Catulo e a política dos afetos1
Guilherme Gontijo Flores
Universidade Federal do Paraná
ggontijof@gmail.com
Resumo: A poesia de Caio Valério Catulo (c. 84—54? a.C.), por ter como centro a temática amorosa, a vida do adultério, a amizade e a própria poesia, é um ponto chave para tentarmos pensar as complexas relações afetivas que atravessam o universo romano no fim da República. Para além disso, busco neste artigo refletir como esse borrão afetivo é também uma forma de tornar a poética um lugar de constante enfrentamento político.
Palavras-chave: Poesia romana; Catulo; Política dos afetos.
Abstract: The poetry of Caius Valerius Catullus (c. 84-54 BC), because of its thematic emphasis on love, on a life of adultery, on friendship and on poetry itself, is a key point to think about the complex affective relations that cross the Roman universe at the end of the Republic. In addition, in this article I try to reflect on how this affective blur is also a way of making poetics become a place of constant political confrontation.
Keywords: Roman poetry; Catullus; Politics of affection.
Será que onde começa o amor termina a amizade e vice-versa? A pergunta, comum em vários círculos, pode ter uma força maior, ou mais precisamente exercer um borrão maior, nas línguas latinas. Como é de conhecimento geral, amor e amicitia em latim derivam da mesma raiz am ligada ao verbo amare; não à toa, a amiga (amica) em geral é uma mulher amada (amata, objeto do amor) ou uma amante (amans, sujeito do amor), enquanto o amigo (amicus) na poesia romana clássica apresenta, ainda que mais raramente, a mesma ambiguidade. A força da relação amante amado(a), na verdade, vai se estender até o surgimento das literaturas romances, com a figura erótica da amiga e do amigo nas cantigas galaico-portuguesas de Amor e de Amigo. No entanto, hoje, o português falado no Brasil parece fazer grande esforço para distinguir com clareza um amor, digamos, avant la lettre, “cristianizado” (agapé, no grego antigo), o amor erótico (éros), o amor entre amigos (philía) e o amor pelos filhos (storgé), porque usamos a mesma palavra para referir os conceitos gregos sem percebermos, porém que, se a Grécia antiga tinha de fato vários termos para “amor”, eles não eram na verdade tão específicos, mas podiam com frequência ser usados uns no lugar dos outros. Em outras palavras, mesmo onde há vocabulário específico persiste uma rasura nas fronteiras afetivas2.
Roma tinha lá suas dificuldades para expressar aquela gama variada de afetos, já que a palavra “Amor” — anagrama da própria palavra “Roma” e portanto predileta por seus ecos e contradições com a urbe — designava o deus do desejo sexual, também chamado “Cupido”, filho de Vênus, responsável pela loucura amorosa. O problema poderia ser discutido a fundo em chave filológica com estudo de vocábulos utilizados em diversas épocas, porém pretendo aqui apenas apresentar alguns tensionamentos entre amor e amizade que aparecem na poesia de Catulo, para recriar em poesia dez desses poemas em língua portuguesa3 e possibilitar que seleção e tradução poética operem, ainda que parcial e tacitamente, a crítica que deixo ao leitor neste ensaio tradutório tão breve4. Podemos começar pelos dísticos elegíacos do epigrama 72:
Dicebas quondam solum te nosse Catullum,
Lesbia, nec prae me uelle tenere Iouem.
Dilexi tum te non tantum ut uulgus amicam,
sed pater ut gnatos diligit et generos.
Nunc te cognoui: quare etsi impensius uror, 5
multo mi tamen es uilior et leuior.
Qui potis est, inquis? Quod amantem iniuria talis
cogit amare magis, sed bene uelle minus.Antes você dizia que amava somente a Catulo,
Lésbia, sem sequer Júpiter antes de mim.
Tanto então te amei, e não te adorei como o povo,
mas igual um pai genros e filho adorou.
Hoje te conheço e embora pesado me queime 5
hoje você pra mim é leviana e vilã.
Quer saber por quê? Ao amante tal violência
faz amar bem mais, mas diminui bem-querer.
