Aproximações entre Søren Kierkegaard e Murilo Mendes
Edson Munck Jr
Universidade Federal de Juiz de Fora
munckjr@yahoo.com.br
Eduardo Gross
Professor Titular ― Universidade Federal de Juiz de For a
eduardo.gross@ufjf.edu.br.
Resumo: Tanto por registros na biblioteca pessoal quanto por declaração em entrevista de Murilo Mendes, a influência do pensamento de Søren Kierkegaard é conhecida sobre o poeta modernista brasileiro. Neste texto, propõe-se a leitura das questões centrais de duas obras kierkegaardianas constantes da biblioteca muriliana, a saber: O conceito de angústia (1844) e Migalhas filosóficas (1844). Da primeira obra, destaca-se o conceito de pecado original (ou, segundo o autor, pecado hereditário) e, da segunda, a discussão em torno de como se pode conhecer a verdade, resgatando a discussão socrática e platônica sobre o tema, ajustando-a com as considerações do filósofo dinamarquês. Em seguida, apresentam-se as considerações de Jonas Roos, aprofundando aspectos filosófico-teológicos a partir da discussão do paradoxo em Kierkegaard e as implicações existenciais do juízo e da graça, na perspectiva do cristianismo. A partir dessa abordagem crítico-teórica, chega-se ao “Poema Dialético”, publicado por Murilo Mendes no livro Poesia liberdade, o qual reúne poemas de 1943 a 1945. A leitura do poema muriliano será feita a partir dos conceitos kierkegaardianos apresentados, valendo-se de considerações de Michel Collot e de José Guilherme Merquior. Em Kierkegaard, a operação dos referidos conceitos é executada, em linhas gerais, para provocar a responsabilidade subjetiva no que tange a questões de existência e de vivência da fé. Paralelamente, em Murilo Mendes, pode-se ler a provocação executada pela voz lírica no referido poema a fim de afirmar a possibilidade da vida em meio ao caos da modernidade.
Palavras-chave: Søren Kierkegaard. Murilo Mendes. Poesia. Modernismo. Literatura brasileira.
Abstract: Both by registries and personal library of Murilo Mendes, an influence of the thought of Søren Kierkegaard is known on the Brazilian modernist poet. In this text, it is proposed a reading of central questions from two Kierkegaardian books which are in Mendes’ library: The Concept of Anxiety (1844) and Philosophical Fragments (1844). From the first work, the concept of original sin (or, according to Kierkegaard, hereditary sin) stands out and, from the second, a discussion about how one can know the truth, rescuing a Platonic and Socratic debate about the subject within the considerations of the Danish philosopher. The thoughts of Jonas Roos are presented to deep a philosophical-theological view on the discussion of the paradox in Kierkegaard and on the existential implications of the judgment and the grace in the perspective of Christianity. The reading of Murilo Mendes poem (originally published in Poesia liberdade, book which has poems from 1943 to 1945) is made based on the concepts presented in association with the theoretical approach of Michel Collot and José Guilherme Merquior. In Kierkegaard, living the life and the faith has to do with personal responsibility. At the same time, in Murilo Mendes, one can read a provocation performed by the lyrical voice in the mentioned poem in order to affirm the possibility of life amid the chaos of modernity.
Keywords: Søren Kierkegaard. Murilo Mendes. Poesia. Modernismo. Literatura brasileira.
É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir sempre o candelabro que o esclarece.
Murilo Mendes
Introdução
Em O conceito de angústia e Migalhas filosóficas, Søren Kierkegaard desenvolve os conceitos e as implicações do pecado original e da abordagem subjetiva na apreensão do conhecimento respectivamente. As considerações do pensador dinamarquês acerca dos mencionados temas são fulcrais para a compreensão aprofundada e atualizada da fé cristã. Em um primeiro momento, com base nas análises e considerações de Jonas Roos sobre a obra e o pensamento kierkegaardiano, buscar-se-á construir uma compreensão dos argumentos a respeito do cristianismo desenvolvidos nas obras supracitadas. Posteriormente, quer-se aproximar e acionar a conceituação de Kierkegaard para se efetivar uma leitura existencial-religiosa do “Poema Dialético”, de Murilo Mendes, publicado no livro Poesia liberdade. O poeta brasileiro era leitor das obras kierkegaardianas e, dessa forma, pretende-se efetivar uma investigação das possibilidades da presença do pensamento teológico-filosófico de Kierkegaard na poética muriliana.
O processo de tornar-se cristão em meio ao contexto da cristandade na Dinamarca do século XIX pode ser visto como a questão central da obra de Søren Kierkegaard. Em uma nação majoritária e oficialmente cristã, a fé deixava de ser um processo subjetivo e existencial, deixava de ser um percurso individual e profundo, passando a ser determinada de modo exterior, burocrático, terceirizado e inautêntico. A rápida modernização da sociedade dinamarquesa, talvez, indique a possibilidade de explicação da causa desse fenômeno que tomou conta do país no século XIX e redefiniu as estruturas sociais da nação, alterando os modos prévios de construção e de definição das subjetividades.
Surge, então, a voz de um pensador que, no intento sincero e dedicado de provocar a reflexão, adota a pseudonímia como recurso retórico de proposição de suas colocações. Søren Kierkegaard elabora um discurso que pretende fazer com que as pessoas se voltem para si mesmas no sentido de assumirem, de fato, a responsabilidade que têm pelas suas escolhas existenciais, recusando, assim, quaisquer identidades sociais que não tenham a participação do indivíduo em sua formação, em seu estabelecimento e em sua execução.
