Benito Petraglia1
Universidade Federal Fluiminense
benitop@id.uff.br
“Não tenho nenhuma certeza, não queria falar nem escrever sobre isso porque ainda não está bem pensado, não está pronto.”
(ARRIGUCCI JÚNIOR, 1999, p. 77).
Eu poderia repetir integralmente as palavras com que Davi Arrigucci Junior dá partida à roda de discussão, realizada em 1978, sobre alguns romances da década de 1970. Poderia repetir, insisto, e com um agravante no caso presente – talvez em nenhum momento esteja “bem pensado” nem “pronto”. Certamente isto se deve, em altíssimo grau, às deficiências do articulista. Mas me permitam a autoindulgência de supor que uma pequena parte fica por conta da natureza do assunto.
Trata-se do romance A tradutora (2016), de Cristovão Tezza. Ou, mais propriamente, dos desdobramentos teóricos que a obra suscita. Vamos então primeiramente ao enredo.
A história se passa em Curitiba, em 2014, poucos meses antes da Copa do Mundo. Segue de perto, durante três dias, a vida de Beatriz, a protagonista e tradutora do título. Contratada como intérprete, ela acompanha, nesse período, o alemão Erik Howes, assessor da FIFA, na visita que ele faz a Curitiba para avaliar o estádio da Copa. Ao mesmo tempo, contratada também pelo editor Chaves, traduz um ensaio do fictício pensador catalão Felip T. Xaveste.
Esta é, por assim dizer, a cena externa e atual da narrativa, porque, na verdade, ela “se organiza inteiro pelo jogo da memória” da personagem principal, como diz o autor (TEZZA, 2016b, p. 6). Diria, de modo mais abrangente, que ela se desenrola dentro da consciência de Beatriz, pois, embora a evocação do passado seja a ação predominante, ela igualmente projeta planos para o futuro.
Os eventos correspondem basicamente às seguintes situações na ordem cronológica do mais antigo para o mais recente: relacionamento amoroso de três anos com o escritor Paulo Donetti, que ela vai romper; caso mal resolvido, há um ano, com o pai de sua amiga, num final de semana em uma cidade do litoral do Paraná; jantar com o editor Chaves em São Paulo, durante o qual surge o namorado Donetti; tradução do livro de Xaveste, cujos fragmentos “permeiam a narrativa inteira como pontos frios de reflexão”(TEZZA, 2016b, p. 6); e acompanhamento do assessor da FIFA em encontro protocolar com autoridades e em visita aos pontos turísticos de Curitiba.
Os temas tratados no romance são de um presente imediato e de um elevado teor polêmico: os bastidores suspeitos do futebol, o questionamento da realização da Copa do Mundo no Brasil, a política de cotas raciais, a crise do governo Dilma, as manifestações de junho de 2013.
Como se vê, um enredo ralo, cujo eixo gira em torno da personagem Beatriz; de modo que um narrador onisciente se cola à protagonista; e a segue tão de perto que parece estar onde ela está: “No momento em que corria para cá, ficou vagamente na cabeça a imagem de um envelope avançando sob a porta da sala, ouviu um ruído” (TEZZA, 2016a, p. 12; grifo meu); “olhando no relógio, decidiu esperá-lo no hall do hotel, e não aqui nesta sala horrível” (TEZZA, 2016a, p. 91; grifo meu); ou talvez isso ocorra em função da maneira como o romance é construído, que, por sua vez, é a maneira como o personagem Donetti pretende escrever seu novo romance: “a representação da simultaneidade da consciência” (TEZZA, 2016a, p. 194).
Com efeito, é uma narrativa em que há mais tessitura do que fábula, ou “mais intriga do que trama”, que é como o autor classifica a “boa literatura” (TEZZA, 2016b, p. 6). É uma narrativa complexa. Exige do leitor muita atenção para identificar aqueles eventos e temas mencionados, os quais se embaralham e se misturam na consciência da protagonista. Uma indicação dessa complexidade nos é fornecida por Donetti, que pede a Beatriz a sua opinião sobre o romance que começou a escrever:
- ... de modo a incluir simultaneamente os diferentes pontos de vista na mesma sequência narrativa, Beatriz. Uma fusão de eus e eles, mas sempre a partir de um único eixo. Uma espécie de... de apreensão do caos dos nossos modos de perceber o mundo. Uma coisa que está na frase. (TEZZA, 2016a, p. 50).
