Poema e contato

Tradução e poesia na obra de José Paulo Paes

Susana Scramim

Universidade Federal de Santa Catarina

sscramim@uol.com.br

Resumo: Trata o texto sobre o cotejamento entre a atividade de tradução e de criação de poemas na obra de José Paulo Paes. Parte-se da hipótese de que ambas as práticas são indissociáveis na produção escrita de um autor e que há um fluxo ininterrupto entre uma e outra prática. Além disso, a prática da tradução artística é tratada aqui como uma performance da linguagem poética na qual a poesia encontra-se com sua exigência maior de se voltar sobre si mesma sem restar não dita naquilo que diz, de acordo com o que Giorgio Agamben definiu como sendo a especificidade da poesia moderna.

Palavras-chave: Teoria da tradução e atividade criativa; poesia brasileira moderna; José Paulo Paes.

Abstract: The purpose of this text is the comparison between the activity of translation and the creation of poems in the work of José Paulo Paes. It starts from the hypothesis that both practices are inseparable in the written production of an author and that there is an uninterrupted flow between one and another practice. In addition, the practice of artistic translation is treated here as a performance of poetic language in which poetry meets its greater demand to turn to itself without remaining unsaid in what it says, according to what Giorgio Agamben defined as being the specificity of modern poetry.
Keywords: Translation theory and creative activity; modern Brazilian poetry; José Paulo Paes.

A atividade tradutora operada por poetas não é um aspecto lateral de seu trabalho criativo. Toma-se a tradução não apenas como ato de “verter” um texto para uma outra língua de modo isolado. Utilizado com o sentido de transposição, fazer “verter”, também tem o sentido de abrir uma passagem para outros fluxos de sentidos correrem, o que inclui o ato da “versão” que, ademais de ser o substantivo derivado do verbo “verter”, traz consigo o sentido de fazer voltar-se sobre si mesmo. Giorgio Agamben, em “Ideia da prosa”, designa como um específico modo de atuar do verso a ação de voltar-se sobre si mesmo e essa seria a sua finalidade, o seu “fim”, tomado na sua ambivalência entre estar espacialmente situado no final da linha da frase poética e também estar simultaneamente pensado como finalidade, enquanto propósito: voltar. Para tal retoma o termo latino de versura:

[...] termo latino que designa o lugar em que o arado dá a volta no fim do campo. Existe um paralelismo com alguns sistemas de escrita antigo, nos quais as linhas correm alternadamente da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como acontecia na escrita grega antiga, na hitita ou também na rúnica. Este tipo de escrita é geralmente designado de escrita bustrofélica (do grego bustrophedon: (modo de virar os bois)1

Em consequência disso, ou seja, se a tradução como eu a compreendo aqui faz verter para abrir outros fluxos cujo efeito é o de também fazer voltar-se sobre si mesma, o problema da tradução é um problema do verso. Como ponderava Mallarmé, em “Crise de Verso”, o problema do verso é o problema da poesia, sendo por ele considerado o problema originário da literatura moderna, isto é, do problema da separação/crise que se instaura no verso a partir da ideia de literatura pensada e praticada como discurso moderno e que retomava o problema originário do escrever.

Hugo, em sua tarefa misteriosa, acuou toda a prosa, filosofia, eloquência, história, no verso, e, como ele era o verso pessoalmente, confiscou a quem pensa, discorre ou narra, quase o direito a se enunciar. Monumento nesse deserto, com o silêncio, longe; numa cripta, a divindade assim de uma majestosa ideia inconsciente, a saber, que a forma chamada verso é simplesmente ela mesma a literatura; que verso há tão logo se acentua a dicção, ritmo desde que estilo. O verso, creio, com respeito esperou que o gigante que o identificava à sua mão tenaz e mais firme sempre de forjador, viesse a faltar; para, ele, se romper. Toda a língua, ajustada à métrica, aí recobrando seus cortes vitais, se evade, segundo uma livre disjunção aos mil elementos mais simples; e, eu, o indicarei, não sem similitude com a multiplicidade dos gritos de uma orquestração, que permanece verbal.

[...]