O método kierkegaardiano é semelhante ao de Sócrates, na Antiguidade, destilando suas perguntas e exercitando sua ironia a fim de tornar as pessoas no seu entorno atentas àquilo que as cerca e que, mais seriamente, pretende defini-las e modificá-las. O dinamarquês oitocentista se vale do modo de filosofia socrático para criticar e provocar seus contemporâneos: é possível herdar o conhecimento? É possível herdar o Cristianismo? Desse modo, Kierkegaard pretendia gerar em seus leitores a subjetividade que se coloca em questão e que faz questão de se colocar nas questões. O convencionalismo das formas de conhecimento e de vida que se estabelecia ― ou que estava estabelecido ― no contexto kierkegaardiano era colocado em xeque por meio de perguntas ― aparentemente ― impertinentes, as quais, pela sua densidade e necessidade, promoviam naqueles que as ouviam o exercício do pensamento em primeira pessoa, ou seja, o desenvolvimento de uma percepção crítica e pessoal acerca da existência.
No que tange à compreensão da fé cristã, Søren Kierkegaard não pressupunha que havia, em seu contexto, falta de conhecimento, arrogando a si a condição de determinar o que os cristãos deviam ou não fazer naqueles dias. Do contrário, ele escolhe afirmar um caminho que postula a presença misteriosa e transcendente do Absoluto, o qual convida à subjetividade e ao posicionamento individual na relação. A fé cristã, em Kierkegaard, é pensada como a contínua renovação de uma relação intensa e subjetiva com Deus, dado que este não pode ser totalmente compreendido, antes, pode ser crido. Deste postulado, literária e profundamente desenvolvido em Temor e tremor, deriva-se o conceito de paradoxo, uma vez que, no Cristianismo, o eterno se faz tempo em Jesus Cristo, o que, à razão, soa como absurdo e, à fé, como possibilidade de vida hoje e para sempre.
Em “Tornar-se cristão: o Paradoxo Absoluto e a existência sob juízo e graça em Søren Kierkegaard”, Jonas Roos desenvolve a ideia da centralidade do paradoxo do eterno no tempo para a compreensão da gênese e do desenvolvimento das ideias de Kierkegaard. Dentre as especificidades da análise proposta, destaca-se a investigação que o autor executa da oposição kierkegaardiana ao platonismo e ao hegelianismo ao apresentar a impossibilidade de os sistemas racionais humanos explicarem e/ou compreenderem o paradoxo cristão. Dessa forma, para Roos, o pensador dinamarquês propõe outra maneira de se relacionar com o cristianismo: a que o faz de modo existencial.
O pensamento de Kierkegaard como um todo é orientado pelo paradoxo do Deus encarnado, do Deus que julga o pecado e, ao mesmo tempo, perdoa com sua graça aqueles e aquelas que não cumprem sua exigência. Importa para Kierkegaard entender o cristianismo como um modo de vida, uma escolha existencial que gera responsabilidade pessoal, onde, simultaneamente, não se podem perder de vista os limites das ações pessoais. Independente do que se faça, se está sempre em dívida para com Deus e, portanto, se necessita do amor e do perdão de Deus, de sua graça infinita. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o paradoxo ilumina toda a obra de Kierkegaard.
(ROOS, 2007, p. 90).
O processo de tornar-se cristão, segundo postula Jonas Roos, não se separa do paradoxo do Deus-Homem, uma vez que, para a fé cristã, o próprio Deus modifica-se a si mesmo a fim de se colocar ao lado do ser humano com vistas a trabalhar para “gerar nele uma transformação, auxiliá-lo a ser uma pessoa nova” (ROOS, 2007, p. 108). Importa, nesse sentido, destacar quem em Kierkegaard, fé não corresponde a uma atitude mental, dado que alguém se torna um discípulo de Cristo por receber essa condição do próprio Deus, ao se relacionar com o próprio mestre e não por trazer consigo um repertório de conhecimentos históricos e doutrinários (ROOS, 2007, p. 112 e 113).
A discussão que Søren Kierkegaard empreende em O conceito de angústia, por meio do pseudônimo Vigilius Haufniensis, e em Migalhas filosóficas, através de João Clímacus, tomadas as obras em conjunto, quer levar o ser humano à necessária percepção existencial em torno do conceito de pecado e do modo como se apreende a verdade ou o conhecimento. A pertinência da discussão no contexto cristão existe, todavia, esse aspecto não nega a validade da discussão de modo amplo, para além dos limites da fé cristã, uma vez que o pensador dinamarquês coloca em questão a dinâmica existencial, propondo um exercício de subjetividade em torno das questões que a vida coloca diante dos homens. Assim, a obra de Kierkegaard permite compreender que o pecado é uma questão existencial, ou seja, está arraigada densamente ao eu e, dessa maneira, impede a pessoa humana de reconhecer-se como pecadora e, portanto, faz com que ela viva a não-verdade acerca de quem ela mesma é. Nesse sentido, a ideia da graça e do juízo de Deus, revelados, simultaneamente, em Cristo Jesus, é fundamental para compreender que a consciência do pecado e da necessidade de salvação executa o movimento de diferenciar o ser humano de Deus e, simultaneamente, fazer com que o ser humano se aproxime de Deus.
O processo de tornar-se cristão e a própria vida cristã são perpassados pela tensão do entender-se justo na constante apropriação da graça e da obra salvífica de Cristo e pecador no constante juízo advindo do não cumprimento da exigência da lei e da consciência do pecado tornada possível em sua radicalidade através da obra de Cristo. (ROOS, 2007, p. 138).