Assim, a forma da narrativa que Donetti começa a escrever é a que o leitor tem diante de si, e cujo eixo é a personagem Beatriz.
Receio, no entanto, que o romance não se tenha realizado a contento. Esse juízo leva em conta não apenas razões isoladas de minha parte, mas atenta igualmente para as considerações do próprio autor. Em outras palavras, A tradutora não cumpre os objetivos do autor nem acata as observações teóricas do ex-professor de Letras da UFPR. Não consegue, para começar, “extrair o que há de permanente no instante fugaz.” (TEZZA. 2016b, p. 6). O circunstancial representado por aqueles eventos, mas sobretudo por aqueles temas referidos, não transcendem, não se transfiguram em verdade “permanente”. A narrativa tenta suprir uma “história que não pôde ser contada.” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1999, p. 84). Lá, em face da censura imposta pelo regime pós-golpe de 1964. Aqui, porque são temas ainda não consolidados, não sedimentados, ainda em disputa ideológica, como as manifestações de junho de 2013.
Observe-se agora este pequeno texto:
“O jornalismo que temos é só o retrato do país, somos um país dolorosamente inculto, corrupto e pobre, todos dependentes da máquina do Estado.
“A universidade pública brasileira, que cresceu no Brasil de modo tentacular a partir dos anos de 1970, e seguiu num movimento de expansão que prossegue até hoje, acabou por se transformar numa gigantesca estatal.
“Em muitos países, a cultura de Estado, cevada capilarmente no sistema educacional e adubada psicologicamente pelo escapismo utópico, cria um gigantesco e poderoso estamento de funcionários privilegiados e impermeáveis à mudança.
“A utopia da esquerda, que nunca tem chão, principalmente no Brasil, num momento delirou que estava no poder. O Brasil ama perdidamente o Estado.”
Alguém duvidaria tratar-se de um texto uno, coeso e coerente, que tem por objeto, de forma enfática, a crítica ao Estado, ao seu gigantismo? Tal ênfase decorre da presença da palavra “Estado” e seu cognato “estatal” nos quatro parágrafos. Em três ocasiões terminam o parágrafo, como uma espécie de corolário do que se tenta demonstrar. Está presente nas instituições, no “jornalismo” (primeiro parágrafo), na “universidade pública” (segundo parágrafo), em suma, é uma “cultura de Estado” (terceiro parágrafo). Seu gigantismo é ressaltado pela repetição do adjetivo “gigantesca/o” (segundo e3 terceiro parágrafos), sendo a “utopia da esquerda” o fecho explicativo que dá remate ao argumento.
O leitor desconfiado fareja a farsa. E tem razão. Apresso-me em desmontar a fraude e dizer a verdade. O texto é de inspiração coletiva. Foi concebido a quatro cabeças. O primeiro, terceiro e quarto parágrafos estão no romance; pertencem, respectivamente, a Donetti (p. 154), Chaves (p. 154) e Xaveste (p. 146). O segundo está em O espírito da prosa (2012, p. 145) e pertence ao escritor Cristovão Tezza.
De todo modo, o embuste revela “problemas” que contrariam as próprias ideias do autor sobre a narrativa de ficção. Assim, para ele, “toda obra ficcional bem realizada sabe mais do que o seu autor, ultrapassa-o, transborda os seus limites pessoais, porque sua matéria fundamental são linguagens coletivas, vozes distintas e contraditórias.” (TEZZA, 2017, p. C6; grifos meus).
Pelo que vimos, no entanto, dos fragmentos apresentados, não parece haver neles “vozes distintas e contraditórias” e nem bem o seu autor “transborda os seus limites pessoais”. Em relação ao último aspecto, pode-se dizer que existe uma confluência entre os estilos e pontos de vista de Xaveste e do autor. Além do exemplo citado, acrescento outros dois, em que julgo não ser fácil identificar a autoria.