As línguas, imperfeitas nisso que várias, falta a suprema: pensar sendo escrever sem acessórios, nem cochilo, mas tácita ainda a imortal fala, a diversidade, sobre a terra, dos idiomas impede ninguém de proferir as palavras que, senão, se encontrariam, por um cunho único, ele mesmo materialmente a verdade2.

Tal posição frente ao verso é uma posição frente ao problema da escrita, vale dizer, a possibilidade singular de produzir pensamento autêntico e única possibilidade de distinguir poesia e prosa, e também entre o que é literatura e não é literatura, pois tem a função de operar e colocar em jogo a relação com a versão/versura. É nesse sentido que a tradução é um modo de fazer sobreviver o problema originário “no” e “do” texto poético, portanto, deixando aparecer a angústia diante do ato da escritura: o do “por que escrevo?”. No voltar-se a essa pergunta, que é histórica, porque atravessada pela experiência moderna, está implícita uma sobrevivência arcaica, ou seja, uma relação moderna com o mito.

José Paulo Paes foi um poeta que “buscou um caminho de escrita fora dos limites do modernismo”, conforme se pode ler na apresentação à primeira tentativa de balanço da poesia dos “novos” poetas entre 1940 e 1950, feita por Fernando Ferreira de Loanda, em antologia de 1951, intitulada Panorama da Nova Poesia Brasileira e editada pela editora carioca Orfeu. O novo estado poético buscado por esses poetas pressupunha respostas distintas em relação ao estar fora dos limites do modernismo. José Paulo Paes, já esboçara sua relação com o modernismo no poema “Muriliana”:

Corto a cidade, as máquinas e o sonho

Do jornaleiro preso no crepúsculo.

Guardo as amadas no bolso do casaco.

Almoço bem pertinho do arco-íris,

Planto violetas na faca do operário.

Conversando com anjos e demônios,

É o meu anúncio quem dirige as nuvens.3

Publicado originalmente no livro O aluno (1947), nele se constata o fazer sobreviver o problema originário “no” e “do” texto poético quando o “aluno” de poesia estuda a lição do ato material de escrever o poema. Põe-se a escrever, mirando-se nos Murilogramas, de Murilo Mendes, em especial o “A Gérard de Nerval”, no qual o poema constrói a ambiência do texto a partir de uma imagem da cor e do pontilhado das “sardas” para criar a imagem de sombra e luz da melancolia:

Desposa a cidade sardenta.

Sol brancopreto da melancolia.

Vomita a aurora ferox.

Invoca a númera 13.4

*

No poema do aluno Paes, a ambiência se constrói no ato de cortar a cidade, cortar as máquinas e cortar o sonho; o aspecto semântico do uso do verbo cortar produz o efeito do corte estrutural do verso no poema. Assim, os muros e engendramentos maquínicos da cidade e o efeito incorpóreo dessa mesma escrita são corporificados nos fragmentos do discurso sobre a cidade que são os versos desse poema “Muriliana”, de Paes. Se sua escrita foi tomada algumas vezes pela crítica de sua obra como minimalista ou epigramática,5 tal formulação advém da potência desta em conjugar e declinar, como se fosse uma escansão escolar, os problemas da escrita da poesia como uma relação entre tempos e espaços. Exemplo disso é o poema “Carta de Guia”, que José Paulo Paes inclui em Cúmplices (1951):

I

Nossa vida

Construímos

A cada passo,

A cada minuto,

A cada esquina,

De mãos unidas

II

Sempre teu rosto e o crepúsculo.

Em teus olhos a viagem das nuvens

É um estranho presságio

Que evito decifrar.

III

Caminhemos

Sem perguntas

Como os suicidas

Que jamais indagam

A profundidade do abismo.

