ele se faz raro, e o que é raro dá ainda mais saudade.”7
Lembra-se também de outra recordação lancinante relativa aos meados dos seus dois anos. Ela estava num passeio e a empregada que empurrava o seu carrinho fez com que ela passasse perto de tropas de soldados que se preparavam para ir para a guerra, cantando uma velha canção de marcha que, “naquele dia de chuva, ganha nuances tristes e trágicas”. A empregada, muito afetada pelo acontecimento, larga o carrinho e desata a chorar. Naquele momento, diz Unica, “a criança pede o pai com gritos fortes, como se estivesse em perigo de morte. O pressentimento de uma catástrofe captura a menininha.”8
Dito de outro modo, o fato de não ter lido o nome no cartãozinho do sonho parece reatualizar e atestar que o abandono de Unica pelo Outro está inscrito, para ela, desde bem cedo — e registrado nessa nostalgia insondável pelo pai. Ela se encontra, então, na cena do sonho, frente ao seu desamparo originário, um desamparo sem nome. Experimenta, de novo, nesse sonho com ares de pesadelo, a sensação catastrófica do seu abandono pelo seu Outro, que não a acode mais.
Só lhe restava então, como último recurso, estima ela, ir atrás da mãe, que estava dormindo no quarto dela — “como se fosse possível retornar a essa cama, ali de onde ela tinha vindo”. Uma maneira de dizer que aquilo que lhe restava diante da defecção do Nome-do-Pai era reintegrar o colo materno e nele se confinar?
Ela retorna sem demora ao quarto da mãe. “Para não ver mais nada”. Contudo, nesse quarto, cai por sobre o corpo da mãe e então se enfia em “uma montanha de carne morna, onde o espírito impuro dessa mulher está confinado, [que] se abate por sobre a criança aterrorizada. Ela foge, abandonando a mãe para sempre, a mulher, a aranha! Ela está profundamente ferida.”9 Pode-se ver aqui como o fracasso da metáfora paterna deixa Unica à mercê da pulsão voraz da mãe. Em lugar do pai como símbolo na subjetividade de Unica, há um furo, e é por esse furo que o real da mãe emboca.
Ela relata uma vez mais essa experiência indelével para explicitar o que encontrou ali de gozo mortífero: “Num domingo desses, em que se fica enrolando para sair da cama, ela [Unica] vai se meter na cama da mãe dela e fica assustada com esse corpanzil espesso que já perdeu sua beleza. A mulher insatisfeita pula na menininha, com a boca aberta, úmida, de onde sai uma língua inquieta, nua, longa como o objeto que o irmão dela esconde por debaixo das calças. Aterrorizada, atira-se para fora da cama e sente-se profundamente mortificada. Uma aversão insuperável pela mãe, pela mulher, desperta nela.”10
Assim, pode-se dizer, fora de todo e qualquer apoio na metáfora paterna e do significante fálico, Unica permanece literalmente enfeudada à tirania materna e às suas exigências pulsionais. Quando ela faz o balanço da sua relação com a mãe, constata que esta última “nunca brincava com os filhos porque era incapaz de compreender o mundo deles. Tirava-os do caminho dela como se faria com um objeto que estivesse atrapalhando [...]. Quando a menininha escondeu, na gaveta da sua mesa de cabeceira, um “segredo” — cartas, nunca enviadas, endereçadas a um ator que ela adora, que ela admira de longe e cujo retrato desenha milhares de vezes —, a mãe, que não merece esse nome, força a fechadura e joga os tesourinhos na lixeira...”11 Assim, pode-se dizer, a mulher que nela germina não sai do papel, uma vez que o seu ideal feminino é jogado na lixeira.
Mas Unica não para por aí. As cartas íntimas do seu ser — cuja função de mensageiro o pai não endossou e que a mãe destinou à lixeira —, Unica vai assumir como missão encontrar para elas um destino.
Imediatamente em seguida a esse sonho e à sensação de solidão extrema ela vai ter, em plena luz do dia, uma visão totalmente particular: a de um homem — ou, para ser mais preciso, do Homem com ‘H’ maiúsculo. Assim, aquilo que é rejeitado do simbólico retorna no real. O que não é inscrito e registrado como nome pelo olhar no espelho do sonho vai voltar na sua visão diurna sob a forma do Ser-Homem que ela vai nomear, por sua conta, de ‘O Homem-Jasmim’.