O primeiro versa sobre drogas:
“Naquela época [anos 60], o espírito contestatório errático e individualista (quando à margem das utopias políticas de esquerda, que corriam, caretas, em outro trilho) encontrava na droga uma espécie de álibi perfeito. “(1)
“A droga nos grotões degradados da América Latina, se tornou a única sustentação prática da velha utopia revolucionária (e, pode-se esperar, em breve será também do terrorismo islâmico global, assim como a papoula financiou o Talibã desde o desastre da ocupação soviética).” (2)
O segundo sobre multiculturalismo ou estudos culturais:
“A ilusão multicultural, no seu limite, promove a paralisia ética de uma imaginária ‘fundação natural’ de todas as coisas, necessariamente equivalentes entre si, descartadas para sempre as hierarquias oral, cultural, política ou estética.” (3)
“Para boa parte dos estudos culturais atuais, empenhados em esvaziar até a última gota o sangue azul que as chamadas artes literárias manteriam atavicamente em sua autoimagem, a hierarquia valorativa da literatura já seria, por si mesma, uma violência, e a referência do Ocidente como padrão universal da literatura apenas a dominação do velho imperialismo em sua forma mais insidiosa.” (4)
Como na especiosa montagem daqueles quatro parágrafos anteriores, estes dois pares de exemplos formam, cada um, uma unidade de sentido. O primeiro descreve a evolução do papel das drogas no tempo. De um uso individualista, contestatório e algo romântico nos anos 60 para o pragmatismo do financiamento de revoluções e terrorismos nos anos recentes. O segundo enfoca, de modo crítico, a abolição das “hierarquias” promovida pelo multiculturalismo ou estudos culturais.
Cessada a disposição de lograr o leitor, digo logo que os fragmentos (2) e (3) pertencem a Xaveste e se encontram, respectivamente, nas páginas 40 e 51 do romance (2016a); os outros dois, (1) e (4), têm como proprietário Cristovão Tezza e estão, respectivamente nas páginas 89 e 46 de sua autobiografia literária, O espírito da prosa (2012).
Torna-se, então, aceitável ao leitor admitir que o fictício Felip T. Xaveste pode figurar como um outro nome para o escritor Cristovão Tezza. Nesse caso, ele estaria diante de um não romance, uma não ficção. Não, não sou eu que o digo, é o escritor:
Se o leitor aceita que as palavras que lê agora são a expressão direta e intransferível das opiniões de Cristovão Tezza, ele mesmo, por mais confusas ou enganadoras que sejam, ele estará diante de um não romance, uma não ficção (um ensaio, ou qualquer gênero de texto que extraia todo o seu sentido da pressuposição intencional ou direta da verdade) (TEZZA, 2012, p. 15).
Desse modo, receio que, de fato, A tradutora pareça mais um ensaio do que um relato de ficção e corra o risco de envelhecer, em razão de seu caráter mais documental do que ficcional.
A partir de agora, este artigo toma outro rumo, inflete para a especulação. Como está dito no início dele, buscarei refletir sobre os desdobramentos teóricos que uma obra supostamente malograda proporciona. Curiosamente, em outra autobiografia literária (Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira dizia que aprendeu muito com os poemas não tão bem concebidos. Neles se acusava o que se devia evitar. Se tal observação pode parecer simplória, do tipo “com os erros é que se aprende”, no âmbito da literatura, ela motiva pelo menos duas implicações que julgo valiosas: a primeira é que a obra de arte precede a teoria, ou a teoria se constitui a partir da obra; a segunda é que a teoria se enriquece com a crítica judicativa fundamentada.
“Romance contemporâneo do tempo presente”. Pode parecer redundante. O emprego do título é para estabelecer a distinção entre os romances contemporâneos que utilizam fatos do presente como assunto e os que se valem de acontecimentos estáveis do passado para ambientar o relato.
Tomo a expressão “tempo presente” da denominação formulada em 1978 pelo historiador francês François Bédarida – histoire du temps presént (FERREIRA, 2000, p. 120). A “História do tempo presente” tem por fim compreender os acontecimentos recentes da história. Era consenso entre os historiadores, sobretudo a partir da “escola dos Annales” (1929), que as estruturas duráveis, isto é, os fenômenos de longa duração, eram mais importantes do que as intercorrências de conjuntura, de curta duração. Sustentava-se a necessidade de distanciamento temporal para se alcançar uma visão retrospectiva sobre acontecimentos cujo desfecho já fosse conhecido.
