Sans Soleil de Chris Marker como projeto fotográfico
Elaine Zeranze
Doutora em Literatura Comparada / Universidade Federal do Rio de Janeiro
elainezeranze@gmail.com
Resumo: O presente artigo busca analisar o documentário Sans Soleil de Chris Marker de modo a enxergar a montagem do filme como um projeto fotográfico. Para tal, foi preciso olhar para o que é fragmento na montagem do cineasta. Sans Soleil monta de modo alegórico o mosaico da memória do cineasta através de um olhar para as ruínas da história do século XX, somado aos fragmentos de outros filmes e dos recolhidos pelas viagens do narrador Sandor Krasna ao Japão e Guiné-Bissau.
Palavras-chave: fotografia; alegoria; Teoria Crítica; Chris Marker; Sans Soleil
Resumen: El presente artículo busca analizar la película documental Sans Soleil de Chris Marker para ver el montaje de la película como un proyecto fotográfico. Para este propósito fue necesario mirar lo que es fragmento en el montaje del cineasta. Sans Soleil monta de modo alegórico el mosaico de la memoria del cineasta a través de una mirada a las ruinas de la historia del siglo XX, sumado a los fragmentos de otras películas y de los recogidos en los viajes del narrador Sandor Krasna a Japón y Guinea-Bissau.
Palabras clave: fotografía; alegoría; Teoría Crítica; Chris Marker; Sans Soleil
“On traque, on vise, on tire et — clac! au lieu d’un mort, on fait un éternel.” (Si J’avais quatre dromedaires)
O ano de 1839 é um marco na história da humanidade, pois, a partir deste ano, o modo de ver e se apropriar do mundo é transformado para sempre. Daguerre apresenta a primeira imagem de um mundo prestes a se inventariar. Até 1988 a câmara escura foi evoluindo, saindo das mãos de alguns poucos retratistas para ganhar o espaço doméstico. A Kodak lança o modelo automático onde o único trabalho seria o de escolher o foco e apertar o botão. A partir daí tem início a necessidade obsessiva de apropriar-se das experiências por intermédio da câmera fotográfica. “Colecionar fotos é colecionar o mundo” diz Susan Sontag (2003). As primeiras reações diante das primeiras imagens reproduzidas denotavam um certo temor. A fotografia rouba a alma das pessoas, diziam. Pensando no extremo a que chega hoje a imagem fotográfica, pode-se acreditar que aqueles primeiros contatos com a câmera proporcionaram uma espécie de presságio. Ludwig Feuerbach (1988) em 1843, ao prefaciar a segunda edição do livro A essência do cristianismo, defende-se da estupefação religiosa a respeito de sua análise do cristianismo, pautando-se na transformação de uma época que se volta para o mundo de aparências. Sobre isso diz Feuerbach: “Mas certamente para esta época que prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a fantasia à realidade, a aparência à essência, é esta transformação, exatamente por ser uma desilusão, uma destruição absoluta.” (p. 40)
Feuerbach não pensava na câmera fotográfica ao definir a modernidade como época do simulacro. De fato, o desejo obsceno de mediar todas as experiências por este aparato, a enxurrada de fotografias que uma única pessoa capta em um simples evento faz refletir sobre quem predomina, se o ser reproduzido ou a reprodução?
Num outro caso, que leva a reprodução desmedida para um assunto bem delicado, “o vasto catálogo fotográfico da desgraça e da injustiça em todo mundo deu a todos certa familiaridade com a atrocidade, levando o horrível a permanecer mais comum” (SONTAG, 2003, p. 31) Na medida em que somos acometidos pela síndrome do excesso de imagens, a primeira profecia a respeito da fotografia se cumpre. Uma vez que a captura técnica impera sobre o ser e a experiência, mata-se a alma.
Todavia, duas coisas são certas quando se trata de fotografia, a primeira é a fascinação que essa fração da realidade é capaz de suscitar até hoje. A segunda é seu caráter democrático. Diferente da pintura, tudo é digno de ser reproduzido pela objetiva, desde uma paisagem bucólica aos arranha-céus das metrópoles, de animais selvagens ao maquinário de uma fábrica, da cobertura de uma guerra à pieguice do casamento paramentado. Nada escapa ao desejo da lente da objetiva. Mesmo quando o cinema aparece como promessa de capturar o movimento, ainda assim a fotografia não perde sua popularidade. Isso se deve ao seu caráter extremamente versátil e portátil. Diferente de um filme, uma fotografia pode adornar uma sala carregando o espaço de intimidade e personalidade ou documentando imageticamente uma matéria no jornal. Serve também de prova de crime, embora hoje seja questionável, devido à facilidade de falseamento. Sem esquecer que para se fazer um filme, ainda que breve, de poucos minutos, é preciso que haja uma narrativa que seja interessante apreender, enquanto a imagem fotográfica só precisa de uma fração de segundo.
É oportuno ressaltar que tanto a fotografia quanto o cinema fazem parte de um tempo marcado pelo apetite do domínio. Para Sontag (idem), “a necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos hoje estão viciados.” (p. 34). Somado à tarefa alienada da modernidade de querer transformar tudo em bem de consumo, inclusive aquilo que até então era impensável qualificar como tal. A arte é um grande exemplo, a reprodução técnica, seja pela fotografia, pelo cinema ou pela imprensa, cumpre a promessa de tornar toda a arte passível de apropriação. A fotografia abre terreno para a coleção e aproximação da obra de arte com o homem, sendo a coleção talvez a sua faceta mais cruel, pois tira o foco da qualidade para a quantidade e entra-se novamente na síndrome dos excessos.
É importante situar no tempo o instante em que a arte passa a representar objeto de desejo, peça a ser consumida e exibida desde museus a cômodos particulares. A obra de arte entra na mesma engrenagem da máquina capitalista de consumo, na mesma época em que o homem acena ao se despedir de sua humanidade nas funções exaustivas, funcionando como autômato no procedimento fabril. Há nesse processo um intercâmbio. A máquina usurpa o lugar de criação artística e o homem ocupa o lugar da máquina na produção em série das fábricas. Em comum, máquina e homem são meros dispositivos mediadores da (re)produção em série.