O poema está todo baseado num movimento complexo de três termos relacionados amare (amar passional-sexualmente), diligere (amar-adorar como um pai) e bene uelle (o bem-querer familiar, talvez também da amizade). No início do relacionamento, Catulo afirma seu afeto defendendo que não se tratava de desejo sexual, nem de paixão desenfreada por Lésbia, que no corpus de sua poesia aparece como mulher casada5; ao contrário, o poeta teria se portado como um pai diante de filhos e genros, ou seja, com um afeto especificamente familiar, da elite, bem entendido, de gente educada (“não como o povo”, uulgus, v. 3), sem nenhum vínculo erótico. No entanto, logo percebemos que há um não-dito: o poeta descobre que Lésbia não é como pensava, já que demonstra leviandade sexual (teria outros amantes?) própria do povo (ela é propriamente vulgar e, por isso, vil), juízo que o poeta expressa num jogo paronímico, quase anagramático (uilior — leuior, v. 6). Paronímia e anagrama fazem aparecer a palavra amantem (v. 6), termo que em Catulo não se refere à amizade nem aos vínculos familiares, o que é corroborado pela ofensa não nomeada, pois o poeta passa a amar bem mais, porém bem-querer menos. Ora, é a ofensa que reabre o efeito da paixão amorosa e processa um desejo ampliado, contraposto ao carinho familiar, um carinho impossível desde o início, se lembrarmos que Lésbia, já sendo casada, não poderia ter esse tipo de experiência com o amante. Um poema como esse turva a noção comum que temos da experiência da vida de casado nas elites romanas, em que os relacionamentos eram arranjados sobretudo com interesses econômicos e familiares, portanto privados do amor erótico de quem escolhe seu parceiro e fadados ao mero bem-querer. Em vez de confirmar ou questionar diretamente o modelo vigente, Catulo propõe à amante já casada um imaginário do erotismo como reorganização do casamento no ato extraconjugal; em outras palavras, Catulo nos diz: se o casamento não permite o amor, fora do casamento faz-se novo contrato (fides é o termo mais comum no direito e na poesia amorosa) do amor conjugal, agora fora do casamento. A vida dos amantes seria então, na Roma de Catulo, a chance de revisar o casamento, fundindo bem-querer e amor erótico. Todavia, a ofensa de Lésbia faz que tudo volte ao lugar previsto pelo código social: fora do casamento, longe do bem-querer controlado da elite, ficam os afetos intensos de amor e ódio. Esse paradoxo é mais explícito no epigrama 85:
Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.
Nescio. Sed fieri sentio et excrucior.Amo, odeio. Por que o faço? você me pergunta.
Nunca sei e se faz: sinto me crucificar.
Peça-chave da poética erótica romana que viria a se desenvolver posteriormente, sobretudo na elegia de Propércio, Tibulo e Ovídio, este epigrama brevíssimo é constituído de nove verbos (odi, amo, faciam, requiris, nescio, fieri, sentio, excrucior), sem nenhum substantivo ou adjetivo que module com mais objetividade concreta a expressão poética: a potência do amor e do ódio é puramente verbal, matizada entre o ativo da pergunta (quare id faciam, “por que o faço”) e o passivo da resposta (fieri, “faz-se”); os afetos são movimentos verbais, mas não escolhas do poeta, que é por eles tomado, com a imagem final de um excrucior (“crucifico-me” ou “sou crucificado”), que mesmo em sua metáfora aponta para um horror razoavelmente cotidiano na sociedade romana: a crucificação de escravos e estrangeiros acusados de crimes graves. Sem o bem-querer organizado e regido pelas condutas do casamento aristocrático, resta a dualidade dos antípodas, amor e ódio, movimentos que arrebatam o indivíduo e o lançam ao sofrimento. Essa experiência então torna-se ainda mais complicada pela cisão entre o dizer e o desejar, como vemos em 92:
Lesbia mi dicit semper male nec tacet umquam
de me. Lesbia me dispeream nisi amat.
Quo signo? Quia sunt totidem mea: deprecor illam
assidue. Verum dispeream nisi amo.Lésbia sempre só me difama, nunca se cala:
nunca. Quero morrer se ela não sofre de amor.
Como sei? Eu sinto o mesmo pois a desprezo
sempre. Quero morrer se eu já não sofro de amor.
No poema, a confirmação do desejo de Lésbia é a maledicência contra o poeta, que ele confirma relatando a própria experiência: ele a despreza apenas porque ama. Segundo essa lógica, é a aparição do ódio que revela o amor, mais do que uma contradição tensionada, de modo que os antípodas são parte de constante movimento. Assim, poderíamos dizer que Catulo, numa série de poemas, vai configurando seu pensamento do amor fora do casamento como o lugar da paixão que se dá por oposição à não-paixão marital por excelência e poderíamos concluir que, com isso, o poeta simplesmente confirma o antigo lugar comum de entender o amor como doença da alma (morbus amoris), que por isso deve estar fora da vida cotidiana assim como , do casamento6. De certo modo, sim, Catulo confirma o clichê, porém, como vimos já no primeiro poema, a confirmação se dá por uma contradição interna dos afetos familiares e amorosos, que se repete no epigrama 87:
Nulla potest mulier tantum se dicere amatam
uere, quantum a me Lesbia amata mea est.
