Leonardo Davino de Oliveira
Dep. de literatura brasileira e teoria literária | Universidade do Estado do Rio de Janeiro
leonardo.davino@gmail.com
Resumo: Qual é o lugar das sereias na poesia feita no Brasil, nos primeiros anos do Modernismo? Buscando responder a essa pergunta, e tentando entender como o gesto artístico moderno se impregnou (ou não) da mística sirênica, esse ensaio sugere a leitura de alguns poemas de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Oswald de Andrade, tendo como referências as experiências do poema “Un coup de dés” (1897), de Stéphane Mallarmé, e a brasileira Iara.
Palavras-Chave: Poesia Moderna, Sereia, Iara.
Abstract: What is the place of the sirens in poetry made in Brazil, in the early years of Modernism? Seeking to answer this question, and trying to understand how the modern artistic gesture is impregnated (or not) of sirênica mystique, this essay suggests reading some poems of Mário Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Jorge de Lima and Oswald de Andrade. The references are the poem “Un coup de dés” (1897), by Stéphane Mallarmé, and the brazilian Iara.
Keywords: Modern Poetry, Siren, Iara.
O tratamento dado à inspiração musal e ao canto das sereias merece especial atenção em nossa historiografia poética, pois serve à reflexão dos mecanismos de construção, permanência e questionamento de nosso cânone literário, além de auxiliar a percepção das ações artísticas sempre renovadoras da poesia crítica e criativa. Tais procedimentos de canonização, adensados com a revisão promovida pela antropofagia modernista de Oswald de Andrade e, mais tarde, pelos chamados Estudos Culturais, ainda permanecem alicerçados sobre bases românticas oitocentistas, naquilo que esse período histórico entendeu e desenvolveu por nacionalidade. Sobre isso, o pesquisador, ensaísta e poeta Affonso Ávila (2008) escreveu que a poesia modernista “não raras vezes retoma os fios da ancestralidade barroca e um Sousândrade, por exemplo, representa em pleno romantismo, um elo de consciência criativa entre a poesia, do passado colonial e a do nosso século [XX], que se inaugurará sob o auspício renovador dos simbolistas” (p. 30-31).
A partir dessa ideia de uma literatura empenhada no canto do nacional ― herança oitocentista ― surgem algumas perguntas sobre a Poesia Modernista e sua inserção na linha de “tradição da ruptura” (PAZ, 2013): órfão de Musas, portanto, sem ter de quem herdar o canto, como o poeta do século XX irá poetar? Propugnando o matriarcado e sua “consciência participante” e “rítmica religiosa”, em resposta ao convite do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade?
Se concordarmos com Affonso Ávila (2008), para quem o Modernismo é a cristalização do novo, marcado pelo sentimento de exílio humano, em sua “singularidade de postura criadora, de índole redutora e antropofágica” (p. 29), urge identificar a experimentação engendrada por seus autores como o gesto artístico que coloca em diálogo a poesia realizada no século XX, a saber: a poesia modernista, a concreta e a marginal. Em linhas gerais, há nessas três categorias um claro empenho em desconstruir a tradição essencialmente musal e, logo, hereditária em vigor: a eloquência parnasiana, no caso da poesia modernista; o abandono do lirismo, no caso da concreta; e a recusa a toda e qualquer tradição cerebral, na marginal. E a experimentação aparece como mecanismo de poeticidade, tanto no campo estético, como no campo temático, dessas poesias, tendo como poeta-guia Stéphane Mallarmé (1842-1898), responsável por trazer o novo para o tema e para a estética.
Tome-se, então, o poema-constelação de Mallarmé como o ponto arquimédico, a grande síntese (ainda que clausulada por um peut-être) daquela poética “universal progressiva” do Romantismo: como o poema que teria conseguido enfrentar o problema da crise ou da impossibilidade da epopéia na Era “Química”, vale dizer, “cindida”, da Modernidade (já assim concebida por F. Schlegel), e resolver o impasse em favor da poesia, pelo anúncio de uma nova forma de arte poética, e não, como supostamente se faria necessário, através de uma nova épica de base prosística, o romance, “a moderna epopéia burguesa”, o gênero por excelência do mundo irreconciliado e abandonado pelos deuses, tal como, ao invés, prefere pensar o jovem Lukács na esteira de Hegel. (CAMPOS, Augusto de. In: MALLARMÉ, 1980, p. 256)
Centrados na Poesia Modernista, cremos ter sido movido por este estado-de-poesia que Odilon Redon (1840-1916) desenhou Femme à l’aigrette (ou Sirène à l’aigrette), transcriando o poema “Un coup de dés” (1897), de Stéphane (Étienne) Mallarmé. Redon investiu nas palavras do poema: “Estatura frágil tenebrosa / em sua torsão de sereia”, escreve Mallarmé. O poema “Um lance de dados” revolucionou os modos de pensar e fazer poesia.
A sereia art nouveau criada por Redon aponta a equalização em perspectiva enigmática entre som e sentido advindos do poema-letras-soltas-móbile no papel-mar mallarmaico. Ela indicia o acaso e o anzol. E “Todo Pensamento emite um Lance de Dados”, encerra o poema. Não às respostas de fora do poema e Sim à incapacidade de ler o paradoxo: “frágil” e “tenebrosa”.