No lugar do nome que ela não pôde ou não quis ler, ela cria o Homem na sua visão e lhe confere, por conta própria, o significante que o nomeia. O seu “imenso consolo”, como ela diz, é seu encontro com o Homem-Jasmim, dando assim a demonstração da fórmula de Lacan segundo a qual uma mulher só encontra O homem (com ‘O’ maiúsculo) na psicose.12 “Esse homem torna-se para ela a imagem do amor. […] Mais bonito do que tudo o que ela já havia visto... Aqueles olhos ali são azuis. Ela se casou com ele”. Dito de outro modo, na falta de ter, do pai, o nome, resta a Unica encontrar O homem no real.
Com 6 anos, então, no lugar do Nome que o pai não dá e que a mãe desmerece, ela alucina o Homem, mas — felizmente, para ela — ela o vê paralisado e imóvel. É uma alegria bem grande para ela, já que, nesse estado, “ele nunca deixará a poltrona que ocupa em seu jardim.”13 “A presença imóvel desse homem dispensa-lhe duas lições que ela não vai esquecer nunca: Distância e Passividade”, conclui ela. E “o mais belo é que ninguém sabe de nada. E é o seu primeiro, o seu maior segredo”.
Desde então, e ao longo de toda a sua vida, essa visão — que irrompeu em sua infância — vai lhe servir de proteção, de muleta e de bússola. Estava lá, “nos momentos mais críticos, como uma figura exemplar, para salvá-la do mundo dos adultos, então suspeito e incompreensível para ela.”14
Esse salvamento vai se efetuar em vários planos e serviria para realizar diversas funções: por exemplo, permitir-lhe encontrar e manter a unidade da sua imagem no espelho; ajudá-la a se localizar e a se orientar nas suas relações com a realidade; e, por fim, inspirá-la em seu trabalho criativo com a imagem e com a língua, para fazer do signo um significante. Dito de outro modo, inspirá-la em seu esforço de transformar o signo estagnado da alucinação numa letra-carta que circula, que se partilha e que se aprecia.
Aí estão várias dimensões para as quais Unica espera apoio e socorro dessa metáfora delirante, ersatz da metáfora paterna que lhe falta:
É assim com a sua imagem no espelho. Na idade adulta, e em seguida à descompensação psicótica, algumas das suas alucinações insuportáveis fazem-na reviver fenômenos de dissolução da imagem do corpo, confrontando-a a “seres sem olhos e sem rosto com asas imateriais que passam através do seu corpo.”15 Mas os efeitos angustiantes dessas alucinações vão ser dissipados pelo surgimento de outras alucinações mais apaziguadoras, visto que organizadas em torno de um olhar belo: “Na mesma hora a águia branca entrou voando pela janela aberta e me envolveu com seu magnífico olhar azul.”16
Mesmo na sua atividade de desenho alternam esses mesmos fenômenos de dissolução e de apaziguamento, em função do modo de presença ou ausência do olhar: diante do papel para desenho acontece, por um lado, de trombar com um olho mau que a remete ao seu Outro feroz: “O primeiro olho aparece no branco da folha. Ele exprime a maldade e convoca, com todas as forças, o segundo olho! No decorrer do dia seguinte aparece o rosto diabólico inteirinho, que vai ficando cada vez mais negro.”17 Por outro lado, pode ser amparada pelo surgimento de um olhar apaziguador; e ela escreve: “Após um primeiro momento em que a pena “nada” — hesitando por sobre o papel em branco —, ela descobre o lugar reservado ao primeiro olho. É só quando a gente a observa do fundo do papel que ela começa a se orientar e que, sem drama, um motivo se junta ao outro.”18
Esse olhar que a ampara tão bem quando das suas alucinações na sua atividade artística não deixa de evocar os olhos do Homem-Jasmim — “aqueles olhos ali são azuis”, precisa ela, quando da visão —, e é também por isso que essa imagem alucinada do Homem virou, para ela, a representação suprema da beleza e do amor.
Dessa alucinação visual que lhe vem de fora, ela vai então fazer a sua bússola, quando as referências simbólicas se confundem e confundem, para ela, as relações com a realidade. Ela vai conferir a esse homem-imagem a função de organizar e ordenar o seu mundo.