O ator de cinema reafirma a sua humanidade diante da máquina, diz Benjamin (1996). A mesma humanidade perdida nos balcões e nas fábricas pelo proletariado num extenuante dia de trabalho. Para ele, o cinema funciona como uma espécie de vingança que o intérprete cumpre em nome de todos. Não é só pelo papel de se afirmar diante da máquina, é, sobretudo, por se valer da máquina para realizar esse propósito. Nessa direção é possível enxergar um filete de luz no espaço dialético a ser ocupado pela indústria cinematográfica, como bem enxergou Walter Benjamin.
Por outro viés, pensando na direção de Adorno e Horkheimer, não é possível avistar uma saída para a indústria cinematográfica que não dê em mais alienação e regressão. Para os críticos da Escola de Frankfurt, assim como o rádio, o cinema não precisa mais se apresentar como arte, porque assim como se define como indústria, age como tal em todas as suas acepções. A começar pelo capital alcançado nas bilheterias, que respeita a lógica capitalista de exploração. Conquanto um grande quantitativo humano participe da produção de um filme, as grandes cifras irão para uma minoria que detém seus direitos.
Se por um lado existe a exploração da mão de obra e acumulação de capital por um grupo restrito, pelo outro lado da tela o que temos é produção em série, padronização e disseminação da necessidade de consumo. Os críticos da indústria cultural não permitem sequer uma brecha que não caia na lógica do mercado, não se salvam nem os ditos filmes de categoria A, que possuem como público um grupo seleto e mais erudito. As categorias A e B, contudo, representam apenas a “classificação, organização e computação estatística dos consumidores” (Adorno e Horkneimer, 1985, p. 101).
A dialética negativa de Adorno é justa, ainda hoje, quando é possível observar os resultados alcançados pela indústria cultural, que projeta a padronização da vida em todas as suas manifestações. Todavia, este pensamento é sufocante e condena ao ostracismo aqueles que a repelem. Seu ensaio é de altíssimo valor no que tange ao pensamento crítico, mas, levado às últimas consequências, desemboca no pessimismo e na imobilidade. Se há algo que é próprio do homem e o difere dos outros animais é a sua capacidade de criação. A indústria cultural visa justamente a impedir essa capacidade de movimento criativo do homem quando o joga nas roldanas da máquina de produção em série. Mas é preciso procurá-la, ainda que em movimentos tímidos ou suspiros. Tanto no movimento criativo da vida quanto da arte.
Chris Marker entra no espaço dialético imaginado por Walter Benjamin e embora o cineasta demonstre ser um grande entusiasta das novas mídias, a crítica da ideia de progresso vinculada à tecnologia não está alheia em suas obras. Desde Lettre de Sibérie (1957) já demonstrava uma preocupação nessa direção ao denunciar o caráter manipulador das imagens reproduzidas tecnologicamente. O que muitas vezes passa despercebido aos espectadores mais distraídos ou como uma linha de força menor dentro da obra, devido ao tom cômico que confere a essas cenas.
É em Lettre de Sibérie que Marker traz à tona uma forte crítica aos documentários que se julgam diretos e isentos, quando, na verdade, suas posições ideológicas são muito bem demarcadas. A crítica está presente na cena em que filma um operário em Yakutsky. Às imagens, acompanham os comentários, todos em tom espirituoso, que vão desde particularidades físicas até o exagero diante de uma possível posição política deste homem. E faz isso no auge do conflito da Guerra Fria, quando os ânimos tanto da direita capitalista quanto da esquerda revolucionária estão exaltados. O chiste vem da crença do diretor de que as coisas mais sérias devem ser ditas das formas mais cômicas.
Alguns anos depois, no curta La Jetée (1962), Chris Marker mostra a face mais nefasta da técnica. Agora, com tom extremamente sóbrio, devido ao assunto demasiado delicado e difícil, mostra os subterrâneos de Paris como alegoria dos campos de concentração e experiências nazistas, acompanhado pelo sentimento de medo e incerteza que paira sobre o filme, representando o temor legítimo diante de uma possível catástrofe nuclear.
Contudo, o objeto de análise deste artigo é o documentário Sans Soleil (1982), onde a crítica se encontra ainda mais cifrada e misturada com um aparente e, até certo ponto, real elogio à técnica. Embora em muitos momentos faça uso da figura da ironia em seu discurso, é possível notar uma ponta de excitação diante da sua nova descoberta, e é na engenharia moderna tão recente e ao mesmo tempo já tão fundida ao cotidiano moderno, o Personal Computer, que Marker encontra o sintetizador, um programa atual à época e que marca os anos oitenta com um ar de ficção científica. O programa tem a capacidade de transformar imagens em sons, além de converter qualquer música em um som metálico e eletrônico. Na tela a imagem fica como um espectro em escalas monocromáticas. Marker trata com o programa algumas imagens do filme, como as da manifestação no aeroporto de Narita e, para não perder o hábito, imagens de gatos e corujas, como é possível visualizar nas seguinte figuras:
As imagens sintetizadas são creditadas a Hayao Yamaneko, um de seus alter egos justificado justamente pelo uso ainda primitivo de um programa que acabara de conhecer, o Synthétiseur d'image EMS Spectre. “Se não podemos mudar as imagens do passado, mudemos a do presente”, diz Sandor Krasna referindo-se a essas imagens convertidas em sombras. O sintetizador pode ser interpretado como alegoria do próprio filme, que trata a história de maneira enviesada, sendo suas imagens apenas espectros cuja possível nitidez irá depender do espectador. As imagens de Sans Soleil, neste nível de compreensão, funcionam como gatilho para despertar, através da relação de semelhança, a memória do espectador, funcionando, na realidade, como analogia.
Voltando à questão da crítica à tecnologia, Marker, na verdade, a direciona ao homem e ao manejo que faz desse aparato do que propriamente à técnica em si. É possível notar essa perspectiva, partindo do princípio do próprio filme e das possibilidades abertas para ele pela tecnologia (sem contar sua própria existência), que vai da manipulação ao esclarecimento, como vimos em Lettre de Sibérie, da catástrofe à salvação da humanidade em La Jetée e do esquecimento à oportunidade de se reescrever a História em Sans Soleil.