[...]6

O poema é uma retomada, em diapasão paródico, de um gênero menor do barroco português, as cartas de guias, nas quais a posição do aluno é a de se colocar à escuta de algo imaterial que, no entanto, é transmitido por uma lição extremamente objetiva e material. Escrever ou situar sua obra “fora” dos limites do modernismo tem como causa e consequência escrever fora dos limites do discursivo no moderno, pois que a leitura funciona como tradução da lição apreendida de um outro tempo e a tradução passa a ser modo de criação. Criar com o cabedal apreendido pela memória nas lições do aluno não é propriamente matéria “nobre” para o projeto de literatura ou de arte moderna. Desse modo, a poesia de José Paulo Paes opera uma retomada de valores no âmago da própria poesia moderna brasileira, cria uma poesia que não funciona muito bem na lógica discursiva da modernidade, pois, de acordo com sua tradição brasileira, a obra deveria produzir reflexões entre linguagem e sociedade. Contudo, o modo de operar na deriva de texto a texto, de lição em lição, de transposição em transposição, não necessariamente inclui a realidade social imediata. A tradução como prática de leitura e a leitura como prática da tradução são os caminhos para cumprir uma revolução com outra estratégia de luta: a de inverter a hierarquia entre sociedade e linguagem. A tarefa moderna da poesia, dessa maneira, se organiza a partir de outro princípio de reunião.

A prática da tradução é que produz a necessidade de cumprir a tarefa da poesia, vale dizer, a de colocar em conjunção problemas dispersos no tempo e no espaço social. Mais do que disponibilizar em outra cultura os textos de uma literatura estrangeira ― em que se pese a fundamental consequência para uma cultura e literatura o fato de se disponibilizarem traduções em sua língua ― mais do que uma ação de utilidade pública, a tarefa do tradutor é uma lição que “forma” e dá “forma” à poesia como resultado do trabalho da escrita pessoal. A tradução é uma atividade de leitura e sem ela não seria possível compreender os movimentos que orbitam o mundo da poesia.

Entre os anos de 1963 e 1980, José Paulo Paes desenvolveu um importante trabalho de editor na editora Cultrix, o que se caracterizou, juntamente com o trabalho de tradução, como um modo de “formar” e dar “forma” a uma concepção e prática de escrita literária, ou seja, de lidar cotidianamente na produção escrita com os problemas primordiais da poesia. E é operando dessa maneira que, a partir da década de 1980, José Paulo Paes intensifica e realiza seu trabalho de tradutor, publicando, em português, obras decisivas para a literatura moderna. Entre tantos e importantes textos traduzidos destaco os poemas de W. H. Auden, Konstantinos Kaváfis, William Carlos Williams, Hördelin, Rilke, Nikos Kazantzákis.

Traduzir: operar sem obra

Walter Benjamin, em 1923, elabora o conceito de “pervivência”, o Das Fortleben, e isso é decorrente de sua reflexão sobre a tradução. Esse ensaio, cujo título é “A tarefa do tradutor”, “Die Aufgabe des Übersetzer”, funcionou primeiramente como prefácio à antologia de poemas As flores do mal, que Benjamin havia traduzido e que, posteriormente, fora publicado separadamente. Em função disso, o que moveu o filósofo não foi somente a consideração sobre uma questão metodológica acerca da técnica do ato e do efeito de traduzir. Ao contrário, Benjamin quis dar dimensão destacada à cultura letrada naquilo que concerne a uma dimensão mais ampla, mais complexa, quando se deixa atravessar por questões outras que não exclusivamente as do mundo formal letrado. Contudo, seria importante já assinalar a proposta com a qual Benjamin e, por consequência, esta minha análise irá trabalhar. Quando reflete sobre a tradução, Benjamin relaciona esta operação de leitura com sua reflexão sobre a vida.

É mais do que evidente que uma tradução, por melhor que seja, jamais poderá ser capaz de significar algo para o original. Entretanto, graças à sua traduzibilidade, ela encontra-se numa relação de grande proximidade com ele. E, de fato, essa relação é tanto mais íntima quanto nada mais significa para o próprio original. Pode ser denominada uma relação natural ou, mais precisamente, uma relação de vida. Da mesma forma com que as manifestações vitais estão intimamente ligadas ao ser vivo, sem significarem nada para ele, a tradução provém do original. Na verdade, ela não deriva tanto de sua vida quanto de sua sobrevivência (“seinem “Überleben”). Pois a tradução é posterior ao original e assinala, no caso de obras importantes, que jamais encontram à época de sua criação seu tradutor de eleição, o estágio de continuação de sua vida. (“das Stadium ihres Fortlebens”). A ideia de continuação da vida e da continuação da vida das obras de arte deve ser entendida em sentido inteiramente objetivo, não metafórico.7