O lance de dados é a travessia ― de um estado de coisas a outro estado de coisas ―, entre o arranjo tipográfico revolucionário que a Sereia representa: apelo à intuição e ao amálgama como exercícios de vida. As sereias têm desses artifícios. Elas são a medula do acaso em ação, as subdivisões prismáticas da ideia mallarmaica: elas renegam a Razão como triunfo do humano. “O canto das sereias seria a indiferenciação entre o sujeito que narra e o sujeito narrado, entre a manifestação e a significação: canto sem diferenças, sob o qual se prometeria a pura perda de diferenças do silêncio, do ponto zero da descrição”, escreve David E. Wellbery (2010, p. 195-196). Podemos inferir que o canto das sereias é o paradigma mesmo da Literatura. O canto sirênico é a metáfora que promove o acesso ao humano demasiado humano.
Para a economia de nosso argumento, é importante destacar a sereia quimérica (RANCIERE, 1996) que aparece inscrita no poema constelar de Mallarmé. Vejamos o trecho na tradução de Haroldo de Campos:
La lucide et seigneuriale aigrette
au front invisible
scintille
puis ombrage
une stature mignonne ténébreuse
en sa torsion de sirene
par dímpatientes squames ultimes
O lúcido e senhorial penacho
à fronte invisível
cintila
então sombreia
uma estatura frágil tenebrosa
em sua torsão de sereia
com impacientes escamas últimas
Empreendido na sofisticada polifonia engendrada por Mallarmé, o apagamento do lirismo é mais a afirmação de uma rede de vozes enunciadora e constitutiva do Eu e menos a negação desse Eu, como várias leituras do poema quis fazer crer. Para além do mero esgotamento da unidade que o verso alexandrino simbolizava, a singularização do prisma lançado pela linguagem poética singulariza o contexto social da Modernidade. O jogo de linguagem é a matéria prima do homo ludens (HUIZINGA, 1979). De fato, Mallarmé cria um texto-sereia, que rechaça a musa, perfaz o caminho mítico-poemático e seduz verbivocovisualmente. A Modernidade é tão má quanto as sereias da Odisseia. E não menos aliciadora.
Banalizada e desgastada no manuseio cotidiano, a linguagem perde seu valor-ouro e adquire um mero valor venal. Contaminadas pelas relações econômicas, todas as relações humanas, trocadas no miúdo da fala, se corrompem e se desgastam. A função do poeta moderno, assumida exemplarmente por Mallarmé, é opor-se a esse comércio aviltante, e propor a utopia das trocas linguageiras. Seu trabalho consiste em dar sentido mais puro às palavras da tribo, fazer com que elas, em vez de funcionar apenas como valores de representação da realidade, instaurem uma realidade de valor. (PERRONE-MOISÉS: 2000, p. 32).
Antes de “Un coup de dés”, porém, Mallarmé publicara o poema “Salut”. Vejamos a tradução de Augusto de Campos:
Salut (1893)
Rien, cette écume, vierge vers
A ne désigner que la coupe;
telle loin se noie une troupe
De sirènes mainte à l'envers.
Nous navigons, ô mes divers
Amis, moi déjà sur la poupe
Vous l'avant fastueux qui coupe
Le flot de foudres et d'hivers;
Une ivresse belle m'engage
Sans craindre même son tangage
De porter debout ce salut
Solitude, récif, étoile
A n'importe ce qui valut
Le blanc souci de notre toile.
Brinde (1980)
Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa,
Vós à proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;
Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde.
Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
um branco afã de nossa vela.
Como podemos observar, no soneto “Salut” (“Brinde”) a sugestão da viagem pela página em branco feita mar, feita vela e o acaso já se encontram evidenciados. São matérias de trabalho poético. Conta-se que o poema foi declamado pelo simbolista Mallarmé em 15 de fevereiro de 1893. Para nosso trabalho, obviamente, chama-nos à atenção a presença das Sereias que imergem em tropa. Podemos interpretar o brinde como um convite à aventura poética, à fuga baudelairiana: o branco da vela como o branco da folha de papel. Sem as sereias, o poeta-navegante assume o encantamento a-venturoso entre o frágil e o tenebroso da Modernidade. Sobre a tradução de mignonne para “frágil”, Haroldo de Campos escreveu:
A sereia é uma espécie de “anjo andrógino”, símbolo para o qual convergem vários outros do Poema (o ulterior demônio imemorial, a sombra pueril, o príncipe amargo do escolho - Hamlet das páginas precedentes). Mignonne reúne as acepções de “delicada”, “graciosa”, “predileta”, “querida”, além do sentido subsidiário de “tipo miúdo de imprensa”. Frágil (vinculando-se fonicamente com estatuRA) pareceu-me a solução mais adequada na tradução, transmitindo o (GC) “aspecto raté do artista delicado (...) em contraste com sua qualidade viril”. Graficamente, os ff de frágil, esbofetear, bifurcadas e falso podem evocar a “cauda da sereia”, assim como o S de SE (para o qual Mallarmé, em nota ao tipógrafo, pedia uma atenção especial; ver menção às provas do Poema, corrigidas por Mallarmé, na Bibliografia) poderá lembrar a torSão dessa sereia-dúvida. (CAMPOS, Haroldo de. In: MALLARMÉ, 1980, p. 136)
As sugestões de Mallarmé ― que no poema “Brise Marine” (1865) evoca uma “canção que vem do mar!” ― terão reflexo nos jogos sígnicos dos poetas concretos e nas abordagens performativas dos poetas marginais. Ainda no poema “Brisa marinha”, aliás, Mallarmé escreve: “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros”. Essa imagem do poeta leitor, que não pode mais alegar ingenuidade diante dos acontecimentos da vida, haja vista a quantidade de informação e leituras à sua disposição, marca e atravessa o século XX. E isso será trabalhado de diferentes formas. A questão lançada por Mallarmé é a de que se, depois de tudo o que já foi escrito e lido, ainda há o que escrever? A resposta virá das novas formas de escrever, de inscrever: a experimentação formal. E “não importa o que há no fim de / um branco afã de nossa vela”, como o poeta indicou em “Brinde”. O fato é que “a tradição do novo”, como chama Ávila (idem), ou a “tradição de ruptura”, como denomina Octávio Paz (2013), determina o fazer poético novecentista. Vejamos por partes.
