(Entre o luto do cadáver e o banquete antropofágico)
Renato Rezende
Doutor em Artes / Universidade Estadual do Rio de Janeiro
renato@renato-rezende.com
Resumo: O artigo procura delinear um possível discernimento entre uma arte ainda de cunho modernista e a arte contemporânea no Brasil, através da apresentação de obras de Nuno Ramos e de Deyson Gilbert, tendo Brasília como ponto emblemático entre ambas abordagens, que recaem sobre uma concepção de arte e sua função.
Palavras-chave: arte moderna; arte contemporânea; arte brasileira; Brasília
Abstract: The article aims to delineate a possible distinguishing between a still modernist art in Brazil and a contemporary one, through the presentation of works by Nuno Ramos and Deyson Gilbert, and having Brasilia as an emblematic point between both approaches that refer to a conception of art and its function.
Keywords: modern art; contemporary art; Brazilian art; Brasilia
Em seu ensaio para os catálogos da “Bienal da Antropofagia” (São Paulo, 1998), com curadoria de Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa, Bienal que, de certa maneira instaura o pensamento contemporâneo na arte brasileira, Suely Rolnik resume as aflições da existência hodierna com uma pergunta, ou melhor, com uma série de perguntas que se endereçaram a todos nós:
[...] nos tornamos de fato homeless, todos? a casa subjetiva dissolveu-se, desmoronou, desapareceu? onde está a identidade? como recompor uma identidade neste mundo onde territórios nacionais, culturais, étnicos, religiosos, sociais, sexuais perderam sua aura de verdade, desnaturalizaram-se irreversivelmente, misturam-se de tudo quanto é jeito, flutuam ou deixam de existir? Como reconstituir um território neste mundo movediço? Como se virar com esta desorientação? Como reorganizar algum sentido?2
Antes de desenvolver algumas considerações sobre a específica contribuição brasileira, evidentemente vinculada às proposições de Oswald e sua vacina antropofágica, Rolnik prossegue para caracterizar o mundo de hoje como um “oceano infinito, agitado por ondas turbilhonares”. A imagem que ela pinta é apocalíptica:
[...] um segundo dilúvio ― só que desta vez as águas nunca mais irão baixar, nunca mais haverá terra à vista, as arcas são muitas e flutuam para sempre, lotadas de noés também muitos e de toda espécie. Nunca mais os pés pousarão na paisagem estável de uma terra firme: habituar-se a ‘navegar é preciso’.3
A grandiosa contundência dessa imagem, que não deixa de aludir à imensidão do litoral e do território selvagem e/ou submerso brasileiro, lembrando também que “o sertão vai virar mar”, e a alusão à Fernando Pessoa têm o poder de acender em nossas mentes, ou pelo menos na minha, um sem número de poemas, fotografias, filmes e objetos de todas as épocas que remetem de alguma forma ao inesgotável tema das águas...
Para ficar apenas no campo da arte recente produzida no Brasil, podemos pensar em alguns trabalhos de forte cunho poético, e quem sabe concluir que muitos deles (ou quase todos) carregam um certo ar de melancolia, ou, no melhor dos casos, de distante estranhamento, um sentimento de fragilidade diante do imensurável, uma tentativa de restaurar um abrigo ou salvaguardar um recolhimento. Lembro-me de Marulho (1991-1997), de Cildo Meireles; Oceano possível (2002), de Sara Ramo; Algumas perguntas (2005), de Brígida Baltar e Herança (2007), de Thiago Rocha Pitta ― todos com carga, poderíamos dizer, humanista. Do mesmo artista (Thiago), e navegando cada vez mais no sentido inverso do quadro pintado por Rolnik, penso em Naufrágio interior (2008); e de naufrágio em naufrágio, de recusa em recusa, de resistência em resistência, de evaporação a evaporação, aproximo-me da lembrança de dois barcos de pesca (uma grande canoa e uma pequena traineira), sem cor (na verdade, revestidos pela cor neutra ou embranquecido do sabão), naufragados no chão seco de uma galeria: Mar Morto (2009), de Nuno Ramos.