Embora o sintetizador ocupe um lugar importante na construção do sentido em Sans Soleil, há ainda outras engenhocas tecnológicas que entram no jogo. Entretanto, dentre as tecnologias modernas que formam o corpo do filme, há aquela que ocupa maior destaque, e não me refiro ao aparato cinematográfico. A técnica que noto predominar em Sans Soleil remonta aos primórdios do cinema e surge na era pré-moderna, quando ainda era possível - segundo Walter Benjamin, a propósito de suas primeiras manifestações- respirar a aura de uma obra produzida tecnicamente. Me refiro à fotografia, que ao longo dos tantos anos de existência sofreu modificações sensíveis/técnicas e sensoriais, não guardando qualquer semelhança com os primeiros daguerreótipos, pensando na fotografia digital contemporânea. Na verdade, o modelo primitivo está, hoje, mais próximo da pintura que propriamente da nossa concepção atual de fotografia. Não falo apenas da lâmina singular para a imagem virtual, mas, sobretudo, da sua capacidade desmesurada de inventariar o mundo. Se por um lado Krakauer (2009) sentencia que a humanidade ficará cega quando tiver todos os seus cantos fotografados, por outro lado temos Sans Soleil que vai justo no sentido oposto, impedindo a cegueira da história. No entanto, sempre vale lembrar do olhar de viés e das imagens prosaicas que compõem o filme. Bem distante da câmera frenética em capturar todas as imagens possíveis. É importante estar atento ao tempo do filme que caminha na contramão do tempo capitalista, apressado e anestesiado pelos excessos.
Pode parecer arriscado ou até soar tendencioso situar Sans Soleil mais próximo da fotografia que propriamente do cinema. Mas, o que pretendo ao longo desse artigo é apresentar os pontos que me conduziram a esta ideia. O primeiro ponto, e creio que o mais evidente em Sans Soleil, vem da sua montagem fragmentada, da disposição das tomadas que em muitos momentos apresentam um corte rápido. Tomadas que não seguem o tempo de explanação com temas que vão e voltam. Marker, em algumas cenas, congela a imagem e o que temos é exatamente uma fotografia tradicional com todos os seus pressupostos. Entre elas temos o silêncio.
(...) es ese tipico momento de imagen congelada tan habitual en Marker, en donde un hecho/observación/chiste perfectamente mundanos quedan sobrecargados de contracorrientes de “melancolia y perplejidad”, creando un aparte estraño impregnado de consciencia tragica. He aqui el inconfundible matiz eufórico-melancólico característico de la sensibilidad de Marker, esos osados, táctiles acordes Django-Vertovianos de pensamiento, “cosas que estimulan el corazón, y al mismo tempo lo parten.”1 (Hampton, 2006 p. 135)
A descrição acima, acerca das imagens petrificadas, tão comuns nas obras de Chris Marker, toca em três pontos fundamentais que se encontram. Melancolia, euforia e consciência trágica são três sentimentos incapazes de conviver no mesmo espaço, a não ser dentro da possibilidade alegórica. A euforia e a melancolia são despertas pela consciência trágica diante de um mundo desencantado. A melancolia pelas certezas perdidas e a euforia por um mar que se encontra novamente aberto à ousadia do conhecimento. São estes sentimentos que imperam na vida moderna e nos quais Nietzsche se fundamenta ao idealizar o herói trágico moderno. Jeanne Marie Gagnebin (2006) observa a presença desta raiz nietzschiana na dialética imanente de Walter Benjamin, a propósito da análise do Trauer-spiel. O pensamento nietzschiano, do qual Benjamin toma como base, é formulado a partir da morte de Deus e da confiança no racionalismo, de que também faz severas críticas. Não à toa, ao criar a metáfora do mar, refere-se a ele como o horizonte novamente aberto, mas não totalmente limpo. O mundo onde “Deus está morto, logo tudo é permitido”, desembocou no indigesto pensamento nazifascista 2.
Gagnebin (Ibid) concebe a linguagem alegórica partindo da imagem de duas fontes, uma de tristeza e luto e outra de liberdade lúdica e jogo que se juntam no mesmo rio. O rio da alegoria. Diante dessa realidade vislumbra-se o movimento do jogo que surge da aparente imobilidade da morte.
As imagens congeladas de Sans Soleil expõem a dialética da imobilidade, na qual luto e jogo montam o mosaico de um mundo que se exibe em estilhaços. Nelas são retratadas nos dois extremos da sobrevivência, primeiro no Japão e depois na Guiné-Bissau, os rostos dos “rejeitados do modelo” japonês e do “povo de errantes”, mestiços formados nas “pausas de portugueses” nas colônias. Abaixo reproduzo uma imagem exatamente como a vemos no filme, estática, uma vez que não faz parte do “tempo indiferente e infinito que corre, sempre igual a si mesmo, que passa engolfando o sofrimento, o horror, mas também o êxtase e a felicidade.” (GAGNEBIN, 2007, p. 96)
Pela voz de Florence Delay sabemos a posição de Krasna/Marker diante dos homens que se encontram à margem da sociedade, que irrompe no imperativo: “sabe-se lá onde se faz a História!” Então descobrimos o universo de possibilidades aberto por uma nova perspectiva histórica. A escrita da história é uma das grandes linhas de força do filme, tendo como pano de fundo a crítica da história progressista. O horror, o sofrimento e as tragédias humanas não podem ser ignoradas quando se pretende romper com a narrativa histórica triunfante, como fica claro na seguinte declaração:
Ele não amava deter-se sobre o espetáculo da miséria
mas em tudo que queria mostrar do Japão
havia também os rejeitados do Modelo.
Uma vez que esta face oculta da história se revela, outras se manifestam. Como bem observou Gagnebin, a história que engolfa o horror e o sofrimento é a mesma que enterra a felicidade e o êxtase.