***
Tal como Lorelei para os românticos dos oitocentos, a (nossa) Iara também foi motivo de glosa para os escritores e intelectuais do século XX, de diversas e variadas abordagens. Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes foram alguns dos que se renderam ao canto da sereia-musa brasileira. No entanto, essas presenças de Iara foram pontuais e não significaram a efetiva disseminação dos temas ameríndios entre nós.
Em “Poema” (1927), Mário de Andrade (1893-1945) trabalha os extratos folclóricos da Iara. Extratos que vem da tradição oral, daquilo que “se ouviu falar”: um velho ― “contava que ele era feiosa”; um moço ― “que sofria de paixão”; um piá que teve a mão abocanhada por uma piranha.
Neste rio tem uma iara....
De primeiro o velho que tinha visto a iara
Contava que ela era feiosa, muito!
Preta gorda manquitola ver peixe-boi.
Felizmente velho já morreu faz tempo.
Duma feita, madrugada de neblina
Um moço que sofria de paixão
Por causa duma índia que não queria ceder pra ele,
Se levantou e desapareceu na água do rio.
Então principiaram falando que a iara cantava, era moça,
Cabelos de limo verde do rio...
Ontem o piá brincabrincando
Subiu na igara do pai abicada no porto,
Botou a mãozinha na água funda.
E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá.
Neste rio tem uma iara...
O narrador assume a voz de um “contador de causo”. A fusão da “preta gorda manquitola”, da iara que cantava e da piranha que “abocanhou a mãozinha do piá”, além de desenhar a transmissão do mito em três tempos históricos ― do velho ao menino, passando pelo moço ―, resulta na imagem da Iara brasileira transvalorada ao longo do tempo e dos textos. O significante “piranha” agrega o temível Ipupiara, criatura aquática semi-humana que assombrava os índios e colonizadores, à sereia europeia, mulher-peixe que canta. A equação fica sendo: sereia ibérica + cantos ameríndios da mãe d’água = Iara.
Interessante observar que a moça só passa a ser chamada de Iara quando falam do moço “que sofria de paixão / Por causa duma índia que não queria ceder pra ele”, fazendo-o levantar e desaparecer “na água do rio”. Além disso, “Poema” abre e encerra com o verso “Neste rio tem uma iara...” indicando o aspecto circular do mito, seus retornos em diferenciação. O que é a Iara, senão a fusão desses significantes diversos? Eis a sugestão do “Poema” de Mário de Andrade. Em seus versos livres, no uso coloquial da linguagem ― “botou” ― e na estrutura de rondó, este poema de Clã do jabuti, livro que, segundo o próprio Mário de Andrade (ANDRADE, 2008, p. 221), junto com Amar, verbo intransitivo (1927), antecedem a publicação de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), livro que, segundo Gilda de Mello e Souza (2003), “retoma o processo compositivo da música popular, como aliás nos indica claramente o próprio autor, quando acrescenta ao título do livro a designação rapsódia” (p.15), é fundamentado na polifonia que indicia o gesto crítico do autor da imagem antropófaga: “um tupi tangendo um alaúde”. Essa mistura étnica ilumina a amálgama ética e desconstrói o exotismo oitocentista, além de reiterar as contradições da nação, ou melhor, das manifestações do caráter nacional, da falta de caráter, na “ambivalente e indeterminada” (SOUZA, 2003, p.85) obra Macunaíma. Eis a luta entre o herói ― já modificado gradualmente pelo progresso ― e a Uira ― por Vei, disfarçada aos padrões europeus “sob os traços lusitanos de Dona Sancha” (Idem p.56):
Macunaíma depôs com delicadeza os legornes na praia e se chegou pra água. A lagoa estava toda coberta de ouro e prata e descobriu o rosto deixando ver o que tinha no fundo. E Macunaíma enxergou lá no fundo uma cunha lindíssima, alvinha e padeceu de mais vontade. E a cunha lindíssima era a Uiara.
Vinha chegando assim como quem não quer, com muitas danças, piscava pro herói, parecia que dizia — “Cai fora, seu nhonhô moço!” e fastava com muitas danças assim como quem não quer. Deu uma vontade no herói tão imensa que alargou o corpo dele e a boca umideceu:
— Mani!...
Macunaíma queria a dona. Botava o dedão n'água e num átimo a lagoa tornava a cobrir o rosto com as teias de ouro e prata. Macunaíma sentia o frio da água, retirava o dedão.