A ideia de naufrágio, de abandono, de resto ou ruína, é recorrente na obra de Ramos; basta mencionar, por exemplo, Marécaixão (1996), Casco (Shackleton) (1999), Marémobília (2000) ou Morte das casas (2004). Escreve Paulo Sergio Duarte, no catálogo da exposição em questão:
Em Mar Morto, nada de natural, os barcos têm apagada qualquer memória arcaica ou primitiva. Não há essa presença biológica da vida, como jumentos e aves de mau agouro. As embarcações são figuras e coisas violentadas desde sua epiderme, outrora coloridas, agora encouraçadas de sabão.4
No espaço da galeria, na qual o espectador, emudecido e quase paralisado, também imerge ― “mas imersão, aqui, não é mergulho, é simplesmente estar aí, na obra”, continua Duarte ―, somos envolvidos pelas vozes de um homem e de um coro, murmurando em tom de lamento um texto permeado por trechos de obras literárias canônicas sobre o mar e o naufrágio, ecoando o oceano ausente. Da carne do mundo só restou uma linguagem fantasmática.5 Escutemos um pouco:
Palavra mágica. Naufrágio. Mar morto. Ouça esta: abismo. Mesmo quando lançado em circunstâncias eternas. Não sei. Ouça esta: seja que o abismo branco, irado. Seja. Então seja. Silêncio. Nenhum comentário, tosse, celular tocando, pigarro. Nada. Todo mundo falando baixo, como num velório. Para que apenas uma palavra ecoe pela sala. Esta palavra ― (Coro: Ai!) abismo. Apenas seja. Que ele seja. Que esteja aqui, presente entre nós. Neste exato momento. De novo: seja que o abismo. Que nossos corpos, em suaves prestações de afogamento, oceano adentro, metro a metro, estejam afundando, como pedaços de ferro maciço ― enquanto rimos e rimamos, e continuamos a comer, e a ler, amar e fazer estas (num crescendo) obras- lin-das (Coro: Castigo!). Seja que todos juntos façamos isso e por isso, exatamente por isso, ninguém perceba o que está acontecendo e assim continuemos todos a fazer as mesmas o-bras-lin-das todos os dias, sem ninguém se queixar (afinal, são lindas), enquanto nossos corpos, não nós, não exatamente nós, eles, eles, os corpos, nossos corpos, enquanto eles afundam...6
Para Lorenzo Mammi, professor da USP e crítico que de perto acompanha a obra de Ramos ― sem dúvida um dos artistas mais completos, premiados e influentes na cena atual da arte brasileira, com uma obra consistente e potente que se desdobra, sem perdas, em instalações monumentais ou midiáticas e conceituais, livros de poemas e contos e outros textos ficcionais, letras de canções e exímios ensaios (esse gênero literário tão moderno e ainda relativamente pouco exercido no Brasil)7 ―, “a figura de encalhe assinala justamente o desmanche lento a que um corpo é condenado, quando a continuação de seu movimento (de sua história) se torna impossível”.8 Estamos no momento do fim da história, do dilúvio, ou do Juízo Final, passível de ser pensado aqui, se quisermos, como uma referência a Walter Benjamin e seu tempo messiânico, momento no qual Agamben vai localizar sua comunidade que vem.9
Nesse limbo, ou ponto morto, ou limiar, limite entre um possível gesto e outro, ou na fronteira entre dois horizontes, ao invés dos “movimentos possíveis [que] agora se reinventam e se redistribuem o tempo todo, ao sabor de ondas de fluxos, que desmancham formas de realidade e geram outras, que acabam igualmente dispersando-se no oceano, levadas pelo movimento de novas ondas”,10 sugeridos por Suely Rolnik em seu artigo, encontramos em Mar Morto paralisia, entropia, incomunicabilidade e solidão. No lugar do mar aberto, explicitado e expandido, pleno e oferecido (ainda que perigoso e sem garantias), o mar interiorizado, opaco, vazio, seco e fixo: sobre os barcos ensaboados (apagados) paira opressoramente a sombra (o vestígio de uma ausência) de todo um oceano. Mar Morto é um totem à melancolia. Escutemos um pouco mais a este lamento, ao coro das vozes do passado, meros escombros literários à deriva no universo já sem o sentido (o corpo) da tradição:
(Coro: Ai! Ai de nós!) Ou esta: “Círculos concêntricos colhiam a própria embarcação solitária e todos os marujos, e cada remo flutuante, cada cabo de lança, cada fibra, animada ou inanimada, tudo, girando e regirando num vórtice, até a menor lasca, afundou-se, desaparecendo de vista.” Isso. De novo. Quase isso.11
Para Mammi, no entanto, o processo entrópico de desmanche ou dissolução presente nesta e em grande parte das obras de Nuno Ramos não é de todo negativo, pelo contrário, ao sugerir um paralelo entre a obra deste artista e o próprio projeto modernista brasileiro, do qual Brasília seria exemplo paradigmático, uma espécie de “vértice e ruptura”, o ponto de traição de um arcaísmo orgânico que no fundo contaminara o modernismo no Brasil:12
Mas podemos pensar os elementos contingenciais do plano piloto de Brasília (a cruz riscada no nada, o formato de avião) como uma traição positiva. Desta forma, a cidade não seria simplesmente uma ruína moderna, mas uma obra monumental pioneira que elabora o abismo do pós-guerra com contingências, ou seja, que lança mão de práticas artísticas contemporâneas.13