Desse modo, o “século XX recebeu o estigma de objeto de estudo problemático, e a legitimidade de sua abordagem pela história foi constantemente questionada.[...] O risco [era] cair no puro relato jornalístico.”(FERREIRA, 2000, p. 117). “Atualidades e disputas políticas candentes não faziam parte de suas [dos historiadores] preocupações intelectuais.” (SAYURI, 2017, p. 3).
Entretanto, acontecimentos marcantes do século XX que repercutem para além de seu tempo, como a revolução soviética, a ascensão dos EUA como potência, as guerras, não podiam ficar a descoberto dos estudos históricos. Daí a emergência desta linha teórica, a “História do tempo presente”, que
nasceu de uma demanda social para responder a um ‘passado que não passa’, para usar a expressão de Rousso [Henry Rousso, historiador francês]. Isto é, um passado cujas consequências e traumas se fazem sentir de modo muito vivo no presente, sendo alvo de usos políticos e distorções nas disputas atuais (JOFFILY apud SAYURI, 2017, p. 3).
É certo que a narrativa histórica e a prosa romanesca guardam entre si algum grau de parentesco. Podemos, então, transportar para o romance contemporâneo as “atualidades e disputas políticas” que se prestam a “distorções”? Ou não, e teríamos que voltar à velha poética aristotélica para demarcar a diferença entre as duas?: “Diz um [historiador]as coisas que sucederam, e outro [poeta] as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (ARISTÓTELES, 1979, p. 249).
A verossimilhança, portanto, daria superioridade ao poeta ou ao produtor do romance sobre o historiador, preso a uma verdade particular.
Retornamos outra vez à questão: com que elementos o romancista deve figurar sua representação para torná-la universal e filosófica? Milton Hatoum, por exemplo, é um escritor que prega e realmente professa em seus romances a doutrina do distanciamento entre o tempo do discurso e o tempo da história: “O tempo que separa o momento da escrita da época narrada já possibilita um espaço de invenção. A distância temporal que separa um evento do passado do momento presente do escritor forma uma névoa narratva.” (HATOUM, 1996, p. 13).
A literatura que mais lhe interessa é a que “fala sobre a reconstrução de ruínas, sobre uma época que já esquecemos ou pensamos ter esquecido” (HATOUM, 1996, p. 8). Ele contrailustra essa feição de sua literatura com o fracasso que foi a tentativa de escrever, ainda nos anos 70, um romance político sobre o período da ditadura:
Percebi que o meu texto nada mais era do que uma crônica dos acontecimentos recentes. Tudo o que eu escrevia ainda estava no tempo, quero dizer no tempo quase-presente, como se o texto fosse uma roupagem sobre eventos ainda vivos, talvez vivos demais na minha memória.
[...]
A minha vivência daqueles acontecimentos ainda não tinham sido diluídos pelo tempo. Eram cenas vivas demais, que, em sua crueza, acenavam apenas para o factual. (HATOUM, 1996, p. 7-8)2
Estaríamos diante de uma fatalidade doutrinária? A execução plena de uma narrativa só seria obtida se o autor observasse esse distanciamento temporal? Nesse caso, a ficção estaria interditada para o que chamei de “romance contemporâneo do tempo presente”? E a limitação da ficção não acarretaria a limitação da teoria? Assim como o século XX representou um óbice para os historiadores, o romance do tempo presente representará o mesmo para a crítica?
Deve-se atribuir, como afirmei no princípio deste artigo, a máxima parte dessas interrogações às insuficiências de quem o escreve, mas, repito, espero dos leitores a complacência de admitir que uma mínima parte delas se constitui um desafio para a crítica universitária. Com o desaparecimento do último crítico impressionista (Wilson Martins), o risco do julgamento a quente caiu inteiro no colo da academia. Não faz muito tempo os Cursos de Letras só alcançavam a literatura de Guimarães Rosa. Agora ela caducou para os fóruns de literatura contemporânea.
A profusão de obras e autores com o avanço das tecnologias de editoração; a realização crescente de simpósios, seminários e fóruns sobre literatura contemporânea; o surgimento de revistas acadêmicas especializadas; a emergência de novos prêmios literários – tudo isso vem criando uma demanda por avaliação a qual os Departamentos de Letras não têm como se furtar a satisfazer.