É assim que, no início da sua infância — em torno dos dois anos, precisamente —, ela já parece ter pressentido a presença do Homem da visão sob uma forma pluralizada; primeiro, através do que ela chama de ‘a confiança mágica’ que lhe inspiram os amigos homens que o pai leva em casa. Esses homens “chamam-na de ‘Princesa’. Jogam-na para cima e ela, plenamente confiante com tudo o que vem do homem, sente-se pega no último segundo, logo antes da terrível queda. O homem, a seu ver”, acrescenta, “transforma-se num grande mágico, um ser que pode realizar tudo, até mesmo as coisas mais incríveis.”19 Ela convocará de novo esse grande mágico noutros dois momentos de enorme importância para a sua identidade de mulher e de mãe.
O primeiro é relativo a uma sensação de morte iminente na hora do nascimento de seu primeiro filho, a sua menina. Ela estava isolada num quarto do hospital depois de uma escarlatina da qual vai se curar por milagre. Pois “é no decorrer dessa doença que ela viu Deus, disfarçado de médico, sair da parede do quarto para ficar ao pé da sua cama. Ele a olhava com grandes olhos azuis, como quem se perguntasse se devia levá-la ou não com ele. Não! Ele lhe devolve a vida.”20
O segundo momento tem ligação com a questão da paternidade do seu filho: “E agora ela compreende repentinamente o segredo da estupenda cor azul dos olhos do filho. Ela se lembra da noite de inverno em que teve a sensação de um estranho vazio em torno dela […], naquela noite em que não sentiu que o marido a tivesse tocado, o Homem Branco deu a vida ao filho dela, que, nove meses mais tarde, nasceu com aqueles olhos azuis.”21
Muito tempo depois desses acontecimentos, esse homem que dá vida e que acode com a sua presença e o seu olhar não vai deixá-la desabar, nem sequer nos momentos de crise de loucura: assim, por exemplo, quando os seus problemas de orientação espacial — que ela enfrentou desde a infância — se agravam, ela recorre a ele para encontrar sua direção. Ela lhe dirige “indagações mudas”22, às quais ele responde imediatamente. “Breve e claramente, ele lhe indica a direção que ela deve tomar” para chegar a esse ou aquele lugar. Por isso que, quando, num estado de crise, ela joga o passaporte numa caixa de correio, tem subitamente a impressão “de que alguém ia vir — um ‘enviado’, pois se sabe que ela está em apuros atualmente —; ela espera ao lado da caixa. E alguém chega.”23 Vai se tratar, com efeito, de um rapaz que irá ajudá-la a recuperar os seus documentos e a chegar ao lugar procurado.
Por fim, o Homem da visão vai ser também a fonte de inspiração que lança e relança o seu imaginário e a sua criação artística e poética.
Desde pequenininha, como vimos, ela era impossível de consolar das ausências prolongadas do pai. Estava também, como ela diz, encurralada entre o ódio que consagra à mãe e a incomunicabilidade que partilha com o irmão. Nesse contexto, tudo o que a rodeia torna-se hostil para ela.
Até chegar no seu quarto para dormir nunca era coisa pouca para ela. Fica transida de medo todas as vezes. Ela tem de atravessar um imenso espaço ornamentado com objetos de arte trazidos pelo seu pai das suas viagens longínquas, mas dos quais, para ela, só emanam angústia e terror. Leva, então, um susto com o esqueleto do grande gorila que “está ali para estrangulá-la”24, imagina. Igualmente, as duas gordas nuas que preenchem o grande quadro de Rubens, O Rapto das Sabinas, “lembram-na sua mãe e provocam sua ojeriza.”25 Frente a esses seres maléficos que semeiam o terror nela e ao redor dela, “ela queria ser um homem, já maduro”26 — põe-se ela a sonhar. Mas como não passa de uma menina “suando de medo”27, ela se volta para outras forças mágicas.