Dessa forma, no encontro do Cristo com o seu seguidor, a relação paradoxal se manifesta e, em simultaneidade, é capaz de colocar o indivíduo sob a ótica do juízo e da graça. A consciência subjetiva que se desperta nessa aproximação traz consigo a percepção das contradições e das cisões do eu. O tornar-se cristão se desenvolve por meio da e em meio à assimilação do conceito de pecado original pelo indivíduo e da necessidade de uma revelação a fim de que o ser humano se perceba como pecador. Para Kierkegaard, a existência é uma tarefa (do dinamarquês, opgave) que se torna possível por conta da pressuposição de uma dádiva (do dinamarquês, gave) e, portanto, ao cristão cabe exercitar a dádiva da fé, sinalizando com seu viver a dinâmica do eterno no tempo, do juízo e da graça.
Angústia, segundo o pseudônimo kierkegaardiano Vigilius Haufniensis, é fundamental para que se dê o salto de fé. Em O conceito de angústia, o autor analisa detalhadamente a doutrina cristã do pecado original (ou pecado hereditário) e o faz por meio de uma abordagem que conjuga conhecimentos de ordem “psicológico-demonstrativa”, segundo indica o subtítulo da obra em questão. “A angústia é uma qualificação do espírito que sonha. [...] [A] angústia é a realidade da Liberdade como possibilidade antes da possibilidade” (KIERKEGAARD, 2013, p. 45). Por si mesma, a angústia não caracteriza pecado, antes, ela é a vertigem da liberdade. Retomando o texto de Gênesis, Kierkegaard postula que, ao receber a proibição de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, Adão desconhecia o que era “bem” e “mal”, mas, diante da “angustiante possibilidade de ser-capaz-de” (KIERKEGAARD, 2013, p. 48), ele experimentou a angústia. O pecado nasce em face da angústia e, concomitantemente, traz consigo a angústia. Segundo o autor:
A angústia significa, pois, duas coisas. A angústia na qual um indivíduo põe o pecado, por meio do salto qualitativo, e a angústia que sobreveio e sobrevém com o pecado e que, portanto, também entra no mundo determinada quantitativamente, a cada vez que o indivíduo põe o pecado. (KIERKEGAARD, 2013, p. 59).
A partir de considerações preliminares sobre a condição angustiante da liberdade de que Adão e todos os seres humanos dispõem, Kierkegaard desenvolve a ideia de que o homem é livre para não pecar do mesmo modo que é livre para pecar. E, dessa maneira, a condição da queda é forjada pela existência. É relevante também a compreensão kierkegaardiana expressa em O conceito de angústia sobre a pecaminosidade universal humana, posto que o autor enfatiza que “[o] mito faz com que se passe no exterior o que é interior” (KIERKEGAARD, 2013, p. 50), ou seja, Adão é o gênero humano, é cada pessoa. Na compreensão kierkegaardiana, o conceito de pecado original, portanto, precisa ser encarado com senso de pessoalidade, pois implica “responsabilidade e culpa pessoal” (ROOS, 2007, p. 64).
Pode-se dizer que, em Migalhas filosóficas, o problema do pecado original é abordado de modo distinto àquele que se executa em O conceito de angústia. Enquanto esta obra se dedicou à investigação do que é e de quais implicações o conceito de pecado original tem para o indivíduo, aquela obra tem como finalidade empreender uma abordagem subjetiva da aquisição do conhecimento, destacando o tema da redenção no cristianismo.
João Clímacus1, pseudônimo kierkegaardiano de Migalhas filosóficas, é a voz que conduz os leitores no percurso de investigação de seu objeto: a aquisição do conhecimento. O método adotado nessa obra baseia a questão do conhecimento na subjetividade. Contudo, enquanto o pensamento grego2 entende que o conhecimento é resultante de ações do sujeito, Kierkegaard compreende que o conhecimento é resultante da ação de Deus. O desenvolvimento dessa abordagem ganha novos contornos à medida que a argumentação kierkegaardiana se vale do conceito de paradoxo. Este, na perspectiva de Søren Kierkegaard, só é possível de ser compreendido a partir da fé, dado que está para além da compreensão lógico-racional humana. Além disso, Migalhas filosóficas revelam o interesse de seu autor na discussão em torno de questões epistemológicas que, inequivocamente, têm e trazem implicações ao conceito de fé. A questão do paradoxo na aquisição do conhecimento é assim colocada por Kierkegaard: “se o deus é absolutamente diferente do homem, o homem é absolutamente diferente do deus, mas como a inteligência poderia compreender tal coisa?” (KIERKEGAARD, 2011, p. 70).
Ao abordar questões relacionadas à aquisição do conhecimento, Migalhas filosóficas empreende um debate filosófico e, para além desse aspecto, problematiza e postula posicionamentos com vistas à reflexão sobre modo de vida, existência, compreensão do cristianismo e modos de relacionamento com a fé cristã (ROOS, 2007, p. 90). Como, na obra, Søren Kierkegaard compreende que o ser humano é definido por ser não-verdade, é possível aproximar essa condição antropológica da ideia de pecado, o qual deve ser compreendido como conceito que atinge o ser. Jonas Roos esclarece essa relação nos seguintes termos: “Verdade/inverdade não é para Kierkegaard mera questão relativa ao saber, mas é questão de ser, de existência, ser ou não ser” (ROOS, 2007, p. 100).
O método socrático, ao qual se refere e contra o qual Kierkegaard argumenta, não contempla o conceito de pecado. Se a ignorância é o que justifica as más ações, as atitudes antiéticas etc., por que o ser humano, mesmo conhecendo o que é correto, ainda comete delitos? Desse modo, conhecimento, por si só, não é garantidor de virtudes. Por isso, para o pensador dinamarquês, a ignorância é, sim, responsável pelas más ações do ser humano, todavia, essa ignorância é mais profunda: é uma ignorância relacionada aos próprios atos e à própria condição. Como pode o ser humano escapar dessa condição? É neste ponto da argumentação que Kierkegaard postula a ideia do mestre como o salvador e como o juiz. No encontro com o mestre, o discípulo tem a oportunidade de ser transformado pela verdade.