Brasília teria se tornado ruína, nos legado uma história de modernidade,14 no mesmo ato de sua inauguração (o que nos lembra um velho mote sobre tantas de nossas construções, conhecidas como “obras de igreja”, principalmente quando pagas com dinheiro público, e com muito superfaturamento): “nem bem inaugurou, já é ruína”. Poderíamos afirmar que sonho de um Brasil moderno (iluminista) fracassa (como a rigor o projeto Iluminista como um todo fracassa, também na própria Europa). No entanto, para Mammi, a modernidade resiste (e deve resistir): “Por ser desde o começo mais simbólica do que funcional, a linguagem moderna brasileira serviu mal à ideia de progresso; mas, pela mesma razão, não precisou ser abandonada junto com essa ideia”.15 Nuno Ramos levaria adiante a utopia da modernização brasileira, ainda que de forma problemática, alçando o que ao ver do crítico são práticas artísticas que caracterizam o contemporâneo. Mas é justamente este o ponto-limite da poética desse artista também limite: embora sempre compensada por um furor propositivo, ela resiste à fusão dos elementos ― e se os elementos se arruínam, é porque não são capazes de se fundir e fundar algo novo. Referindo-se a Casco, por exemplo, o crítico situa seu diferencial numa “oposição mais acentuada e estilizada [em comparação a alguns trabalhos anteriores do artista] entre os dois elementos que compõem a obra... [...] a oposição entre a estrutura em madeira e o cubo de terra passa assim a remeter a uma oposição cultura/natureza...”.16 Para Mammi, foi justamente a falta de adequadas bases sociais e econômicas17 que minou o projeto modernista brasileiro ― como não poderia deixar de ser (nunca de fato fomos modernos) ― e facilitou ainda mais a característica “informe” de nossa produção.”18 Em Nuno Ramos não há fusão, mas choque, ou seja, embate e revolta e, em última análise, impotência.
No entanto, com a inteligente obra de Nuno Ramos somos enfim modernos; ou alcançamos enfim os limites de nossa modernidade, quando, em fato, já estamos no seio de um outro contemporâneo, menos técnico e mais caótico. Se o artista paulistano se torna um artista incontornável hoje é porque ele representa a culminação de um projeto para o país ― ou melhor, ele de melhor maneira discursa sobre o fracasso desse projeto. Isso significa também um certo controle: o cadáver de uma civilização, que tanto e tão comovedoramente nos acompanha em Nuno. É o limite da eclosão do núcleo neutro que nos acompanha desde sempre (a morte), e não o descontrole (pulsão ou revolução). É apenas violência muda, quase morta.19
Lorenzo Mammi, tão citado aqui, não é o único intelectual brasileiro que parece apostar numa continuidade do projeto moderno, nem Nuno Ramos é o único ou o último artista desta linhagem. Em fato, essa posição continua prevalecendo entre nós, seja pelo viés do elogio às supostas conquistas civilizatórias da modernidade (ainda não alcançadas pelo Brasil, ou alcançadas de forma precária e peculiar), seja como defesa inconsciente, ou classista, contra o nosso caos: como a vontade construtiva, que se opõe a uma tradição delirante, mais orgânica ― linhagem que passaria pela antropofagia, Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica e, no contemporâneo, artistas como Tunga, por exemplo ― uma tradição mais ligada à magia, ao corpo e à dança. Se Brasília (assim como o plano-piloto da poesia concreta), como metáfora de um projeto de modernidade brasileira, pousa no ar, como uma flor supostamente sem raízes, seria sua ruína (sua entrada no contemporâneo) a queda causada pelo peso de um corpo ignorado, bastante palpável: uma outra arquitetura.
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Concebido justamente para “testar de novo algumas ideias acerca da figura do ‘artista-arquiteto’”,20 o 33o Panorama da Arte Brasileira, em 2013, com a curadoria de Lisette Lagnado e Ana Maria Maia, teve como título Formas únicas da continuidade no espaço e aconteceu no lugar “meio sagrado”21 do MAM de São Paulo. Trata-se de um local “Meio sagrado”, ou melhor, como um “terreiro”, porque situado entre a prancheta e a vida (a marquise livre projetada por Oscar Niemeyer acabou superada pela vivência popular ― talvez de modo semelhante ao de como o plano-piloto de Brasília foi deturpado e em alguns casos invertido organicamente pelo uso cotidiano da população) e, ali, no vão que interligaria os pavilhões do Ibirapuera, Lina Bo Bardi, ciente de tal ambiguidade (e Lisette percebe nisso um elogio à cultura brasileira), em 1982 adaptou o prédio do Museu. Formas únicas na continuidade do espaço também é o nome de uma escultura do artista futurista italiano Umberto Boccioni, que pertenceu ao MAM-SP, e cujo insólito desaparecimento (da obra, e também do artista), serve de ponto de análise poética e intensiva para o trabalho em vídeo (necessariamente para sempre inacabado, mas com pretensões e possibilidade de se tornar um longa-metragem artístico-teórico) de Deyson Gilbert, que o resignifica: Boccioni ― Formas Únicas na Continuidade do Espaço (2013).