Refugia-se, então, depois do jantar, num canto da biblioteca familiar e mergulha em suas leituras preferidas. É assim que, graças a Júlio Verne, cai de amores pelo Capitão Nemo, que se torna “um de seus heróis sem os quais ela não pode viver. [Descobre-o] mais próximo dela e mais compreensível do que os seres que a cercam.”28 E é assim que todos esses objetos e móveis que o pai dela trouxe de suas viagens pelo Oriente vão fazer da casa, graças à magia da leitura, “não um museu, mas uma bela caverna onde a sua imaginação começa a trabalhar.”29
Ela vira para o Capitão Nemo e suplica que ele a proteja. Pede também aos dois sequestradores de rosto trigueiro no quadro de Rubens que raptem as duas gordas, dublê duplicada da montanha de carne que é a sua mãe. Ela não para, assim, todas as noites, de confiar aos heróis da sua imaginação a derradeira função de salvá-la de uma morte iminente. Uma vez no quarto, tranca-se à chave e, para poder confiar o seu ser ao sono, reúne o pouco de força que lhe resta para visualizar, ao redor da sua cama, “o círculo obscuro dos seus guardiões, e é a eles que ela deverá por ainda estar viva na manhã seguinte.”30
Mais tarde, desse lugar de sobrevivente da morte, a leitura lhe vai permitir acessar, por sua vez, o lugar de salvadora da morte. Quando de uma hospitalização psiquiátrica, ela conta a duas pacientes interlocutoras o fato de que, quando pequena, possuía um livro de imagens que se intitula Jean le Merveilleux [João, o Maravilhoso]. Esse livro continha uma grande imagem, toda vermelha, representando o inferno no qual está trancada uma multidão de diabos. Em meio a essa multidão encontra-se um bebê diabo que ela não suporta ver no fogo. Ela pega a tesoura, corta a imagem do bebê e confecciona para ele um berço numa casca de noz. “Como fiquei contente!, era a primeira vez na vida que eu estava salvando alguém.”31
Para além dessas leituras que amparam e protegem, ela vai avançar um degrau e dar os seus primeiros passos na escrita. Na escola, em torno dos dez anos, tem um professor que prefere ela às outras meninas “porque é ela que faz as melhores redações.”32 Ela também gosta desse professor, que, “com uma voz harmoniosa”, precisa ela, lê poemas líricos ou dramáticos para os alunos. Guarda também a forma particular desse professor “de arrastar as palavras, de puxar os erres. Isso lhe dá um jeito estrangeiro, e tudo o que é estranho entusiasma as meninas.”33
Mas se sobressair na expressão escrita em sala de aula não parece satisfazê-la; será preciso que ela dê um passo rumo à sua própria bricolagem linguística para lidar da melhor maneira com o real. É o que ela faz quando inventa, na mesma época, uma história centrada num fenômeno da linguagem que não deixa de evocar aquilo que Schreber qualificou como milagre do urro. Para Schreber, trata-se de situações em que a sua fala se interrompe brutalmente para dar lugar a urros impostos; dar lugar à emissão involuntária de gritos angustiados e sem significação. Para Unica, contudo, esse urro está mais para um ato criativo e liberador. É um procedimento que ela inventa para, pode-se dizer, lidar pontualmente — com a ajuda do significante puro — com o impuro do gozo.
Tinha uma história que ela adorava encenar: colocava em cena um casal real que, na calada da noite no deserto, desatava “lamúrias horrendas e intermináveis por causa da perda do filho.”34 Para exprimir melhor a atrocidade da lamúria insondável desse casal real, Unica e sua amiga “inventam uma língua dramática, uma língua de urros, capaz de exprimir a aflição do mundo inteiro — e que ninguém compreende, exceto elas. Essa linguagem que elas imaginaram só comporta vogais”. Unica precisa, justamente, que a parte mais emocionante dessa brincadeira é aquela constituída pela linguagem inventada “para urrar as lamúrias deles.”35
Ela inventa, assim, pode-se dizer, uma maneira de brincar com os significantes para não apenas padecer deles; uma maneira de fazer ressoar a polifonia deles para ecoar, do lado de fora, o ser — a ponto de perder a razão e a sua razão de ser. O urro de Unica tem como função, aqui, fazer com que a Coisa escorra numa lava sonora que não diz nada para ninguém, mas exprime a dor diante do rompimento da juntura mais íntima do seu ser.
Não obstante, para Unica, esse avanço ainda não é tamanho o bastante para fazer bailarem juntos o significante e o sentido, a letra-carta e o seu destino. Pois, como é que ela vai poder restituir a velocidade infinitamente plural ao significante que corre o risco efetivamente de se segmentar numa multidão de signos isolados ou se compactar numa língua sem consoantes e sem sonoridade diferenciada? Como ela vai fazer para que a falta de sentido não corra o risco, pelo seu retorno maciço, de dominar ainda mais pesadamente a leveza necessária ao ser? Para isso lhe restava apenas o engenho da poesia. E ela não vai deixar de solicitar esse engenho para se aproximar o máximo possível do real indizível e tentar fazer os significantes deslizarem, de uma para a outra, numa cadeia o menos entravada possível, nas engrenagens automatizadas da alusão.