A ideia de que o homem é não-verdade e que o seu mestre é o único capaz de lhe revelar a verdade e de lhe dar as condições para compreendê-la é ponto central em Migalhas filosóficas. Søren Kierkegaard, por meio do desenvolvimento dessa ideia, postula a conexão entre a cristologia e a antropologia (LØNNING apud ROOS, 2007, p. 102), a partir da qual se desenvolvem os conceitos de discípulo e de mestre na fé cristã: o ser humano é pecador que não consegue se salvar por conta própria, ao passo que Jesus Cristo é Deus encarnado e salvador dos seres humanos.
O paradoxo do Deus-feito-ser-humano enquanto servo humilde tornará paradoxal, por implicação, a relação do discípulo com ele. Se o mestre tornou-se igual ao discípulo para que ambos se compreendessem, por outro lado o incompreensível, o paradoxal é precisamente a igualdade estabelecida no rebaixamento do deus [...].
O deus não inicia sua aproximação elevando o discípulo, transformando-o para então amá-lo. Ele transforma primeiramente a si mesmo, coloca-se ao lado do discípulo e, então sim, a partir daí, a partir da situação onde o discípulo mesmo se encontra, trabalha por gear nele uma transformação, auxiliá-lo a tornar-se uma pessoa nova. (ROOS, 2007, p. 107-108).
Assim, uma vez que a verdade está distante da humanidade por conta da pecaminosidade, ela se dá por meio do paradoxo manifesto em Cristo Jesus, o qual é divino e humano. É no encontro do paradoxo com a inteligência que exsurge o instante capaz de mover o sujeito à fé3, uma paixão capaz de orientar e fazer nascer um modo de vida significativo existencialmente.
O paradoxo do eterno no tempo é fundamental para que se compreenda o pensamento de Søren Kierkegaard. Essa temática também fascinou o poeta modernista brasileiro Murilo Mendes, o qual, ao longo do século XX, empreendeu exercícios literários que podem ser lidos como tentativas de conciliação de contrários, nos termos de Manuel Bandeira. Como ilustração desse comportamento, cita-se o livro Tempo e eternidade, publicado em 1934, em parceria com o Jorge de Lima, o qual empreende um percurso de aproximação entre as temáticas religiosas da fé cristã e o contexto das primeiras décadas dos anos 1900.4
Do relatório de obras da Biblioteca do Museu Murilo Mendes5, instituição que abriga a coleção de livros que eram do poeta brasileiro, constam publicações de Søren Kierkegaard, incluindo livros e comentários. As edições dos livros do pensador dinamarquês são todas francesas e reúnem os seguintes títulos: A doença para morte, As obras do amor, Migalhas filosóficas, O conceito de angústia, Ou / ou e Temor e tremor. O pensamento kierkegaardiano despertou o interesse de Murilo Mendes, o qual relatou a Homero Senna, em entrevista, que, juntamente a Platão, Pascal e Novalis, Søren Kierkegaard deixou marcas em seu espírito (SENNA, 1996, p. 251).
A compreensão da poética modernista perpassa a discussão em torno do sujeito lírico. Michel Collot, em “O sujeito lírico fora de si”, postula o conceito de uma persona poética que extrapola e se contrapõe ao lirismo categorizado por Hegel, para quem “o poeta lírico autêntico” é capaz de “procurar em si mesmo o estímulo e o conteúdo e, por conseguinte, pode se ater ao seu próprio coração e espírito nas situações, estados, eventos e paixões interiores. Aqui o homem se torna em sua interioridade subjetiva ele mesmo obra de arte” (HEGEL, 2004, p. 165). O sujeito lírico fora de si, percebido por Collot, opõe-se ao sujeito fechado em si mesmo postulado por Hegel, dado que”uma tal saída de si não é uma simples exceção, mas, pelo menos para a modernidade, a regra” (COLLOT, 2004, p. 165). O que seria, então, o “estar fora de si” do poeta? Inicialmente, por conta da desintegração subjetiva, o estar fora de si corresponderia a perder o domínio dos movimentos interiores e, assim, ser lançado para o exterior. Através dessa ação, o sujeito lírico experimenta o “pertencimento ao outro ― ao tempo, ao mundo ou à linguagem ―” e, nesse gesto, o sujeito lírico se lança “em um mundo e em uma linguagem desencantados” (COLLOT, 2004, p. 166).
Foram variados os modos como a poesia modernista brasileira reagiu à modernidade que chegava, ainda que tardiamente, ao país. De modo geral, a postura combativa do primeiro modernismo nacional foi cedendo lugar, com o passar dos anos, a um projeto de aprofundamento das questões existenciais que encontrou, às vésperas, em meio e no pós-guerra, quiçá, sua principal provocação. Murilo Mendes participa, com suas obras, desses distintos momentos e executa em seus poemas a problematização das questões do homem moderno que quer se aproximar novamente do mito, do religioso, do espiritual. Com base nas considerações de Michel Collot acerca do sujeito lírico fora de si, pode-se sugerir que a obra muriliana executa essa dinâmica de renúncia à liricidade nos termos hegelianos a fim de empreender um percurso de reconstrução da linguagem e, por conseguinte, da subjetividade. Para o sujeito lírico que se demonstra em Murilo Mendes, o embate com as questões exteriores é definitivo para que se constitua a subjetividade. Assim, a lírica muriliana se destaca pela capacidade de, ao tratar de questões do tempo, fazer com que as questões da eternidade se manifestem, ou vice-versa.