O trabalho de Gilbert, nas palavras do próprio artista, apresenta-se como uma “alegoria do próprio drama da modernidade, a quebra do gesso original dessa mesma escultura na década de 70 no acervo do MAC-USP, o alinhamento metafórico entre essa quebra e a morte trágica e estúpida de Boccioni na 1º Guerra Mundial e, por último, a figuração de todo esse quadro como uma espécie síntese multifacetada e sincrônica da tragédia da própria modernidade enquanto tal.”22
Dividida em capítulos (como “O calor”, ou “O sol”), incluindo um Prólogo e um Epílogo (provisório), a obra de Gilbert, inacabada, propõe um estilhaçar de contradições históricas e filosóficas que se dá na própria ilha ou linha de montagem do filme, utilizando-se de imagens pré-gravadas (cenas como o gol perdido por Pelé contra o Uruguai em 1970, e o encontro de um reverendo japonês que sobreviveu a Hiroshima com o homem que pilotava o Enola Gay, e o jornalista que filma a própria morte, e a queda de Ceascescu na Romênia, e uma sessão inteira de um documentário sobre uma mulher inglesa cujo desejo é tornar-se paraplégica, e flashes das manifestações de rua no Brasil em junho de 2013...), fotografias e gravações especialmente feitas para o trabalho, com trilha sonora de Marcel Duchamp (uma versão de “La Mariée mise à nu par ses célibataires même”, encontrada no disco Futurism and Dada Reviewed) e narração em off em italiano, lida como uma narrativa da modernidade de forma descentralizada tanto do ponto de vista espacial como temporal, de uma maneira (aparentemente) dispersiva e difusa, ou melhor, propositadamente contingencial em suas escolhas (caracterizada, por exemplo, na obsessiva ― poderíamos dizer quase psicótica? ― utilização de números, retirados dos universos fechados de pessoas como Philip K. Dick, do serial killer Febrônio Índio do Brasil, de uma seita thelemita, de sons estranhos captados por rádios soviéticas, etc...),23 poética e potentemente propondo possíveis e abrangentes (e nada iluministas) relações entre, por exemplo, a queda de cavalo (sua égua Vermiglia) de Boccioni, que acarretou a sua inusitada morte, e a queda da própria escultura num depósito de museu brasileiro (ou seja, nas mais distantes periferias da modernidade, ou do projeto cristão),24 com a queda da bomba atômica sobre Hiroshima, e a de são Paulo a caminho de Damasco, como pintada por Caravaggio... Escutemos o que a voz em off (a do artista, abafada, como num documentário antigo) diz, em italiano (com subtítulos em português), enquanto vemos estranhas e belas imagens em preto e branco do Enola Gay no ar, do cogumelo atômico, de um homem deitado (morto?) levitando...:
Já se passavam noventa e três (93) minutos desde a queda do cavalo em Sorte, quando o corpo desacordado de Umberto Boccioni adentrou o Hospital Militar de Verona. Seu silencioso sono se estenderia ainda por mais nove horas e vinte sete minutos. Uma vez declarada a morte, uma mão canhota demoraria oitenta e nove (89) segundos para preencher as folhas do óbito. Um mês antes, pesando oitenta e um quilos e dezoito gramas, Boccioni pousa sorridente para um fotógrafo anônimo. Sua última imagem. A imagem. O tempo de exposição do filme à luz é de zero, ponto, zero, zero, cinco segundos (1/200 - 0,005 s). Intervalo oito vezes mais rápido do que aquele destinado a cada frame na projeção desse filme. Para fora do plano, uma cabeça. A cabeça de um cavalo, ou melhor, de uma égua. A mesma égua que Boccioni batizara vinte e três (23) dias antes em homenagem a sua cor predileta: Vermiglia. Trata-se do mesmo animal que, frente ao estribilho rítmico e sólido de um trem a quarenta e cinco quilômetros e setecentos metros por hora, alçaria abruptamente suas patas dianteiras a dois metros e treze centímetros do solo. O verde oliva do uniforme do artista levaria zero, ponto, nove, três, sete, cinco, oito, quatro, nove, dois, seis (0.937584926) segundos cruzando o horizonte até atingir o chão. A terra. Uma vez ali, caso se quisesse, seria possível medir a distância mais curta entre seu corpo e a linha do trem: uma linha reta que se estenderia de sua bota esquerda até a lateral negra de um dos dormentes de madeira. Seis metros e dois centímetros (6.02 mts). A distância exata equivalente ao dobro da largura da pintura seis anos antes finalizada pelo artista em Milão, ¨La Città Sale¨, a cidade se levanta. O ímpeto moderno brota no meio do canteiro de obras como a erupção furiosa de um único corpo, um único