O MAL EM LAVOURA ARCAICA

Os símbolos e a confissão

Marcella Abboud

Universidade Estadual de Campinas

e-mail marcellabud@gmail.com

Resumo: O presente artigo visa apresentar o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, discutindo o caráter simbólico ― e, por isso, obscuro e escamoteado ― de sua violência, especialmente aquela dedicada ao feminino. Para apoiar nossa hipótese, encontramos aporte teórico especialmente em Paul Ricoeur e no seu conceito de símbolos do Mal.

Palavras-chave: Raduan Nassar; Lavoura Arcaica; Símbolos; Mal; Paul Ricoeur

Abstract: This article aims to present the book Lavoura Arcaica, by Raduan Nassar, discussing the symbolic aspect -therefore, obscure and hidden- of its violence, especially towards women. To support our hypothesis, we sought theoretical endorsement especially on Paul Ricoeur and on his concept of symbols of Evil.

Keywords: Raduan Nassar; Lavoura Arcaica; Symbols, Evil, Paul Ricoeur

Introdução

Lavoura Arcaica é o primeiro romance renomado de Raduan Nassar. Escrito no ano de 1975, teve, desde o início, uma recepção muito positiva da crítica brasileira. Já em 1976, um ano depois de sua publicação, Lavoura Arcaica1, venceu o prêmio Coelho Neto para romance, da Academia Brasileira de Letras, e o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria Revelação de Autor. Em 2001, surge uma adaptação muito bem sucedida, segundo a crítica, feita por Luiz Fernando Carvalho.

O livro primogênito de Raduan Nassar é romance relativamente curto, com um número reduzido de personagens ― ele se resume ao núcleo familiar da fazenda onde todos vivem: mãe, pai e filhos. A história, escrita em primeira pessoa, começa com uma narração do filho André ao receber a visita do irmão mais velho, Pedro, que tenta levá-lo de volta para casa. Nessa primeira parte, André explica ao irmão sua saída de casa― incluindo, no relato, seu relacionamento incestuoso com a irmã Ana, sua fuga, sua complicada relação com o pai e o trabalho na lavoura, seu relacionamento com prostitutas e o alcoolismo. A escrita tem uma pontuação pouco conservadora: muitas vírgulas, poucos pontos e os diálogos, especialmente nesse momento do texto, causam confusão sobre a voz que fala ― a polifonia é uma característica bastante marcante na obra. Na segunda parte do romance, André retorna à casa: é recebido com alegria por todos, exceto pelo irmão caçula, Lula ― que vê em seu regresso um fracasso ―, e o pai convoca uma festa para recebê-lo.

Todo o romance é repleto por digressões da memória infantil das personagens e tem final trágico: Ana, a irmã com quem André se relacionou amorosamente, encontra uma caixa com acessórios das prostitutas com quem André se envolvera e os veste para a festa, onde dança sensualmente. Pedro, diante da cena, chama o Pai, que acaba assassinando a própria filha. Incesto, conflito de gerações, discussões religiosas, interculturais, filicídio são as tópicas que permeiam o romance que é denso e, não bastasse o enredo, ainda suscita discussões estéticas por ser todo ele escrito em prosa poética.

Considerando todas essas questões, as entradas no livro de Raduan, por parte dos críticos, se dão por três ângulos principais: via análise da prosa poética, portanto, uma análise estética (análise, inclusive, que é a mais recorrente); via crítica psicanalítica (o tabu do incesto, o mito do pai da horda, amplamente explorados pelo enredo) e via crítica ideológica, especialmente a partir da relação com a tradição árabe (evidenciada na caracterização das personagens, do ambiente e da própria linguagem). Além disso, quase todos os trabalhos discutem a intertextualidade bíblica, afinal, o romance escancara a relação com a parábola do filho pródigo, vista, pela maioria dos críticos, como a organizadora do livro (os capítulos se dividem em duas grandes partes, ‘A partida’ e ‘O Retorno’).

A linguagem parece, especialmente em LA, ser fonte de inquietação para os críticos; inclusive ― a nosso ver ― a preocupação estética, não raro, impediu uma leitura cuidadosa dos eventos do romance, extremamente violentos (violência pouco posta em evidência em nossa opinião). Apesar disso, não parece estranho que a crítica tenha se debruçado tão fortemente na linguagem de Raduan. Ela é realmente impressionante, fruto de um trabalho bastante sistemático.

Como unanimidade entre os principais críticos, a literatura que se voltava, à época de Raduan, a discutir a ditadura parecia ser considerada “menor”, como se ― e discordamos desse posicionamento ― houvesse uma questão ontológica mais importante ao se desassociar o texto literário do contexto histórico.

Quase todas as leituras reiteram o discurso que o próprio narrador, André, apresenta no romance, isto é, a de que família se dividira em duas alas, a do pai e a da mãe; uma prenhe de autoritarismo, outra de afeto: ambas negativas. Em capítulo denominado “Ao colo da mãe”, Hugo Abati (1999, p.90) utiliza o termo “desmedidos” para se referir aos afagos da mãe, reiterando que André a culpa “por ter transformado a casa num antro de perdição”. Abati não está sozinho, confiando (talvez demasiadamente) no relato de André, uma parte da crítica psicanalítica mantém o movimento de culpabilização do “excesso” de carinho da mãe, aliado ao “excesso da tradição” do pai.