“Eu saúdo o milagre econômico, mas o que quero mostrar são as festas de bairro”, diz Krasna. O cameraman, nas suas viagens pelo mundo, descobre-se diante da melancólica existência de um mundo desencontrado. O herói trágico de Nietzsche, do qual a criação parte do vazio deixado pela morte de Deus e vira as costas para o passado, dá lugar ao sujeito histórico que não pode mudar o presente senão a partir das ruínas que o passado deixou. Na medida que o mundo se apresenta disperso e refratário para os “rejeitados do modelo”, mais urgente é dar conta dessa pluralidade ignorada pela história oficial. O método analógico que se vale a alegoria, serve para dar conta da multiplicidade, mas não pela catalogação das diferenças, e sim por meio de um método que abarque qualquer singularidade. “(...) o alegorista melancólico inventa cada vez mais sentidos (...) Nas suas mãos, os objetos perdem sua densidade costumeira e se dispersam numa multiplicidade semântica infinita.3” (GAGNEBIN, 2007, p. 40)
Para nós, o sol só é sol se estiver brilhante
uma fonte, só se for límpida
Aqui, adjetivar equivale a colocar nas coisas etiquetas com o seu preço.
A poesia japonesa não qualifica.
Há um modo de dizer barco, rochedo, nevoeiro, urubu, granizo, garça, crisântemo...que os abrange a todos.
O método alegórico é, assim como a linguagem japonesa, um modo de abranger a todos. Marker tenta transmitir a visão fragmentada do mundo pela montagem. Passando ao largo da montagem tradicional, principalmente se tratando de um documentário, faz com que o filme transmita em nós, espectadores, a sensação de estar olhando para fotografias através da montagem não-linear e partida. Os cortes rápidos e a interpolação dos fatos simulam a mesma lógica de reconstrução da memória humana, viabilizando tanto a supressão quanto a dilatação do tempo, ou ainda, permitindo que o filme se movimente livremente entre os anos sem precisar respeitar uma cronologia linear. É como se Marker fosse colhendo aleatoriamente fotografias de uma caixa em que armazena suas fotos de viagens de um determinado período e elas de repente se conectassem pelo tempo presente da recordação, que pode ser o seu ou do espectador. O estilo fragmentário também pode ser visto por uma perspectiva de um mundo em ruínas, neste caso vem muito a propósito uma passagem da Origem do drama barroco alemão de Walter Benjamin (1984).
As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas. (...) ‘A empena quebrada, as colunas em pedaços, têm a função de testemunhar o milagre da sobrevivência do edifício em si às mais elementares forças de destruição, o raio, o terremoto. (p. 189)
Nos escombros de Sans Soleil, mundo arcaico e moderno, tradição e tecnologia, homem e natureza, o horror e a beleza, amontoam-se e formam a imagem do presente que não segue o progresso do tempo histórico linear. Em Sans Soleil, a temporalidade histórica é fragmentada e petrificada, exatamente como na imagem de ruínas. Ali se acumulam os restos do passado rejeitado somados ao presente ignorado. Um dos trabalhos de Marker é tirar destes escombros o testemunho daqueles que foram silenciados e esquecidos. Cada tomada, que leio como pequena narrativa, é edificada a partir de fragmentos particulares, que, combinados com o texto, funcionam como dispositivo para a memória trabalhar em direção a uma história mais geral. Ou seja, a partir do particular sensível, como os cadernos de Sei Shonagon com suas listas de coisas que fazem seu coração bater, desperta a história de um século marcado por toda sorte de sentimentos, da utopia por um mundo mais justo à desilusão do mundo descartável, do racismo racionalizado à compaixão pelos exilados, da coragem suicida ao temor pelo futuro. Nessa direção, o filme põe significados e significantes em terreno instável, o sentido é construído pelo método de similaridade, artifício já manifesto desde os estoicos, conhecido como hyponoia, o que quer dizer sentido subjacente, “encoberto”. Há, na verdade, uma relação de arbitrariedade entre significante/significado, que também é a prática alegórica na qual tenho situado o filme.
No que tange a representação do mundo como escombros, não como um prédio ou um templo, seus destroços testemunham a história do século XX. É a idealização da desordem do mundo, dentro da ordem fílmica, onde a montagem realiza um papel fundamental. Não podemos nos esquecer que Sans Soleil também não é um filme linear e homogêneo. Ele é fruto da colagem de recortes de outros filmes, seus e de outros cineastas, como também de filmes domésticos, alguns, inclusive, emprestados de amigos, como o que traz as imagens do ritual Dondo-Yaki. Dentro desta fragmentação traz à tona um passado que não está superado e que é preciso resgatar, ainda que em retalhos.
A colagem de outras cenas, funciona como espécie de citação e exibe uma faceta conhecida de Chris Marker, a que prima pelo jogo e brinca com os limites do cinema. Em Lettre de Sibérie (1957) realiza uma colagem de um famoso curta, que segundo o narrador “é tanto um documentário sobre a caça de baleias, quanto um filme etnográfico, quanto um filme sobre esses pescadores”, e deste modo inaugura no cinema a escritura, trazendo a lógica dialética do ensaio crítico para o filme, tanto nas suas explanações, como o caso do operário, como nesta colagem que permite que se olhe um mesmo tema sob três perspectivas diferentes: pela visão ecológica, “turística” ou dos pescadores. Em La Jetée (1962) rompe com a dinâmica de movimento do filme ao nos apresentar uma filmagem de fotos. São imagens fixas, são fotografias e é também cinema. São, sobretudo, os detalhes significativos de uma lembrança da infância do protagonista na imagem fixa de um rosto que teima em regressar à memória deste personagem. Não bastando o jogo com o tempo e movimento no filme, ultrapassa a fronteira que separa ficção e documentário ao tratar de modo alegórico temas difíceis da Segunda Guerra, dos campos e da Guerra Fria. Sem esquecer que leva o filme para o campo da Literatura inventando o ciné-roman. No longuíssima Le fond de l’air est rouge (1977) apropria-se de fragmentos de outros filmes, como O encouraçado Potemkin (1925) de Eisenstein, que exibe no prólogo. E essa incompletude da imagem recortada se estende para outras imagens do filme, inclusive as suas próprias, inserindo na película espaços, vazios e silêncios que ainda não são possíveis preencher, nem pela imagem, nem pela linguagem. O silêncio é um artifício muito importante e significativo em Sans Soleil, que obedece a mesma dicotomia dialética da fotografia que pressupõe presença e ausência, morte e criação.