animal a condenar o antigo mundo ao aço cravado no casco de suas patas indomáveis. Essa será a síntese boccioniana: a ferradura e o osso; o aço e o casco. Uma rédea. Uma cor. Um nome. Vermiglia. A luz e a cor não mais envolvem, não mais delineiam ou tingem o corpo. Elas são o próprio corpo. Elas são o próprio corpo em seu arrastar-se, em seu rasgar-se no espaço frenético do motor febril da modernidade. Submersos os homens, as ruas, os prédios, as praças, as igrejas, os museus, os postes e as fábricas numa mesma enchente, torna-se cada ser solitário e autônomo um erro. Um apêndice à amputação. Tudo deve se reduzir a uma única verdade. E a verdade futura será aquela que, ao mesmo tempo, arrasta e empurra, decepa e parafusa, derruba e levanta. Um braço. Um tijolo. Uma coluna de ferro. Uma trincheira. A polifonia bruta do devir se faz ao som das cavalarias. A cavalaria vermelha. Um abalo sísmico místico, mágico e maçante. A história se escreve no contrair-se e distender-se de um músculo. Um esfíncter. Poder-se-ia gravar abaixo desta tela "isto não é um cavalo" tal qual poder-se-ia gravar nas ruínas de Hiroshima "isto não é uma pedra". A pedra. Em carta de 1910 a Nino Barbantini, Boccioni escreve: O ideal para mim seria um pintor que, desejando representar o sono, não se detivesse na criatura (homem, animal, etc) que dorme, mas que, através das linhas e das cores, fosse capaz de expressar a própria ideia do sono, ou seja, do sono como algo universal para além da mera casualidade dos fatores de tempo e lugar." O tempo e o lugar. São necessários 343 minutos para cruzar o caminho da base Tinian no Pacífico Oeste até o Japão. O radar de Hiroshima detecta um pequeno grupo de aviões. Três. Três B-29. Primeiro, o avião 82, número de série 44-86292, codinome Enola Gay. Nome escolhido pelo piloto, o Coronel Paul Tibbets, em homenagem a uma mulher, sua mãe. A mãe. Segundo, o avião 91, número de série 44-86291, comandado pelo Capitão George Marquardt, batizado após a conclusão da operação como "The Necessary Evil", o mal necessário. Por último, o avião 89, número de série 44-27353, pilotado pelo Major Charles Sweeney, aeronave responsável por vigiar e gravar a missão, a única presente tanto no bombardeio de Hiroshima quanto no de Nagasaki. Seu codinome: "The great artist", O Grande Artista. Às oito e quinze de 6 agosto de 1945, o Enola Gay abre seu útero metálico despejando 60 kilos de urânio-235 sobre uma cidade ainda letárgica. A bomba, "The Little Boy", cai em queda livre por 43 segundos e 672 milésimos. Da terra, vê-se um sol e outro sol. Um segundo sol. Ele se rompe e se expande a 618 metros do solo. Tecido, madeira, alumínio, osso, cabelo, plástico, pedra, ferro. Tudo se converte em um único rasgo fulgurante de luz, vapor, líquido e pó. O crânio se une à rua. A bicicleta ao seio. A árvore à lâmpada. Um número estimado entre 70.000 e 80.000 pessoas morre instantaneamente. Bois e cavalos se convertem em tochas ambulantes de dor e desespero. Vermiglia. Vermiglia. Um filho segura a parte anterior da coxa de um pai soterrado abaixo de 13.071 quilos de escombros. Vermiglia. Trinta anos, cinco meses e 17 dias antes, o mesmo número de caracteres é utilizado para estampar no jornal Le Fígaro o texto Fundação e Manifesto do Futurismo. No oitavo parágrafo de sua segunda parte, Filippo Tommaso Marinetti, o grande mentor do movimento, escreve: "O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente."25
Não há precisamente melancolia em Boccioni, nem o desejo de fazer o inventário de um mundo perdido, mas sim, talvez, de elaborar de alguma forma uma enorme herança tragada (possivelmente por um evento traumático):
Algo como narrar a Odisséia para além de seu objeto, ou seja, para além de Ulisses, a história do barco que o carrega, da droga que o enleia, do porco que o ataca, do olho que ele perfura, da onda que o vence, do buraco que ele cava, da ilha que ele atinge, da vagina que ele penetra etc etc”.26
Se para Deyson Gilbert em Boccioni o mundo está irremediável (e talvez euforicamente ― pois há algo de extático em seu filme) partido (e, portanto, perdido), de acordo com Alberto Tassinari, regenerar o destruído, dar outra vida ao que não é mais, uma outra vida apenas poética, mas mesmo assim uma vida, rejuntar fragmentos, alguns deles arruinados, e no fim alcançar uma unidade em que os pedaços fluem uns ao lado dos outros nutridos pela fantasia, por uma comunhão de todas as coisas, esse é o resultado sempre buscado nas obras de Nuno Ramos.27