O cristianismo cultivado e problematizado por Murilo Mendes em sua poética, segundo José Guilherme Merquior, possui três elementos: um sentido plástico da finitude; uma ideia heroica da divindade; e uma dupla concepção de poesia (a poesia como martírio e a poesia como agente messiânico). Do primeiro elemento, resultaria a condição humana entre o não-ser e o vir-a-ser; do segundo, a ideia do Cristo-homem, da humanidade de Jesus de Nazaré, a encarnação do Verbo de Deus; e, do terceiro, o testemunho sofrido do ser conjugado à poesia como veículo escatológico, “selo da redenção”. (MERQUIOR, 1994, p. 14-15) Tais considerações críticas permitem esboçar conexões entre os postulados de Kierkegaard, dado que há, potencialmente, na análise efetivada por Merquior sobre a obra muriliana, elementos como a questão do pecado original, o paradoxo do Deus-homem e o problema do tornar-se cristão. Ademais, para o crítico, a excelência da poética religiosa de Murilo Mendes reside, justamente, no fato de esta não se concentrar em uma tarefa propagandista, mas sim na problematização da religiosidade (MERQUIOR, 1990). Tal problematização pode estimular a discussão das implicações pessoais que envolvem a vivência religiosa.
Dando voz a José Guilherme Merquior, em Murilo Mendes ou a poética do visionário (1965), busca-se sumarizar os exercícios de religiosidade que o poeta executou em sua obra:
É preciso compreender a religiosidade muriliana em seu rosto ambivalente e em seu coração dilacerado de contrários ― religiosidade em que o pecado desempenha um papel de tanto relevo, e em que o catolicismo, concebido como “grandeza de uma luta” (Lúcio Cardoso), confere uma intensidade inédita (Alceu Amoroso Lima) dostoievskiana, ao conflito maior entre o bem e o mal ― para atribuir, com certeira justiça, a condição de grande poeta religioso a Murilo Mendes. Cristão dialético, religioso moderno, muito mais teilhardiano que tomista, Murilo extrai de uma crença dramática uma concepção de vida sob o signo marcante do devir (MERQUIOR, 1965, p. 55).
Ambivalência. Contrariedade. Pecaminosidade. Cristianismo dialético. Devir. Dentre os conceitos apresentados por Merquior, esses são produtivos quando se discutem as relações possíveis entre a poesia muriliana e o pensamento kierkegaardiano. A compreensão da responsabilidade pessoal no que diz respeito ao pecado original e a vontade de, por meio da fé, tornar-se nova criatura, restaurando a possibilidade de poesia parecem transparecer na poesia modernista de Murilo Mendes como ecos dos postulados de Søren Kierkegaard.
“Só penetramos o mistério na medida em que o reencontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano” (BENJAMIN, 2012, p. 33). Em “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”, Walter Benjamin deixa o postulado citado que soa conveniente àquilo que a poesia de Murilo Mendes estabelece quando toca o sagrado. À voz lírica, o “mistério” que o sacro pode representar parece cotidiano, envolvendo-se com a história, em fulgurações de eternidade no tempo cronológico dos homens. Além disso, o hodierno tem seu potencial aurático elevado nos poemas, dado que é nele e dele que surgem as revelações e questões que ativam e ratificam o domínio do sagrado. O “Poema Dialético”, publicado no livro Poesia liberdade, que reúne textos escritos entre 1943 e 1945, ilustra como Murilo Mendes efetiva a difícil tarefa de falar a linguagem do eterno na modernidade:
Poema Dialético
1
Todas as formas ainda se encontram em esboço,
Tudo vive em transformação:
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.
Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga:
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.
2
Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.
Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade do mundo.
Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em planos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.
3
A muitos só lhes resta o inferno.
Que lhes coube na monstruosa partilha da vida
Senão uma angústia sem nobreza, e a peste da alma.
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror,
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos,
Comeram o pó e beberam o próprio suor,
Não se banharam no regato livre.
Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve assumi-la em carne e espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.
4
É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir sempre o candelabro que o esclarece.
Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída em tempo à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita:
A aurora é coletiva.
(MENDES, 1994, p. 410-411).
Ao longo das quatro partes que compõem o “Poema Dialético”, percebe-se a evocação de imagens desconcertantes nos versos iniciais de cada seção, demonstrando a marca muriliana de facção do verso com imagens inesperadas, impulsionando a leitura, desde o início, com a pulsão das visões típicas do surrealismo a fim de efetivar um mergulho na existência humana.
Na primeira parte, a metáfora do esboço alia-se, semanticamente, à ideia de transformação manifesta no segundo verso. Pelo uso da conjunção adversativa, “esboço” e “transformações” são questionados quanto à sua estaticidade, rumando, em meio à sugerida imperfeição, para a exatidão da “arquitetura perfeita”. Em um gesto rápido, a voz lírica efetiva um corte imagético, evocando, na segunda estrofe da primeira parte do poema, o processo de feitura da lira. Este instrumento é duplamente adjetivado, demonstrando seu valor e a carência que se tem da “sua secreta música”, dado que é característica dos seres. A imagem da lira evocada nesses versos faz com que se sugira o ritmo e a melodia da “marcha” do universo prenunciada na primeira estrofe. Esse marchar é acompanhado do aumento da sonoridade da lira, dado que, a cada poeta nascido, uma nova corda é acrescida ao instrumento.
Efetivando-se o corte abrupto, o poeta inicia a segunda parte do poema evocando os tempos imemoriais, conectando o homem moderno ao homem de outrora, fazendo-os irmãos e complementares. O agora e o ontem se encontram no marchar rascunhante do universo. A segunda estrofe desta seção sugere a continuidade unificadora do mundo, a qual parece depender do movimento de cada uma de suas peças. Convocando o tempo das origens, a voz lírica indica haver um germe desde o princípio, criado “para que se desdobre em planos múltiplos”. Os sofrimentos humanos, sinalizados com o pronome possessivo de primeira pessoa do plural, “Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores”, parecem ser hereditários e têm como ponto de partida o “espírito sereníssimo que preside às gerações”.