Lettre de Sibérie, La Jetée, Le fond de l’air est rouge e Sans Soleil têm em comum, para além do transbordamento conceitual, a idealização de um projeto de citação, já conhecido na filosofia, como os aforismas de Nietzsche ou o livro das Passagens de Walter Benjamin. Há um texto de Compagnon (1996) chamado O trabalho da citação, onde além de abordar o assunto que se encontra em alta, devido a popularidade da intertextualidade dentro das ciências humanas, faz do próprio texto um trabalho de citação, mantendo a coerência com a teoria extremamente original que apresenta. Nele, apropria-se de metáforas que passeiam livremente dentre os mais diversos campos, da medicina cirúrgica à psicanálise ou da economia à filosofia. Em uma das passagens do livro, que pode ser lido ou folheado, Compagnon faz analogia do trabalho de citação ao enxerto cirúrgico, sendo a cicatriz -as aspas- um adorno a mais na obra, em seguida cita Michel Leiris:
Quando me sentia inapto a extrair de minha própria substância o que quer que fosse que merecesse ser colocado sobre o papel, copiava voluntariamente textos. Colava artigos ou ilustrações recortadas de periódicos nas páginas virgens de cadernos ou de blocos. (p. 38)
As citações ou colagens, como prefere Marker prefere nomear, em alguns momentos são feitas de forma direta, como as cenas de Le fond de l’air em Sans Soleil ou do curta sobre as baleias em Lettre de Sibérie. Em outros momentos se apresentam de modo indireto, como no caso de Hitchcock e Vertigo (1958), filme que Marker viu dezenove vezes, segundo ele próprio. Em Sans Soleil, Vertigo é evocado pela filmagem de São Francisco, local onde fora filmado, e que Krasna registra ao percorrer “de carro as colinas de S. Francisco, onde James Stewart/Scottie seguiu Kim Novak/Madeleine”, como confirma a narradora. Em La Jetée, a menção ao filme de Hitchcock vem mais sutilmente, pela apropriação da cena em que Madeleine aponta para a copa de uma árvore. A personagem de Marker repete o mesmo movimento e discurso ao apontar para um ponto na direção do pedaço de tronco cerrado, sem esquecer do penteado de Kim Novak, o coque espiral que Chris Marker copia em Heleine Chatelein, personagem de La Jetée.
Tan cuidadoso editor como autor (como si el mundofuera una biblioteca de descartes y negativos a ser encontrados y restituidos a la vida), hace que los narradores lean essos collages de citaciones disgressivas y que saltan de un lado a otro intuitivamente, essas meditaciones, como si fueran cartas leídas en voz alta a los amigos ausentes o muertos (Tarkovsky, Alexander Medvedkin, tú o yo). (HAMPTON, 2006, p. 134) 4
Para Howard Hampton (Idem), as colagens de citações funcionam como uma espécie de declaração de Marker àqueles que ama e admira. Sua leitura alcança tanto o espaço público a propósito de seu teor político, assim como o espaço íntimo como uma canção de amor.
Um acompanhamento mais atento às obras de Chris Marker faz notar que Vertigo é um fragmento recorrente no seu trabalho. Como uma fotografia de alguém querido que se exibe num porta-retratos, a referência ao filme está sempre presente. Nem sempre é através de alusões diretas ou apropriações que encontramos o filme americano nas obras de Marker, sendo, portanto, o seu aspecto conceitual o mais forte, evidente e duradouro objeto de assimilação. Marker adota a imagem vertiginosa do tempo de modo permanente nos seus trabalhos, assim como também pegou emprestadas as zonas de Tarkovski.
Além da colagem de fragmentos das cenas, outras particularidades contidas no filme fazem com que se aproxime do conceitual fotográfico. Vale lembrar que as diferenças demarcadas entre a fotografia e o cinema não são poucas. Vai desde a dinâmica do movimento ao tempo colhido das duas técnicas. Com isso, quero dizer que ao tempo que a fotografia capta o instante, o acaso, o cinema trama uma narrativa que se desenvolve no tempo. Pulando para o outro lado da tela, o próprio tempo de exposição do espectador diante da imagem ou imagens reproduzidas vai divergir. Pois, enquanto um indivíduo diante de uma fotografia possui o tempo de exposição determinado por si, num filme o fotograma tem a duração determinada pela edição. Numa exposição fotográfica é possível se demorar diante de uma imagem ou simplesmente ignorá-la, o trajeto também entra nesse espaço de liberdade do espectador. Já o cinema determina a ordem, o tempo de exibição e não há como se evitar essa ou aquela imagem de modo consciente.
Susan Sontag, em Sobre a Fotografia (2003) ao afirmar a ilusão da relação entre o cinema e a fotografia, demarca a importância conceitual que o tema implica nessas duas técnicas. E chama a atenção para o fato de que a fotografia de uma cena de um filme já rompe a ligação essencial que esta imagem captava dentro da película, justo por cessar a movimentação, uma premissa importante, para Sontag, que caracteriza o cinema.
Uma foto de um filme, que nos permite observar um único momento pelo tempo que quisermos, contradiz a própria forma do filme, assim como o conjunto de fotos que congela os momentos de uma vida ou de uma sociedade contradiz a forma destas, que é um processo, um fluxo no tempo. O mundo fotografado mantém com o mundo real a mesma relação essencialmente errônea que se verifica entre as fotos de filmes e os filmes. A vida não são detalhes significativos, instantes reveladores, fixos para sempre. As fotos sim. (p. 96)
Logo, seguindo a lógica da ensaísta, a dinâmica do cinema está para a vida tal qual a fotografia está para a memória. Partindo dessa premissa, mesmo que, de certo modo, pareça uma impossibilidade devido à própria concepção de Sans Soleil, a essência do documentário está intimamente mais conectada à fotografia, não somente pelos congelamentos e cortes súbitos, como também pelo trabalho de citação que compõe boa parte do filme.
Não posso ignorar que Sans Soleil visto por um outro prisma, para além do resgate da história, representa uma autobiografia, ou ainda, um autorretrato de Chris Marker. Ali estão as imagens das suas afinidades eletivas e das marcas que a vida lhe conferiu. Segundo Compagnon (Idem), a obra não deve mais obedecer uma relação de dependência ou sujeição com o autor, quando o mais justo seria o de congruência ideal, como acontece com Montaigne e os Essais. Para ele, “o homem em carne e osso, ou melhor, em filigrana, sustenta o livro, suporta-o e a ele se submete: Isto sou eu, isto é meu.” (p. 118). Deste modo, toda citação faz parte do que é autor, pois, a partir do momento em que esta fatia do outro é retirada de sua origem e colada em outro lugar, ela passa a obedecer uma nova lógica, ganhando outra face nesta nova combinação, dando origem a outro significante e dando espaço para outras significações.