Foi assim muitas vezes. Se aproximava o pino do dia e Vei estava zangadíssima. Torcia pra Macunaíma cair nos braços traiçoeiros da moça do lagoão e o herói tinha medo do frio. Vei sabia que a moça não era moça não, era a Uiara. E a Uiara vinha chegando outra vez com muitas danças. Quê boniteza que ela era!... Morena e coradinha que-nem a cara do dia e feito o dia que vive cercado de noite, ela enrolava a cara nos cabelos curtos negros como as asas da graúna.Tinha no perfil duro um narizinho tão mimoso que nem servia pra respirar. Porém como ela só se mostrava de frente e festava sem virar Macunaíma não via o buraco no cangote por onde a pérfida respirava... E o herói indeciso, vai-não-vai. Sol teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu de calorão e guascou o lombo do herói. A dona ali, diz-que abrindo os braços mostrando a graça fechando os olhos molenga. Macunaíma sentiu fogo no espinhaço, estremeceu, fez pontaria, se jogou feito em cima dela, juque! Vei chorou de vitória. As lágrimas caíram na lagoa num chuveiro de ouro e de ouro. Era o pino do dia. (ANDRADE, 2008, p. 205-206)
Lembramos que a cantora Iara Rennó musicou trechos do livro de Mário em Macunaíma Ópera Tupi (2008). O disco leva o ouvinte a empreender uma viagem etno-atropo-semio-musicológica tal e qual a organizada pelo etno-musicólogo Mário de Andrade na seminal Missão de Pesquisas Folclóricas, na década de 1920. Ao extrair do livro híbrido os trechos e versos que compõem as canções do disco, Iara promove, via instinto caraíba, a valorização do caráter móvel, da “falta de caráter no duplo sentido de indivíduo sem caráter moral e sem característico” (PERRONE-MOISÉS: 2007, p. 193) como signo estético e artístico do Brasil. Além de devolver às palavras a vocalização contida nelas antes de Mário de Andrade fixá-las no texto escrito. Iara copia, recorta, cola, mistura a nossa “fala impura”. Observemos o exemplo de “Bamba querê”. A canção incorpora a cadência das aliterações presentes no texto de tal modo que fica difícil para o ouvinte imaginar outra rítmica senão a criada e inventada por Iara. É na dança do orixá Iemanjá no terreiro ― na “macumba carioca” ― que Iara mira para construir a canção.
Então a macumba principiou de deveras se fazendo um çairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: v. ...
— Ôh Olorung!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata continuava:
— Ô Boto Tucuchi!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Docinho numa reza mui monótona.
— Ô Iemanjá! Anamburucu! e Ochum! três Mães-d'água!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando:
— Uuum!... uuum!... Exu! Nosso padre Exu...!
E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O çairê continuava:
— Ôh Rei Nagô!
— Va-mo sa-ra-vá!... Docinho na reza monótona.
— Ôh Baru!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o pé-de-pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando:
— Uuuum!... Exu! Nosso padre Exu!...
E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.
— Ôh Oxalá!
— Va-mo sa-ra-vá!... (ANDRADE, 2008, p. 76-77)
A querência de Iara desterritorializa, remelexe, bambeia extratos sonoros para (re)apresentá-los encapsulados em forma de uma canção uma: núcleo duro do país de semiologia macunaímica. E, assim como Haroldo de Campos observou a cerca do livro de Mário, “no coquetel, porém, havia método” (1973, p. 79), no canto de Iara há a aplicação do método daquilo que podemos chamar, juntos com o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, de “macumba antropofágica”: a fusão norte/sul, natureza/civilização, mito/realidade. Desse modo, a busca por um Brasil profundo e a linhagem rabelaisiana presente no livro estão a serviço de “trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros” (ANDRADE: 2008, p. 217). Intertextualidade (KRISTEVA: 1974) e carnavalização (BAKHTIN: 2010) se fundem para traduzir a veia mística e humorística do país sem caráter.
Bamba querê
Sai Aruê
Mongi gongo
Sai Orobô
Êh!
Ôh mungunzá
Bom acaçá
Vancê nhamanja
De pai Guenguê
Êh!
Ôh Olorung
Ô Boto Tucuchi
Ô Iemanjá
Anamburucu
Ochum
três Mães-d’água
Vamo sarava (Iara Rennó)
Observamos que tanto “Poema”, quanto a Uiara e a letra de “Bamba querê” evocam a “entidade nacional” defendida por Mário.
Atente-se para a expressão “entidade nacional”, sabiamente utilizada pelo autor em vez da expressão “identidade nacional”, que se tornaria corrente e insistente na ensaística brasileira a partir do modernismo. “Entidade”, na linguagem filosófica, é “um objeto concreto, mas que não tem unidade ou identidade materiais; “um ‘algo’; um objeto de pensamento que se concebe como um ser desprovido de toda determinação particular. (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 191)
Mário de Andrade intuiu que o ethos da cultura popular traz consigo as marcas da história e é palimpsesto do tempo. Em Macunaíma, além, de Iemanjá e Ochum, entra em cena Anamburucu: a mais velha das mães-d’água. Também chamada de Nanã Buruku e Nanã, entre outros nomes, é orixá dos mangues, dos pântanos, do lodo, da lama.