A terceira parte do poema irrompe-se em meio ao cenário urdido pelo poeta com a tenacidade da imagem do inferno. O uso do “só”, no verso de abertura da seção, associado aos “muitos”, sugere a condição desesperada que marca os seres humanos. Nesse trecho, o poeta opta pelo exercício de mover para o início das sentenças o ponto de interrogação, manifestando, a partir do segundo verso, o questionamento, a dúvida acerca das razões que levam os indivíduos a viverem privados de esperança, marcados pela horrenda “peste da alma”. A esses lhes é negada a experiência de ouvir “a música nascer do farfalhar das árvores”, é negada a experiência de assistir “à contínua anunciação” e “ao contínuo parto das belas formas”. Há seres humanos para quem “noite” é sinônimo inequívoco de “terror”, posto que são condutores de “castigo”, curvados pela “sombra de seus atos”. Numa clara relação com a narrativa bíblica de Gênesis, o poeta identifica esses indivíduos como aqueles que “Comeram o pó e beberam o próprio suor”, como sinal alusivo da queda. A seção terceira do “Poema Dialético” é rica das referências bíblicas e, em contraponto à condição degradante descrita previamente, referindo-se aos homens aos quais não lhes foi dada a chance de efetivar poiésis ― de constituir sentido, de promover realizações, dado que “Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores, /
Nem assistiram à contínua anunciação” ―, mostra-se a perspectiva esperançosa da “transfiguração”, da fusão “carne e espírito” e da voz redentora que provém do Verbo de Deus: “Para que a alegria seja completa e definitiva”.
Ante o diagnóstico firmado nos versos precedentes, a quarta parte do poema se inaugura com a potência do dístico: “É necessário conhecer seu próprio abismo / E polir sempre o candelabro que o esclarece.” Em tom imperativo, o sujeito lírico conjuga a condição de todos para cada um, sugerindo as ações de “conhecer seu próprio abismo” e “polir sempre o candelabro que o esclarece”. A paradoxal imagem criada pelo poeta é reveladora da condição humana, pois o candelabro se torna insignificante ante a imensidão do alvo de sua iluminação. Contudo, a imagem criada por Murilo Mendes provoca a consciência do abismo, o saber de sua existência e o detalhar de suas extensões, e, simultaneamente, a consciência dos limites daquilo que é capaz de revelar tal abismo ao sujeito. A ação de “polir sempre o candelabro”, adverbializada para sugerir constância, permanência, parece sugerir percepção daquilo que é usado para definir os riscos existentes. Inequivocamente, o abismo é imagem vigorosa que alude à queda e, nesse sentido, pode indicar a condição humana de fratura em relação à vida ou, na perspectiva do cristianismo, a pecaminosidade do primeiro e de todos os seres humanos. Talvez seja o gesto de conhecer o abismo e polir o candelabro que permita ao homem o prosseguimento da marcha e da espera. Às vésperas do término da última seção do poema, o sujeito lírico metaforiza a vida como “uma vasta expectação / Onde se tocam princípio e fim.”, ecoando a perspectiva da gênese e do apocalipse pessoal e cósmico. Por fim, retoma-se o ímpeto imperativo e declara-se o ideal de partilha. Ao término do poema, é resgatado um dos versos iniciais: “Tudo marcha para a arquitetura perfeita”. A noite que parece insidir sobre os homens é destronada pela potente metáfora que conclui o poema muriliano: “A aurora é coletiva.”.
Em tempo, convém destacar a escolha que Murilo Mendes executa ao intitular o texto: “Poema dialético”. Tal opção aciona um conceito caro à filosofia. Em linhas gerais, pode-se dizer que dialética faz referência à tensão existente entre duas forças ou dois elementos que interagem entre si. Pode-se também dizer que dialética corresponderia ao intercâmbio de ideias ou, ainda, ao raciocínio sistemático, à exposição, à argumentação que justapõe ideias opostas ou contraditórias com vistas à dirimir um conflito, e isso no intuito metodológico de examinar e discutir as oposições evidenciadas a fim de encontrar a verdade.
A dialética filia-se à lógica e, na tradição platônica, consistia nas discussões e nos raciocínios, por meio de diálogos, operando como um método de investigação com vistas à exposição do falso e da afirmação do verdadeiro. Platão se valia do método dialético para tratar das ideias eternas. Aristóteles se valia da dialética para operar a lógica do provável, pois essa lógica tem validade como procedimento racional não demonstrativo, posto que o silogismo é dialético quando parte de uma premissa admitida como provável. Os estoicos identificaram a dialética com a lógica geral, tendo-a como a ciência orientadora da adequada discussão, orientada por meio de perguntas e respostas. Kant, por sua vez, falava da dialética como a lógica das aparências e das ilusões, ou seja, a lógica das falácias. Em Hegel, o conceito e seu método adquirem novas acepções, passando a significar a investigação crítica do processo de formação dos conceitos e de suas mudanças.
Apesar das variantes por que o conceito de dialética passou na história da filosofia, é possível sublinhar quatro significados fundamentais: a) dialética como método da divisão; b) dialética como lógica do provável; c) dialética como lógica; e d) dialética como síntese dos opostos (ABBAGNANO, 2012, p. 315). Tais significados derivam-se das doutrinas filosóficas que mais influenciaram o conceito de dialética, a saber, a platônica, a aristotélica, a estoica e a hegeliana. Segundo Nicola Abbagnano, uma exceção ― na história da filosofia ocidental ― ao uso do conceito de dialética encontra-se em Kierkegaard, que valida apenas a ideia de dialética como a possibilidade de reconhecer o positivo e o negativo, ou seja, a “conexão entre os opostos que não elimina nem anula a oposição e não determina uma passagem necessária para a conciliação ou para a síntese, mas permanece estaticamente na própria oposição” (ABBAGNANO, 2012, p. 319).