Nulla fides ullo fuit umquam foedere tanta,
quanta in amore tuo ex parte reperta mea est.Nunca nenhuma mulher teve um amor de verdade
como o que Lésbia levou pelos amores que dei.
Nunca se viu num pacto tanta fidelidade
quanto a que tive em mim só pelo dom de te amar.
Aqui, os amantes, se verdadeiramente se amam, prometem em seus amores aquilo que não se enquadra no mero desejo sexual; a promessa do amante é solapar um modelo de casamento, daí a necessária nova fides (fidelidade dos amantes, lealdade dos contratos) na situação que só pode se dar por uma quebra da fides (Lésbia rompe a legitimidade monogâmica de seu contrato marital para ter um amante como Catulo). Nesse paralelismo de certo vocabulário jurídico do casamento romano, a poesia inventa um caminho novo para o amor em Roma, um caminho que se frustra diante da realidade e da política — é verdade, e nisso torna-se topos —, mas ainda assim uma utopia em movimento, gesto poético que performa o mundo para além do poema. Neste ponto podemos ver o que acontece simultaneamente com a noção de amizade em Catulo, sobretudo por aquilo que poderíamos chamar de the poetics of coterie (“a poética do círculo literário”), título do livro de Lytle Shaw sobre a poesia de Frank O’Hara (2006). Na poesia do círculo dos neotéricos ou pelo menos no círculo de Catulo, as referências aos amigos parecem ter sido constantes. Em Catulo, repetem-se inúmeras vezes, criando um mundo contemporâneo letrado de diálogo e troca de experiência afetiva e literária, muito mais do que mera defesa do grupo. Então vejamos um caso exemplar, o poema 50, em hendecassílabo falécio:
Hesterno, Licini, die otiosi
multum lusimus in meis tabellis,
ut conuenerat esse delicatos:
scribens uersiculos uterque nostrum
ludebat numero modo hoc modo illoc,
reddens mutua per iocum atque uinum.
Atque illinc abii tuo lepore
incensus, Licini, facetiisque,
ut nec me miserum cibus iuuaret
nec somnus tegeret quiete ocellos,
sed toto indomitus furore lecto
uersarer, cupiens uidere lucem,
ut tecum loquerer, simulque ut essem.
At defessa labore membra postquam
semimortua lectulo iacebant,
hoc, iucunde, tibi poema feci,
ex quo perspiceres meum dolorem.
Nunc audax caue sis, precesque nostras,
oramus, caue despuas, ocelle,
ne poenas Nemesis reposcat a te.
est uehemens dea: laedere hanc caueto.Lembro de ontem, Licínio, que ociosos
nós brincamos com minhas tabuletas,
no deleite que estava combinado
escrevíamos versos revezados
a brincar variando cada metro
numa troca de troca em jogo e vinho.
E de lá eu saí de brasa acesa
por teu charme, Licínio, e tua lábia,
que, coitado de mim, nem quis comida,
nem o sono cobria meus olhinhos;
num indócil delírio sobre o leito
revirei de desejo em ver o dia
para estar e sentar, falar contigo,
mas depois que meus membros fatigados
sobre o leito pousaram semimortos,
eu te fiz um poema, meu querido,
pra que visse desnudas minhas dores.
Mas cuidado no abuso, luz dos olhos,
sim, cuidado, não cuspa neste prato,
pra que Nêmesis nunca te condene.
Deus brava: cuidado! não ofenda.