***
Outro nome de mãe d’água aparece na poesia de Manuel Bandeira (1886-1968): Janaína ― uma das nomeações afro-brasileiras dadas a Iemanjá ― Também conhecida por Oguntê, Marabô, Caiala, Sobá, Oloxum, Dandalunda, Princesa de Aiocá, Inaê, Mucunã. O poema “Dona Janaína” (1936), que chegou a ser musicado pelo pianista Francisco Mignone (1938), evoca exatamente as atribuições sirênicas da “Sereia do mar”, enquanto pede licença para brincar no reino do orixá:
D. Janaína
Sereia do mar
D. Janaína
De maio encarnado
D. Janaína
Vai se banhar.
e listar os muitos amores da “Rainha do mar”:
É o rei do Congo
É o rei de Aloanda
É o sutão-dos-matos
É S. Salavá
As rimas abertas em /a/ demonstram a imensidão do reino cantado e servem para singularizar a interjeição “saravá” ― saudação e mantra das religiões de matriz africana que faz referência à força da natureza. Desse modo, por rimar com o “saravá” africano, São Salavá, entidade ameríndia cantada no poema como um dos amores de Dona Janaína, aparece também rendido em seu poder de espírito do mato aos encantos da princesa. Sim, se Iemanjá é rainha, Janaína é a princesa do mar.
Mais presente no passado, hoje em dia alguns poucos terreiros de Umbanda trabalham com a manifestação da Linha das Sereias, constituída por seres que nunca encarnaram e que vivem no 5º plano da vida ― o Plano Encantado da Criação. Para a Umbanda, as Sereias são regidas pelas mães dos orixás: Iemanjá, Oxum e Nanã. Sem fala humana, as Sereias em Umbanda emitem cantos mântricos. Janaína é um ícone máximo dentro dessa Linha na religião.
Se nesse poema o poeta quer ser um dos amores da Sereia, na “Balada do rei das sereias” (1940), Bandeira apresenta um rei que, cruel, não percebe o perigo que significa brincar com as intenções dos seres aquáticos, que vivem na espuma das ondas do mar. Evocando, portanto, o nascimento da deusa grega do amor, da beleza e da sexualidade: Afrodite ― cujos mitemas estão relacionados com as histórias de Sereias.
O rei atirou
Seu anel ao mar
E disse às sereias:
—Ide-o lá buscar,
Que se não trouxerdes,
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias,
Não tardou, voltaram
Com o perdido anel.
Maldito o capricho do rei tão cruel!
Depois do anel, foi a vez do rei jogar grãos de arroz. No entanto, é na terceira parte do poema que as sereias se revelam em vingança:
O rei atirou
Sua filha ao mar
E disse às sereias:
—Ide-a lá buscar
Que se não trouxerdes,
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias...
Quem as viu voltar!...
Não voltaram nunca!
Viraram espuma
Das ondas do mar.
Iludido em seus caprichos, o rei não percebeu que as sereias estavam à espera de um bem maior jogado ao mar. O jogo de submissão apresentado no poema demonstra a ilusão que por vezes turva as categorias: submisso e senhor. Ainda mais quando quem está participando do jogo são as astutas Sereias que, noutro poema de Bandeira1, têm “braços nus e nádegas redondas”.
Podemos perceber que em sua poesia, Manuel Bandeira trata as sereias como contadoras de história, como estimuladoras do imaginário. Isso fica evidente no icônico poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, quando o sujeito diz: “E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar”.
***
Em 1928, foi a vez de Cassiano Ricardo (1895-1974) cantar Iara no livro Martim Cererê. Em sua variação linguística, Uiara aparece caracterizada no trecho de mesmo nome: “mulher / verde olho de ouro / vestida de sol2”.
[...]
verde sem ideia
do que se diz verde
(que não se alcança)
ouro sem noção
do que seria o ouro
(...)
Influenciada pelas temáticas ameríndias e afro-brasileiras, sua caracterização remete-nos às riquezas nacionais já elogiadas nos oitocentos: a flora e a fauna. Uiara é essa mulher que conteria em si as benesses do “país do sol”. Aliás, é o sol que ilumina essas belezas naturalmente belas em suas potências primitivas: daquilo que é belo sem um pensamento próprio e prévio.
A moça bonita, chamada Uiara, morava na Terra Grande.
Dizem que tinha cabelo verde, olho amarelo.
O mato é verde; pois os seus cabelos eram mais verdes. A flor do ipê é amarela; pois os seus olhos eram mais amarelos.
Assim ela é descrita no “Argumento” do livro. Na verdade, a mulher cantada por Cassiano, já pós-colonização, é apenas uma imagem:
[...]
Mulher gravada a ouro
Num friso marajoara
Cabelo muito verde
Olhos-muito-ouro
Chamava-se Uiara
Os verbos no passado e a grafia do nome numa versão mais antiga do mito dão o distanciamento temporal necessário para que o leitor do poema entenda que Uiara não mais existe enquanto presença real. Ela faz parte da lembrança, da matéria poética, virou objeto de decoração ― mesmo que feita na resistente técnica marajoara de cerâmica ― na memória nacional. Portanto, não há ufanismo. Através da recuperação mítica, há a denúncia daquilo que foi feito de nossas riquezas. “Uiara”, agora poema, sugere-nos o redescobrir do país via lirismo antropófago.