***
Em Globo da morte de tudo, instalação montada entre novembro de 2012 e janeiro de 2013, na mesma galeria (no elegante bairro da Gávea, no Rio de Janeiro), que alguns anos antes havia acolhido a premiada exposição Mar morto, Nuno (em parceria com Eduardo Climachauska), em ato destruidor e afirmativo (ou seja, de algum modo produtivo), que poderíamos aproximar do vivificante conceito de dispêndio, o qual Bataille utiliza-se para elaborar a teoria econômica que batizou como “parte maldita”,28 parece mover-se em direção ao luto. Tudo gira no Globo da morte de tudo, ainda que sem qualquer redenção, mas em alta voltagem, esvaindo-se na vertigem de um ralo voraz (não longe da tradição modernista das vanguardas com sua sucessão de mortes). Como nos diz Lorenzo Mammi, “no fundo, todas as obras de Nuno Ramos surgem de uma comunicação interrompida entre corpo e signo, projeto e entropia. Se os pólos não se comunicam, a obra pode transbordar de um lado ou de outro: num excesso de matéria ou num excesso de significado”.29 Entre um pólo e outro, ou seja, poderíamos dizer, aquilo que não é nem sujeito, nem objeto (nem matéria, nem linguagem, neti neti), mas o ponto indeterminado de apresentação do inacessível, o informe (para Bataille, na indistinção entre figura e fundo), aleph cego que não pode ser visto, por intolerável, imagem portanto invisível30, mas latente e pulsante, sempre presente ― embora sempre ausente ―, o umbigo da cena (em termos freudianos), ou, nas palavras de Julia Kristeva, para engajar o pensamento de Hal Foster sobre o real, o abjeto.31 Voltamos a um vislumbre de Mar morto:
Sobre um moribundo (Coro: Morres cruelmente!) é correto perguntar: que é que lhe resta, que é que pode ainda que valha a pena, agora que pode tão pouco? E se seu cu piscasse, acendendo desde os bagos todo o seu interior, como um bode renascido irradiando calor pelas entranhas, quando seu papel agora seria morrer pacífica e dignamente, é isso o que se espera de um moribundo, (Coro: Diz!) que morra solenemente, sem muita expressividade, como um conviva discreto, mas de repente, num último assomo, com palavras e tudo, cuspindo o tubo em sua glótea, cheio de energia e de gestos espalhafatosos, gritasse “o que eu quis antes não tem importância, não tem a menor a menor importância”, apalpando os seios de quem o visitava na UTI, arrancando os botões da blusa da enfermeira num estertor enquanto murmura “agora, agora, eu quero agora”, com uma força imprevista, um desejo de vida, mais vida, ali bem na última fronteira, de modo que ninguém pudesse sequer falar mal, afinal o cara renascia, constrangimento geral na família, ele nunca se comportou assim, etc. (Coro: Ah, maldito!)32
Se em Nuno Ramos o universo parece poder concentrar-se num único ponto de entropia ou voragem, como um buraco negro que tudo suga e destrói (mas que pode, ainda que em fantasia ou delírio, querer viver ou dar vida, germinar e frutificar), na astrofísica de Deyson Gilbert esse ponto de fato explode e gera, como a pérola azul explodida na cosmogonia do Shivaísmo da Cachemira. Escutamos no Prólogo de Boccioni (enquanto assistimos o filme de um filme sendo preparado para a projeção, entre outras cenas, como crianças brincando num parquinho, que culminam com imagens do atentado de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas do World Trade Center de Nova York, sob os famosos dizeres de Zenão, “O movimento não existe”):
Sem mais, finalmente poderíamos reconhecer este filme no interior e exterior de si mesmo, no interior e exterior de sua própria história.
Flagraríamos nele o secreto acasalamento transcorrido momento a momento no escuro abismo que se estende entre um fotograma e outro.
Assistiríamos, assim, finalmente, o profano coito entre luz e carne que torna possível às imagens pairar misteriosamente por sobre a face das águas.
Francisco Bosco, no texto do catálogo da exposição de Ramos e Climachauska, afirma que “se esse Globo da morte quer destruir tudo, é apenas para erguer uma criação que lembre ao mundo, a este mundo, que perder é uma verdade fundamental da experiência humana. E quem a acata está mais próximo da vida”33. Contrastemos essa bela frase, no entanto, com esta, bem mais tosca e bruta, de Suely Rolnik, no ensaio “Subjetividade antropofágica”, já citado: “Por que não se consegue parar de choramingar de saudade da casa enraizada apesar desta evidente e irreversível mudança?”34.