No Cahier [Caderno] que redige no último ano de sua vida, ela evoca a sua grande nostalgia desse período que se segue imediatamente ao divórcio; período em que havia frequentado, durante alguns anos, o meio boêmio e artístico de Berlim, e sobrevivia escrevendo contos para crianças. “Ali a imaginação era viva; o corpo, leve e sem entrave. […] ela digitava histórias, por vezes diretamente, sem preparação nem correção. E que prazer era ver esses folhetins induzidos, impressos nos suplementos literários dos jornais.”36
Contudo, escrever para ganhar a vida acaba enfadando-a. Tornar a escrita servil a uma motivação mercantil não lhe parece corresponder à ideia que ela tem consigo da arte de escrever e à função que ela espera dessa arte. Com o seu companheiro da época, que era pintor, ela se aventurava na pintura e se sentia como que livre da necessidade de ter de utilizar a escrita como ganha pão. Ela se põe, então, a pintar por “semanas e noites inteiras, com paixão, e não pode mais ficar sem esse gratuito prazer.”37
Esse contexto foi a oportunidade para ela encontrar Hans Bellmer e, através dele, o grupo dos surrealistas.
É importante indicar que o Homem criado na visão, o Homem-Jasmim, vai progressivamente se revelar como sendo a imagem de um amor que — para parafrasear uma fórmula de Lacan — não pode fazer com que, para ela, o gozo condescenda com o desejo. Daí ele assume o semblante de um amor morto e mortificante. Ela vai se aperceber disso ao longo de toda a sua vida; já na infância, depois na adolescência, e até mesmo na idade adulta. Ela acaba concluindo, então, que “giram nela chaves, uma após a outra, mas ela não se abrirá. […] Pois, nos anos que virão, sobre o ombro dos homens onde ela vai se reclinar, não verá nada além do Homem-Jasmim. Ela permanecerá fiel às suas bodas infantis.”38
Faz a constatação de que toda a sua vida adulta ela atribuía apenas pouco interesse àquilo que chama de “homem normal”. Os homens cujas carícias, as palavras lhe pareciam sem charme, sem surpresa — “todos se pareciam e só a inteligência, às vezes, os diferenciava.”39
Se ela se apegou a Bellmer, e isso até o fim da vida, é porque o achou muito extraordinário. Ela se encontrava “diante de um novo amor, que sabe renovar sua vida e que partilha com ela os seus pensamentos e o seu trabalho.”40 Não obstante, afirma que esse apego não tem nada a ver com amor. Esse apego estaria mais em relação “com o assombro profundo e incurável que ela experimentou quando do seu encontro com ele, encontro que a visão do Homem-Jasmim havia, muito exatamente, preparado. […] Senão não teria sido possível que ela caísse gravemente doente por ter cristalizado o seu pensamento nele durante anos.”41 Dito de outro modo, esse novo encontro, rico em promessas no plano da criação artística para Unica, vai ser também e sobretudo a oportunidade da reativação do seu profundo e incurável assombro. Ele vai ser o elemento disparador da sua psicose.
O que parece atraí-la mais particularmente em Bellmer é a aproximação que ele faz entre os significantes e o corpo, entre as letras que compõem uma palavra e os membros que constituem um corpo. Ela vem em direção a ele com uma esperança tácita de encontrar, nos jogos de letras e de palavras, uma maneira de conectar e rearticular os órgãos que a imagem inconsciente do corpo não chegou a articular para ela. Assim, desde o comecinho desse encontro, Bellmer apresenta-lhe as brincadeiras da boneca [les jeux de la poupée], seu livro de fotografias, ilustrado com poemas em prosa de Paul Éluard. “Ela fica olhando demoradamente, fascinada, as variações sobre o corpo dessa boneca, desmantelada e rejuntada, e lhe parece nunca ter visto nada de tão estupendo.”42
Contudo, acrescenta, “uma única foto a aterroriza: a cabeça da boneca chega a boca perto do próprio sexo como que procurando se fazer gozar com a língua”. Foi o que, por outro lado, ela acreditou pressentir também num comentário que lhe faz Bellmer a propósito de um poema dele intitulado “Anatomie de l’image” [Anatomia da imagem]. Bellmer vê ali “as analogias inquietantes entre as letras de uma palavra... e os órgãos de um corpo humano, aptos — tanto elas quanto eles — a serem desmontados...”43