A minha idealização fotográfica de Sans Soleil também compreende o espaço da citação. Pensemos nela como imagem. A citação então é um fragmento retirado de uma imagem/texto maior, deste modo, sua concepção é análoga à da fotografia. É como se aquele que cita a tivesse reproduzido como um instantâneo, enfoca uma parcela e deixa de fora do quadro todo o resto que a evolve, e dá origem a uma imagem agora autônoma. A partir dessas premissas é possível enxergar Sans Soleil como inventário de imagens heterogêneas. Quando visualizadas em conjunto, reproduz um autorretrato de Chris Marker, tanto daquelas imagens produzidas por ele quanto daquelas de que se apropria e que agora “isto é ele, isto é dele”. Deste modo é possível encarar uma espécie de caráter único dessas imagens, apesar de sua reprodução exaustiva nas salas de cinema e em outras mídias digitais. Pois elas são atualizadas por aquele que delas se apropriou, no caso o autor, assim como as suas figuras também poderão espelhar esse processo, sendo permitido devido ao seu modo enviesado de tratar dos assuntos, o que requer um esforço da memória individual e coletiva do espectador e posterior apropriação para interpretações sempre originais.
Gostaria de me deter um pouco na expressão caráter único que acabo de usar como possibilidade nas imagens como citações que montam Sans Soleil. Faço uso da expressão na pretensão de qualificar a citação como criação, estendendo a lógica para a interpretação desta e outras imagens. Levanto o assunto para não causar um equívoco conceitual, levando em conta que esta expressão foi usada por Benjamin para definir a aura, figura singular, invólucro da obra de arte que remonta aos tempos pré-modernos.
Walter Benjamin emprega o conceito de aura em dois textos célebres. A primeira vez que se refere ao termo é no ensaio de 1933 intitulado A pequena história da fotografia e, no ano de 1936 irá voltar ao assunto no ensaio sobre A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Nos dois escritos (1996) define a aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja.” (p. 101). Unicidade e durabilidade definem a obra de arte aurática em oposição à transitoriedade e reprodutibilidade daquela reproduzida tecnicamente, logo, para esta última, a aura representa uma impossibilidade. A reprodução técnica desponta na cultura do consumo, abandonando o caráter sagrado para se tornar mercadoria, a fim de preencher a necessidade do homem moderno pequeno burguês de se apropriar da arte.
A fotografia é um exemplo de técnica que nasce aurática, mas vai perdendo esse caráter conforme a técnica vai se aprimorando, e se emancipa da mera função retratista. Para Benjamin essa perda não é vista com pesar, ao contrário, a aura que dá seu último suspiro no culto de um ente querido retratado no papel fotográfico, abre espaço a uma nova arte livre da contemplação ritualística e do prazer estético, mais voltada para a práxis revolucionária. Benjamin enxerga essa possibilidade na vanguarda estética surrealista, cuja fórmula se organiza pela técnica de montagem, fundamentada na linguagem imagética através da escrita automática, apresentando como temáticas prediletas o onírico e o contingente. Deste modo, o movimento surrealista contraria a racionalidade burguesa através da fantasia, da imaginação. É com Atget, diz Benjamin, que a fotografia se liberta da aura a partir do momento em que o homem se retira da imagem.
Nessas obras, a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a seu mundo ambiente. Ela liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores. (p. 102)
As obras às quais Benjamin se refere são as fotografias de Atget, que passando ao largo “das grandes vistas e dos lugares característicos” também não ignora os espaços e objetos utilitários da vida moderna, retratando, por exemplo, mesas com pratos sujos. O que faz da imagem de Atget um dispositivo crítico da modernidade é a particularidade conferida a essas obras que, em sua maioria, exibem-se abandonadas da presença humana. Assim o olhar deixa de se deter na figura humana, centro de toda imagem, para se dedicar mais tempo aos detalhes, aos objetos e à relação que estes mantém com o homem.
Marker guarda muitos traços da vanguarda surrealista, sendo possível uma aproximação de algumas obras suas a trabalhos como os de Atget e outros surrealistas. Em Sans Soleil dedica um tempo para a filmagem de uma televisão, exatamente a televisão, só, sem qualquer telespectador a sua frente. Krasna, que diz ter passado um dia inteiro em frente à TV, chamando-a caixa de lembranças, diz também ter a sensação de estar sendo olhado por ela. Impressão que aumenta quando se trata da TV japonesa. Em outro momento, dá a entender ser injusta a crítica sobre a TV produzir analfabetos, devido à grande quantidade de pessoas que observa lendo na rua. Seu posicionamento, contudo, em relação ao aparelho televisivo não é tão inocente. Certa vez, em entrevista, fez uma crítica aos incontáveis canais que não acrescentam em nada, confessando se deter diante do aparelho apenas quando esquece o fato de não estar só no mundo. É possível perceber na sua declaração o papel do aparelho televisivo como produção de indivíduos cada vez mais alienados e encerrados em si. Na mesma entrevista, Marker marca uma grande diferença entre ver um filme na sala escura e assisti-lo na tela doméstica. Enquanto se levanta a cabeça no cinema, a televisão nos faz baixá-la.
De fato, a televisão invade nossas casas e passa a roubar boa parte de nossas vidas, nos deixando inertes diante dela. Recebendo as imagens que não cessam de aparecer e sem um segundo de pausa entre elas, nos bombardeiam com toda sorte de inutilidades, transformando tudo o que se exibe na tela em mercadoria. Desde as assumidas pela propaganda publicitária aos estilos de vida vendidos nas novelas e nos filmes.
Assim como a TV reserva a todos o espaço passivo, pois está ao alcance de qualquer um, o papel ativo de produtor das suas próprias imagens também se apresenta viável a uma boa parcela de indivíduos. Benjamin alerta e acerta no alvo quando vislumbra a técnica fotográfica ao alcance de todos.