Cortejada por um índio e por um branco, foi esse quem conseguiu realizar o desejo da mulher: “Buscar a noite”. O homem
[...] era branco, disse que gostava de luar e de guitarra. Marinheiro, viera cavalgando uma onda azul. Ouvira a fala da Uiara e não se fez amarrar, como Ulisses, ao mastro do navio, nem mandou tapar com cera os ouvidos aos demais companheiros; ao contrário, saltou em terra e ofereceu-se pra casar com ela. (...) E, não demorou muito, trouxe a noite. Trouxe a noite africana, que veio no navio negreiro. Os homens que o ajudaram a trazer a noite eram pretos; pertenciam a uma terceira raça. (“Argumento”)
As metáforas aqui arroladas parecem-nos um revelador nacional, posto que a solar Uiara peça a noite, e esta chegue com os navios negreiros ― outrora cantados por Castro Alves ―, a fim de mostrar a face cruel por trás das aparentes belezas do país novo. “Mas como poderia / alguém achar a Noite / onde tudo era o Sol?”, pergunta o narrador do poema de Cassiano Ricardo.
A sábia ingenuidade de Uiara aparece no trecho “O ‘sol da terra”, quando sua natureza incivilizada se contrapõe à civilidade do branco:
E a Uiara que nunca ouvira
declarações de amor tão cheia
de rouxinóis e outras espécies de mentira
assim falou, ao novo pretendente:
“A manhã é muito clara.
Não há Noite na terra
(pois de primeiro não havia Noite,
era só manhã que havia)
(...)
E Uiara aceita seu destino trágico, para fundar o país.
***
Destacamos cinco, entre os muitos, poemas de Murilo Mendes (1901-1975) em que o poeta trabalha os fundamentos católicos hibridizados a extratos ameríndios e, principalmente, africanos. Por exemplo, em “Os amantes marítimos” (1935) “a amorosa Maria [bem da terra] senta-se no banco de coral” absorvendo significantes de Iemanjá (bem do mar) a esperar Pedro, fortalecendo a resignação cristã. Simplicidade e coloquialismo se harmonizam para cantar o homem dividido entre os dois amores. Razão e mítica em eterno conflito enriquecedor para o poético. No Brasil, os fios que tramam o mito estão a serviço da antropofagia poética. Ao invés da sereia europeia que atraía para a morte, Iemanjá ― a mãe que cuida. No lugar dos longos cabelos dourados e dos olhos azuis, a índia Iara: prima de Iracema.
A Iemanjá criada no Brasil, que viajou para o Sul e para o Norte, é outra, embora conserve o título de “Rainha do Mar”. As vezes é sereia, outras ninfa e recentemente até virgem, identificando-se mais com a Virgem Maria, a tal ponto que suas devotas no Rio ficam ofendidas lendo casos da Iemanjá africana, de grande força sexual. (SELJAN, 1973, p. 15)
A semiologia da palavra “Maria”, sincretizada à mitologia mariana cristã, é um dos nomes de Iemanjá ― um dos orixás mais populares do Brasil, conhecida mesmo entre aqueles que não seguem os preceitos das religiões afro-descendentes. Desse modo, o canto praieiro é o canto-de-retorno, de encontro do poeta com a sereia rainha do mar. Humano, o poeta cria os elementos necessários para que o próprio mar (berço do amor) retribua Maria à Maria. Tendo em vista que “é com o povo que é praieiro / que dona Iemanjá quer se casar”3, como diz a canção: O Pedro pescador do poema de Murilo não é outro senão o apóstolo do Deus feito homem. É nesse rearranjo, nessa combinação de significantes, de versos que o poeta em estado contemplativo encena a ponte entre o poeta mesmo e a musa, a sereia: Maria.
Lembramos que essa cisão do poeta entre “o bem de terra” e o “bem de mar” foi cantada por Dorival Caymmi (1914-2008) na canção “O bem do mar” (1954):
O pescador tem dois amor
Um bem na terra, um bem no mar
O bem de terra é aquela que fica
Na beira da praia quando a gente sai
O bem de terra é aquela que chora
Mas faz que não chora quando a gente sai
O bem do mar é o mar, é o mar
Que carrega com a gente
Pra gente pescar
Em diálogo com “Os amantes marítimos”, Murilo escreve “Os amantes submarinos” (1944), em que “os sonhos (...) desenrolam-se da boca das sereias” e:
A grande borboleta verde do fundo do mar
Que só nasce de mil em mil anos
Adeja em torno a ti para te servir,
Apresentando-te o espelho em que a água se mira,
E os finos peixes amarelos e azuis
Circulando nos teus cabelos
Trazem pronto o líquido para adormecer o escafandrista.
Nessa imagem surrealista, sereias-borboletas são pintadas com as cores do Brasil a fim de singularizar o país paradisíaco e adormecer a ciência representada pelo escafandrista. Em lugar da razão, as montagens surrealistas que justapõem duas ou mais imagens a fim de obter uma imagem aglutinadora de significantes.
Já em “O poeta e musa” (1935) a insensibilidade da Musa é evocada: “Vens da eternidade e voltas para a eternidade”, diz o poeta à Musa que não tem ódio, amor, nem sede, nem fome. Ela paira soberana e impávida: “Tens o ar frio de quem ultrapassou o mundo sensível e resolve lhe dar um sinal da sua condescendência”. Mas esta Musa cantada por Murilo é diferente da Musa clássica: “Estás desligada da geração que te trouxe ao mundo”, diz o poeta, acusando que se a geração morreu, a Musa sobrevive aos tempos, porque eterna. Mas os tempos são outros ― não mais o tempo idílico ― e o poeta intimida: “Esperas que eu diminua minha humanidade para ficar junto de ti”. Qual seria o destino dos dois, na Modernidade?