Unica releva aqui, com pertinência, de um lado, o terror que acabara de experimentar diante dessa foto — que lhe presentifica o Outro gozo — e, por outro, o medo de que o desmantelamento anagramático das palavras desmantele ainda mais a imagem custosamente unificada do corpo próprio. Mas esse terror e esse medo sentidos, no entanto, não a detêm — ao menos num primeiro momento — diante do seu engajamento rumo a Bellmer e rumo ao que, a seu ver, ele representa: “é um excelente autor, muito preciso, e que dá ao erotismo a lógica de uma filosofia.”44
Flui um período de trabalho, então, para os dois. É a época que considera “entusiasmante para ela do lado dele: ele faz com que ela descubra os anagramas e mostra-lhe como fabricar essas construções artificiais de palavras.”45 Muito rápido, Unica investe muito profundamente nessa atividade artística e poética. “Inesgotável fonte para ela, isso de procurar uma frase numa outra frase. A concentração e o grande silêncio que esse trabalho demanda lhe dão uma chance de poder se isolar completamente do mundo que a cerca e até mesmo esquecer essa realidade.”46
Não obstante, essa produção anagramática vai ficando cada vez mais invasiva, angustiante. Ela desloca o seu discurso e o isola da realidade dos outros: “A velha e perigosa febre dos anagramas tomou-a novamente. Surge um depois do outro. Perigosa para ela porque, de novo, ela se aparta do mundo que a cerca. Cabe-lhe o quinhão de uma nova crise, que ela não percebe.”47
Lá pelos anos de 1957, quando de um encontro com Bellmer, descreve o que chama de primeiro milagre da sua existência: “num quarto em Paris ela se encontra frente ao Homem-Jasmim […]. O choque que ela experimenta nesse encontro é tão violento que não vai superá-lo. A partir desse dia, muito lentamente ela começa a perder a razão. As imagens da visão que teve quando criança e a aparição desse homem são idênticas. Com a única diferença que ele não está paralisado e que, aqui, não há jardim de jasmim em flor.”48 Assim, o encontro de Bellmer se revela como sendo, para Unica, o encontro de Um-pai — segundo a fórmula de Jacques Lacan.
Em 1970, o último ano de sua vida, escreve uma carta ao psiquiatra de Hans Bellmer, o Doutor Ferdière, queixando-se do psiquiatra dela, o Doutor Jean-François Rabain; dizendo que este não estava em condições de compreender aquilo de que se trata para ela e que se resume no fato de que ela era “apaixonada desde os 17 anos por H. Michaux, ‘um certo Pena’.”49 Dito de outro modo, ela era apaixonada não pelo H. Michaux homem, menos ainda pelo Bellmer homem — de que ela, aliás, tentou fugir diversas vezes. Ela era, sim, perdidamente apaixonada pela pena H. Michaux, o poeta. Pois o que conta para ela, a seu ver, não é Unica enquanto mulher, mas sim Unica enquanto mãe de uma obra por vir, já que “No mundo, a maior alegria [é a] de poder se expressar pela arte; estar grávida de uma ideia que queria vir ao mundo, formada pelo caminho da arte.”50
Foi essa realidade que ela tentou significar para Bellmer, se separando dele uma primeira vez. Ela lhe disse, de uma forma enigmática, que havia caído “em êxtase com um são”. Dito de outro modo, ela é e continua sendo, de uma vez por todas, a esposa do Homem-Jasmim — o Homem da sua visão e das suas bodas de infância, e que pode assumir a forma de uma inspiração poética que pode se encarnar em figuras de poetas e, nesse caso, na de Henri Michaux.
Quando chega pela primeira vez ao hospital psiquiátrico, revela a razão da sua hospitalização não ao corpo médico, mas a duas pacientes que se mostram ser seres mais aptos a entendê-la: ela escutou, diz, um grande poeta recitar um poema no seu ventre.51 E como não acreditar nela, visto que esperava estar grávida de palavras e parir verdadeiramente uma obra de arte?