O poema apresenta, já à primeira vista, a rememoração de um dia de jogos poéticos (multum lusimus) e experimentos métricos (numero modo hoc modo illoc), provavelmente a partir da poesia grega, entre dois poetas amigos, Catulo e Licínio Calvo, que partilham dos mesmos interesses e se encontram numa espécie de banquete privado regado a vinho. No entanto, como bem observa David Wray (2001: 977), ao sair da casa do amigo, o comportamento de Catulo é muito próximo das representações típicas do amor erótico na poesia antiga (perda de apetite, insônia, ansiedade, em outras palavras, morbus amoris, o amor como doença da alma), que então se amarram e ressignificam algumas descrições anteriores que pareciam inequívocas: lusimus, “jogar/brincar” passa ter conotação erótica, lepore, “charme” aponta possível sedução, e incensus “de brasa acesa” sugere que o poeta foi seduzido. Ao fim podemos chegar ao ponto de imaginar os “membros fatigados/sobre o leito” como referência à fraqueza pós-masturbatória8. É diante dessa série de ambiguidades entre amizade e amor masculino até então inauditas na poesia romana que Catulo ainda comete mais um borrão: como resultado de seu furor noturno, ele manda um presente para desnudar “suas dores” (meum dolorem). Ora, que dores seriam, se o poema tratava de um encontro agradável entre amigos? Poderia ser o próprio poema que lemos, por revelar a noite em claro e a falta de apetite do poeta deslumbrado; porém a hipótese é um tanto simplória e talvez devêssemos olhar para o poema que se segue no corpus catuliano, o 51, escrito em estrofe sáfica:
Ille mi par esse deo uidetur,
ille, si fas est, superare diuos,
qui sedens aduersus identidem te
spectat et audit
dulce ridentem, misero quod omnes
eripit sensus mihi: nam simul te,
Lesbia, aspexi, nihil est super mi
<uocis in ore;>
lingua sed torpet, tenuis sub artus
flamma demanat, sonitu suopte
tintinant aures, gemina teguntur
lumina nocte.
Otium, Catulle, tibi molestum est:
otio exsultas nimiumque gestis:
otium et reges prius et beatas
perdidit urbes.
Ele me parece divino mesmo,
ele — não blasfemo — supera os deuses,
quando então sentado na tua frente
te olha e te escuta
num sorriso doce e assim me arranca
todos os sentidos; e mal te vejo,
Lésbia, logo sinto que já não resta
voz no que falo,
mas a língua trava, uma tênue flama
mana sob os membros, em som sozinho
rui ouvido, cobre-se em gêmea noite a
luz dos meus olhos.
O ócio, meu Catulo, te faz miséria,
no ócio é que você exagera, exulta,
o ócio no passado arrasava ricos
reis e cidades.
Frustrantemente um poema dedicado a Lésbia (mais um da série de amor e ciúme), que parece pouco explicar a relação de Catulo e Licínio Calvo. Porém algo já se revela estranho, este poema original catuliano é uma quase tradução (diremos uma tradução apropriativa, ou tradução engajada?) do fragmento 31, o mais famoso, de Safo de Lesbos (séc. VI a.C.):
φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν
ἔμμεν᾽ ὤνηρ, ὄττις ἐνάντιός τοι
ἰσδάνει καὶ πλάσιον ἆδυ φωνεί-
σας ὐπακούει
καὶ γελαίσας ἰμέροεν, τό μ' ἦ μὰν
καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόαισεν·
ὠς γὰρ ἔς σ᾽ ἴδω βρόχε᾽, ὤς με φώναι-
σ᾽ οὐδ᾽ ἒν ἔτ᾽ εἴκει,
ἀλλὰ κὰμ μὲν γλῶσσα <μ᾽> ἔαγε, λέπτον
δ’ αὔτικα χρῶι πῦρ ὐπαδεδρόμηκεν,
ὀππάτεσσι δ’ οὐδ’ ἒν ὄρημμ’, ἐπιρρόμ-
βεισι δ’ ἄκουαι,
κὰδ’ ἴδρως ψυχρὸς χέεται, τρόμος δὲ
παῖσαν ἄγρει, χλωροτέρα δὲ ποίας
ἔμμι, τεθνάκην δ᾽ ὀλίγω ᾽πιδεύης
φαίνομ᾽ ἔμ᾽ αὔται·
ἀλλὰ πὰν τόλματον ἐπεὶ †καὶ πένητα†
Num deslumbre ofusca-me igual aos deuses
esse cara que hoje na tua frente
se sentou bem perto e à tua fala
doce degusta
e ao teu lindo brilho do riso — juro
que corrói o meu coração no peito
porque quando vejo-te minha fala
logo se cala
toda a língua ali se lacera um leve
fogo surge súbito sob a pele
nada vê meu olho mas ruge mais ru-
ído no ouvido
gela-me a água e inunda-me o arrepio
me arrebata e resto na cor da relva
logo me parece que assim pereço
nesse deslumbre
tudo é suportável se †até um pobre†