Em Sans Soleil, Krasna questiona-se: “como se lembram as pessoas que não filmam, que não tiram fotos, que não gravam?” Para aqueles que conhecem o texto de Benjamin, automaticamente se estabelece uma conversa entre o filme de Marker e o ensaio A pequena história da fotografia. No texto, o filósofo alemão cita uma frase de László Moholy-Nagy: “o analfabeto do futuro não será aquele que não sabe escrever, e sim aquele que não sabe fotografar” (p. 107). Este pensamento, na verdade, só se tornou célebre através de Benjamin ao levar a conversa adiante, problematizando:
Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto? Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia? Tais são as questões pelas quais a distância de noventa anos, que separa os homens de hoje do daguerreotipo, se descarrega de suas tensões históricas. (Idem)
Benjamin compara a fotografia moderna com os retratos que remontam o tempo do daguerreótipo. Estes últimos não necessitavam de legenda, na última instância, quando o indivíduo retratado não fosse mais reconhecido pelas gerações futuras, com o passar do tempo, a imagem valeria como objeto de antiguidade. Assim como nada se sabia das primeiras pessoas retratadas e não havia qualquer indicação sobre tempo ou identidade daquele rosto ali figurado, apenas “um silêncio em que o olhar repousava”, os daguerreótipos não guardavam valor temporal, eram feitos para durar e atravessar os anos como símbolo. Já as fotografias modernas carregam uma temporalidade e podem funcionar como índice do tempo de sua reprodução. A reabilitação da temporalidade é um assunto caro à Benjamin, sendo a fotografia uma dessas possibilidades de acordar o tempo histórico. Vale lembrar que não é qualquer imagem fotográfica que carrega esta capacidade, por isso a referência às imagens de Atget e dos surrealistas. Não é o “retrato representativo e bem remunerado”, nem as inúmeras fotografias do fotógrafo amador, capazes de movimentar as ruínas da história, mas sim pelas lentes dos fotógrafos que vieram das artes plásticas.
Os fotógrafos que passaram das artes plásticas à fotografia, não por razoes oportunísticas, não acidentalmente, não por comodismo, constituem hoje a vanguarda dos especialistas contemporâneos, porque de algum modo estão imunizados por este itinerário contra o maior perigo da fotografia a comercialização. (BENJAMIN, p. 105)
Benjamin também não é inocente a ponto de creditar esse poder a qualquer fotografia que se julgue surrealista, afinal, há também o jogo vazio do onírico, que não passa do simulacro da fotografia comercial com a fachada da moda. A verdadeira imagem impregnada do tempo histórico não é só criadora, mas construtiva. Ela não se encerra na imagem como fruição estética. Marker, como herdeiro dessa vanguarda, exibe em Sans Soleil bons exemplos da escola surrealista ao jogar com as percepções de movimento e congelamento, e ao fazer do seu sentido construção que se desenvolve no tempo. Toda atmosfera do filme, incluindo texto e som, para além da imagem, conspira a favor da construção do sentido, do pensamento velado nos fragmentos. Nessa direção é possível visualizar o documentário de Marker como projeto alegórico que visa resgatar a temporalidade histórica encoberta pelas ruínas.
Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende a unidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa (allo-agorien) que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um sentido último. (GAGNEBIN, 2007, p. 38)
Para Raymond Bellour (1990), habita em Sans Soleil um desejo de listar, nos moldes do livro de Sei Shonagon, que é uma espécie de notas de cabeceira, “tudo aquilo que faz bater o coração”, assim não se perderiam essas lembranças. Assim elas estariam protegidas do olvido. O projeto de eternizar a memória afetiva através da imagem reproduzida tecnicamente e também do texto poético que montam Sans Soleil é real. O que não se deve esquecer é que nessas lembranças repousa também um tempo histórico encontrado no “espetáculo da miséria humana”. Nesse sentido, não são apenas as boas memórias que Marker protege do esquecimento e que o tempo se encarrega de dar cabo. Logo, é preciso também fazer a “lista das coisas tristes” e nela estão “os rejeitados do modelo”, os quais Baudelaire, no poema Revolta, batiza de raça de Caim5. Nela está toda uma classe de indivíduos despersonalizados na massa que está sob comando da Raça de Abel, a quem todas as dádivas divinas recaem. Na raça de Caim, dos deserdados por Deus, está a figura do trapeiro, representado no poema de Baudelaire Le vin des chiffoniers. Benjamin (1994), através do poema de Baudelaire, vê na figura trapeiro, que busca o vinho na barreira, a imagem do proletariado, daqueles que “não possuem outro bem que não a sua força de trabalho.” (p. 19)
O que essas figuras, dos bêbados de Sans Soleil e do trapeiro de Baudelaire, têm em comum e as confundem na mesma imagem, é o fato de haverem alcançado um alto nível de pobreza, condenados a recolher e viver da esmola e do refugo da cidade. O trapeiro, diz Benjamin (Idem), não faz parte da boemia parisiense, conceito que surge com Marx. Dentro da boemia estão abrigados os conspiradores profissionais, “são eles que erguem e comandam as primeiras barricadas” (MARX, 2011), ponto central da tradição revolucionária. Na boemia, da qual o trapeiro -embora presente- não faz parte, também se encontram os literatos, as prostitutas, os jornalistas, uma classe de pessoas que se posicionam dentro da camada social intermediária (SELIGMANN-SILVA, 2003). Contudo, “desde o literato até o conspirador profissional, cada um que pertencesse à boemia podia reencontrar no trapeiro um pedaço de si mesmo.” (BENJAMIN, 1994, p. 17). No trapeiro, então, encontra-se o resumo da classe intermediária, sem que ele passe a pertencê-la, afinal, nele estão os restos que essa classe desprezou, tudo aquilo que não tem mais serventia. Passando para uma leitura alegórica do trapeiro, é possível enxergar o projeto de Benjamin de construir uma história pela ótica dos oprimidos, o que permite também estendê-lo a Sans Soleil. No trapeiro, diz Benjamin, abrigam-se todos os sonhos de revolução, e uma mudança de curso a partir da figura representativa do proletariado significaria a verdadeira revolução pensada por Marx. Krasna, um pouco ao estilo do trapeiro, num nível alegórico acima, reúne o refugo da história pelas imagens apreendidas através da sua câmera.