Há uma tríplice disposição da figura da mulher em LA. A mãe é a primeira culpada, do lado esquerdo da mesa ela carrega o lado funesto da família, em contraponto ao patriarca: “se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”. É dela que provém todo o carinho e nela emerge algo absolutamente reconfortante: a língua materna, o árabe. Não parece surpreendente que a crítica coadune, na sociedade em que vivemos, com um narrador tão pouco confiável.

Nas primeiras resenhas feitas, também é interessante notar que o embate entre pai e filho e entre irmãos (Pedro e André) se sobressaem muito mais do que qualquer discussão sobre Ana. Enquanto o trabalho ora desenvolvido vê em Ana a maior força dramática do romance, as críticas iniciais escritas sobre o romance sequer mencionavam a personagem retomar os dois momentos de violência que esta sofre: o incesto e o filicídio ― notemos que a fortuna crítica não se refere ao filicídio também como feminicídio. Para se falar das mulheres do romance, sempre como coadjuvantes da trama, a crítica partiu para uma discussão de outro viés: a psicanálise foi o principal caminho encontrado: a comparação com Édipo se dá tanto no campo da teoria literária como da análise freudiana.

Quando falamos do feminicídio de Ana, vemos surgir a temática do sacrifício, pois sobra à irmã o peso de purificar a família, pelo seu sangue, tomada por um mal externo. A ideia de um sacrifício, porém, pressupõe um pecador anterior, ou seja, um culpado: André. Mas a personagem é pouco confiável, egocêntrica, violenta e tenta sobremaneira tirar de si a culpa pelo envolvimento com Ana e pela morte da irmã. Só denunciar que André é culpado seria mera crítica ideológica. Cremos que também uma crítica estética possível para corroborar a crítica ideológica de fato se delineia. Há um final trágico em Lavoura Arcaica, mas que não trata ― como se espera de uma tragédia ― do humano, mas do homem, enquanto potência violenta em oposição à mulher.

Desvelar isso é nosso propósito.

Lavoura Arcaica

O primeiro capítulo de LA começa com uma cena de masturbação de André. A escolha das palavras é tão cuidadosa e figurada, desenvolvendo um ritmo tão intenso que, em uma primeira leitura, pode passar despercebida toda sua sexualidade.

Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo (NASSAR, 2009, p. 7)

Este primeiro trecho do livro já estabelece a toada que se repetirá até o fim: metáforas frequentes com a natureza ― pênis como caule, sêmen como rosa branca (o pênis como caule, tronco, etc. inclusive aparecerá mais de uma vez) e uma sacralização da sexualidade. Esses dois movimentos são fundamentais para construir a identidade da protagonista André, cuja relação com a natureza se dá de maneira sempre sexual e positiva. Além disso, a associação entre o sagrado e o sexual é o movimento que o instaura como sendo o oposto ao Pai, à tradição e a tudo que André rejeita e tenta, cotidianamente, reprimir.

O gozo pós masturbação de André é interrompido pela chegada do irmão mais velho ao quarto de pensão onde mora: inicia-se com uma batida, depois uma tentativa de girar a maçaneta até se transformar em “pancadas num momento que puseram em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto” (NASSAR, 2009, p.8). A chegada do irmão interrompe, ainda, o momento úmido de André ― “minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte” (NASSAR, 2009, p.8) ―, instaurando a secura do distanciamento: “assim que ele entrou, ficamos de frente um para o outro, os nossos olhos parados, era um pedaço de terra seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse pó” (NASSAR, 2009, p.9); vale notar que a relação entre o seco e o úmido aparecerá com frequência como alegoria para negativo (seco, pó, cal) e positivo (úmido, terra, água).

A secura instaurada pelo irmão se confirma pelo final do primeiro capítulo, iniciado com uma masturbação ― alto prazer e libido ― e finalizado com uma reprimenda: “mas ele nem se mexeu e tirando o lenço do bolso ele disse ‘abotoe a camisa, André’”(NASSAR, 2009, p.10). Ao contrário do que possivelmente anseia o leitor, ainda não é um diálogo que se instaura entre ambos, ao menos não verbalizado. O que há no segundo capítulo é um lapso de memória sobre a relação de André e a natureza, especialmente ao longo da infância.

A volúpia associada à religião e à família também é uma marca do romance, que aparece, desde o início, como se preparando o leitor para a temática do incesto, amplamente explorada pelo enredo. O capítulo que segue, de número 3, também é mnemônico e responsável por apresentar um elemento imagético fundamental, o olho. Já no primeiro capítulo, a palavra “olho” e o plural “olhos” aparecem seis vezes; em 19 páginas, 18 vezes. O terceiro capítulo de LA assim se inicia:

E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo, e que se eles eram bons é porque o corpo tinha luz, e se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um corpo tenebroso, e eu ali, diante de meu irmão, respirando um cheiro exaltado de vinho, sabia que meus olhos eram dois caroços repulsivos (NASSAR, 2009, p.13)

Os caroços repulsivos remetem mais uma vez à botânica: a natureza constrói o corpo de André. Quando associados à candeia do corpo, temos uma alegoria frequente sobre o olho, isto é, a ideia de “janela da alma”, uma metáfora já desgastada e óbvia. Mas não é só essa alegoria que está associada ao olho: a metáfora é para além disso.

As primeiras palavras do romance são “Os olhos”: “Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo” (NASSAR, 2009, p.7). Em seguida, metonimicamente, os olhos passam a ser André, agindo ao longo do capítulo: “deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam”; “meus olhos depois viram a maçaneta”; “apertei os olhos enquanto enxugava as mãos”; “ficamos de frente um para o outro, nossos olhos parados”; “nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo, e eu vi de repente seus olhos se molharem”. A imagem estende no capítulo 2: “Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família” (NASSAR, 2009, pp. 7-9). Isto posto, podemos observar que o olho é metonímico de André, mas também a alma, sem deixar de ser, contudo, o olho da vigília da família: os significados, porém, ainda se estendem.