Para usar uma imagem criada pelo próprio Nuno Ramos em Mar morto, o que importa fazer coisas lindas, se nossos corpos (e esses corpos já não são apenas os físicos, que sempre apodreceram e apodrecerão) afundam? O que é ou representa uma coisa bela, se a própria noção de mundo, ou de vida humana, com toda sua carga de vivências acumuladas, foi posta em questão uma vez rompidos os vínculos comunitários, éticos e religiosos que nos definiam? A boa (ou má) nova é que não há mais retorno ou possibilidade de restauração. Que arte interessa agora? Com certeza, não aquela que busca o gaguejar (a documentação, a ponderação, o repetir eterno como se congelasse o tempo) de um trauma, nem aquela que busca resgatar um mundo perdido, reconstruir ruínas (a modernidade com seus valores humanistas), mas sim aquela que vai lidar corajosamente com aquilo que nos destruiu como civilização e como indivíduos. Uma arte capaz de propor e produzir novas formas de vida. Como provoca Giorgio Agamben, no contexto de seus estudos sobre política (que nunca está muito distante da arte): “aqueles que buscam ressacralizar o mundo e a vida são tão ímpios quantos aqueles que desesperam por causa de sua profanação”.35 Ou como, entre nós, vaticinam Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro: “a incapacidade de cumprir o luto do que já está morto é terrível: mais precisamente, é mortal.”36
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VIANNA, Hermano. “Além do ocidente” Jornal O Globo, 28/07/2012.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
Mário Pedrosa introduz o seu artigo “Reflexões em torno da nova capital" (1957), no qual argumenta sermos, nós, brasileiros, "condenados ao moderno" porque a modernidade, transplantada sem a resistência de uma forte cultura autóctone, "vai sendo cada vez mais o nosso habitat natural", com a pergunta: “Brasília ou Maracangalha?” Brasília, com sua arquitetura modernista, praticamente sem vínculos com nosso passado, forjaria uma civilização-oásis. Posteriormente Pedrosa, assim como Lúcio Costa, reconhecerá o fracasso desse projeto utópico, e de certo modo abandonará as artes como campo de transformação política. PEDROSA, Mário. Arquitetura -- ensaios críticos. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 130-146.↩
ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica. In: HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano (ed.). Arte contemporânea brasileira: Um e/entre Outros. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998, p. 128.↩
Ibidem, p. 135.↩
DUARTE, Paulo Sérgio. Mar morto. Encarte avulso da galeria de arte Anita Schwartz, Rio de Janeiro, 2010.↩
“São as memórias póstumas dos dois barcos, reduzidos a uma consciência tagarelante que morre aos poucos, sem sentido épico”, vaticina Francisco Bosco. BOSCO, Francisco. A Ópera-Fantasma de Nuno Ramos. Revista Cult, 135, maio 2009.↩
RAMOS, Nuno. Encarte com texto, parte integrante da exposição Mar Morto; galeria de arte Anita Schwartz, Rio de Janeiro, 2010.↩
Ver Prefácio em AGUIAR, Joselia; BOSCO, Francisco; SOCHA, Eduardo. Indisciplinares. Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos. Rio de Janeiro: Funarte, 2016.↩
MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea brasileira. In: MAMMI, Lorenzo. O que resta – arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 227.↩
"A vocação messiânica é [...] um movimento imanente – ou, caso se queira, uma zona de absoluta indiscernibilidade entre imanência e transcendência, entre este mundo e o mundo futuro". AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta – um comentário à Carta aos romanos. Tradução de Davi Pessoa e Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 39.↩
ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica, op. cit., p. 128.↩
RAMOS, Nuno, Ibidem.↩
Mammi pensa o Modernismo como um movimento essencialmente europeu, ou melhor, francês, que se adapta às condições locais ao se expandir pelo mundo.↩
MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea brasileira. In: MAMMI, Lorenzo. O que resta – arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 227.↩
De acordo com Guilherme Bueno, “a presença fantasmagórica da modernidade em nossos dias transparece o sentimento de perda a ser enfrentado. Qual seria este? Pode-se cogita-lo sendo a melancolia crítica diante da incompletude de sua premissa projetual.” BUENO, Guilherme. É a modernidade nossa antiguidade?. Revista Arte&Ensaios n. 20, outubro de 2006.↩
MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea brasileira, op. cit., p. 227.↩
Ibidem, p. 216.↩
“Os artistas brasileiros da primeira safra concretista logo adquiriram consciência de que a situação industrial e social do país não permitia projetos demasiado abrangentes: a escolha construtiva era um fato ético, individual, mais do que político e social”. Ibidem, p. 219.↩