Num contraste rápido (que espero ser observável pelas minhas traduções) qualquer leitor pode reparar que o poema traduzido apresenta certas alterações no original grego tais como: o segundo verso com sua blasfêmia de superação dos deuses; a concisão no rol dos efeitos do corpo, que cai de três estrofes em Safo para duas em Catulo; a aparição do nome de Lésbia, que aqui se torna referência literária óbvia à cidade de Lesbos e à Safo ao mesmo tempo que incorpora o poema sáfico na trama amorosa catuliana. Porém, a alteração mais importante é a estrofe final, que apresenta uma assinatura catuliana que ressignifica parte do poema, transformando-o numa cena de amor entre homem e mulher, ao passo que o poema original pode ser lido como afirmação lésbica de Safo diante de seu desejo pela jovem e de seu ciúme causado pelo homem que interfere no triângulo amoroso. Mais ainda, Catulo nos apresenta uma reflexão sobre os riscos do ócio em sua relação com o amor, já que esse mesmo ócio teria arruinado reis e cidades do passado, o que faz alusão ao mito de Helena de Troia e à poesia homérica da Ilíada, como bem anotara Oliva Neto (1996, ad loc.) Isso tudo nos faz pensar sobre os problemas inerentes da vida poética romana, numa sociedade utilitária e aristocrática. Neste poema, associado ao que imediatamente o precede, o ócio da vida amorosa funde-se ao ócio literário dos experimentos métricos: Catulo, na verdade, importa o metro utilizado por Safo e, enquanto se contrapõe no plano literário a Homero também se contrapõe no plano político aos interesses históricos e bélicos da elite romana. Aqui escrever poesia também apresenta o mesmo risco que viver um amor ilegal, pois que revela o ato amoroso e põe em risco o poeta, que deixa de lado seus deveres sociais. E mais, traduzir torna-se também ato de risco, como o amor e a poesia amorosa, pois que é um traduzir experimental que se apresenta igualmente como fala com Lésbia, via voz de Safo, bem, como um presente afetivo a Licínio.
Nesse sentido poderíamos ler o poema 51 como o poema anunciado como presente, como dádiva em 50: a dor de Catulo é sua dor por Lésbia, cisão desejante entre amor e bem-querer; porém o presente é dado a Licínio Calvo, como homenagem pela sua amizade, fusão literário-erótica, numa celebração às avessas do ócio em que vivem. Essa leitura é reforçada pelo fato de que o ócio cerca os dois poemas, criando um efeito de anel: otiosi está em 50, v. 1, otium aparece três vezes em 51, no vv. 13-15, da última estrofe. Por certo, não se trata apenas de recurso complexo para esconder um amor homoerótico por Licínio, já que Catulo canta sem pudor seu desejo pelo menino Juvêncio pouco antes, por exemplo, no poema 48, em hendecassílabo falécio:
Mellitos oculos tuos, Iuuenti,
si quis me sinat usque basiare,
usque ad milia basiem trecenta
nec numquam uidear satur futurus,
non si densior aridis aristis
sit nostrae seges osculationis.Teus olhinhos de mel, ó meu Juvêncio,
se eu acaso puder beijá-los sempre,
multiplico mil beijos por trezentos,
mas não sei se me sinto satisfeito,
nem se for exceder espigas secas
o maior latifúndio destes beijos.
Pelo contrário, a poética homoerótica já tinha bastante base na poética helenística, e a cultura romana parecia não ter tantos problemas com o homoerotismo masculino expresso poeticamente, sobretudo quando se tratava de sexo com escravos jovens (cf. FLORES, 2017);. Contudo, o amor sexual inter pares, sobretudo da elite, como Catulo e Licínio, certamente provocava muito incômodo social, ainda mais se quebrasse a barreira ficcional para propor um pacto autobiográfico com seu leitor. A questão é que o desejo de um cidadão por um menino, sobretudo escravo, seria razoavelmente tolerável na Roma de Catulo; porém o desejo verbalizado por outro cidadão adulto certamente chocaria a elite conservadora; assim, o poema a Juvêncio, mais explícito, funciona numa tradição da poesia pederástica greco-romana (Μοῦσα παιδική grega, ou Musa puerilis romana), ao passo que o experimento poético-erótico com Licínio borra uma barreira e sugere a transgressão, sem torná-la inequívoca. No entanto, não se trata de um caso único na poesia catuliana; pois essa mesma ambiguidade entre amicitia e amor vai aparecer em outros poemas, tal como 30, em asclepiadeu maior, dirigido a Alfeno Varo, como um lamento amoroso gerado por ausência de correspondência:
Alfene immemor atque unanimis false sodalibus,
iam te nil miseret, dure, tui dulcis amiculi?