No terceiro capítulo, os olhos passam de caroços para “dois bagaços”, enquanto também os olhos do irmão Pedro ― relacionados aos da mãe ― passam a ser a imagem que traz a memória da estrutura familiar:

[...] me larguei na beira da cama, os olhos baixos, dois bagaços, e foram seus olhos plenos de luz em cima de mim, não tenho dúvida, que me fizeram envenenado (...) componha gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa", mas me contive, achando que exortá-lo, além de inútil, seria uma tolice, e, sem dar por isso, caí pensando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais silenciosas da tarde (NASSAR, 2009, p.9) (grifo nosso).

Os olhos têm a função de apresentar quem são os elementos que passam a compor o cenário da tragédia que começa a se desenrolar: os olhos de André são bagaços e os do irmão, cheios de luz; a mãe evocada é a mãe do carinho ― visto como nefasto para ele, pois lhe solicita a confissão:

ali onde o carinho e as apreensões de uma família inteira se escondiam por trás, e pensei quando se abria em vago instante a porta do meu quarto ressurgindo um vulto maternal e quase aflito "não fique assim na cama, coração, não deixe sua mãe sofrer, fale comigo" (NASSAR, 2009, p. 15).

É dessa relação dos olhos do irmão que evocam os olhos da mãe que André prenuncia o início do seu jorro verborrágico para contar sua saída da fazenda e a estrutura polifônica que recupera citações em discurso direto entremeadas à voz do narrador, aproximando o leitor dos ‘fantasmas’ familiares que preenchem seu próprio discurso/confissão.

O símbolo de Paul Ricoeur

Paul Ricoeur é responsável por uma hermenêutica que foi se estruturando, ao longo de sua carreira, a partir da tentativa de compreensão do Mal através dos símbolos do Mal e dos mitos ― pensadas como narrativa de origem ―, nos quais o filósofo identificava acessos privilegiados à ideia de mal, haja vista que são “as invenções linguísticas e narrativas que os homens elaboram para tentar converter em sentido(s) o real que encontram e que os submerge” (GAGNEBIN, 1997, p.1). As duas questões que se sobressaem na hermenêutica ricoeuriana são a não-soberania do sujeito consciente e sua relação simbólica e cultural com o que não é totalizando, o outro, que inevitavelmente escapa.

Se o humano não é soberano sobre sua consciência ― é o que Ricoeur denomina de Cogito Ferido2 ― a questão humana está na constante zona da imperfeição, de onde, inclusive, é possível emergir o mal, que chega até nós pelos seus símbolos. Lavoura Arcaica é uma narrativa em que o Mal nos é apresentado incansável e freneticamente, e ― cremos ― mais por isso que pelo desejo meramente estético do autor ― o romance precisa ser altamente simbólico porque é um romance de confissão da culpa, ainda que personagem não a assuma.

Já foi dito que cremos que a prosa poética do autor talvez tenha sido a responsável pela limitação da crítica que constantemente voltava aos mesmos motes dos romances, queremos acrescentar ainda que talvez essa capacidade de escrita também seja a responsável por apresentar o Mal por meio de símbolos, os quais podem, eventualmente, passar despercebidos.

Em prefácio da tradução portuguesa da Simbólica do Mal, Maria Luísa Portocarrero refere-se à Simbólica do Mal (segundo volume de Finitude e Culpabilidade, iniciado pelo Homem Falível) como “segunda revolução copernicana do filosofar, na exata medida em que o seu grande intuito é mostrar ao sujeito moderno que ele deixou de ser o centro de que parte a reflexão filosófica” (PORTOCARRERO, 2013, p.7)3. É na conclusão desse estudo fundamental sobre o Mal que Ricoeur apresenta sua proposição sobre o símbolo: “o símbolo dá que pensar”, sintetizando seu caminho argumentativo de todo o trabalho filosófico.

Ricoeur apresenta nessa conclusão um ponto que nos é absolutamente fundamental: “já não é possível obter uma transcrição filosófica direta do simbolismo religioso do mal, sob pena de regressar a uma interpretação de caráter alegórico dos símbolos e dos mitos” (RICOEUR, 2013, P.306). Para isso, Ricoeur propõe três zonas de emergência dos símbolos: uma zona de emergência ligada aos ritos e mitos: o símbolo como linguagem do sagrado; uma zona de emergência noturna, onírica e zona de emergência da imagem poética.

Explica-nos, em trabalho sobre Ricoeur, Suzi Sperber4, que “as reflexões sobre a primeira zona partem dos conceitos de Mircea Eliade (e Dumézil). A segunda, de Freud e Jung, e a terceira, de Bachelard”. Ricoeur, ainda que distingua as três zonas, evidencia como estão todas necessariamente imbricadas na construção da “imagem-verbo” que é o símbolo. Posteriormente, Ricoeur define os símbolos enquanto signos e faz a diferenciação entre signo símbolo e signo técnico: aqueles seriam opacos, pois seu sentido primeiro, o literal, visa um segundo sentido que só é dado pelo primeiro e é constituído nele.