Quando Bellmer lhe visita no hospital — feliz por ser o primeiro a ir vê-la —, ela não deixou de pensar, no fundo, no fundo: “Ah! Se ele nunca tivesse vindo, […] se o Homem-Jasmim tivesse permanecido apenas uma imagem de sonho bem doce e bem bela! Mas com o aparecimento do Homem Branco em carne e osso (como é que ela poderia chamá-lo de outra forma; justo ele, que emite os insustentáveis raios da inquietante brancura), com o seu aparecimento a loucura começou.”52
A criação de poesia anagramática, inaugurada em 1954 com a publicação da primeira antologia — um ano depois, apenas, da sua instalação com Bellmer em Paris —, vai ter fim em 1965. Nesse meio tempo, Unica vai se afastar dela pouco a pouco; assim como do desenho e da pintura, aliás. Talvez uma maneira de se abrigar um pouco dessa relação que a confronta demais com o real da Coisa. Em 1959, por exemplo, quando de uma exposição internacional do surrealismo em Paris, em que ela participa, fotos realizadas por Bellmer mostram Unica, nua e amarrada, na capa da revista “Surrealismo”.
Cerca de um ano depois desse acontecimento, Bellmer se lembra de que Unica vai, para o seu grande espanto, parar bruscamente de desenhar. Ela então se rendeu à evidência de que deve recuar com relação a esse tipo de manipulação que ela toma realmente como objeto. Apercebe-se então que, apesar de toda essa atração que a suga como um turbilhão nesse meio artístico, talvez fosse preferível para ela se conformar com a primeiríssima lição que o Homem-Jasmim a ensinara aos 6 anos: “distância e passividade”.
Vai se consagrar, dali em diante, a uma escrita mais romanceada e autobiográfica para tentar uma vez mais — se ainda for possível — fazer nascer, da sua loucura, uma obra literária.53 Durante uma das suas hospitalizações, ela lamenta aquilo que chama de seu miolo de galinha, “que é frágil demais, pequeno demais para suportar uma grande comoção com firmeza, para poder — como fizera Herman Melville, por exemplo — construir uma obra nesse choque emocional.”54 “Ela lamenta que tudo o que vive de extraordinário e de excitante, por conta da sua loucura, permaneça para ela da ordem do sonho acordado, sem ter o poder de expressá-los numa obra.”55
Nesse meio tempo, em todo caso, faz ainda alguns desenhos aos cuidados de Bellmer — que continua a lhe endereçar, quase que quotidianamente, os mais belos cartões postais, “como que para atiçá-la.”56 E como ela não consegue resistir à nostalgia de Paris e de Bellmer, “o seu único amigo lá”, anseia retomar a sua vida comum. Mas no dia de deixar o hospital, “recusa-se absolutamente a se levantar.”57 A saída foi decidida, em todo caso; e, uma vez no apartamento de um dos seus amigos, antes de continuar sua viagem para Paris, “ela descobre um sólido gancho fixado na parede, sobre a porta da cozinha, e uma corda no banheiro. Toda e qualquer pequena parcela de coragem, a centelha de alegria que sua saída tão esperada do hospital lhe proporcionou, desapareceu. ‘Acabou’”, presume, “e ela sobe imediatamente numa cadeira e passa a corda no pescoço”. Mas justo depois de ter passado a corda ao redor do pescoço, percebe, fixos nela, os grandes olhos, os belos olhos de dois gatos que a observam. Os gatos bocejam, se esticam, belos e distantes — e, sobretudo, indiferentes ao ser em pé na cadeira, com a cabeça passada no nó corrediço. Acaso não está aí, uma vez mais, a presença ainda um pouco apaziguadora do Homem-Jasmim através dos belos olhos de gatos distantes e indiferentes?
Ela volta para a cama e “começa a entregar o seu corpo a certas práticas que podem ter, para ela, decorrências funestas”. O que não deixa de se produzir alguns dias na sequência. Ela ficou parcialmente cega e paralítica. Vê apenas a metade superior de um quadro ou então as linhas se embaralham na leitura. Ela cai assim que se ergue para andar e sofre de dissociação corporal. Perde toda coordenação motora e toda orientação espacial. Depois de terem tentado fazer com que ela se hospitalizasse, sem êxito, esses amigos deixaram-na partir numa cadeira de rodas para pegar o avião para Paris e chegar, enfim, ao apartamento do seu amigo. Segue-se, então, um longo tratamento medicamentoso com injeções para ver desaparecerem os diferentes problemas e para chegar, lentamente, a recuperar as faculdades perdidas ou perturbadas.