A atividade poética da tradução, aqui tratada como uma modalidade de leitura, não é a maneira pela qual o poeta que opera a tradução adquire ou fortalece um modo de expressão próprio ou garante sua fama através da fama do original, ou ainda, um modo de imitação com vistas à transformação criativa, isto é, uma “transcriação”, como quiseram Haroldo e Augusto de Campos, pois segundo Walter Benjamin a operação tradutória acontece em um “vasto desdobramento” da vida do texto traduzido, e, assim sendo, a tradução tem uma vida e uma finalidade: demonstrar um íntimo relacionamento que muitas vezes escapa ao mundo formal moderno. Ressalte-se que o conceito de vida com qual Benjamin aproxima a obra e sua leitura, o original e sua tradução, não está de modo algum em sintonia com as teorias vitalistas que lhe foram contemporâneas. Trata-se mais de um afastamento de uma teoria da vida pensada na expressão de sentimentos produzidos por uma alma individual. Essa diferenciação tem o objetivo de aproximar a prática vital ao pensamento de uma vida na sua acepção de faculdade ou capacidade de produzir ou encontrar a história mediante a relação entre história e palavra. A reflexão de Giorgio Agamben opõe-se a todo pensamento que propõe a primordialidade do logos, do discurso, na arqueografia dessa relação entre vida e palavra, nisso coincidindo com o pensamento benjaminiano. Quando alguém propõe a primordialidade do logos na organização de sua escrita, está querendo dizer que há uma “duração” mais longa dele na cultura, conduzindo tal proposição a uma teologia, pois ela assinala uma negatividade na estrutura original da obra poética, a qual transforma a palavra no primado do significante e da letra em arranjo discursivo e lógico, caracterizando a origem como traço. A proposição benjaminiana, continuada posteriormente pela leitura de Giorgio Agamben, rejeita a tese de que há essências vitais, do mesmo modo não permite a transformação do material relacional da cultura em formas autônomas na atividade da escrita e, ao contrário da autonomia, afirmará que a escrita produz formas de vida, formas históricas. Benjamin chega mesmo a referir-se à capacidade de se produzir vida em corpos inorgânicos, isto é, da letra ser vivificada. Cito novamente o ensaio sobre a tradução de Walter Benjamin, no qual se pode ver muito claramente sua compreensão do que venha a ser a concepção de vida com a qual ele quer operar um conceito de leitura. Cito Walter Benjamin:

O fato de que não seja possível atribuir vida unicamente à corporeidade orgânica foi intuído mesmo por épocas em que o pensamento sofria as piores limitações. Mas nem por isso trata-se de estender o império da vida sob o débil cetro das almas, da forma tentada por Fechner; menos ainda, trata-se de poder definir a vida a partir de aspectos da animalidade, ainda menos propícios a servirem de medida, como o sentimento, que apenas ocasionalmente é capaz de caracterizá-la. É somente quando se reconhece vida a tudo aquilo que possui história e que não constitui apenas um cenário para ela, que o conceito de vida encontra sua legitimação. Pois é a partir da história (e não da natureza – muito menos de uma natureza tão imprecisa quanto a do sentimento ou alma) que pode ser determinado, em última instância, o domínio da vida. Daí deriva, para o filósofo, a tarefa: compreender toda a vida natural a partir dessa vida mais vasta que é a história. E não será a continuação da vida das obras incomparavelmente mais fácil de reconhecer do que a das criaturas? [...] Nelas [nas traduções] a vida do original alcança, de maneira constantemente renovada, seu mais tardio e vasto desdobramento.8

Estou buscando esse vasto desdobramento da análise, um desdobramento de algo antigo, porque a operação e leitura é sempre algo a posteriori e é motivada pelo princípio da recordação da língua, a história de sua palavra. As recordações são construídas com coisas que não podem ser lembradas com perfeição, pois temos sempre uma amorosa adesão ao presente, contudo a recordação surge justamente dessa impossibilidade. Na sua tentativa de aproximar-se de uma compreensão do ditado da poesia, Giorgio Agamben cita o poeta louco e maldito Dino Campana, internado num hospital psiquiátrico em 1908, onde permaneceu até o final de sua vida, no que se refere à relação entre palavra e vida, entre poesia e vida, longe de todo e qualquer psicologismo, ele resgata a afirmação de Campana de que a experiência da poesia se definiria pela memória e pela exigência do presente da escrita, pela letra e pela voz, pelo pensamento e pela presença, um dualismo na posição que ocupa frente à história e uma dupla atuação da língua (diglossia). Cito Agamben:

Entre uma impossibilidade de pensar (“eu não pensava, não pensava em ti: eu nunca pensei em ti”) e um não poder mais que pensar, entre uma incapacidade de recordar na perfeição, amorosa adesão ao presente, e a memória que surge precisamente nesta impossibilidade desse amor: eis os eternos pólos de divisão do poema. E é este dilaceramento interior que constitui o “ditado” do poema. Como Folquet de Marselha, o poeta recorda no canto aquilo que, no canto, desejaria apenas esquecer, ou então – para sua felicidade – esquece no canto o que com ele queria recordar.9

O princípio da rememoração leva o poeta ao sítio arqueológico da história, porque o antigo, e não me refiro ao “velho”, é um complexo e instigante arquivo de coisas destruídas a nos emitir sinais que o presente tem que compreender para tomar posse de seu próprio tempo. Não se trata de sobrevivência do original no texto traduzido apenas como operação de passagem de uma língua a outra, mas igualmente de processos de releituras de certas obras esquecidas por suas culturas. Há desdobramentos indicadores de certa vida das obras, porque sempre há uma busca por relê-las nos diversos presentes e que, por sua vez, são indicadores de problemas residuais. Esses problemas, se não formam conjunto pelos temas e estilos de obras e épocas, formam conjunto se pensados a partir das inquietudes que os constituem e atravessam. Todos os textos se posicionam por um desejo de perdurar, permanecer conservados, legar ao futuro uma herança na íntegra, adquirindo, com isso, o sentido de uma recusa ao perviver e/ou ao sobreviver, sendo esse o impasse, a impossibilidade na qual a poesia encontra seu lugar.

José Paulo Paes e a tarefa da tradução de um poema de W.H. Auden

Entre as traduções operadas por José Paulo Paes destaco a que ele fez de “Espanha 1937”10, de W. H. Auden, a qual abre um fluxo intenso de possibilidades de análise de sua obra no contexto da poesia modernista brasileira e seus movimentos em torno ao problema dos conflitos originários do poema. Como se trata de um poema longo, gostaria de destacar apenas esse trecho, traduzido por Paes e publicado na antologia de poemas de Auden, organizada por João Moura Jr. e José Paulo Paes, e posteriormente publicada pela Companhia das Letras, em 2013:

Ontem todo o passado. A linguagem do tamanho

Expandindo-se à China por rotas de comércio; a difusão

Do ábaco e do cromlech;

Ontem o cálculo da sombra em regiões solares.

 

Ontem a segurança avaliada pelas cartas,

O vaticínio da água; ontem a invenção

Da roda de carro e do relógio, a doma

De cavalos; ontem a azáfama do mundo navegante.11

Observe-se que o poema de Auden inicia-se pelo advérbio “ontem”, indicando sua clara e objetiva relação histórica, portanto, do tempo como história, e da modernidade, pensada como progressão do ser em direção à morte, como promotora da “discursividade” do verso. Interessante associar esse poema traduzido por Paes com outro poema publicado no seu talvez mais impactante livro, Prosas seguidas de Odes mínimas: trata-se do poema “Escolha de Túmulo”, o qual, desde o primeiro verso e primeira palavra, encontra-se marcado pelo pronome “onde”, em cujo desdobramento acontece a repetição anafórica do advérbio “onde” para indicar a relação do poema com a morte e, em específico, com a morte do poeta.

Escolha de túmulo

Mais bien je veux qu'un arbre

m'ombrage au lieu d'un marbre.

Ronsard

Onde os cavalos do sono

batem cascos matinais.

Onde o mundo se entreabre

em casa, pomar e galo.

Onde ao espelho duplicam-se

as anêmonas do pranto.

Onde um lúcido menino

propõe uma nova infância.