A relação entre o sentido literal e o sentido simbólico permite que Ricoeur diferencie símbolo de alegoria. Na alegoria, há uma maior independência entre o sentido literal e o sentido simbólico, de modo que este possa ser atingido diretamente. É como se pensássemos, no caso de Raduan Nassar, na imagem óbvia que associa o olho à alma. Para Ricoeur, a alegoria funciona mais como um mecanismo da hermenêutica do que uma criação espontânea de signos, enquanto o símbolo é anterior à própria hermenêutica.

Nesse sentido, enquanto a alegoria permite uma tradução do sentido, o símbolo daria o sentido de forma mais transparente. O olho é um símbolo fundamental em LA, e ele ‘dá a pensar’: se por um lado ele faz associação óbvia com a alma, por outro, ele é parte da construção da natureza das personagens e oscila conforme o romance o faz.

Nos capítulos que se seguem, duas personagens com quem André se relaciona afetivo-sexualmente têm seus olhos destacados: Sudanesa, a cabra com quem se envolve sexualmente e cujos olhos têm uma caracterização bastante humanizada, e Lula, o irmão caçula que rejeita a volta de André e com quem este se envolve sexualmente no retorno

[...] a primeira vez que vi Sudanesa com meus olhos enfermiços foi num fim de tarde em que eu a trouxe para fora, ali entre os arbustos floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã (...) tinha nos olhos bem imprimidos dois traços de tristeza, cílios longos e negros, era nessa postura mística uma cabra predestinada (NASSAR, 2009, p.18)

[...] (embora sugerindo discretamente que meus passos fossem um mau exemplo pró Lula, o caçula, cujos olhos sempre estiveram mais perto de mim), meu irmão pôs um sopro quente na sua prece (NASSAR, 2009, p.22)

Ao trabalhar o símbolo a partir do próprio símbolo e considerá-lo para além do seu sentido, Ricoeur procura criar uma filosofia do símbolo que se diferencia da interpretação alegorizante, ou seja, remonta ao título, permitindo o pensar sem uma interpretação direta e evidente do segundo sentido de um signo simbólico. A partir desse ponto de seu artigo, Ricoeur passa a trabalhar a filosofia do símbolo em sua relação com a autoconsciência humana.

Ricoeur contesta o Cogito e a possibilidade de autoconsciência, pois o símbolo não está tão evidente e não é totalizante. Sendo o símbolo uma representação, pensar e logo existir tornam-se falhos, ou, ao menos, incapazes de compreender a existência humana. Ricoeur ainda afirma que o símbolo escancara um domínio de experiências que nem sempre podem ser completamente apre(e)ndidas pelo homem.

Com isso em mente, lembramos que André é um narrador que fala de si o tempo todo e o faz a partir das mais diferentes metáforas. É um narrador que se propõe como o oposto daquilo que rejeita na família que abandonou: é contra a tradição, é virulento, endemoniado, diferente do pai. As alegorias começam no nome: Pedro é o irmão mais velho, Pedro, aquele sobre o qual se ergue, inclusive, a crença do pai. André gosta da terra úmida, das folhas, da natureza. Pedro é associado ao cal: “(ele cumpria a sublime missão de devolver o filho tresmalhado ao seio da família) a voz de meu irmão, calma e serena como convinha, era uma oração que ele dizia quando começou a falar (era o meu pai) da cal e das pedras da nossa catedral.” (NASSAR, 2009, p.10).

André é personagem do cogito ferido e se comunica por meio de símbolos para poder se compreender e compreender às demais alteridades ― todas circunscritas dentro da própria casa, a lavoura: a movimentação simbólica é fundamental na construção dessa personagem. O ponto a que recorre sempre é, como já dito, a natureza. A sua sexualidade, uma das marcas mais intensas e viscerais de sua personalidade, precisa ser satisfeita com e a partir da natureza: em um primeiro momento, violenta Sudanesa, a cabra, com quem acredita viver um romance:

[...] era uma cabra faceira, era uma cabra de brincos, tinha um rabo pequeno que era um pedaço de mola revestido de boa cerda, tão reflexivo ao toque leve, tão sensitivo ao carinho sutil e mais suave de um dedo; (...) e era então uma cabra de pedra, tinha nos olhos bem imprimidos dois traços de tristeza, cílios longos e negros, era nessa postura mística uma cabra predestinada; Sudanesa foi trazida à fazenda para misturar seu sangue, veio porém coberta, veio pedindo cuidados especiais, e, nesse tempo, adolescente tímido, dei os primeiros passos fora do meu recolhimento: saí da minha vadiagem e, sacrílego, me nomeei seu pastor lírico: aprimorei suas formas, dei brilho ao pêlo, dei-lhe colares de flores, enrolei no seu pescoço longos metros de cipó-desão-caetano, com seus frutos berrantes e pendentes como se fossem sinos; Schuda, paciente, mais generosa, quando uma haste mais túmida, misteriosa e lúbrica, buscava no intercurso o concurso do seu corpo. (NASSAR, 2009, p.18).

Outra característica do discurso de André, já evidente nessa passagem, é o jogo de animalização e personificação das personagens. Schuda é caracterizada com diversos adjetivos geralmente atribuídos a humanos, como faceira e generosa. Além disso, um movimento já se apresenta nessa passagem ― e se repetirá insistentemente ao longo do romance -, isto é, André apresenta todos os seus próprios movimentos como reações a ação do outro: Sudanesa pedira seus carinhos especiais, que, para ele, se traduziam em um relacionamento sexual. Mesmo para se referir à penetração, André apela à alegoria fálica: haste mais túmida, misteriosa e lúbrica. A passagem vem, além disso, carregada de rima e ritmo: “buscava no intercurso o concurso do seu corpo”.