Além disso, tal como os historiadores sentiram a necessidade de intervir nos acontecimentos do século XX, os críticos de literatura não podem evitar o que o pensador alemão Hans Ulrich Gumbrecht intitula “amplo presente”, que assim caracteriza:
Em vez de deixarem de oferecer pontos de orientação, os passados inundam o nosso presente; os sistemas eletrônicos automatizados de memória têm um papel fundamental nesse processo. Entre os passados que nos engolem e o futuro ameaçador, o presente transformou-se numa dimensão de simultaneidades que se expandem (2015, p. 16; grifos do autor).
Para ele, “os cientistas do espírito”, os “humanistas têm a obrigação e o privilégio de praticar o ‘pensamento de risco’”. (GUMBRECHT, 2015, p. 12). Até mesmo os clássicos são passíveis de revisão, em face desse “amplo presente”: “a nossa nova relação com os clássicos, ainda difuso exercício, surgiu de uma alteração em nossa construção do tempo.” (2015, p. 94).
Mas seria possível sistematizar um conjunto de regras (resisto a empregar a palavra “teoria”, grande demais para o que se apresenta também como “difuso exercício”), um conjunto de regras cabíveis à ficção do tempo presente, que ensejem uma análise adequada? ou o intérprete deve-se valer apenas de sua intuição aplicada caso a caso? É certo que há sempre uma dose de invenção no ato crítico. Contudo, creio que tanto melhor será se se puder juntar à invenção algum teor metódico. De resto, não se perde nada em refletir sobre a oportunidade dessas regras. Uma boa vantagem do campo literário sobre outros é que não se mata ninguém por um “erro especulativo”. O especulador está a salvo de um processo criminal. Os piores danos sofridos são certos olhares enviesados ou, para os reservados, o envolvimento em polêmicas públicas.
Ressalto, para começar, que aquelas regras podem ser propícias ou adversas. Explico com um exemplo desta última condição, isto é, adversa. A boa consecução do romance depende de um bom contexto nacional? Dizendo de outro modo – compor uma trama depende de uma certa conformação do processo histórico? Acho que ainda não ficou claro. Apresento uma situação concreta. Será que a nossa história, rala, fraca, frouxa, o tom quase sempre farsesco dos nossos conchavos, o nosso vezo de conciliar pelo alto dificulta a geração de bons enredos? Fernando Henrique Cardoso afirmava que o Brasil
parece ter obedecido antes à dinâmica de uma história pouco ‘precipitada’, se se quiser fazer uma alusão ao comportamento dos elementos químicos e simultaneamente às regras de astúcia e compromisso características da cultura política brasileira, do que ao espetaculoso corte de nós górdios que caracterizaram os grandes momentos da passagem do Antigo Regime à era burguesa na França ou, ainda mais drasticamente, a passagem do capitalismo ao socialismo (CARDOSO, 1977, p. 15).
Para continuar com a imagem dos “elementos químicos”, terá sido o velho Machado quem descobriu a nossa fórmula – a mistura da galhofa com a melancolia?
Se fizermos, porém, uma busca mais apurada, podemos designar romances do tempo presente sobre os quais já se consolidou um consenso quanto à sua plena realização. Vidas secas (1938), em 113ª edição é um romance contemporâneo para sua época. A alienação, a reificação, a ignorância, a miséria, a seca, produzidas e intensificadas por um sistema iníquo, confederam-se para esmagar uma família de retirantes.
Não precisaríamos, todavia, irmos tão longe no tempo. Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, é um romance do tempo presente consagrado com prêmios e acatamento da crítica. O tempo da história é ainda mais curto que o de A tradutora. Passa-se em algumas horas. Corresponde ao tempo do trajeto de um ônibus do centro de uma cidade até um bairro periférico chamado Tirol. Os mesmos fatores presentes em Vidas secas encontram-se em Passageiro do fim do dia, exceto por duas substituições: em lugar de “seca”, “violência”; em lugar de meio rural, meio urbano.
O registro realista e a forte temática social não transformam os romances em panfleto ou documento. O trabalho com a linguagem, sua íntima relação com o conteúdo narrativo, a indeterminação do caso particular em referência geral, em suma, a transfiguração da realidade em ficção logra produzir uma feliz realização artística.