Ali repousa o poeta.

Ali um voo termina,

outro voo se inicia.12

Com esse advérbio “onde” anafórico se constrói, como no poema de Auden, uma relação com a história moderna, mas a relação expressa no advérbio utilizado por Paes é distinta da de Auden. Enquanto o uso do advérbio no poema de Auden é extremamente temporal, no de Paes é pautado pela conjunção do espaço e do tempo. As três primeiras estrofes de seu poema demonstram um compromisso forte com a espacialidade: o advérbio está indicando o lugar dos animais, do mundo cotidiano, dos vegetais aquáticos. A cada repetição há uma indicação da passagem de um espaço terrestre para um líquido. Trata-se da presença do estranho animal marinho, das anêmonas que são apresentadas no verso como uma imagem refletida. A reflexão liquidifica ainda mais a imagem, pois, a partir de onde elas são olhadas, o espelho, se cria uma sugestão da relação entre erotismo e morte, ou seja, morte e vida. Após o término dessa estrofe, altera-se por completo o sentido de espaço dado pelo uso anterior do advérbio; seguem-se outras três estrofes, nas quais o “onde” espacial se direciona ao tempo, pois o lúcido menino retorna à ideia de infância, mas não à repetição daquela vivida no passado, e, sim, à infância que ainda não se vivenciou e, por isso, se constitui como “uma nova infância”: “Ali um voo termina,/ outro voo se inicia”. A nova infância é o lugar do poeta, afirmaria a penúltima estrofe do poema de José Paulo Paes.

Eu não poderia não analisar algo que salta aos olhos na tradução de Paes do poema “Espanha, 1937”, de Auden, ou seja, a relação com um poema de Carlos Drummond de Andrade. Trata-se de uma relação surpreendente entre o poema “A Federico García Lorca”, de Drummond, e o “Espanha 1937”, de Auden. Dessa relação entre esses dois poemas deriva também uma outra forma de compreender o modernismo de alguns poetas brasileiros. Se, num primeiro momento, José Paulo Paes, após ter enviado seu primeiro livro de poemas, O aluno (1947), a Drummond, e este lhe ter aconselhado a “evitar a imitação de vozes alheias”13, em outro, a prática da tradução operada por Carlos Drummond de Andrade também ofereceu à sua própria poesia um caráter de extemporaneidade e (ex)espacialidade, ou ainda, de espaço e tempo alheio. Para criar uma imagem dessa relação, destaco, em especial, uma estrofe do poema de Auden:

Amanhã, para os jovens, poetas explodindo feito bombas,

O passeio à beira do lago, o inverno de perfeita comunhão:

Amanhã a corrida de ciclistas

Pelos subúrbios nas tardes de verão; hoje porém a luta.14

E novamente retomamos o uso dos advérbios temporais dentro do poema de Auden. O que se inicia com o “ontem”, desdobra-se no “amanhã”, contudo, se entretecem no “hoje”, e retomam a ideia da utopia conquistada em função da ação da guerra e, por consequência, o efeito permissivo da morte que a guerra produz, portanto, que há um “amanhã” que “justifica” a morte de jovens em combate: “Amanhã, para os jovens, poetas explodindo feito bombas,/ [...] Amanhã a corrida de ciclistas”.

A ideia do poema de Auden não é exatamente retomada por Drummond, pois no poema do brasileiro não há propriamente a presença de jovens combatentes, e, sim, a de um mártir. O poema foi escrito em “homenagem” a García Lorca e o fato destacado foi seu assassinato perpetrado pelos fascistas que lutavam para tomar o poder que estava instituído democraticamente. Carlos Drummond de Andrade o publica em Novos Poemas (1948), livro publicado logo após o A rosa do Povo, livros dos acontecimentos e das perdas, tempo de constatação da destruição da guerra e da ideia de humanidade. Drummond cria sua imagem de Lorca, investindo na experiência do herói que está morto, porém, que ressuscitará sob as formas de novas canções ou odes que ainda serão canções e odes, aquelas que seriam entoadas para o anúncio (notícia) e apologia de uma nova era. Há uma tentativa de redenção do passado, daquilo que os anos e os homens da guerra degradaram e destruíram. No poema “A Federico García Lorca”, há um clamor pelo amanhã que funcionará como redentor do passado de “trevas” e anunciará através do “canto multiplicado” que os “poetas martirizados” para “sempre viverão”.