É nessa construção ritmada que o romance se constrói de maneira que a violência seja amenizada. Esse movimento também se dá pelo tom de vitimização construído por André, desde os primeiros capítulos. A vítima, afinal, não pode ser algoz. Paul Ricoeur tece uma importante reflexão sobre a questão do mal que pode nortear a análise que queremos levar adiante a respeito de LA. Para Ricoeur, o mal sofrido não tem as mesmas características que o mal cometido, pois o mal cometido (mal moral) gera a necessidade de auto-punição, algo muito mais grave e violento do que os infortúnios de sofrer o mal vindo de outra direção, isto é, de fora.

No rigor do termo, o mal moral ― o pecado em linguagem religiosa ― designa o que torna a ação humana objeto de imputação de acusação e de repreensão. A imputação consiste em consignar a um sujeito responsável uma ação suscetível de apreciação moral. A acusação caracteriza a própria ação como violação do código ético dominante na comunidade considerada. A repreensão designa o juízo de condenação, em virtude do qual o autor da ação é declarado culpado e merece ser punido. É aqui que o mal interfere no sofrimento, na medida em que a punição é um sofrimento infligido (RICOEUR, 1988, p. 23)

Tais técnicas "de amenização" ou de "eufemização" (o termo é de Gaston Bachelard) da violência perpassam o conjunto da narrativa, e de certa forma sustentam nela o caráter suportável da representação do mal. Apenas ao final, com o acontecimento do sacrifício de Ana, tem-se a dimensão mais assustadora da questão: de que o grau máximo de violência do mal está em cometê-lo. Uma violência muitas vezes ocultada pela problemática mais difusa do mal sofrido. Talvez por isso mesmo, no romance de Raduan Nassar, a verdade última do mal coincida com o fim da narrativa, o qual se torna, neste sentido, o ápice do drama do mal.

Ao discutir com a irmã Ana após o incesto, André repetirá “não há pecado aqui”, mas muito antes, já nas primeiras páginas, André transfere toda a culpa: à família, à estrutura, à mãe, à irmã, à cabra. André sempre se define por contraste: ele é o que a família não é; assim, se a família ― e especialmente o Pai ― é o mal, o mal ele não pode ser. Pedro, porém, vem com o discurso que faz com que André preveja uma ― injusta, a seus olhos ― culpabilização do irmão mais novo:

[...] meu irmão pôs um sopro quente na sua prece pra me lembrar que havia mais força no perdão do que na ofensa e mais força no reparo do que no erro deixando claro que deveriam ser estes o anverso e o reverso sublimes do bom caráter, cabendo, por ocasião de minha volta, o primeiro à família, e o reparo do meu erro cabendo a mim, o filho desgarrado (NASSAR, 2009, p.22)

A família, diz Pedro, desmorona com a fuga de André: “quando entrei no teu quarto e abri o guarda-roupa e puxei as gavetas vazias, só então é que compreendi, como irmão mais velho, o alcance do que se passava: tinha começado a desunião da família" (NASSAR, 2009, p.24). André, porém, não crê que merece ser punido e aqui começa a construir uma das várias razões que o tornaram como é. Todas as ações remontam a algo mais forte que ele e que, portanto, o realocam no lugar de vítima. A acusação que começa no capítulo 5 e se estende ao longo do romance é acusação do Sagrado.

[...] eu poderia era dizer "a nossa desunião começou muito mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer outro em casa" eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora de especular sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o consumo sacramental da carne e do sangue, investigando a volúpia e os tremores da devoção... (NASSAR, 2009, p. 24).

Em seguida, justifica sua postura como se fosse algo advindo de uma doença, desenvolvida numa descrição que oscila entre o sagrado e o biológico, a epilepsia e a possessão:

"eu sou um epilético" fui explodindo, convulsionado mais do que nunca pelo fluxo violento que me corria o sangue "um epilético" eu berrava e soluçava dentro de mim, sabendo que atirava numa suprema aventura ao chão, descarnando as palmas, o jarro da minha velha identidade elaborado com o barro das minhas próprias mãos, e lançando nesse chão de cacos, caído de boca num acesso louco eu fui gritando "você tem um irmão epilético, fique sabendo, volte agora pra casa e faça essa revelação, volte agora e você verá que as portas e janelas lá de casa hão de bater com essa ventania ao se fecharem e que vocês, homens da família, carregando a pesada caixa de ferramentas do pai, circundarão por fora a casa encapuzados, martelando e pregando com violência as tábuas em cruz contra as folhas das janelas, e que nossas irmãs de temperamento mediterrâneo e vestidas de negro hão de correr esvoaçantes pela casa em luto e será um coro de uivos soluços e suspiros nessa dança familiar trancafiada e uma revoada de lenços pra cobrir os rostos e chorando e exaustas elas hão de amontoar-se num só canto e você grite cada vez mais alto "nosso irmão é um epilético, um convulso, um possesso" (NASSAR, 2009, pp. 39-40).

Esse trecho revela uma marca fundamental sobre a autoimagem de André: ele não se vê como um dos ‘homens da família’; ele é parte de um mal inevitável sofrido, sobre o qual ele pensa não ter qualquer controle (“ainda que vocês não deem conta da trama canhota que me enredou”). André precisa se definir pelo contraste em relação ao pai, que tanto acusa de ser o Mal em si. O fervor religioso que o toma é a primeira manifestação do Sagrado como a razão do Mal, depois o vírus, depois o demônio: “O que faz dele um diferente?" e você ouvirá, comprimido assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa amorfa te fará "traz o demônio no corpo", isto é, a trama que enreda André e que o faz precisar fugir é estrutural, está em tudo: na família, no Sagrado, no Pai, na Mãe, menos nele enquanto sujeito das ações.