O poema de Murilo Mendes sugere, ao longo de seus versos, a perspectiva dialética. Estruturalmente, as quatro partes ― em si e entre si ― conotam o embate de ideias distintas, operando dialeticamente na investigação sobre o que é ser humano. Enquanto a primeira seção alude às noções de esboço, de transformação, de movimento, de canto e de música ― com o fim de buscar a “arquitetura perfeita ―, a segunda, por exemplo, opõe “Uma vida iniciada há mil anos atrás” a “outra vida que floresce agora”, destacando a intrínseca complementaridade que se dá pela semelhança e pela diferença, pela unidade e pela diversidade, pelo princípio e pelo infinito. A terceira parte, com sua densidade verbal provocada pelos questionamentos ― semelhantes aos do método socrático ―, é, marcadamente, oposta ao conceito de existência que se traduz nas demais estrofes, posto que, nesta, as metáforas de punição, de danação e de castigo operam distinguindo-se das previamente apresentadas. Apesar disso, como os versos estão em operação dialética, ao final da terceira seção do poema, manifesta-se o “Entretanto, a transfiguração precede a morte.”, verso que convoca esse contexto ao seu contrário. Por fim, a última parte do poema retoma a primeira por meio da reiteração da marcha: “Tudo no universo marcha, e marcha para esperar” e “Tudo marcha para a arquitetura perfeita”. Tal retomada não se dá de modo isento, antes, opera modificações: a marcha sugere o movimento e, também, a expectação. Na retomada, opera-se a mudança também aludida na parte primeira do poema. Se, na história da filosofia, a dialética serviu à busca da verdade, o sujeito lírico muriliano, ao final do poema, apresenta uma conclusão sobre a condição humana: “Nossa existência é uma vasta expectação / Onde se tocam o princípio e o fim.” O poema em questão evidencia as diferenças entre o não-ser e o vir-a-ser pelas quais, em sua existência, o ser humano passa e é. Se há possibilidade de vida significativa para o homem, ela, dialeticamente, relaciona-se ao confronto subjetivo com o abismo. Todavia, para tal embate, é necessário que se constitua o caminho que conduz à revelação do abismo. Assim, o sentido existencial se dá, dialeticamente, no confronto com a sua ausência ou sua negação.
A leitura de “Poema Dialético” deixa evidente o papel que a poesia e o poeta têm ante o caos que se implanta no universo. Ao recuperar a atitude ancestral de elaborar sua lira a partir das “árvores profanas”, o sujeito lírico sugere que é preciso restabelecer o contato com o sagrado. O canto profano manifesto no tempo quer falar da eternidade e trazê-la para o aqui e para o agora. É a partir do ritual efetivado pela composição lírica que, no poema, configura-se a perspectiva de esperança e de redenção do universo. Há, em Poesia liberdade, a seguinte epígrafe: “Aos poetas moços do mundo.” A obra, portanto, pode ser vista como uma celebração e uma chamada à efetiva liberdade da palavra por meio da poesia. No poema em análise, essa perspectiva se demonstra de maneira clara, posto que é mediante a ação dos poetas que aos homens é dado conhecer sons diferentes daqueles advindos da contingência caótica a ponto de provocar a lucidez de revelar-lhes o abismo e lhes motivar a percepção de sua própria condição miserável enquanto, paradoxalmente, esses homens ainda marcham.
Ainda que não receba o nome de “pecado original” ou “pecado hereditário”, ainda que não haja explícita a referência à questão da não-verdade que marca a humanidade, ainda que sutilmente se indique a necessidade de conhecer a condição humana, ainda que não se estrutura uma dialética plena nos termos filosóficos ou teológicos, é notória, em “Poema Dialético”, de Murilo Mendes, a presença de discussões que se apresentam em O conceito de angústia e em Migalhas filosóficas, de Søren Kierkegaard. O sujeito lírico muriliano, nas especificidades e nas liberdades da linguagem poética, cria no poema um discurso acerca da condição humana e provoca reflexão sobre as implicações existenciais que essa percepção pode e pretende gerar.
De modo semelhante, a dinâmica do juízo e da graça podem ser percebidas no poema de Murilo Mendes, dado que a perspectiva, por exemplo, da condenação está colocada paralela e simultaneamente à da redenção em “Poema Dialético”. Ainda que a voz lírica proclame a densa verdade da condição caída da humanidade, oferta-se, nos versos murilianos, a possibilidade de salvação. Se, em Kierkegaard, Cristo é a personificação do juízo e da graça, no poema de Murilo Mendes, o poeta é aquele capaz de proclamar a danação e apontar o caminho da reconciliação aos homens.
Em Søren Kierkegaard, o ser humano é uma síntese entre o temporal e o eterno, o corpóreo e o anímico, a necessidade e a possibilidade, o finito e o infinito. Dessa maneira, na dialética que compõe a condição antropológica do homem, articula-se sua existência por meio de elementos simbólicos. O existir articulado simbolicamente se dá, em Kierkegaard, no cristianismo. Paralelamente, na dialética evidenciada no poema de Murilo Mendes, percebe-se a motivação do eu lírico na busca de um paradigma de construção de sentido que não está, necessariamente, próximo a si; antes, encontra-se simbolicamente articulado a tempos prévios, inserindo o sujeito em um universo de construção de sentido que aciona a responsabilidade pessoal do sujeito diante daquilo que lhe é oferecido.