Seremos duas estátuas confabulando.
Então os acontecimentos não agirão mais sobre mim.
E eu sobrevoarei a vida física.
E tocarei o espírito da musa.
Do mesmo ano, 1935, temos o poema “A musa”, em que a deusa “acima do sexo” é acusada de roubar os amores do poeta:
[...]
Os poetas te sacrificam suas amadas retrospectivas, atuais e futuras.
Tua cabeça triste e serena
Recortada num céu de convulsões desencadeia o mito:
Distribuis ao mesmo tempo consolo e desespero.
Aos olhos do homem és acima do sexo como uma deusa,
Aos olhos da mulher és masculina como um guerreiro.
Anulas o movimento de quem soube te decifrar,
E não te perturbas nem ao menos ante a idéia de Deus.
Podemos pensar que vem daí o mote para que o poeta escreva “O poeta assassina a musa” (1941). Morta em sua concepção clássica desde, pelo menos, Augusto dos Anjos, como vimos, a musa “preparada por mil gerações” é assassinada para que o poeta se sobressaia. Mas ele sabe que, tal e qual Jesus, as musas parecem ressuscitar, “diversas musas sobressalentes” surgem e aporrinham o poeta até conseguir seu intento: que o poeta faça a poesia.
[...]
Então o poeta aporrinhado
Joga álcool e ateia fogo
Nas vestes da musa.
A musa descabelada
Sai cantando pela rua.
Súbito o corpo grande se estende no chão.
A musa é esse desassossego que não deixa o poeta em paz enquanto o poema não estiver pronto. Nesse sentido, matar a musa é função do poeta. Ao dizer o canto da musa, ou seja, ao traduzir esse canto em poesia, o poeta mata a musa que lhe transmitiu a canto. E assim, a cada poema uma musa é assassinada em favor da palavra escrita, do texto poético. Desse modo, a poesia só é quando a Musa deixa de ser, quando aquilo que ela cantou se transforma em palavras de poeta.
***
Ainda na temática afro-brasileira, chegamos ao poema “Quichimbi sereia negra” (1947), de Jorge de Lima (1893-1953).
Quichimbi sereia negra
bonita como os amores
que tem partes de chigonga
não tem cabelos no corpo,
é lisa que nem muçum,
é ligeira que nem buru
não tem matungo e é donzela,
ao mesmo tempo pariu
jurará sem urucaia.
(...)
A mudez de Quichimbi diante do horror da escravidão é adornada de espuma. Ela personifica a própria navegação africana e aponta o mar como berço e cemitério de corpos e almas. Donzela que pariu, Quichimbi evoca a Maria cristã reforçando o intercâmbio entre os mitos. Mais próxima do peixe-serpente do que da mulher-peixe da tradição Clássica, Quichimbi assiste “as terras mudar de dono / o mar servindo de escravo / ao homem branco das terras”. Sereia africana, ela não se encaixa nem nos moldes das sereias greco-romanas, nem na mãe d’água amazônica. Ao invés da mistura de contrastes, temos fusões e convivências.
No capítulo “Sereias de Angola”, do livro Made in África (2008), depois de apresentar as sereias Quianda e Quituta, Cascudo anota que:
Há uma terceira, vivendo em Mbaka, Ambaca, com o nome de Quiximbi, podendo ser masculina ou feminina e tendo domínio nos rios e lagos da região. Quianda, Quituta, Quiximbi são realmente water genius, antiquíssimas entidades locais valendo como força materializadora do próprio elemento. Depois, muito depois, é que foram reduzidas em forma física e aculturadas com o mito das sereias do Mediterrâneo.
Os versos “Quichimbi segue nas ondas / dez mil anos caminhando, / dez mil anos assistindo” demonstram que a sereia viveu a História, tal e qual a Musa Clássica, ou seja, estava presente aos acontecimentos. A musa Quichimbi, diferente da Musa de Castro Alves, como vimos, é muda, ante o horror perante os céus: a escravidão. Isso porque, também diferente da Musa de “Navio negreiro”, Quichimbi personifica a ancestralidade em degredo, ela partilha do sensível.
Sobre essa ideia de corpo memorial de Quichimbi, chamamos atenção para as palavras do historiador Luiz Antonio Simas (2013):
Os velhos do candomblé dizem que depois de criar os orixás e as enormidades do universo, Olodumare passou a se preocupar com um detalhe: se os homens estão fadados ao esquecimento, quem saberá rememorar o dia da criação e louvar os seus encantamentos? Quem perpetuará o limiar dos tempos?
Para resolver o dilema, Olodumare concedeu a alguns homens o poder do canto, os secretos da música, da dança e dos chamamentos da poesia - para que a arte celebre o alvorecer da vida e seja capaz de ludibriar a finitude em sons imorredouros. (p. 84).
Eis o trabalho da poesia e dos poetas aqui analisados. Memória e esquecimento se complementam na fala do poeta. Basta lembrar que Mnemosyne, a deusa que faz recordar, também faz as dores e males do presente ser esquecidos. “A palavra do poeta é como o canto das sereias”, anota Marcel Detienne (1988, p, 40). Ao re-criar as ações do “passado” interferindo no presente, o narrador engenha astuciosamente um mais-que-presente, uma verdade ficcional, mas sonora, concilia narrativa e ouvinte. “A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou”, canta o sujeito de “Força estranha”, canção de Caetano Veloso (1978).