A mãe é a primeira imagem do feminino que aparece como culpada: do lado esquerdo da mesa, ela carrega o lado funesto da família, em contraponto ao patriarca “se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”. É dela que provém todo o carinho e a relação com a tradição ancestral, através da “língua materna”, o árabe:

E o meu suposto recuo na discussão com meu pai logo recebia uma segunda recompensa: minha cabeça foi de repente tomada pelas mãos de minha mãe, que se encontrava já então atrás da minha cadeira; me entreguei feito menina à pressão daqueles dedos grossos que me apertavam uma das faces contra o repouso antigo do seu seio; curvando-se, ela amassou depois seus olhos, o nariz e a boca, enquanto cheirava ruidosamente meus cabelos, espalhando ali, em língua estranha, as palavras ternas com que sempre me brindara desde criança: “meus olhos”, “meu coração”, “meu cordeiro” (NASSAR, 2009, p.170).

André acredita que o Pai é o Mal. André, inclusive, parece se autoflagelar, negando o respeito e o amor que o pai teria por ele. No entanto, a razão da existência de toda narrativa é, justamente, o desejo do pai de que André volte à casa: André é nada senão o filho pródigo. Mesmo desprezando supostamente a hierarquia familiar, André é parte dessa hierarquia. Desde o avô, os homens da família de André parecem todos iguais:

(Em memória do avô, faço este registro: ao sol e às chuvas e aos ventos, assim como a outras manifestações da natureza que faziam vingar ou destruir nossa lavoura, o avô, ao contrário dos discernimentos promíscuos do pai ― em que apareciam enxertos de várias geografias, respondia sempre com um arroto toso que valia por todas as ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do pai: “Maktub”) (NASSAR, 2009, p.89).

O desejo de ser amado como deseja ser amado leva André, como uma criança, a fugir de casa. A memória da família sofrendo causa prazer em André e isso fica especialmente evidente quando o discurso do irmão envereda na tentativa de levar André de volta, convencendo-o do quanto ele era amado, especialmente por Ana.

... mas ninguém em casa mudou tanto como Ana" ele disse "foi só você partir e ela se fechou em preces na capela, quando não anda perdida num canto mais recolhido do bosque ou meio escondida, de um jeito estranho, lá pêlos lados da casa velha; ninguém em casa consegue tirar nossa irmã do seu piedoso mutismo; trazendo a cabeça sempre coberta por uma mantilha, é assim que Ana, pés descalços, feito sonâmbula, passa o dia vagueando pela fazenda; ninguém lá em casa nos preocupa tanto (NASSAR, 2009, pp.113-114).

Ana sofre e André regozija. Ana, a irmã com quem André se relaciona, é atribuída, ainda que de forma enviesada, ao Mal, aquele fruto do feminino, ao Mal que remonta aos arquétipos mais tradicionais do patriarcado: o da mulher-feiticeira-sedutora-cigana.

[...] e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento (...) acima da cabeça enquanto serpenteava o corpo e sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação (NASSAR, 2009, pp. 186-187)

Tudo que sabemos de Ana vem da fala de André. Sua tentativa incansável de não se culpar ― seja pelo incesto, pela morte da irmã-amante, seja pela sua fuga ― sempre o direciona ao outro. Na ocasião em que acontece o relacionamento incestuoso, Ana, assustada, parece fugir do irmão: prende-se numa capela onde chora copiosamente. Tendo sido rejeitado, André diz à irmã que o relacionamento entre eles era fruto de algo maior, grandioso, não podia ser visto como pecado, mas como um milagre:

[...] foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade, e a certeza supérflua e tão fundamental de um contar sempre com o outro no instante de alegria e nas horas de adversidade; foi um milagre, querida irmã, descobrirmos que somos tão conformes em nossos corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte em nossas memórias, sem trauma para a nossa história; foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites da nossa própria palavra, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família; foi um milagre, querida irmã (NASSAR, 2009, p.118).

Ana, todavia, não está convencida e segue sua prece, ignorando a fala de André. André lhe promete mudar de postura, dedicar-se mais à família e à Lavoura (parecer-se mais com o Pai, afinal). Nessa passagem, André projeta todas as características que julga absolutamente necessárias ao sucesso, todas elas confirmando um ponto de vista egoico sobre si ― e que destoa, em absoluto, da autoimagem que insiste em construir durante sua confissão, a de vítima: “eu que sou destro no manejo da foice e do forcado; sei ordenhar as vacas, sendo extremoso com os bezerros e muito gentil com suas mães quando os separo”.

Paul Ricoeur aponta em sua leitura sobre os símbolos primários do Mal que a interdição do culpado a ocupar os lugares sagrados e públicos é uma característica do símbolo da mancha: “exílio e morte tratam-se, portanto, de anulações do manchado e da mancha” (RICOEUR, 2013, p. 56). Ora, André se exila no quarto de pensão e se o faz é porque sente culpa, a despeito do fato de querer se construir como vítima das circunstâncias estruturais. Ana, sem dúvida, partilha dessa culpa advinda do incesto ― um tabu, como bem apontou Lévi-Strauss -, e seu exílio (ou morte simbólica) passa a ser o silêncio perpétuo que se impõe.