Sobre teu corpo, que há dez anos

se vem transfundindo em cravos

de rubra cor espanhola,

aqui estou para depositar

vergonha e lágrimas.

[...]

Lágrimas de noturno orvalho,

não de mágoa desiludida,

lágrimas que tão-só destilam

desejo e ânsia e certeza

de que o dia amanhecerá.

(Amanhecerá.)

[...]15

A utopia é o ponto de vista desse poema que Drummond publica dez anos após a morte de Lorca, estampado no livro preparado alguns anos após o término da segunda Guerra Mundial, um livro organizado por uma subjetividade que não quer aceitar que o militarismo continua a tomar conta do mundo e que ainda tem esperança de que “(Amanhecerá)”. O futuro, a utopia desse tempo em projeção, não está no poema de Drummond expresso pelo advérbio de tempo “amanhã”, como no poema de Auden, porém, o verbo com o qual o poema termina está no tempo futuro e o termo está em relação de derivação do advérbio. O que importa destacar nessa relação é o compartilhamento do ponto de vista temporal para compreender o acontecimento do presente, um presente deslocado para o futuro absoluto, o futuro que conterá o poeta, o herói de uma batalha, e os seus poemas conservados em sua integridade, e derivados e metamorfoseados em outras vidas/leitura. Desse modo, ambos os pontos de vista, o de Auden e o de Drummond, não se identificam com o poema de Paes, ou seja, é um alerta para o caso de haver uma continuidade da obra, nesse momento, os novos poemas seguirão sendo escritos como sobrevivências de poemas anteriores, “um voo termina e outro se inicia”, o futuro conterá o passado porque o poeta/poema continuarão na “nova infância”, não há morte, e, sim, metamorfose. O poema de Drummond cogita também a possibilidade da metamorfose, sendo a poesia flor – e o corpo morto de García Lorca – é essa flor e, por isso, “se vem transfundido [há dez anos] em cravos de rubra cor espanhola”; mas a metamorfose acontece no corpo já sem vida, porque heroicizado pelo ponto de vista do verso, que lhe confere a homenagem e não o diálogo sob a égide da força vital. Drummond segue desenvolvendo esse ponto de vista, ou seja, o do desaparecimento e necessidade de resgate do herói, no poema que antecede o de “A Federico García Lorca”: trata-se de “Notícias de Espanha”, nele, o poema percebe a falta de utilidade da flor na guerra e vaticina que no lugar de flores preferiria fazer do e com o poema bombas.

[...]

Cansado de vã pergunta,

farto de contemplação,

quisera fazer do poema

não uma flor: uma bomba

e com essa bomba romper

o muro que envolve Espanha.16

Observe-se a confluência de pontos de vista entre o poema de Auden no verso “Amanhã, para os jovens, poetas explodindo feito bombas,” e o de Drummond, “quisera fazer do poema / não uma flor: uma bomba”. Não há desesperança frente à solução advinda da guerra nesses poemas, ao contrário, acredita-se na solução final. Há um paralelismo entre as forças das bombas e a força dos poemas, mesmo sendo um poema equivalente a uma flor, mesmo que seja um paralelismo para negar a contemplação e o estético e afirmar a ação poética da explosão destruidora de uma bomba. Contudo, a ênfase nos dois poemas de Drummond, é o dar a ver a experiência da poesia sob a forma do slogan – a bandeira da luta política – e do refrão – a resposta de outras vozes à voz que enuncia a linha melódica do verso – . São que levam ao limite o linguagem da poesia, são quase poemas-reportagem-propaganda e, com isso, oferecendo novamente a possibilidade de pensar o “tempo moderno e social” como regente do modo de apresentar a poesia. Tanto Drummond como Auden e Paes se valem de estratégias de ação distintas as quais têm, ao fim, a mesma intenção: fazer-se repensar diante do impositivo moderno de criação. Da resposta ao “por quê?” do poema moderno, que eles fazem a si mesmos como exigência maior de seu trabalho, advém a obra marcada por seu repertório de leituras. Repertório esse que se conforma por aquele dar ouvidos “a vozes alheias”, estabelecendo o contato como modo de não perecer diante do caminho ao exterior aberto por esse modo de operar que oferece à sua poesia um caráter de busca pelo outro. Contudo, mesmo temendo o risco do abandono completo de sua tarefa, da tarefa de sua poesia, o desafio é aceito.