Iam me prodere, iam non dubitas fallere, perfide?
Nec facta impia fallacum hominum caelicolis placent,
quae tu neglegis ac me miserum deseris in malis.
Eheu quid faciant, dic, homines cuiue habeant fidem?
Certe tute iubebas animam tradere, inique, me
inducens in amorem, quasi tuta omnia mi forent.
Idem nunc retrahis te ac tua dicta omnia factaque
uentos irrita ferre ac nebulas aereas sinis.
Si tu oblitus es, at di meminerunt, meminit Fides,
quae te ut paeniteat postmodo facti faciet tui.
Ah, Alfeno falaz, sem se lembrar dos parceiríssimos,
cê não tem compaixão, homem cruel, deste amiguinho teu?
Nem hesita em trair, ou enganar? Nada, seu pérfido?
Em suas ímpias ações falso mortal nunca deleite a um deus,
mas você não se importa ao me deixar mísero neste mal.
Diga-me o que fará o homem e em quem pode apontar a fé?
Seu injusto, você quis me mandar para vender meu ser
me levando ao amor, como se ali fosse uma salvação;
mas agora fugiu: tudo que fez, tudo que faz e diz
deixa o vento levar, junto do pó, junto da névoa vã.
Você pode esquecer, mas lembrarão deuses e deusa Fé,
que inda vai transformar tuas ações, tudo em remorso enfim.
Nesse poema, mais importante que sua causa específica, silenciada pelo poeta, é o vocabulário amoroso e marital-contratual: o poeta e descrito como amiculi (amiguinho), a fides (fidelidade e lealdade) aparece duas vezes, termos de esquecimento e traição atravessam todo o poema e temos uma alusão a amores, sem explicação clara. Mais que apresentar um diálogo claro, o poema performa os efeitos dos afetos, o borrão das relações. Numa linha similar vai o poema 38, dedicado a Quinto Cornifício, em hendecassílabo falécio, por descaso com os amores do poeta, novamente ambíguo: são os amores que o poeta relata ou os que sente por Cornifício?
Malest, Cornifici, tuo Catullo
malest, me hercule, et laboriose,
et magis magis in dies et horas.
quem tu, quod minimum facillimumque est,
qua solatus es allocutione?
Irascor tibi. Sic meos amores?
paulum quid lubet allocutionis,
maestius lacrimis Simonideis.Vai tão mal, Cornifício, o teu Catulo,
vai tão mal, pelos deuses, como pena,
mais e mais ao passarem dias, horas,
e você, se era coisa simples, fácil,
veio dar um consolo com palavras?
Sinto raiva. Assim trata os meus amores?
Eu queria um pouquinho em tuas palavras,
mais doídas que o pranto simonídeo.
Nestes poemas, a amizade e a poesia do círculo literário são lidas à luz do erotismo: o poeta arrisca tornar-se amante do amigo, sem nunca terminar de cruzar a linha, ou seja, sem demarcar a linha que se possa cruzar, mas apenas tateando sua incerteza.
A essa altura poderíamos nos perguntar o que se performa nessa poesia, que gêneros de texto e que modos de vida aparecem nesses poemas. Não se trata de encontrar os traços diretamente biográficos de Catulo esparsos nos poemas para detectarmos suas práticas cotidianas e determinar sua performance de gênero, como pensa Judith Butler, mas sim de perceber que esses poemas performam uma possibilidade de vida: eles fazem, no fim das contas, um pacto biográfico que põe em jogo os modos de vida e de poesia de seu tempo, sem nos dar clareza sobre a vida efetiva de Catulo. Nesse sentido, é bom lembrar, como afirma Paolo Fedeli, que “em Roma não se pode falar de uma produção de poesia de amor antes de Catulo” (2010: 151), e que nesse contexto “escrever poesia de amor equivale a viver de um modo particular” (ibid.: 153); assim, diante da cultura patriarcal romana, até então voltada sobretudo à poesia de feitos históricos e bélicos, a poesia amorosa torna-se enfrentamento que cruza noções até então inesperadas: ócio como modo político, tradução como política dos afetos, amizade como vínculo amoroso, amor como casamento extraconjugal, etc. As aparentes contradições formam um movimento complexo que reelabora em poesia os limites dados pela sociedade, forma ali um borrão que é ponto chave da política e da poética. Certamente essa poesia causou estranhamento, como podemos ver no poema 16, em hendecassílabo falécio:
Pedicabo ego uos et irrumabo,
Aureli pathice et cinaede Furi,
qui me ex uersiculis meis putastis,
quod sunt molliculi, parum pudicum.