“No Brasil, desde cedo se julga que qualquer tipo de percepção é, por sua vez, um comportamento, e que esse comportamento estabelece estruturas relacionais nos indivíduos entre si, entre indivíduos e objetos e entre objetos e o espaço, de modo que não é possível estabelecer uma gestalt separada desse contexto”. Ibidem, p. 219. Interessante notar como Flávio de Carvalho parece encaixar-se nesta descrição, e lembrar como muitos de seus projetos arquitetônicos (a grande maioria nunca realizada) e suas propostas urbanísticas (descritas, por exemplo, em A cidade do homem nu), não foram consideradas sérias pelo nosso modernismo oficial (que imediatamente canonizou a si mesmo e ao barroco – descartando, por exemplo, além de modernistas dissidentes, uma rica herança neoclássica).↩
"Queria atuar, fazer, protestar, mas uma cinza morna, que não se apaga nem se acende, cobre tudo aquilo em que toco". RAMOS, Nuno. Foquedeu. Mas não deu. Piauí, n. 130, p. 42.↩
Escreve Lisette Lagnado, em texto para o catálogo da mostra: “é interessante perceber o quão férteis para a arte foram as atividades dos arquitetos que não exerceram seu ofício strictu sensu”. Situado posteriormente à Brasília, Lagnado cita Paulo Mendes da Rocha em declaração “contra a mitificação de civilizações solares, exotismos impostos de fora para dentro”. LAGNADO, Lisette. Museu em movimento, arquitetura sem construção. In: P33: Formas únicas da continuidade no espaço. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2013, p. 19.↩
Nas palavras de Lina Bo Bardi, citada no texto da curadora Lisette Lagnado para o catálogo da mostra. Ibidem, p. 15.↩
Email do artista para o autor.↩
“Obviamente, como eu já disse, nenhum desses detalhes é importante para a fruição do filme. O que importa é a percepção da irrupção inconstante e ‘capada’ dessas pequenas unidades ‘racionais’. O que realmente importa é a intuição de uma certa selvageria metafísico-euclidiana rondando o filme por todos os lados como um tipo de mensagem subliminar” (mensagem de facebook enviada pelo artista ao autor). Nota-se, a título de curiosidade, que Nuno Ramos tem uma série de desenhos inspirados em e dedicados a Scherber, a Série Scherber (2011/2012), exposta na galeria Anita Schwartz no Rio de Janeiro concomitantemente ao Globo da morte de tudo.↩
Nessa periferia distante, quando os jesuítas chegaram com sua catequese, como nota Eduardo Viveiros de Castro, “o inimigo não era um dogma diferente, mas uma indiferença ao dogma, uma recusa de escolher”. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 184, 185. Continuamos não fazendo parte do Ocidente, como descobriu atônito, mas ao fim feliz, Ernesto Neto, um artista cada vez mais voltado à causa indígena: “Não somos ocidentais – que ótimo!”. VIANNA, Hermano. Além do ocidente. Jornal O Globo, 28/07/2012.
https://hermanovianna.wordpress.com/tag/ernesto-neto/.↩
O filme Boccioni – Formas Únicas na Continuidade do Espaço de Deyson Gilbert pode ser visto na íntegra no endereço https://www.youtube.com/watch?v=2aUVsd72kto.↩
Email do artista para o autor.↩
TASSINARI, Alberto. O caminho dos limites. In: RAMOS, Nuno. Nuno Ramos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 18.↩
Interessante pensar, com Bataille, a noção de dispêndio como sinônimo de poesia (criação por meio da perda), assim como, como reverso da moeda, a relação econômica (e política) entre desperdício (fetiche, gozo, pulsão de morte) e o circuito produtivo e comercial da arte contemporânea. BATAILLE, Georges. A parte maldita. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.↩
MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea brasileira, op. cit., p. 227.↩
Em seu livro L’image naturelle, Marie-José Mondzain discute a imagem na tradição cristã como imaginação dos mistérios da trindade, da encarnação e da ressureição: imagem invisível que, como um protótipo, nortearia a produção de imagens artificiais. Tal conceito de imagem invisível, regendo a representação visual em nossa cultura, como ideia e não como semelhança, seria o fundamento da produção imagética do Ocidente e a base de uma relação com a visibilidade que se pauta pela “presença de uma ausência”. MONDZAIN, Marie José. L’image naturelle. Paris : Le Nouveau Commerce, 1995. Apud : SALGADO, Cristina, Escultura como imagem. Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – EBA/UFRJ. Ano XV n 17.↩
Para Hal Foster, para além do abjeto, estaria o informe (conceito batailliano) e o obsceno, “em que o olhar-objeto é apresentado como se não houvesse uma cena para encená-lo, uma moldura da representação para contê-lo, nenhum anteparo.” FOSTER, HAL. O retorno do real. In: FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.144. “Num mundo em que o Outro sucumbiu, afirma ela enigmaticamente, a tarefa do artista já não é a de sublimar o abjeto, elevá-lo, mas de sondar o abjeto, penetrar a ‘origem’ sem fundo que é a repressão dita originária”. Ibidem, p.148. Para Foster, “a abjeção é uma condição na qual a posição de sujeito é perturbada”. Ibidem, p. 147.↩
RAMOS, Nuno, op. cit..↩
BOSCO, Francisco. O princípio da perda. In: O globo da morte de tudo. Catálogo de exposição. Galeria Anita Schwartz, Rio de Janeiro, 2013.↩
ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica, op. cit., p. 135.↩
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 83.↩
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014, p. 155.↩