Contudo, ainda acredito que, em alguma medida, aquela nossa peculiaridade histórica representa uma desvantagem para os nossos escritores. Eles precisarão ter mais acurácia na escolha e tessitura do mito, para usar um termo da poética aristotélica. De qualquer modo, a observância daquele distanciamento temporal parece não ser uma condição inelutável. Aliás, como lembra Paul Ricoeur, Aristóteles não se interessa por esse aspecto:
Aristóteles certamente não atribui nenhuma significação temporal ou quase temporal ao provável; limita-se a opor o que poderia ocorrer com o que ocorreu. [...] Aristóteles, na verdade, não se interessa nem um pouco pela diferença entre passado e presente; caracteriza o que ocorreu pelo particular e o que poderia ocorrer pelo geral (RICOEUR, 2010, p. 326).
Aristóteles, portanto, atribui mais importância ao possível (verossímil), ainda que anote que o que ocorreu (passado) de fato é um possível mais “plausível”: “enquanto as coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis” (ARISTÓTELES, 1979, p. 249) Milton Hatoum, ao salientar a relevância do distanciamento, se refere à “espessura do passado”. No que diz respeito ao romance do tempo presente, haveria mais pertinência em falar da “espessura do mito”. Ou seja, um acontecimento que, embora se originando num tempo pretérito, repercute de tal forma no presente, que se torna uma experiência iniludível e ampla, como a seca e a desigualdade social. A propósito, o filósofo italiano Giorgio Agamben, em um dos modos de caracterizar o contemporâneo, assim se expressa: “A contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké, isto é, da origem.” (AGAMBEN, 2009, p. 69). Mas, a ter alguma validade essa hipótese, não estarei restringindo os horizontes do escritor? Não ficaria limitado só às grandes experiências, as notáveis e coletivas?
Nietzsche, numa obra polêmica, ambígua, até contraditória – Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida (1874) – considerava os animais, por viverem de forma aistórica, seres felizes; por se absorverem no presente, não se entristeciam nem se enfastiavam. O homem, ao contrário, por estar sempre a ruminar suas lembranças, carrega um fardo; o excesso de sentido histórico é doentio e infelicita o homem:
Tanto na maior como na menor felicidade, só uma coisa faz a felicidade ser felicidade: a capacidade de esquecer ou, expresso de forma erudita, a faculdade de sentir aistoricamente durante a felicidade. Quem não sabe alojar-se no umbral do instante, esquecendo-se de tudo que passou [...], nunca saberá o que é a felicidade (Nietzsche, 2017, p. 35-36).
Se, num outro exercício difuso, tomarmos pelo avesso a reflexão de Nietzsche e a ajustarmos a uma certa sensibilidade congenial ao escritor, talvez encontremos uma boa combinação. É justamente sua capacidade de lembrar, de sentir e sofrer (um pathos criador), que faz a felicidade da literatura.
Cristovão Tezza, no Espírito da prosa, confessa que o que o “levou a escrever foi um misto de infelicidade e esperança” (2012, p. 33). Mais adiante, ele passa da confissão ao conceito: “o escritor é, antes de tudo, um inadequado” (2012, p. 83); a felicidade não produz literatura” (2012, p. 83), pois “a ideia de felicidade supõe alguma adequação, algum equilíbrio entre o ser e o seu meio” (2012, p. 84).
Talvez haja bons fundamentos no conceito. Mario de Andrade confirma Tezza: “Em princípio, toda intuição definidora, toda poesia deriva de uma insatisfação, de um não-conformismo. A poesia nasce de uma dor, por banal ou aparentemente sentimental que seja esta afirmativa” (ANDRADE, 1993, p. 41). E ainda: “é preciso não esquecer que psicologicamente, em oitenta por cento dos artistas verdadeiros, o próprio fato de serem eles artistas, é uma definição de infelicidade.” (1993, p. 51).
Quero dizer com isso que a escolha do mito não se prende apenas a um fato transcendente. Uma experiência íntima e inesquecível pode também converter-se numa história bem concebida. As operações de esquecer e lembrar guardam entre si uma estrita conexão, uma espécie de dialética de olvidar um alfinete para reter o talismã. Ou dito de modo mais sério: “A lembrança é uma espécie de significante de um conteúdo que é o olvido”. (ARRIGUCCI JÚNIOR. 1999, p. 85). E não é necessário que tal experiência esteja ligada ao tempo, ainda que ele seja um importante filtro para deixar coar só o substancial da memória.