Nam castum esse decet pium poetam
ipsum, uersiculos nihil necesse est;
qui tum denique habent salem ac leporem,
si sunt molliculi ac parum pudici,
et quod pruriat incitare possunt,
non dico pueris, sed his pilosis
qui duros nequeunt mouere lumbos.
Vos, quod milia multa basiorum
legistis, male me marem putatis?
Pedicabo ego uos et irrumabo.Vou metendo no rabo, arrombo a boca,
veadíssimo Aurélio e Fúrio bicha,
pois vocês me julgaram, por versinhos
assim delicadinhos — um safado.
Deve o santo poeta ser pudico
só em vida, os versinhos nada devem;
eles ganham um charme apimentado
quando delicadinhos, mais safados,
e provocam uns comichões ferozes
não somente em garotos — nos peludos
que mal podem mover os membros duros.
Só por lerem milhares destes beijos
vocês julgam que macho já não seja?
Vou metendo no rabo, arrombo a boca.
Diante da acusação de devassidão poética por parte de seus amigos9, vemos que o que está em jogo é a própria noção de masculinidade romana: aos olhos da Antiguidade, não se trata de com quem o poeta faz sexo, mas de sua posição submissa diante do desejo alheio; em outras palavras, a crítica de “delicadinho” e “safado” não diz respeito exclusivamente à poesia dedicada a Juvêncio, ou às ambiguidades entre amigos, mas sim ao próprio tom delicado e íntimo dos poemas, à posição sofredora/passiva do poeta que lamenta os maus tratos de Lésbia, Alfeno, Cornifício, Juvêncio sem se posicionar ativamente, como o imaginário aristocrático patriarcal esperaria de um homem da elite. Diante da ameaça, o poeta alega que sua poesia não diz nada sobre a vida que leva: a boa poesia é apimentada e erótica; o poeta, por sua vez, leva vida pudica. Mas podemos confiar plenamente no argumento de Catulo? Em primeiro lugar, como venho argumentando, a própria performance dessa poesia enfrentava o modelo romano de vida patriarcal, nas suas relações extraconjugais e nas suas representações da amizade. Talvez valha mais perguntar: não seria melhor manter a ambiguidade? Os tensionamentos na poesia catuliana não se resolvem univocamente, e, no caso de acusação direta, a resposta aqui apresentada seria bem esperada como possível escusa e saída. Mas, em segundo lugar, e ainda mais óbvio, o poema é construído sobre uma ambiguidade autoirônica: ao mesmo tempo que defende sua vida pudica, o poeta ameaça seus amigos-inimigos com violência sexual desmedida; ao mesmo tempo que cumpre um certo imaginário do macho romano, o poeta ameaça cumprir, por meio do poema, aquilo mesmo que ele anuncia no poema: ele pode sair do papel e realizar o mesmo que diz. É no poema que anuncia ser tudo jogo literário que o poeta faz uma ameaça direta extraliterária, que cria uma espécie de curto-circuito. Em resumo, aqui os amigos tornam-se vítimas explícitas da sexualidade do poeta, no mesmo momento em que essa sexualidade é descrita como meramente literária, afinal, se o poeta alega que apenas na poesia ele é “safado”, como confiar na promessa de violência sexual caso não acreditem neste poema específico? Em sua defesa da masculinidade, a afirmação da própria macheza passa também pelo risco do jogo literário. O tensionamento não se resolve acerca de si mesmo; o borrão persiste e se desdobra da sexualidade “delicada” dos versos a Lésbia e Licínio para uma poética invectiva, que também se volta para amigos, amada e amados. A ameaça do poeta é e não é resposta.
Em Catulo os vínculos borrados do amor marital são recriados em utopia com Lésbia ao mesmo tempo em que a amizade inter pares se funde duplamente em amor literário e literatura amorosa de amadas, amados e amigos. Apresentar um amigo, no limite, como parte do círculo dos amores é fazer desse borrão irresoluto a própria matéria da poesia por vir. Nesse contexto de embate, o poema performa possibilidades de mundo que enfrentam o status quo romano por meio de instabilidades dos seus conceitos de base; no fim, Catulo é um homem dessa elite, repete boa parte de seus projetos políticos, sexuais e estéticos no fim da República romana, mas cria uma fissura na imagem e a lança diante dos riscos da paixão, uma fissura que levará, nas décadas seguintes, ao desenvolvimento de toda a poesia elegíaca amorosa e aos modos de vida que essa elegia certamente defenderia sob o Principado de Augusto.