“Durante os primeiros dias da sua cura, ela dá de cara com um retrato do Homem Branco, que a observa na primeira página de um jornal. É um novo choque para ela; esquiva-se desse rosto que se tornou nefasto para ela e experimenta certo prazer em rasgá-lo e jogá-lo na lixeira.”58 Assim, acaso seu gesto de jogar na lixeira o retrato do personagem real que a precipita na loucura não vai ao encontro do gesto de sua mãe jogando na lixeira, no comecinho da sua vida, o seu ser de mulher? Esses dois gestos, como linhas gerais de um destino funesto, não prefiguram aquele por vir para que ela não advenha mais? Bellmer chegando ao apartamento, ela se defenestra do quinto andar como que para realizar, diante dos olhos dele, a sua autopropulsão na lixeira do mundo — na falta de poder escrever o Homem-Lixeira como sequência projetada para a sua obra magna, o Homem-Jasmim.
ANDRE, Serge. La structure psychotique de l’écrit. Bruxelles: La Muette, 2001.
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FREUD, Sigmund. “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924). In: Obras completas, v. 16. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; pp. 214-221.
LACAN, Jacques. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; pp. 531-590.
LACAN, Jacques. “Televisão” (1973). In: Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003; pp. 508-543.
MARCEAU, Jean-Claude, “Unica Zürn: la folie à la lettre”. Cliniques méditerranéennes, n. 77, 2008, pp. 249-263.
RABAIN, Jean-François, “Sublimation e identifications croisées: les « jeux à deux » de Hans Bellmer e Unica Zürn”, Revue française de psychanalyse, LXII, 1998, n. 4.
ZÜRN, Unica. L’homme-jasmin: Impressions d’une malade mentale. Trad. R. Henry; R. Valançay. Paris: Gallimard, 1991.
ZÜRN, Unica. Sombre printemps. Trad. R. Henry; R. Valançay. Paris: Belfond, 1985.
ZÜRN, Unica. Vacances à Maison Blanche. Trad. R. Henry. Paris: Joëlle Losfeld, 2000.
Conforme a expressão de Ruth Henry, sua futura amiga e tradutora em francês da sua obra por vir, na “Apresentação” de Vacances à Maison Blanche, p. 7.↩
Ibid., p. 138.↩
Ibid., p. 140.↩
HENRY, “Présentation”, Vacances à Maison Blanche, pp. 7-8.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 15.↩
Ibid.↩
ZÜRN, Sombre printemps, p. 12.↩
ZÜRN, Sombre printemps, p. 13.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 16.↩
ZÜRN, Sombre printemps, p. 14.↩
ZÜRN, Vacances à Maison Blanche, pp. 158-159.↩
LACAN, “Televisão”, p. 70.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 16.↩
Ibid., 143.↩
Ibid., p. 37.↩
Idem.↩
Ibid., p. 162.↩
Ibid., p. 153.↩
ZÜRN, Sombre printemps, p. 12.↩
ZÜRN, Vacances à Maison Blanche, p. 122.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 50.↩
Ibid., p. 57.↩
Ibid., p. 61.↩
ZÜRN, Sombre printemps, p. 26.↩
Idem.↩
Ibid., p. 27.↩
Idem.↩
Ibid., pp. 25-26.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 51.↩
ZÜRN, Sombre printemps, p. 28.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 84.↩
ZÜRN, Sombre printemps, p. 44.↩
Ibid., p. 44.↩
Ibid., p. 31.↩
Ibid., p. 33.↩
ZÜRN, Vacances à Maison Blanche, p. 109.↩
Ibid., p. 35.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 16. Trata-se das bodas das suas núpcias com o Homem da visão. Esse homem que ela teria amado ser por volta dos dez anos, “um homem maduro”, para lutar contra o seu meio hostil. Também o da imagem desse ator adorado, cujo estilo — naquele momento, o de se vestir — para se apresentar em seu primeiro encontro com Bellmer.↩
ZÜRN, Vacances à Maison Blanche, p. 46.↩
Idem.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 48.↩
ZÜRN, Vacances à Maison Blanche, p. 37.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 11.↩
ZÜRN, Vacances à Maison Blanche, p. 37.↩
Ibid., p. 57.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 25.↩
Ibid., p. 158.↩
Ibid., p. 18.↩
BELLMER; ZÜRN, Lettres au docteur Ferdière, p. 12.↩
ZÜRN, Vacances à Maison Blanche, p. 127.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, p. 85.↩
Ibid., p. 143.↩
BELLMER; ZÜRN, Lettres au docteur Ferdière, p. 54.↩
ZÜRN, L’Homme-Jasmin, pp. 86-87.↩
Ibid., pp. 88-89.↩
Ibid., p. 115.↩
Ibid., p. 116.↩
Ibid., p. 118.↩