André, em seu discurso pós-incesto, quer comover a irmã, que fica imóvel:

[...]“Ana, me escute, já disse uma vez, mas torno a repetir: estou cansado, quero fazer parte e estar com todos, eu, o filho arredio, o eterno convalescente, o filho sobre o qual pesa na família a suspeita de ser um fruto diferente; saiba, querida irmã, que não é por princípio que me rebelo, nem por vontade que carrego a carranca de sempre, e a raiva que faz os seus traços ásperos, e nem é por escolha que me escondo, ou que vivo sonhando pesadelo como dizem: quero resgatar, querida irmã, o barro turvo desta máscara, eliminando dos olhos á faísca de demência que os incendeia (NASSAR, 2009, pp.124-125)

Ana, todavia, não se mexe. André diz que deseja mudar, cuidar da Lavoura, ter seu pedaço de luz no mundo, mas o que André quer é só convencer a irmã a amá-lo ― ele próprio quase crê na mentira que conta: “‘Ana, tudo começa no teu amor, ele é o núcleo, ele é a semente, o teu amor pra mim é o princípio do mundo’ eu fui dizendo numa insistência obsessiva, me fazendo crédulo, embora cansado dos meus gemidos, eu tinha os ossos perturbados!” (NASSAR, 2009, p.128). Sua incredulidade em si o faz retornar ao papel que lhe cai tão bem exercer, o de vítima: “que culpa temos nós se fomos duramente atingidos pelo vírus fatal dos afagos desmedidos?”.

André hesita, volta, insiste, cansa e assume: “mas Ana não me ouvia, estava clara a inutilidade de tudo o que eu dizia, estava claro também que eu esgotava todos os recursos com um propósito suspeito: ficar com a alma leve, disponível, que ameaças, quantos perigos!” (NASSAR, 2009, p.130). Seu propósito era ficar com a alma leve, a alma leve da culpa, a sensação de se sentir, enfim, a vítima do acaso solene do amor entre irmãos. André ameaça: “não serei piedoso, não tenho a tua fé, não reconheço os teus santos na adversidade" (NASSAR, 2009, p.130); para, enfim, devolver a responsabilidade que por um lapso de momento tomara para si:

[...] “como último recurso, querida Ana, te chamo ainda à simplicidade, te incito agora a responder só por reflexo e não por reflexão, te exorto a reconhecer comigo o fio atávico desta paixão: se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição" (NASSAR, 2009, pp.134-135)

Ameaçada a irmã, culpada a mãe, a imagem do pai volta como uma fatalidade pela austeridade: André não se opõe ao pai como julga, ele é a reprodução exata do patriarcal, violento e frágil, austero e cruel. André, o virulento, não assume a culpa de suas ações.

“[...] não tenho culpa desta chaga, deste cancro, desta ferida, não tenho culpa deste espinho, não tenho culpa desta intumescência, deste inchaço, desta purulência, não tenho culpa deste osso túrgido, e nem da gosma que vaza pelos meus poros, e nem deste visgo recôndito e maldito, não tenho culpa deste sol florido, desta chama alucinada, não tenho culpa do meu delírio (NASSAR, 2009, p.136)

A volta de André para a casa paterna não traz de volta o amor de Ana. O pai contesta sua fuga, ao que André tenta lhe explicar que não quer e não pode agir em conformidade com o que aprendera em casa. O pai lhe acha mudado, estranho, André retruca: “― Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente” (NASSAR, 2009, p.163). Afastada mais uma vez a possibilidade da culpa, André se prostra ao pai, prometendo-lhe submissão.

A volta de André, contudo, não traz de volta o amor de Ana ― que se refugia na capela com a sua chegada; muito menos do irmão Lula, com quem André, impossibilitado de dialogar, tem um ato incestuoso claramente forçado, André precisa dividir sua tormenta e culpa e traz Lula para “percorrer o caminho que leva da casa para a capela”.

― Que que você está fazendo, André? Não respondi ao protesto dúbio, sentindo cada vez mais confusa a súbita neblina de incenso que invadia o quarto, compondo giros, espiras e remoinhos, apagando ali as ressonâncias do trabalho animado e ruidoso em torno da mesa lá no pátio, a que alguns vizinhos acabavam de se juntar. Minha festa seria no dia seguinte, e, depois, eu tinha transferido só para a aurora o meu discernimento, sem contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que levava da casa para a capela. (NASSAR, 2009, p.180)

A festa de André se inicia. Ana, que não se encontra na festa, surge:

[...] foi assim que Ana, coberta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no corpo o círculo que dançava, introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante decadência, assombrando os olhares de espanto, suspendendo em cada boca o grito, (...) passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente (...) ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua sua peçonha (...) Ana, sempre mais ousada, mais petulante, inventou um novo lance alongando o braço, e, com graça calculada (que demônio mais versátil!) (NASSAR, 2009, p.188)

Ana aparece vestida com as peças de prostitutas que André trouxera consigo. A ela, André atribui todos os elementos possíveis para caracterizar a volúpia maligna, a luxúria - chegando a nomeá-la “demônio”. Ana precisa ser fatalmente sedutora e demoníaca para abarcar toda a culpa do relacionamento incestuoso em si. Ana, além disso, precisa ser a vítima ideal da ira patriarcal: uma mulher casta não pode ser o bode (a cabra) expiatório de um homem que, esse sim, não pode ser culpado. É André que foge, desordena a casa, briga com o pai, volta e traz a caixa de elementos externos para dentro do seio familiar, mas é Ana quem paga o preço:

[...] o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus olhos!) (NASSAR, 2009, pp. 190-191)

Morre a dançarina oriental: o filicídio é um feminicídio. Seguem-se as palavras de lamúria: pobre irmão! Pobre pai! Pobre Família! Não há nenhuma menção a Ana, nada de “pobre Ana”. O capítulo derradeiro começa com “em memória de meu pai”. Não há mais Ana depois de sua morte, pois ela cumpriu seu destino de mulher: propriedade privada do pai e do irmão, violentamente morta como expiação do crime do incesto que André não assume, mas desvela pelo tom confessional do romance.