CATULO/OLIVA NETO, João Angelo. O livro de Catulo. Tradução, introdução e notas de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Edusp, 1996.
FEDELI, Paolo. “A poesia de amor” In: CAVALLO, Guglielmo et alii (eds.). O espaço literário na Roma antiga. Vol. 1: A produção do texto. trad. Daniel Peluci Carrara e Fernanda Messeder Moura. Belo Horizonte: Tessitura, 2010. pp. 151-186.
FLORES, Guilherme Gontijo. “Apresentação” In: Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica romana. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
_______. Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horácio: comentário e tradução. Tese de Doutorado em Letras Clássicas defendida na USP. São Paulo, 2014.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. 9.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
_________. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. 7.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
GONÇALVES, Rodrigo Tadeu & FLORES, Guilherme Gontijo. “Polimetria latina em português.” In: Letras. no. 89, Curitiba, 2014.
JANAN, Micaela. “When the lamp is shattered”: desire and narrative in Catullus. Souther Illinois University Press, Carbondale 1994.
SHAW, Lytle. Frank O’Hara: the poetics of coterie. Iowa: University of Iowa Press, 2006.
THOMSON, D. F. S. Catullus, edited with a textual and interpretativ commentary by D. F. S. Thomson. Toronto: University of Toronto Press, 1997.
WISEMAN, T. P. Catullus and his world: a reappraisal. Cambridge University Press, Cambridge: 1985.
WRAY, David. Catullus and the poetics of Roman manhood. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
Agradeço, antes de mais nada, a gentileza da leitura crítica de João Angelo Oliva Neto, com suas inúmeras sugestões e ponderações acerca do que aqui desenvolvo. Dito isso, não custa lembrar, como sempre, que as afirmações aqui apresentadas são apenas de minha responsabilidade.↩
Embora num lugar totalmente diverso, parece-me no mínimo instigante lembrar como Jacques Lacan insiste em vincular-borrar, ao longo de sua obra, a noção de transferência psicanalítica com a de amor (amour de transfert).↩
Temos felizmente uma belíssima tradução integral de João Angelo Oliva Neto para O livro de Catulo (1996).↩
Em minha tese de doutorado (FLORES, 2014) podem ler-se parte significativa do que entendo por tradução poética e questões acerca da recriação rítmica da poesia antiga que envolvem métrica, vocalização e performance; cf. também GONÇALVES & FLORES, 2014.↩
Neste ensaio deixo de lado as possíveis relações da persona Lésbia com a pessoa Clódia, sobre as quais Wiseman fez um interessantíssimo estudo (1985).↩
Os conceitos de “uso dos prazeres” e “cuidado de si” desenvolvidos por Michel Foucault nos vols. 2 e 3 da História da sexualidade (2001 e 2002) tornam-se absolutamente pertinentes para pensarmos a ética do casamento das elites romanas.↩
Wray ainda faz, nas páginas seguintes, uma análise das relações entre os dois poemas (50 e 51) de Catulo e o idílio 11 de Teócrito.↩
É no mínimo curioso notar que comentadores recentes, como Thomson (1997), ou mesmo Oliva Neto (1996) em sua tradução, não deem atenção para as sugestões homoeróticas do poema (na nova edição, no prelo, Oliva Neto toca claramente no ponto: “É de notar como Catulo reveste eroticamente o amor amical por Calvo”). Nem falo de Fordyce, que em seus comentários precisos, deixa de lado e expurga todo conteúdo erótico. Em contraposição, outros estudiosos, tais como Micaela Janan, atentam para os tensionamentos eróticos do poema (1994: 51 e ss.); e também Wray (op. cit.)↩
Aurélio e Fúrio aparecem claramente como amigos de Catulo no poema 11, aqui podemos levar a violência da ameaça de estupro como parte de um jogo abusivo entre amigos. Sobre o poema que causaria a acusação, comentadores se dividem entre 48 (aqui traduzido, dedicado a Juvêncio) ou, como eu mesmo entendo, os poemas 5 e 7, dedicados a Lésbia.↩