Tal como Kierkegaard o fez na Dinamarca do século XIX, Murilo Mendes executa, com sua poesia, a possibilidade de tornar seus leitores atentos para questões cruciais, desafiando-os, em meio à modernidade, com o vigor das imagens poéticas e com o convite a perceber a necessária e latente conexão dos homens do agora com os homens de antes, resgatando a linguagem do mito e, concomitantemente, a linguagem religiosa em seu sentido forte, uma vez que desprovido da apatia pela provocação das palavras. Søren Kierkegaard e Murilo Mendes têm o compromisso de colocarem seus leitores nas questões que problematizam e, dessa forma, restaurar a ligação entre as palavras e a vida, tão importante para a religião e tão importante para a poesia.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. e rev. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas, v.1)
__________. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas, v.2)
COLLOT, Michel. O sujeito lírico fora de si. Trad. Alberto Pucheu. Terceira margem: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano IX, n.11. p.165-177, 2004.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: USP, 2004. p. 155-200.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MERQUIOR, José Guilherme. Notas para uma muriloscopia. In: MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.11-21.
__________. À beira do antiuniverso debruçado ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes. In: __________. Crítica 1964-1989. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p.137-147.
__________. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
__________. A astúcia da mimese: ensaios sobre lírica. José Olympio: Rio de Janeiro, 1972.
KIERKEGAARD, Søren. Temor e tremor. Trad.: Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água, 2009.
__________. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. Trad.: Ernani Reichmann e Álvaro Valls. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
__________. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Virgilius Haufniensis. Trad.: Álvaro Luiz Montenegro Valls. 3. ed. Petropólis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013.
ROOS, Jonas. Tornar-se cristão: o Paradoxo Absoluto e a existência sob juízo e graça em Søren Kierkegaard. 2007. 247 p. Tese (Doutorado. Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia) - Escola Superior de Teologia. São Leopoldo.
SENNA, Homero. República das letras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3. ed. 1996.
STORM, D. Anthony. D. Anthony Storm's Commentary on Kierkegaard. Disponível em: <http://www.sorenkierkegaard.org/>. Acesso em: 21 jul. 2016.
O nome provém de um monge grego, conhecido também como Johannes Climacus, que viveu entre 570 e 649 d. C. e redigiu uma obra intitulada Klimax tou Paradeisou, cuja tradução pode ser “Escada para o Paraíso”, devido à influência da primeira tradução para o latim (Scala Paradisi). O nome do religioso é, portanto, uma derivação do título de sua obra, a qual tratava de ascensão espiritual, descrevendo como enlevar alma e corpo a Deus através da prática das virtudes ascéticas.↩
Em Migalhas filosóficas, há uma breve reconstrução do pensamento platônico com vistas à apresentação do conceito de reminiscência, a partir do qual, segundo a tese socrática, o ser humano já estaria na verdade e a verdade, por sua vez, já estaria no homem. Em seguida, elabora-se a argumentação em torno da figura do mestre e do discípulo, valendo-se da ideia de instante, que prevê um significado que deve ser mais do que o meramente histórico. Desse modo, a diferença radical existente entre Deus e homem, nos termos kierkegaardianos, pode ser anulada no paradoxo do eterno no tempo, o qual, para ser compreendido, demanda fé. Kierkegaard, ao concluir a obra em questão, diz: “Este projeto ultrapassa, indiscutivelmente, o socrático, coisa que se mostra em cada ponto. Que seja ou não, por isso, mais verdadeiro que o socrático, é uma questão completamente diferente, que não se deixa decidir no mesmo alento, dado que aqui admitiu-se um novo órgão: a fé, e uma nova pressuposição: a consciência do pecado, uma nova decisão: o instante, e um novo mestre: o deus no tempo, sem os quais eu não teria ousado apresentar-me ante a inspeção do grande mestre da ironia” (KIERKEGAARD, 2011, p. 149).↩
“Kierkegaard seems to have acquired the idea of the leap from Gotthold Ephraim Lessing (1729-81), who in ways was groping toward some of his conclusions. He was a noted German esthetician, dramatist, and critic. His drama abandoned neo-classical forms and assumed more personal and ideal themes. Kierkegaard's leap is a qualitative leap of faith. This is not a blind leap as is often thought. Kierkegaard's concern was that faith is never easy or probable. Faith in God is an agonistic and often fearful struggle to cast one's entire person into relation to God. There is no gradual accumulation of sensory data or rational proofs for God's existence or for the resurrection of Christ, etc. One performs a willed act of faith despite fear, doubt and sin. The leap is not out of thoughtlessness, but out of volition. The leap is sheer and unmediated, and is not made by quantitative movements, stages, or changes. It cannot be mediated by proofs or reason. It is a sheer leap from doubt, or more specifically, from the doubt that exists by virtue of the paradoxical (the absurd), or in reaction to the offense of Christ, by faith to God.” STORM, D. Anthony. D. Anthony Storm's Commentary on Kierkegaard. Disponível em: <http://www.sorenkierkegaard.org/>. Acesso em: 21 jul. 2016.↩
Para aprofundamento e melhor compreensão acerca dos modos como Murilo Mendes aborda a questão no referido livro, sugere-se a leitura de: MUNCK JR, Edson. As representações do sagrado em Tempo e eternidade, de Murilo Mendes. 2014. 100 f. Dissertação (Mestrado) – Mestrado em Estudos Literários, Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2014. Disponível em: <https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/527/1/edsonmunckjunior.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2016.↩
Conforme informações presentes no relatório da Biblioteca do Museu de Arte Murilo Mendes. Disponível em: <http://www.museudeartemurilomendes.com.br/arquivos/murilomendes310113.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2016.↩