Através da sua montagem original, Marker estabelece um nível alegórico “manifesto frequentemente pela aliança entre uma ideia espiritual e uma material, de um elemento novo e um elemento familiar” (PORCILE, 1993, p. 16).6 Retirados a partir dos instantes suspensos que Krasna amava, “das lembranças que servem apenas para deixar lembranças”, Marker constrói metáforas:
Su presente no es nunca el de una historia oficial, sino el del continuo desplazamiento de lo cotidiano, de la vida em processo, en trance de convertirse en memoria e historia, un continuo fluir: complejidad de la trama que en Marker, configuran imagen, historia y memoria, enunciación subjetiva y bases documentales, realidad y ficción, ética, política, esperanza y deseo.7 (MAYO, 2000, p. 13)
Assim, talvez, lance uma faísca que reacenda o ideal revolucionário sob uma nova prática, visto que, as já batidas só fazem o tempo histórico girar nos limites da espiral.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas. In: Dialética do Esclarecimento. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BAZIN, Andre. Lettre de Sibérie. In: Chris Marker: retorno a la inmemoria del cineasta. Fundació Antoni Tápies, Barcelona; Junta de Andalucía -Consejería de Cultura (Centro Andaluz de Arte Contemporáneo), Sevilla; Ediciones de la Mirada, Sevilla, 2000.
BELLOUR, Raymond. L’entre-images. Paris, La Différence, 1990.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1984.
_________________. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.
________________. Obras escolhidas, vol. 1 - Magia e Técnica, Arte e Política, Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1996.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução: Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996.
FEUERBACH, Ludwig. A essência do Cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão. Campinas, SP, Papirus, 1988.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo, Editora 34, 2006.
______________________. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo, Perspectiva, 2007.
HAMPTON, Howard. Remembranza del passado de las revoluciones: las anatomías de la melancholia de Chris Marker. In: ORTEGA, María Luisa; WEINRICHTER, Antonio. (orgs). Mystére Marker: pasajes en la obra de Chris Marker. Madrid, T&B Editores, 2006.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. Tradução: Paula Sibilia. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001.
KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo, Cosac Naify, 2009.
MARKER, Chris. “A free replay (notes on Vertigo)”. Disponível em: http://chrismarker.org/chris-marker/a-free-replay-notes-on-vertigo/
MARX, Karl. O 18 brumário de Luis Bonaparte. Tradução: Nelio Schndeider. São Paulo, Boitempo, 2011.
MAYO. N. E. Retorno a la inmemoria del cineasta. In: Chris Marker: retorno a la inmemoria del cineasta. Fundació Antoni Tápies, Barcelona; Junta de Andalucía -Consejería de Cultura (Centro Andaluz de Arte Contemporáneo), Sevilla; Ediciones de la Mirada, Sevilla, 2000.
PORCILE, Françoise. La poursuite des signes du temps. In: Images documentaires. 1993. Disponível em: http://www.imagesdocumentaires.fr/IMG/pdf/ID_n15-1.pdf
SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2003.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
_______________. Sobre a Fotografia I. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
É esse típico momento de imagem congelada tão comum em Marker, onde um fato/observação/piada perfeitamente mundanos ficam sobrecarregados de contracorrentes de "melancolia e perplexidade", criando um à parte estranho impregnado de consciência trágica. Aqui está o inconfundível matiz eufórico-melancólico característico da sensibilidade de Marker, estes corajosos, tácteis acordes Django-Vertovianos de pensamento, "coisas que estimulam o coração, e, ao mesmo tempo, o partem."↩
Vale abrir um parêntese para ressaltar que a filosofia nietzschiana, embora tenha sido apropriada e distorcida levianamente pelo pensamento nazista, não visava em hipótese alguma a hierarquizar raças ou fomentar o ódio antissemita. Prova disso está numa carta endereçada a sua irmã, da qual se afasta devido ao fato dela e seu cunhado terem se filiado ao partido Ultranacionalista em que pede que não associe sua filosofia ao pensamento antissemita. E também é possível encontrar o posicionamento de Nietzsche (1987) em alguns aforismas, como em Além do bem e do mal, que diz: “se tem, em resumo, qualquer acesso de imbecilidade; assim, por exemplo, os alemães da atualidade cultivaram a demência anti-francesa, outras, a anti-semita, a anti-polaca, a romântico-cristã, a wagneriana, a teutônica, a prussiana”(p. 182) e para que não restem dúvidas finaliza da seguinte forma: “seria adequado afastar, de todos os países, os agitadores antisemitas.” (Idem)↩
Historia e narracao. P. 40 Gagnebin↩
Tão cuidadoso editor quanto autor (como se o mundo fosse uma biblioteca de descartes e negativos a serem encontrados e restituídos à vida), faz que os narradores leias essas colagens de citações disgressivas e que saltam de um lado ao outro intutitivamente, essas meditações, como se fossem cartas lidas em voz alta aos amigos ausentes ou mortos (Tarkovsky, Alexandre Medvedkin, você ou eu).↩
Benjamin (1994) cita a obra de Baudelaire na primeira parte intitulada Boêmia do ensaio “Paris do Segundo Império”. O poema de Baudelaire chamado Revolta é composto por 16 dísticos. Nele opõe a Raça de Abel, dos abastados e bem aventurados, assistidos por Deus, à Raça de Caim, os deserdados. Na verdade trata-se de uma alegoria que representa a luta de classes. Do lado de Abel a burguesia capitalista e do lado de Caim o proletariado.↩
PORCILE, Françoise. ̀ la poursuite des signes du temps in: Images documentaires. P. 16 (http://www.imagesdocumentaires.fr/IMG/pdf/ID_n15-1.pdf)
“ette construction métaphorique se manifeste as- sez souvent dans l'alliance d'une idée spirituelle et d'une idée matérielle, d'un élément nouveau et d'un élément familier.”↩
Seu presente não é nunca o de uma história oficial, senão o do contínuo deslocamento do cotidiano, da vida em processo, no ponto crucial de converter-se em memória e história, um contínuo fluir: complexidade da trama que em Marker, configuram imagens, história e memória, enunciação subjetiva e bases documentais, realidade e ficção, ética, política, esperança e desejo.↩