Dos romances de Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá talvez seja o menos lido e estudado. A biblioteca da UFF, por exemplo, não dispõe de nenhum exemplar. Coevo de sua época, era um romance do tempo presente. Contém semelhanças com A tradutora. Há no relato o mesmo tom de crônica. Os dois personagens principais, quase dois Limas Barretos, um rapaz de vinte anos e um senhor de mais de sessenta, discorrem pelas ruas da cidade a discorrer sobre tudo: a burocracia, o feminismo, o preconceito, o Barão do Rio Branco, suas desilusões e mágoas.
Mas há tamanho lirismo, tamanha pungência, uma íntima e sentimental relação com o espaço – os dois combinam de se encontrar no Passeio Público “para ver certo matiz verde que o céu toma, às vezes, ao entardecer” (LIMA BARRETO, 1956, p. 38) –, enfim, uma sinceridade ficcional, se é possível juntar estas palavras, que faz do romance uma obra significativa e relevante. Quem sabe seja a primeira autoficção do século XX, para citar uma tendência do atual romance contemporâneo.
Agora, se se unem, num feliz casamento, os dois tipos de mito – uma experiência iniludível e ampla, íntima e inesquecível, porventura surja a grande obra – O filho eterno do próprio Tezza, cumulado com quase todos os prêmios literários, adaptado para o cinema e teatro. Veja-se, outrossim, o critério que Machado de Assis utiliza ao selecionar seis simples crônicas, escritas entre 1892 e 1894, para a miscelânea de textos de Páginas recolhidas (1899): “Enfim, alguns retalhos de cinco anos de crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objeto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espírito”. (1990, p. 13; grifos meus)
Creio que não seria forçar a interpretação associar as expressões “o objeto não passasse inteiramente” e “ainda agora me fale ao espírito”, respectivamente, às experiências referidas no parágrafo anterior.
Neste preciso ponto, a voz crítica do leitor me interrompe: “Certo, falaste das experiências, mas e o trabalho artístico de sua elaboração?”. O objetivo deste artigo, respondo, foi só tratar do mito, só quis tratar do mito no romance contemporâneo.
A questão pode ser matéria para outro artigo. Este se encerra agora, reiterando que, assim como a História não teve como evitar o tempo presente, apesar de todos os problemas e desafios que isso comporta, a crítica universitária não tem como fugir ao mesmo compromisso, não há escolha, já não mais é possível esperar o tempo passar. Para parafrasear Antonio Candido, no que toca aos romances do tempo presente, são eles que nos exprimem; se não os lermos, se não os estudarmos, se não os amarmos, ninguém o fará por nós.
Referências bibliográficas
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ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Jornal, Realismo, Alegoria: O Romance Brasileiro Recente: In: ––––––. Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 77-109.
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HATOUM, Milton. Notas sobre Relato de um Certo Oriente. Literatura & Memória. São Paulo: PUC, 1996, p. 7-15.
LIMA BARRETO, A. H. de. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Brasiliense, 1956.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida – segunda consideração extemporânea. Tradução André Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 113ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.
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Resumo: Este artigo procura, através do romance A tradutora, de Cristovão Tezza, estudar o que chamou de “romance contemporâneo do tempo presente”. Mais especificamente aborda, no conceito aristotélico, nesses romances. Ou seja, o tratamento de temas muito recentes, ainda não sedimentados pela história e pelo tempo.
Palavras-chave: mito; romance contemporâneo; tempo presente.
CONTEMPORARY NOVEL OF PRESENT TIME: THE CASE OF A TRADUTORA
Abstract: This article aims, through de novel A tradutora, by Cristovão Tezza, to study what the author named “contemporary novel of present time”. More specifically it addresses the myth, in the Aristotelian concept, in those novels. That is, the treatment of themes very recent, not settled by history and time.
Keywords: myth; contemporary novel; present time.
Recebido em: 29/1/2018
Aceito em: 18/2/2018
1 Graduação, Doutorado e Pós-Doutorado em Letras pela UFF.↩
2 Quarenta anos depois, com o recente lançamento do primeiro volume – A noite da espera (2017) – da trilogia Um lugar mais sombrio, Hatoum parece começar a acertar as contas com o passado.↩