No livro Invenção de Orfeu (1952), Jorge de Lima faz uso de várias Musas de diferentes épocas da história da literatura para compor o tecido mnemônico: Inês de Castro, Lenora, Eurídice, Beatriz, Ofélia, Penélope, Eumetis, Mira-Celi e Celidônia, entre outras. Musas, como sabemos, mortas e/ou ausentes, configurando o caráter órfico da invenção de Orfeu.
No Brasil, Quichimbi irmana com Guaraci, com Iemanjá, com quem divide a maternidade dos viventes, dos que não separam o espírito do corpo. Iemanjá, sereia jeje-nagô, por sua vez,
[...] é o orixá dos Egbá, uma nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe ainda o rio Yemoja. As guerras entre nações iorubás levaram os Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá, no início do século XIX. Evidentemente, não lhes foi possível levar o rio, mas, em contrapartida, transportaram consigo os objetos sagrados, suportes de axé da divindade (VERGER, 1981, p. 190).
Apesar de complexa, não é difícil imaginar a translação de Iemanjá para o Brasil, onde se tornou a mãe de todos os orixás e cujas homenagens ― vestir-se de branco e derramar bebida para o orixá ― se disseminou pelas várias religiões, e entre os não religiosos. A hibridação com Quichimbi está armada.
***
Só em 1942 é que as sereias aparecem significativamente na poesia de Oswald de Andrade (1890-1954). No trecho “Black-out”, do poema “Cântico dos cânticos ― para flauta e violão”. A referência bíblica é evidente. Mas importa a Oswald cantar a vivência amorosa imiscuída à convivência política, como observou Haroldo de Campos (1992), para quem o poema se configura como um “rodízio apocalíptico entremeado de imagens fálicas e bélicas, onde ocorre uma transposição do tema amoroso para o social através do jogo paranomástico entre “sereias”, nas suas duas acepções, e “searas” (p. 94-95).
[...]
Da podridão
As sereias
Anunciarão as searas
O tom profético dos versos coroa com um rastro de esperança o caos até então descrito em procedimento estilístico que tem a repetição como técnica de adensamento do conteúdo fragmentado. Em Oswald, assim como o índio é tecnizado, as Sereias não vivem entre ninfeias e rosas que bóiam em águas transparentes, mas no charco, na podridão do progresso vazio. Elas são signos de um projeto falido de nação.
Lembremos aqui a pergunta feita por Haroldo de Campos (1992, p. 91) e que ajuda a pensar os procedimentos utilizados pelos escritores brasileiros no enfrentamento daquilo que Antônio Candido (1979) chamou de “consciência do subdesenvolvimento” e que tem já no chamado “Romance de 30”, ou “Romance social”, as marcas da configuração de uma ruptura com a imagem até então exótica, esperançosa e festiva do Brasil: “Em que medida o eu-lírico e o eu-participante podem resolver-se no mesmo parâmetro semântico, podem resolver-se no mesmo lance linguístico, sem desgaste da categoria do estético, sem que tudo redunde em platitude retórico-sentimental?”.
Segundo Candido (p. 344), “esse estado de euforia foi herdado pelos intelectuais latino-americanos, que o transformaram em instrumento de afirmação nacional e em justificativa ideológica. A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego, favorecida pelo romantismo, com apoio na hipérbole e na transformação do exotismo em estado de alma”. Mais adiante, Candido completa:
A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 houvera mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dada a sua generalidade e persistência. Ela abandona, então, a amenidade e a curiosidade, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico. Não é falso dizer que o romance adquiriu, sob este aspecto, uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos. (CANDIDO, 1979, p. 345)
A ideia de um “país novo”, cheio de possibilidades, calcada na relação pátria = natureza, sendo essa uma compensação do atraso social, material e institucional daquela, é radicalmente questionada em importantes obras: O quinze, de Rachel de Queiroz; Moleque Ricardo, de José Lins do Rego; Infância e Vidas secas, de Graciliano Ramos; e Capitães da areia e Tenda dos milagres, de Jorge Amado. Entre tantos outros. Inclusive Oswald de Andrade, com suas sereias que anunciarão as searas, da podridão. Aliás, as sereias de Oswald se assemelham à “mulher do fim do mundo” cantada por Murilo Mendes no poema “Metade pássaro” (1941):
A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.
A mulher do fim do mundo
Chama a luz com assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas aos rios,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam
Murilo apresenta-nos uma mulher pós-apocalipse. (A mulher vestida de sol? Sereia, por que “metade pássaro”?). Enquanto Oswald arrasta-nos para a crueza incontornável da consciência do subdesenvolvimento. Mas ambas as figuras ― sereias, musas, mulheres ― guardam e cantam aos poetas um novo tempo por vir.
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Refiro-me ao poema “Sereia de Lenau” (1919).↩
Essa derradeira caracterização, possivelmente retirada do apocalipse bíblico, foi trabalhada pelo escritor Ariano Suassuna (1927-2014) na peça teatral que une o romanceiro ibérico e o cancioneiro nordestino: Uma mulher vestida de sol (1947).↩
Versos de “Iemanjá rainha do mar”, de Paulo César Pinheiro e Pedro Amorim.↩