Referências

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________ . Poesia Traduzida. Organização e notas Augusto Massi e Julio C. Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

________ . Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 2002.

Arrigucci JR., David. Humildade, Paixão e Morte. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

________ . “Agora é tudo História”. In: Outros Achados e Perdidos. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 187-217.

AUDEN, W.H. [POEMAS]. Seleção e tradução João Moura e José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

BENJAMIN, Walter. “A tarefa do tradutor”. Trad. Susana Kampf Lages. In: HEIDERMANN, Werner(org.), Clássicos da teoria da tradução. Florianópolis: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001.

Bosi, Alfredo. O Livro do Alquimista. In: Céu, Inferno. São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2003, p. 155-69.

MALLARMÉ, Stephane. Divagações. Trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: Editora UFSC. 2010.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

Paes, José Paulo. Poesia completa. Apresentação de Rodrigo Naves. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.

Secchin, Antonio Carlos. “Um poeta em paz”. In: Poesia e desordem. Escritos sobre poesia e alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 121-124.


  1. Giorgio Agamben. Ideia da prosa. Trad. João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 31.

  2. Stephane Mallarmé. Divagações. Trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: Editora UFSC. 2010, p. 158-161.

  3. José Paulo Paes. Poesia completa. Apresentação de Rodrigo Naves. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 48.

  4. Murilo Mendes. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 671.

  5. Conferir as seguintes análises sobre a poesia de José Paulo Paes: a “concisão telegráfica” apontada por Bosi (2003, p. 162); a “dimensão infinitamente pequena” para Arrigucci Jr. (1999, p. 200); o interesse radical pela “brevidade poética” segundo Fortuna (1991, p. 84); e o “poeta do pouco” para Secchin (1996, p. 122).

  6. José Paulo Paes. Poesia completa, op. cit., p. 61.

  7. Walter Benjamin. “A tarefa do tradutor”. Trad. Susana Kampf Lages. In: HEIDERMANN, Werner (org.), Clássicos da teoria da tradução. Florianópolis: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001, p. 193.

  8. Walter Benjamin. “A tarefa do tradutor”, op. cit., p. 194-5. Os destaques sã meus.

  9. Giorgio Agamben. Ideia da prosa, op. cit. , p. 45.

  10. Spain, como foi inicialmente intitulado, é a escrita da experiência de W. H. Auden na Guerra Civil Espanhola. É uma das mais significativas obras literárias em inglês sobre essa guerra. Foi escrito e publicado em 1937. Auden publicou duas versões do poema, a primeira edição foi em forma de plaquete, Spain (1937); em seguida, revisou o poema e acrescentou uma marca temporal ao seu título “Spain 1937”, publicando-o em seu livro Another Time (1940). Posteriormente, Auden retirou o poema da edição de sua obra reunida, uma vez que o poema teve repercussões com as quais o próprio Auden não concordava e que mereceriam mais comentários e análises do que esses que aqui eu estou oferencendo. Sobre essas repercussões do poema de Auden, ver a discussão empenhada por George Orwell em "Inside the Whale" (1940) e E. P. Thompson respondendo ao texto de Orwell em "Outside the Whale" (1960).

  11. W.H. Auden, [POEMAS]. Seleção e tradução João Moura e José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 61.

  12. José Paulo Paes. Poesia completa, op. cit., p. 361.

  13. Conforme comenta Marilda Gifalli, na página eletrônica dedicada a José Paulo Paes do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Este texto foi publicado 06/11/2013, último acesso em 29/05/2016: http://www.iea.usp.br/pesquisa/professores/professores-visitantes/ex-professores-visitantes-nacionais/jose-paulo-paes

  14. W.H. Auden, [POEMAS], op. cit, p. 67.

  15. Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 2002, p. 237.

  16. Idem, p. 236.