Paul Ricoeur aponta que ser culpado “significa estar pronto para receber o castigo e constituir-se como alvo do castigo” (RICOEUR, 2013, p.119) e André não está pronto para receber o castigo, por isso é incapaz de assumir a sua culpabilidade diante da morte da irmã. Essa culpa, porém, tem caráter dúbio: reconhecer o interdito, aponta Ricoeur, é se reconhecer culpado. André sabe que transgrediu a lei ― do pai ― e atingiu sua posse: Ana. Tomar para si a irmã é mais do que se envolver amorosamente com quem não deveria, é subverter a estrutura familiar que indica, desde o início, que o pai é a Lei e que André não pode (e, enfim, não quer) fazer nada além de sucumbir a isso.

A vingança é fundamental para que a lei persevere, pois a “própria ideia de vingança esconde outra coisa, vingar não é só destruir mas, ao destruir, reestabelecer. Através do temor de ser atingido, aniquilado, apercebe-se do movimento mediante o qual a ordem ― uma ordem, qualquer que ela seja ― é restaurada” (RICOEUR, 2013, p.59). A vingança, porém, não se dá sobre quem tentou tomar o poder paterno, mas sobre o objeto-símbolo desse poder: a mulher.

Considerações Finais

Convencido da qualidade literária desse romance, de linguagem tão inteligentemente trabalhada, o presente artigo pretendia desvelar um lado perverso da prosa-poética e dos símbolos ― tão enredados ― de LA: a violência desproporcional com o feminino, especialmente na figura de Ana. O fato é que André tentou tolher a propriedade privada do pai, a filha, que é parte dos domínios da lavoura. A irmã, retirada do pai via incesto, é a morte do pai da horda e a tentativa de tomada do poder. Ao contrário da narrativa construída por André ― de vítima do terror patriarcal ―, ele não pretende mudar a ordem, mas impor à irmã que esta saia do âmbito paterno de poder, para estar sob o seu. Como é incapaz de compreender a própria covardia - denunciada pelo seu irmão, Lula ―, André repreende Ana, da maneira mais covarde, ameaçando a própria morte. Como é incapaz de se matar, e menos ainda de matar o pai da horda, a irmã passa a ser o elemento de sacrifício.

André não tenta lutar, foge. André não desestrutura a ordem familiar, só a reproduz em novo contexto. Se, por um lado, identifica no pai algo que despreza, como o autoritarismo e a violência, não hesita, em contrapartida, em reproduzir seu comportamento. Além de o enredo apontar que a discrepância de André com o pai é uma ilusão criada por aquele, isso se confirma pela própria estrutura textual: sempre circular, sempre memorial, sempre confusa e sob forma de confissão. Tudo no livro se repete, as frases, os parágrafos, um capítulo inteiro, mas também a violência ― passada de pai para filho.

Porém, é André que conta sua história, ação que lhe permite configurar a narrativa ― e a sua identidade ― da maneira que julga ser a mais adequada, isto é, naquela que ocupa a posição de vítima. A história de André, porém, é patriarcal e hierárquica e remonta a uma tradição que alcança toda a história de uma civilização e é perpetuada cotidianamente, afinal, “o gado sempre vai ao poço”.

Referências

ABATI, Hugo Marcelo Fuzeti. Da Lavoura Arcaica: Fortuna crítica, análise e interpretação da obra de Raduan Nassar. 1999. 186 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1999.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur. Estud. av. vol.11 no.30 São Paulo May/Aug. 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141997000200016

HATOUM, Miltom. Confluências. In: Cadernos de Literatura Brasileira: Raduan Nassar. Instituto Moreira Salles: São Paulo, v. 2, n. 1, p.19-21, set. 1996. Semestral.

MOISÉS, Leila. Da cólera ao silêncio (ensaio). Cadernos de Literatura Brasileira: Raduan Nassar. Instituto Moreira Salles: São Paulo, v. 2, n. 1, p.19-21, set. 1996. Semestral.

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3.ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 2009.

RICOEUR, Paul. O Mal: um desafio à filosofia e à teologia. Trad. Maria da Piedade Eça de Almeida. Campinas: Papirus, 1988. p.23.

RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal. Trad. Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Ed. 70, 2013.

SPERBER, Suzi Frankl. A noção de símbolo, passando pelo mito: uma reflexão a partir de Paul Ricoeur. Rio de Janeiro: Multitextos PUC-Rio ―CTCH - ano III, (CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS)


  1. Doravante, LA.

  2. Em oposição ao cogito cartesiano.

  3. Prefácio à edição portuguesa de “Simbólica do Mal”. Lisboa: Ed. 70, 2013.

  4. SPERBER, Suzi Frankl. A noção de símbolo, passando pelo mito: uma reflexão a partir de Paul Ricoeur. Rio de Janeiro: Multitextos PUC-Rio –CTCH - ano III, (CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS)