APRENDER O CORPO

A REDENÇÃO DO EROS NA “TEOLOGIA FICCIONAL” DE JOSÉ SARAMAGO

Marcio Cappelli

“No princípio era a palavra!”, afirma o prólogo poético do evangelho de João (Jo 1,1). Se vista como uma espécie de metalinguagem, que fala da palavra de Deus na palavra literária, a frase aponta para a relação ancestral que marca a construção da teologia e da literatura.1 É possível ver uma extensa afinidade entre esses dois saberes, começando pela antiguidade com a noção acerca da doutrina do “entusiasmo” – em-théos, que denota, literalmente, ter a Deus ou deuses dentro de si – e a ideia de “inspiração” – in-spirar, que significa ter dentro o Espírito –, associadas ao fazer poético, mas também utilizadas para descrever a atividade que fez nascer, por exemplo, os escritos bíblicos. Podemos nos referir à aproximação da poesia à profecia e, até mesmo, alargar tal ideia para aplicá-la à figura de Jesus de Nazaré, não para vê-lo somente como um “mestre que ensinava poeticamente”2, mas como um grande ficcionista que através das parábolas apontava para a utopia do Reino de Deus.3 Além disso, basta recordarmos o elevado caráter literário da Bíblia, essa grande biblioteca de temas, expressões e personagens que foi chamada pelo poeta William Blake de “o grande código” sem o qual seria impossível decifrar a literatura ocidental.4 Seguindo o percurso da relação de proximidade entre teologia e literatura, voltando o nosso olhar para a história, perceberemos que a reflexão teológica dos Padres da Igreja possui belezas literárias de valor imenso, a partir do encontro inesperado entre a tradição clássica e o hebraico da herança bíblica.5 Isso já seria suficiente para resgatar a conexão que existiu desde cedo entre esses saberes e que, de certa forma, foi desgastada e esgarçada na Idade Média pela exacerbação da preocupação conceitualista escolástica.6 No entanto, a modernidade que aprofundou a separação entre a expressão literária e a teológica como consequência dos efeitos do processo emancipação que levou ao desgaste a identificação da cultura com a teologia cristã, paradoxalmente, principalmente a partir do período oitocentista, significou para a teologia uma oportunidade de rever-se e abrir-se para o diálogo com outros saberes, o que construiu o caminho para uma reaproximação que rendeu frutos significativos, sobretudo vistos desde a segunda metade do século XX, com os trabalhos de Romano Guardini, Henri de Lubac, Karl Rahner, Hans Urs von Balthasar, Paul Tillich, Pie Duployé, Dorothee Sölle, Hans Küng, Jean-Pierre Jossua, Karl-Josef Kuschel, Antônio Manzatto e José Carlos Barcellos. Esses e outros estudos têm ajudado a teologia a repensar a forma e o conteúdo de seus discursos, especificamente num panorama epocal em que o diálogo com crentes de diferentes tradições religiosas e com não-crentes se impõe como tarefa primordial. De fato, desde essa abertura – é claro, mais em alguns autores do que em outros –, uma espécie de percepção “evangélica” da cultura em suas manifestações não religiosas tem sido buscada. Nesse sentido, a reflexão teológica é desafiada a perceber, mesmo em linguagens que, num primeiro momento, podem lhe parecer estranhas e até mesmo antagônicas, uma interpelação legítima e, por que não dizer, uma autêntica fonte.

Seguindo essa direção, os romances modernos e contemporâneos eivados de toda a problemática de um ser humano que como um filho pródigo sai de casa, mas, diferentemente da parábola, já não consegue regressar e quedar-se diante do grande pai da mesma maneira, revelam-se como um locus theologicus, não no sentido de se verificar neles algo que já está pronto na teologia, muito menos como uma roupagem nova para velhos conteúdos – até porque, como diz a palavra evangélica, vinho novo necessita de odres novos –, mas como um laboratório em que a reflexão teológica está experimentalmente sendo refeita, re-imaginada. É no mundo romanesco que o sujeito irreconciliado com o sentido seguro dado pelas grandes tradições – que lhe conferiam um arqué e um telos bem definidos – como que juntando os cacos de um vitral quebrado pelo estremecimento da catedral religiosa, procura montar outra paisagem para habitar e reinventa-se a si mesmo e o mundo a seu redor. É nesse sentido que, segundo Salmann, se o cristianismo soubesse redescobrir os temas teológicos no universo dos romances modernos, poderia encontrar-se não reduzido ao dogma ou à moral7. Isso é o que tentaremos fazer aqui aproximando-nos d’O evangelho segundo Jesus Cristo8, de José Saramago, primeiramente abordando a sua metodologia na escrita do romance e, posteriormente, adentrando especificamente a questão da sexualidade a partir da relação entre os personagens Jesus e Maria Magdalena. Mas, antes de tudo, é preciso dar uma palavra sobre o que chamamos de teologia ficcional.

1. Teologia ficcional

Quando nos referimos à “teologia ficcional” queremos enfatizar a substância teológica que há na ficção a partir da força imaginativa que compõe o gênero romanesco frente à teologia de caráter conceitual. Desse modo, é necessário dizer que a tarefa de falar sobre Deus e sobre a fé não é exclusividade da teologia conceitual. Nossa proposta não é tentar estabelecer se a palavra dos ficcionistas é superior ou inferior à dos teólogos e teólogas profissionais. Destacamos apenas que a literatura, especificamente o romance, pode, na sua legitimidade e liberdade, revelar-se como um discurso que expressa certa teologia, mesmo como no caso de Saramago, que se revela uma espécie de teologia às avessas, isto é, sem que tenha necessariamente que confirmar o conteúdo já produzido e aceito através da história.

A caracterização do romance enquanto gênero literário não é tarefa fácil, já que a compreensão acerca dele mudou ao longo dos séculos e que esse gênero está em constante transformação, impossibilitando uma definição e uma tipologia fixa. Oreste Aime sublinha que, mesmo reconhecendo a precariedade de qualquer tentativa de definição do gênero romanesco, é possível distingui-lo da poesia e do conto, por exemplo. Por isso ele descreve o romance como: “uma narração suficientemente grande, principalmente em prosa, de eventos realísticos ou fantásticos, com um ou mais personagens envolvidos em uma situação conflitiva ou problemática da qual se segue o desenvolvimento final da conclusão positiva ou negativa”9.

Embora Dom Quixote, de Cervantes, do período seiscentista, seja reconhecido como inaugurador do que podemos chamar de romance moderno, a origem do gênero está ligada a textos da antiguidade, como Os amores de Dáfnis e Cloé, de Longo Sofista, o Satíricon, de Petronio, e o Asno de Ouro, de Apuleio. No medievo, o romance renasceu primeiro em verso e depois em prosa, sobretudo com a renovação cultural do século XII e a afirmação de um outro idioma10. A própria origem da palavra “romance”, por exemplo, alude primeiramente à linguagem do povo em contraste com a dos eruditos. Provavelmente, vem de romanìcé, que designava o “românico”, língua falada nas regiões ocupadas pelos romanos e que já se diferenciava do latim pela fusão desse com as línguas de povos conquistados pelos romanos, sobretudo o grego.

Mais adiante, ganharam força os romances pastorais, os romances de cavalaria, como Amadis de Gaula e os picarescos, entre os quais podemos citar Lazarillo de Tormes, além dos precursores diretos do romance moderno e que determinaram significativamente seu desenvolvimento, a saber: o Decameron, de Bocaccio, e Gargantua e Pantagruel, ambos de François Rabelais.

Apesar de Lukács ter apontado os problemas do romance e alguns autores terem anunciado o fim do gênero, outros têm destacado uma espécie função autorregenerativa e autotransformativa da ficção romanesca e reiterado o seu potencial. Robbe-Grillet, representante do “novo romance”, afirmava que a característica da palavra romanesca é a “invenção do mundo e do homem, invenção constante e eterno pôr-se em questão”11. Georg Steiner, mesmo salientando a crise que vive o gênero romanesco na sociedade de consumo, oscilando entre entretenimento e seriedade, destaca a complexidade e o potencial do romance para dizer algo de importante. Assim, afirma que a “ficção é uma modalidade máxima de seriedade”12. Yves Reuter ressaltou a influência de uma reflexão sobre a cidade nos romances do XIX e XX.13 Ainda, Milan Kundera, em Arte do romance, afirma que esse gênero constituiu-se em um espaço paralelo às ciências, à filosofia e à história. Chega a afirmar que os temas da filosofia heideggeriana puderam ser vistos em quatro séculos de romance desde Cervantes14.

Voltando ao ponto principal deste tópico, cremos que o estatuto teológico da ficção romanesca pode ser defendido se entendermos que as narrativas são já uma forma de fazer teologia15, mas também se recordarmos que a imaginação é fator fundamental na elaboração da compreensão, atualização e problematização da fé. O romance, portanto, como gênero literário narrativo, imaginativo-utópico, aberto, antidogmático, que inclui criticamente os temas da fé, pode ser considerado como portador de uma ratio theologica explícita, ou seja, mesmo a partir da chave da problematização, pode ser tido como “teologia ficcional”. Em outras palavras, mesmo obras literárias de autores ateus podem conter autêntica teologia, na medida em que, por meio da criação ficcional, põem-se no âmbito da cultura cristã, problematizando suas afirmações fundamentais.

Elmar Salmann, a partir do Decameron, de Bocaccio, escrito entre 1348 e 1353, desenvolve a ideia do romance como modelo teológico. Na perspectiva desse teólogo, a novela ambientada no século XIV, ao narrar as histórias contadas pelo grupo fugitivo da peste, em Florença, prefigura a inauguração de um mundo novo.16 Para ele: “Neste horizonte não é mais um Deus que garante a ordem, mas é o homem que recria um mínimo de credibilidade”17. A novela se desenvolve como uma criação, que não pretende negar a incompreensibilidade e o mistério do mundo, mas revelar a possibilidade de desenredar-se mesmo sem escapar dela. Segundo essa compreensão, o romance, além de ilustrar a complexidade da realidade, apresenta maneiras outras de vivê-la. É um pequeno mundo complexo em si mesmo, uma “obra-mundo” que se constrói na interseção de diversos pontos de vista e, por isso, não pode ser fechado em nenhuma teoria. É dialógico. Por isso, o romance se destaca por ser essencialmente antidogmático enquanto alternativa à teoria, contudo, sempre preciso na sua descrição de mundo, mesmo sendo um sistema aberto. A partir dessa complexidade e, em razão de sua estrutura, sempre problematiza a opinião dominante e a teoria como fechamento definitivo do real. De certa forma, cada romance, pelo simples fato de ser romance, na medida em que revela o caráter precário do que está estabelecido como norma, através de sua abertura ao outro, opondo-se às teorizações terminadas, mantém uma conexão com o mistério. Isso significa que o romance é teológico, mesmo não correspondendo e até mesmo problematizando aquilo que, tradicionalmente, a teologia considerada ortodoxa tem afirmado. Ele opera muitas vezes um deslocamento teológico em que, a partir da perspectiva dialógica e polifônica, descentraliza as afirmações outrora estabelecidas e fixadas.

Outra ideia interessante é levantada por Milan Kundera. Ao se indagar sobre o que é o romance, o romancista tcheco responde apelando a um provérbio judeu: “O homem pensa, Deus ri.” E, a partir dele, ressalta o papel que Rabelais teve na formação do gênero: “gosto de imaginar que François Rabelais um dia ouviu o riso de Deus e que foi assim que nasceu a ideia do primeiro grande romance europeu. Agrada-me pensar que a arte do romance veio ao mundo como o eco do riso de Deus”18. O caso de Rabelais é significativo para pensarmos o potencial teológico do romance. Kundera lembra que Rabelais foi criador de diversos neologismos que posteriormente foram incorporados à língua francesa, mas que um deles foi esquecido: a palavra agélaste, que vem do grego e quer dizer “aquele que não ri”. Rabelais queixava-se que os agélastes eram atrozes com ele e que por causa disso quase deixara de escrever19.

Na sua formação, o escritor francês, estudioso de direito e médico, tomou contato com toda a rigidez da educação teológica e das práticas religiosas da época. Recebeu parte de sua instrução num convento franciscano, no entanto, seu interesse pelo grego e pelo latim e sua apreciação da literatura clássica, sob a influência do humanismo, fez com que sofresse certa perseguição, o que provocou sua mudança para a Ordem dos Beneditinos com a ajuda de amigos20.

Foi buscar na cultura popular a inspiração para os seus escritos. Isso se verifica pelo fato de “Pantagruel” e “Gargantua” serem figuras inspiradas num romance popular que circulava à época de Rabelais, cujo título era Grandes et inestimables chroniques du grand et énorme géant Gargantua21. Os elementos das festas populares também foram utilizados na narrativa rabelasiana. No carnaval medieval, Rabelais encontrou uma forma para compor sua obra, na qual o espírito de liberdade e de humor ia ao encontro das ideias do humanismo e questionavam a ordem estabelecida.

Rabelais desconstruiu discursos teológicos e práticas religiosas que fundamentavam toda uma maneira de viver através do recurso do humor. Podemos dizer que o romance rabelasiano, em contraposição à teologia estabelecida, se constrói como lugar imaginário onde a “posse” da verdade e o “consentimento unânime” são postos em cheque. Constitui-se como uma arte que contraria certezas ideológicas. A palavra romanesca ergue-se como “eco do riso de Deus” porque é um tipo de sabedoria alternativa que, “à exemplo de Penélope, [...] desfaz durante à noite a tapeçaria que os teólogos, os filósofos, os sábios urdiram na véspera”22.

Poderíamos mencionar também o caso marcante de Cervantes que redireciona a história romanesca. Seu Dom Quixote é uma expressão da vida do sujeito diante dos posicionamentos institucionais, um testemunho do indivíduo frente à heterenomia que dava solidez às estruturas que organizavam a vida. Não é um livro de teologia stricto sensu e tampouco Cervantes é um teólogo. No entanto, a leitura do romance deixa transparecer a centralidade do tema próprio do espírito da época, que se manifesta não apenas na incorporação das virtudes cristãs consideradas ortodoxas, mas também em práticas religiosas para além dos ditames institucionais.

Tomando as novelas de cavalaria como pano de fundo para pensar o romance cervantista, Antoñanzas considera que o cavaleiro encarna a virtude em seu mais alto idealismo e complexidade de ação, que tem como referência os preceitos cristãos23. O cavaleiro como ministro de Deus poderia realizar a obra divina no mundo. Entretanto, em Dom Quixote, isso ocorre de forma problematizada. Afinal, num tempo em que os fundamentos da realidade tinham sido calcados na autoridade, Cervantes destacava a liberdade. Para ele, o cavaleiro é andante, livre para abrir-se ao mistério da vida. A realidade verdadeira era tomada pela livre realidade novelada, e a novela representava a invenção de si mesmo e do mundo a seu redor. Essa loucura de combinar, de modo tão sério, ficção e realidade permite que Dom Quixote intente realizar sua obra como uma obra divina e, nesse sentido, tornar-se figura Christi. É curioso o paralelo que se estabelece entre o protagonista de Cervantes e a figura de Jesus de Nazaré, que também saiu por seu mundo contando parábolas, sem ter onde reclinar a cabeça24. Sobre esse também recaiu a pecha de louco, e até aqueles que o acompanhavam de perto, testemunhando sua entrega em liberdade radical, pensavam estar ele “fora de si”.

Em Cervantes, o romance se constitui como autêntica teologia ficcional, na medida em que torna-se símbolo da afirmação de que a realidade é mais do que aquilo que os sentidos percebem e que a razão pensa. Essa “teologia quixotesca” traz de volta o desafio de Jesus de Nazaré, qual seja, da afirmação da liberdade como valor fundamental, da coragem de sonhar e amar mesmo sendo tido por louco à vista de todos; ou seja, faz acreditar que a loucura muitas vezes é mais razoável que a própria razão.

Em suma, embora tenhamos usado os exemplos de Rabelais e Cervantes, poderíamos falar ainda de uma teologia ficcional em outros romances, como As aventuras de Robinson Crusoe, de Defoe, Os miseráveis, de Victor Hugo, Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, Ulisses, de Joyce, A montanha mágica, de Mann, Diário de um pároco de aldeia, de Bernanos, O poder e a glória, de Greene, O processo, de Kafka, Doutor Jivago, de Pasternak, A última tentação de Cristo, de Kazantzákis, O mestre e Margarida, de Bulgakov, Silêncio, de Endo, Do amor e outros demônios, de García Marquez, e muitos outros. A lista seria interminável. O que gostaríamos de enfatizar é que, no afã de capturar Deus e controlar a vida, certos discursos teológicos esqueceram-se que ele “ri”. Esquecendo-se disso, ignoraram a “sacra irredutibilidade” que o falar sobre ele e sobre a vida requer. O romance é, ao contrário, justamente o espaço imaginário onde as “verdades” podem ser deslocadas de seu sentido original e podem ser esboçadas a partir de outro cenário. Revela-se como discurso paralelo às arquiteturas conceituais. Como poderoso “instrumento ótico”, recolhe o imponderável e incalculável. Reconhece e expressa o vazio entre o encadeamento causal que a linguagem conceitual ignora. Ele subverte discursos por meio de apropriações, absurdos e expressões que seriam impensáveis na construção conceitual. Aquilo que para essa seria fraqueza é a maior força do romance. Por isso ele pode se tornar um veículo teológico, por seu alinhamento com o próprio mistério, afinal, como lembra Duployé: “Deus é um artista e não um engenheiro. Uma inteligência racionalista precisa entender em primeiro lugar que o Deus da Bíblia não explica nada senão que cria e aprofunda um mistério que abarca a todos mas que não facilita uma leitura linear das coisas”25.

O romance convida o leitor a uma espécie de “fé ficcional”, porque, como escreveu James Wood, “a ficção pede-nos que acreditemos, mas a qualquer momento podemos escolher não acreditar ”26. O romance se constrói justamente através de uma tensão dialética com o real. O leitor sabe que está diante de uma ficção, mas só poderá transpor o limiar da “mentira”, da “ilusão”, e percebê-la como instrumento que oferece uma visão do real, se, num exercício fiducial, entregar-se ao mundo da obra. Como a ficção movimenta-se no terreno da dúvida e, ao não se apresentar ao leitor como certeza, mas como possibilidade, pede a esse uma entrega.

Spadaro parece seguir na mesma direção quando afirma que o leitor, diante de uma obra de ficção, é chamado a responder com um ato de fé27. Toma essa ideia do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge para referir-se a essa tomada de posição que a ficção reclama. Para esse escritor, que viveu entre os séculos XVIII e XIX, a “fé poética” consistia num “momento de voluntária suspensão da incredulidade”28. É uma espécie de confiança de base na aproximação à página do texto, sem a qual não seria possível a experiência de identificação. Marcel Proust, embora não use a palavra “fé”, defendia que ao nos entregarmos à ficção ela “desencadeia em nós, no espaço de uma hora, todas as possíveis alegrias e desventuras que, na vida, gastaríamos anos inteiros a conhecer em parte mínima, e as mais intensas jamais as veríamos reveladas, porque a lentidão com que se produzem impede-nos a sua percepção”29. Ou seja, essa “fé ficcional”, esse “salto” na direção do mundo da obra, amplia o campo da nossa experiência porque faz-nos viver coisas que, de outro modo, jamais viveríamos. Aumenta, assim, o entendimento do ser humano sobre si mesmo e auxilia-o a discernir a própria luta entre o crente e o não-crente que coexistem dentro de cada um. Alarga-se também a capacidade de buscar e encontrar sentido para a vida em todas as coisas e acontecimentos possíveis30.

Esse caminho passa necessariamente pela revalorização da imaginação, que é a matéria prima de toda a literatura, especialmente do gênero romanesco. O teólogo italiano Oreste Aime lembra que a imaginação infelizmente não gozou de consideração científica, de tal modo que o ponto nevrálgico de toda a história da estranheza entre o saber teológico e o literário, que se construiu ao longo do tempo, pode ser situado nessa falta de importância.31 José Tolentino Mendonça também salientou que a imaginação tem sido uma cruz para os filósofos que, presos de antinomias, mostraram dificuldade em construir “uma via dialogal de sabedoria”. Mas lembra que ela é, igualmente, uma crux theologorum, na medida em que a teologia tem se situado mais no terreno dos esquemas racionalistas32. Ressalta que algumas mudanças podem ser sentidas a partir de certos esforços. Primeiro, pelo reconhecimento de que a imaginação não é um acessório destinado a colorir a crueza preto-e-branca da realidade, mas se constitui como acesso a ela. Segundo, pela percepção de que a imaginação é um antídoto contra a “realidade fabricada” que os grandes veículos de comunicação promovem. E, por último, pelo realce da necessidade de superação do pensamento dicotômico que aliena o ser humano de sua totalidade33.

Nesse sentido, é possível falar em uma revelação, no sentido forte da palavra, no romance, já que ele descortina novos horizontes34; mas também podemos destacar uma escatologia do romance como materialização de um florescimento imaginativo que, distendendo o real, aponta outras possibilidades de vivê-lo. O romance é forma de conhecimento que esbarra em limites, mas insiste através do trabalho imaginativo em ultrapassá-los. Nesse sentido, é utópico. Através dele o ser humano é capaz de falar do que não existe ou ao menos do que não existe no momento. Em linguagem teológica, expressa uma “reserva escatológica”. Por sua capacidade de abranger o real, revela o status do mundo, mas, ao mesmo tempo, por meio do seu poder imaginativo, lembra-nos do “ainda não”, ou seja, de que ainda há outro horizonte. Essa característica da ficção revela-se importante para a teologia, pois ela se junta à mensagem cristã na medida em que essa comporta uma dimensão escatológica, do Reino de Deus que já se faz presente, mas ainda não em plenitude. Como salienta Manzatto, o Reino é utópico, imaginário, fictício, mas essa ideia não é desmobilizadora: “Não se trata de cruzar os braços à espera do Reino que virá, mas [...] pôr-se ao trabalho de construí-lo”35. Nesse sentido, a ficção pode ser capaz de mobilizar as pessoas para a reforma do que está estabelecido e a construção de novas sociedades. É um espaço de elaboração da existência humana também a partir do ângulo de suas possibilidades ainda não exploradas. O romancista, através da utilização criativa dos recursos linguísticos, dos subjuntivos, dos condicionais, do “se” de nossa gramática, torna possível, como ressalta Steiner, uma contra-factualiddade imprescindível36.

A teologia pode descobrir um pensamento encarnado e original na escrita romanesca porque o trabalho do romancista não é mera transcrição de conteúdos mentais, já que, como lembra Jossua, “vem à pena o que nunca teria podido vir à ideia”37. Através do romance a teologia pode se reconciliar com suas próprias raízes, porque, como salienta José Tolentino Mendonça, “acreditar em Deus é também imaginar Deus. O Cristianismo é também um patrimônio de imaginação.”38 No decorrer do tempo, a teologia se pronunciou a partir de um conjunto de certezas definidas num espaço conceitual. Com isso, esqueceu-se de que não dispõe do objeto sobre o qual pretende falar, deve aprender da literatura, especialmente do romance, que a estética da linguagem está vitalmente ligada ao conteúdo. No entanto, isso só pode se realizar se a teologia deixar-se ser interpelada pela literatura e se não a cooptar como se fosse apenas um ornamento para um discurso já pré-fixado. A teologia deve se perguntar como os romances, até mesmo aqueles que partem da negação da fé cristã, podem ajudar a pensar o mistério do ser humano e de Deus.

Portanto, escutando o romance como verdadeira teologia ficcional, surgida como “eco do riso de Deus”, como expressão do Mistério, a teologia estaria mais próxima de sua estrutura basilar narrativa, simbólica, polifônica, literária, e poderia rever suas formas discursivas; mas não só isso, recorreria à imaginação como o “léxico do Espírito”39 e poderia deixar, para lembrar de Flaubert, o Dicionário das ideias feitas40.

2. A metodologia saramaguiana

Nos seus diários publicados sob o título Cadernos de Lanzarote, ao responder perguntas sobre o seu Evangelho, em 9 de outubro de 1993, Saramago afirma que a sua perspectiva é a do romancista e não a do historiador ou teólogo, mas deixa escapar como uma confissão a seguinte frase: “Ainda acabo teólogo. Ou já sou?”41. Em outra declaração, em 31 de outubro de 1994, diz: “Se é verdade que não sou teólogo [...] teólogos também não foram Marcos, Mateus, Lucas e João, autores, eles como eu de Evangelhos”42. É óbvio que não podemos entender tal afirmação sem levar em conta o artifício irônico saramaguiano. Contudo, ao lembrarmos aqui a ideia de uma teologia ficcional a partir da ficção romanesca, ressaltamos que é dos dispositivos literários utilizados na construção do universo romanesco do escritor português que emerge sua teologia. Nesse sentido, evocamos a lapidar passagem de Camus: “Não pensamos senão por imagens; se queres ser filósofo, escreve romances”43. Pensando em Saramago, o que propomos é parafrasear a passagem de Camus e tomá-la no seu avesso: “Ao escrever romances, tornou-se teólogo.” Contudo, é necessário clarificar a metodologia utilizada pelo escritor.

Aquela que chamamos de reescritura saramaguiana é composta pelo binômio intertextualidade-carnavalização. Dito de outra forma, é na utilização dos textos bíblicos que o autor constrói parodicamente a sua narrativa. Conforme Suely Flory destaca, Saramago “recria o mundo ficcional pela revitalização de sentidos e construção textual fundada na produtividade de intertextos, onde o velho aparece com um novo sentido”44.

Segundo Salma Ferraz, os intertextos no ESJC corroem o texto primeiro e proporcionam o surgimento de outro cuja finalidade é ratificar o posicionamento do autor45. Para Beatriz Berrini, o escritor não é precisamente um inovador no que diz respeito à releitura dos textos bíblicos. Na verdade, esse é um expediente muito utilizado pelos autores de língua portuguesa, em diversas épocas, uma vez que toda a cultura ocidental, sobretudo a ibérica, e, portanto, também a literatura, estabelece uma conversação com os textos bíblicos. Nesse contexto, a partir da utilização da linguagem herdada de uma sociedade portuguesa notadamente cristã, já seria possível afirmar que em Saramago predomina o diálogo com a Bíblia46. Mas, como frisa Maria dos Reis da Costa, Saramago tem o seu lugar específico nesse diálogo. De acordo com essa pesquisadora, através da releitura da Bíblia, a literatura, em Saramago, se mostra como uma interlocutora questionadora do discurso instituído pela teologia ortodoxa47. Pilar, companheira de Saramago, destaca que o escritor “era um grande leitor da Bíblia, de páginas belas e de outras terríveis. Podia dizer que era um manual de maus costumes e também que somos feitos, os cristãos culturais, dessas palavras”48.

É, pois, a linguagem tomada da tradição judaico-cristã que serve de base para a construção do mundo fictício do Evangelho saramaguiano. Entretanto, o prototexto bíblico é descontextualizado, é deslocado de seu contexto próximo para agregar-se ao contexto da nova narrativa, isso é, a intertextualidade na construção do texto saramaguiano não é pacífica, mas problematizadora, fazendo vir à tona “uma tensão (dialogismo entre os dois textos, denunciando a hostilidade de um em relação ao outro) e uma intenção crítica (pelo uso da paródia e da ironia, criticar o cerne de toda a Teologia – Deus)”49. Dessa forma, a intertextualidade com a Bíblia obedece a um processo de desconstrução textual que permite ao narrador subverter o sentido original dos textos, possibilitando uma extensa multiplicidade de interpretação e aplicação.

Contudo, há ainda explícita carnavalização engendrada por um “evangelista” que relê episódios bíblicos construindo um mundo às avessas, um (des)evangelho marcado pela visão de mundo carnavalesca, segundo a concepção de Bakhtin50. Por isso esse romance teve grande repercussão no mundo da literatura e da religião. No caso do evangelho saramaguiano, o intertexto bíblico é invocado para a construção narrativa sem a sua função imperativa, ou seja, o uso de referências bíblicas não tem compromisso com a interpretação normativa, mas antes com uma espécie de dessacralização. Nessa busca de ressignificar os evangelhos, o escritor português despoja o texto sagrado de sua interpretação dogmática. O sarcasmo mistura-se à elaboração simbólica das personagens religiosas numa carnavalização constante. Ao assumir a tarefa de reescrever os dados dos evangelhos canônicos, Saramago reinterpreta personagens, inclusive concedendo destaque àqueles marginais. Assim, nos escombros do prototexto, a sua teologia ficcional é construída. No ato da nova escrita não há a abolição total da antiga, mas isso não implica a aceitação da perspectiva pregressa, porém, antes a preservação de traços do antigo no novo que toma outra direção narrativa51. Essa direção é a da negação e não a do aniquilamento, ou seja, há uma ruptura com o primeiro texto e não um apagamento. Desse modo, ao apresentar uma nova interpretação, a antiga necessita ser levada em conta e inevitavelmente suas marcas aparecerão. Evidentemente, não poderíamos deixar de dizer que o edifício romanesco de José Saramago se ergue eivado pelo seu ateísmo que chama insistentemente a religião para o debate52.

Esse é o lugar de onde problematiza temas da reflexão teológica. Ao escrever em seu diário sobre a possibilidade de se tornar teólogo, talvez não tivesse em mente o alcance que isso poderia ter, embora bem antes tivesse assinalado em O ano da morte de Ricardo Reis que “é urgente rasgar e dar sumiço a teologia velha e fazer uma nova teologia, toda ao contrário da outra”53. Essa teologia ficcional que surge da pena do escritor português é uma teologia ateia, que procura exorcizar o fantasma de um “Deus” que insiste em se perpetuar nos discursos como forma de controle da vida, apoio de uma ordem injusta e sustentáculo de uma falsa segurança consoladora que impede as pessoas de se tornarem conscientes. Para Saramago, esse “Deus”, conteudificado por meio de um dogmatismo que dá vida a um imaginário religioso carregado de subserviência, deve ser rasgado; o “fator Deus” como responsável por certa “ordem” deve ser desconstruído para colocar em cheque a arrumação do mundo apregoada por certos “espíritos religiosos”54. Ele faz isso através de um mecanismo literário de reescritura da Bíblia.

3. A “boa notícia” saramaguiana: o eros redimido

Desde a sua publicação em 1991, o ESJC gerou inúmeros debates e polêmicas. O romance que reconta a vida de Jesus foi alvo de um veto em 1992, por parte do então subsecretário de Estado da Cultura de Portugal, António de Sousa Lara, que riscou o livro da lista de concorrentes ao prêmio Literário Europeu. É fácil constatar o motivo de tanto movimento no entorno do livro. Com sua reescritura, Saramago transforma em personagem ficcional a figura adorada pelos cristãos como o filho de Deus, Jesus Cristo.

Segundo o próprio José Saramago, o ESJC é um romance que nasceu de uma ilusão de ótica. Ao atravessar uma rua, em Sevilha, em 1987, o escritor leu, na confusão de manchetes de uma banca de jornal, as palavras em português do título do livro: “evangelho segundo Jesus Cristo”. Espantado, Saramago voltou para conferir. No aglomerado de jornais e revistas não havia nada daquilo que ele pareceu ter visto, não havia lá nem “evangelho”, nem “Jesus” e nem “Cristo”. Aquilo não passara de uma ilusão de ótica. Todavia, foi a partir daí que Saramago, começou a pensar algumas ideias para uma ficção sobre Jesus. Em 1989, na pinacoteca de Bolonha, após uma “iluminação”, Saramago viu-se diante de pontos que foram fundamentais posteriormente para a construção do enredo do romance, a saber: Jesus num encontro com Deus que lhe revelará o seu futuro e o da religião que será fundada na morte de um mártir55.

As epígrafes representam bem o projeto saramaguiano. Com a primeira frase a partir da referência de Lucas 1,1-4, nosso autor afirma que “depois de ter investigado desde a origem”, ele também resolveu escrever uma interpretação dos fatos relacionados com a vida e as palavras de Jesus. A segunda epígrafe é a frase atribuída a Pilatos, Quod scripsi, scripsi (“O que escrevi, escrevi”). Com ela, Saramago confirma e aprova a narrativa construída.

A partir daí, com exceção do primeiro capítulo que funciona como um prólogo, em que é narrada a gravura do artista alemão Albrecht Durer (1471-1528), “A Grande Paixão”, os outros 23 seguem uma determinação cronológica, nos quais é apresentada a vida de Jesus desde o momento da sua concepção até o momento último de sua vida na cruz.

3.1 A humanidade do Jesus ficcional de José Saramago

O Jesus saramaguiano é humano, somente humano, apesar de possuir filiação divina. Logo no início do romance, no segundo capítulo, para afirmar a humanidade do seu Jesus, Saramago desconstrói a ideia da concepção virginal de Maria, como a reflexão tradicional supõe. No evangelho de José Saramago, Jesus é concebido como todos os seres humanos, fruto da relação sexual entre um homem e uma mulher.

Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já vinha debruçando e procedia do mesmo modo com sua própria túnica [...] Deus, que está em toda parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria [...].56

O nascimento de Jesus é despido de toda roupagem extraordinária, é um acontecimento comum. Nas palavras do escritor: “o filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio”57. Ele está submetido a toda experiência que as outras criancinhas vivem. É amamentado, engatinha, chora e baba. Não havia nele nada que o diferenciasse das demais crianças, apenas ser o filho de Maria de Nazaré. Conforme retrata o narrador:

Maria olha o seu primogênito, que por ali anda engatinhando como fazem todos os crios humanos, na sua idade, olha-o e procura nele uma marca distintiva, um sinal, uma estrela na testa, um sexto dedo na mão, e não vê mais dos que uma criança igual às outras, baba-se, suja-se e chora como elas, a única diferença é ser seu filho [...] 58.

O Jesus de Saramago tem uma infância natural, é um menino semelhante a todos os outros: brinca com os irmãos, é instruído na religião judaica, trabalha e aprende o ofício do pai. Apenas é descrito como um menino que tem boa memória e sabe argumentar com lógica59. Posteriormente, sofre no corpo tudo aquilo que a adolescência provoca: “ele é a barba que começa a sombrear uma pele já de si morena, ele é a voz que se torna funda e grossa como uma pedra rolando pela aba da montanha, ele é a tendência para o devaneio e o sonhar acordado [...]”60.

3.2. Aprender o corpo: eros e realização humana em Jesus

Com a finalidade de realçar a verdadeira humanidade de Jesus, Saramago destaca a sua sexualidade. Esse traço se intensifica na relação de Jesus com Maria de Magdala. O encontro entre os dois é fundamental para compreendermos o Jesus saramaguiano. Quando Magdalena cuida de um ferimento no pé de Jesus e o abraça para ajudá-lo a caminhar, Jesus fica excitado61. Maria de Magdala insere-se no histórico das personagens femininas saramaguianas que questionam o ordenamento que impõe às mulheres um lugar de inferioridade em relação aos homens. Na ficção do escritor, ela inicia Jesus sexualmente, aconselha-o, interfere na realização dos milagres e é portadora de uma sabedoria nada ortodoxa que denuncia a aversão e a opressão às mulheres.

O contato inicial de Maria com Jesus é intenso. Com toda a sua experiência, Maria guia Jesus pelos caminhos do prazer, ensinando-lhe a conhecer o próprio corpo. Enquanto conduz as mãos de Jesus por toda a sua extensão corporal, numa carícia que deixa o rapaz sem fôlego, sussurra: “Aprende, aprende o meu corpo”62. E logo em seguida troca uma palavra e fala: “Aprende, aprende o teu corpo”63. Em contraste com o próprio Deus, “puro espírito”, interessado somente em usar o corpo de Jesus, derramando seu sangue para tornar real egoisticamente a sua vontade, Magdalena instrui Jesus iniciando-o nos mistérios da sexualidade. É a mistagoga do prazer. Ela se torna aqui a protagonista. Não é Jesus que a ensina, mas ela que o educa sobre o corpo.

Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e, enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende, aprende o meu corpo. [...] Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti [...] 64.

A narração desse acontecimento, de beleza ímpar, parece querer mostrar que Jesus é realmente um homem que assume aquilo que é próprio da sua condição humana. Saramago não vulgariza esse relacionamento entre Jesus e Maria de Magdala. A relação entre os dois não é somente genital, mas envolve-os na totalidade e com uma complexidade permeada de afetos, de carícias e de aprendizado. É interessante notar que depois da experiência que Maria de Magdala vive com Jesus ela dá outro destino a sua própria vida. Parece que para Saramago a redenção não vem de fora, mas se dá quando assumimos a nossa humanidade na sua integralidade. Aqui vale ressaltar um texto que Saramago escreve dezoito anos depois da publicação do ESJC e que chama de Um capítulo para o evangelho, em que Maria Magdalena fala da sua experiência com Jesus. Saramago dá voz a Magdalena para contar como após a morte de Jesus as pessoas a converteram em penitente arrependida. Ela, contrariada, e falando sobre si mesma diz:

Quem aquelas falsidades vier a dizer de mim nada sabe de amor. Deixei de ser prostituta no dia em que Jesus entrou na minha casa trazendo-me a ferida do seu pé para que eu a curasse, mas dessas obras humanas a que chamam pecados de luxúria não teria eu que me arrepender se foi como prostituta que o meu amado me conheceu e tendo provado o meu corpo e sabido de que vivia, não me virou às costas65.

Seguindo seu desabafo, Magdalena afirma que na união dos seus corpos nem Jesus era tão o que dele se dizia e nem ela era o que dela se escarneciam. Com ela, Jesus não foi o Filho de Deus e, com ele, Maria de Magdala não era prostituta, mas, ambos, um homem e uma mulher estremecidos de amor66. Unidos pelo eros, eles estão livres dos rótulos, livres para descobrirem-se como humanos. Isso se desvela de maneira belíssima quando Magdalena diz que por meio daquela intensa união amorosa descobriu-se e começou a mostrar quem de fato era, e termina assim o seu relato: “[...] ainda me faltava muito para chegar ao fundo de mim mesma quando o mataram. Sou Maria de Magdala e amei. Não há mais nada para dizer”67. No livre encontro amoroso, Maria liberta-se das exigências estereotipadas. No amor percebe sua verdadeira vocação.

Voltando ao ESJC, salientamos que na narrativa saramaguiana o amor é concretizado no encontro dos corpos. Jesus aprende aquilo que o personagem Deus não poderia ensiná-lo e Maria de Magdala que, tantas vezes havia se deitado com os homens, encontra-se “perdida de amor”, com isso aprende outro sentido para sua vida. O eros vivido na concretude do corpo sexuado é figura e caminho para a humanização. Ao fim do encontro, quando Jesus se despede de Maria de Magdala, o narrador ironicamente diz: “O céu estava nublado por igual, como um forro de lã suja, ao Senhor não devia ser fácil perceber, do alto, o que andavam a fazer as suas ovelhas”68.

Nessa indicação, Saramago toca mais uma vez na forma como as igrejas cristãs pregaram uma espiritualidade de repressão ao corpo e ao prazer. Apesar de todos os esforços que têm sido feitos no campo da reflexão teológica e da moral cristã, ainda é possível perceber um dualismo não saudável no discurso e na prática que celebram o amor, deixando de fora o erótico, como se esse fosse prejudicial à vivência da fé. Essa “hostilidade” ao sexo, mais especificamente, como sublinha Hans Küng69, tem sua raiz na teologia do pecado e da graça de Agostinho, elaborada no contexto de embate contra os pelagianos. Ao tentar explicar os pecados de todos, valendo-se do relato de Gênesis 3 somado à Romanos 5.12, sob a influência do acento negativo que o corpo recebe na reflexão neoplatônica, o bispo de Hipona teria historicizado, psicologizado e sexualizado aquilo que chama de “pecado original”, já que todos herdariam, por uma espécie de transmissão por meio do ato sexual, uma culpabilidade que se tornaria, assim, hereditária. Por isso, houve ao longo do tempo uma desvalorização da libido sexual. O prazer sexual seria assim pecaminoso em si e, dessa forma, deveria ser reprimido e somente permitido em função da procriação70, ou seja, a ideia implícita é a de que, para nos aproximarmos de Deus, é preciso nos afastarmos, de maneira contundente, daquilo que se relaciona com o corpo, mais especificamente com a sexualidade, afinal, segundo tal compreensão, não pode haver prazer sem pecado. A imagem é a de um Deus que repele, condena e castiga o prazer. Aqui a teologia ficcional saramaguiana provoca a uma revisitação dos textos bíblicos e da história das práticas cristãs para ressignificá-los.

A partir da própria tradição bíblica, é possível falar de uma “espiritualidade do corpo”. Em outras palavras, é possível encontrar na Bíblia chaves para que o corpo e a sexualidade recebam cidadania no campo da vivência da fé. Diferentemente da antropologia devedora do dualismo platônico ocidental, onde a alma recebe destaque, é possível falar de uma antropologia cristã de raízes judaicas em que o corpo é integrado. Para ficarmos apenas com um exemplo da Bíblia Hebraica, em Gênesis 1.27, os termos zâkâr e neqébâ, traduzidos comum e respectivamente como macho e fêmea, deflagram a sexualidade como dado antropológico. Zâkâr, como sublinha Tolentino Mendonça é o “membrum virile” e neqébâ é “aquela que se rasga, que se penetra”. Isso indica que a “sexualização” do ser humano não está vinculada ao pecado e é, na verdade, um elemento constitutivo de sua vida71. Esse exemplo não é um testemunho isolado em que o desejo transparece. Como se sabe, há outras expressões semelhantes, como a erótica presente no Cântico dos Cânticos, onde tudo está perpassado por uma conotação sexual, porque tudo tem, também, conotação humana, ao contrário do que pretendem as crenças fundamentalistas. Enquanto poesia erótica, o Cântico nos dá, principalmente, a possibilidade de nos reconciliarmos com a sexualidade72. Aliás, é curiosa a maneira como Saramago constrói as falas de Jesus e Maria de Magdala usando da intertextualidade com essa poesia bíblica. Em diversos momentos o escritor apela à linguagem do Cântico73.

Embora exemplos como os citados acima sejam importantes na construção de um imaginário religioso diverso do que o que está posto em muitas tradições, e que não é contrário à sexualidade, dentro da compreensão cristã, especialmente a encarnação do Verbo (Jo 1,1-14), são uma chave fundamental para que o corpo seja visto dentro de outra perspectiva, pois, como salienta Gesché, isso quer dizer que Deus se fez capaz do corpo para que o corpo se tornasse capaz de Deus74. Se lemos os evangelhos e os textos paulinos assim, é possível resgatar a sacralidade do corpo, o que não redundaria, de modo nenhum, numa desvalorização da sexualidade. Pelo contrário, face ao contexto, seríamos conduzidos a uma valorização extraordinária e a veríamos como possibilidade de humanização.

Essa perspectiva de valorização do erótico, ao contrário do que pensam alguns, esteve presente no discurso e na prática cristã, mesmo a despeito da postura negativa quanto à sexualidade derivada da interpretação agostiniana. Para ilustrar a tradição positiva da sexualidade, podemos mencionar aqui uma manifestação que perdurou na Igreja por muitos anos, conhecida como “risus paschalis”. Maria Caterina Jacobelli ressaltou que em contraste com a tristeza da Quaresma, o sacerdote na missa da manhã de Páscoa provocava o riso no povo, sobretudo recorrendo ao imaginário sexual, contando piadas picantes, usando expressões eróticas e encenando gestos obscenos e até mesmo dramatizando relações sexuais. Esse costume, segunda a pesquisadora, é encontrado em Reims na França, no século IX, e se ampliou pela Itália e Espanha, até 1911, na Alemanha. O celebrante assumia a cultura dos fiéis em sua forma popularesca para expressar a possibilidade da vida nova introduzida pela Ressurreição, mas não sem a sexualidade como dimensão fundamental para a realização humana75.

Considerações finais

O percurso que fizemos procurou apontar para a possibilidade da integração da sexualidade na experiência cristã a partir da provocação da teologia ficcional saramaguiana que transpõe aquilo que Kuschel chamou de “doença teológica do conteudismo”76, que marcou e marca parte da elaboração das antigas e novas reflexões teológicas de característica conceitual. Como procuramos deixar claro, a teologia que se inscreve na literatura de Saramago distanciou-se dos conteúdos que marcaram a segurança das ortodoxias e estruturaram as narrativas teológicas que se firmam na inflexibilidade do dogma. Nesse sentido, a teologia ficcional de José Saramago une-se à toda teologia madura, que não exclui a dúvida, a crítica e a imaginação do cotidiano da consciência religiosa.

Notamos, depois de entrever o estatuto teológico do gênero romanesco e da metodologia usada pelo escritor na sua reescritura bíblica, que o romance saramaguiano, ao retratar a relação de Jesus e Maria de Magdala, pode ajudar o cristianismo a não eliminar o erótico de seu horizonte, mas integrá-lo e levá-lo mais longe, encontrando uma síntese feita não só de exaltação física e atração sexual, mas de cuidado e afeto, mesmo que de maneira provocativa.

Uma das contribuições que a ficção saramaguiana pode trazer ao imaginar um Jesus “erotizado” é esta: o eros não pode estar ausente da experiência cristã. Através de todo o fervor dos corpos sexuados de Jesus e Maria é possível ver a necessidade de assumir, com naturalidade, os desejos e movimentos da própria corporeidade e de rechaçar a imagem de um Deus repressor da sexualidade que amputa a realização do humano numa de suas dimensões fundamentais.

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Resumo

O artigo procura mostrar como o escritor português José Saramago elabora em seu universo romanesco, especialmente, n’O evangelho segundo Jesus Cristo, através da reescritura de textos bíblicos, uma teologia ficcional que tem como tema fundamental a crítica da moral religiosa repressora do eros. Ao re-imaginar a vida de Jesus, o literato o faz vivenciar plenamente a sexualidade na relação com Maria Magdalena, não de maneira vulgar, mas como um elemento iluminador e catalisador da própria vocação. Nesse sentido, aponta um caminho para reconsiderarmos o lugar do eros na experiência cristã de Deus e a reconciliar a reflexão teológica com a sexualidade. Para chegar a essa finalidade, de ver a literatura saramaguiana como espaço de recuperação da cidadania da sexualidade, é preciso evidenciar o potencial teológico que o gênero romanesco enquanto ficção possui frente a teologia conceitual. Além disso, é importante desvendar a metodologia de José Saramago como escritor que, no re-uso da linguagem, das imagens e dos personagens da Bíblia, desloca-os do seu contexto original para crítico-criativamente conferir-lhes sentidos que possibilitam novas compreensões. Dessa maneira, a “boa-notícia” saramaguiana se revelará incontornavelmente como a possibilidade do desejo realizado na concretude dos corpos tornar-se promessa de uma abertura sempre maior ao outro.

Palavras-chave: José Saramago; teologia ficcional; eros; sexualidade.

Abstract

The article tries to show how the portuguese writer José Saramago elaborates in his romanesque universe, especially in The gospel according to Jesus Christ, through the rewriting of biblical texts, a fictional theology that has as its fundamental theme the critique of religious morality repressor of eros. In re-imagining the life of Jesus, the writer makes him fully experience sexuality in his relationship with Mary Magdalene, not in a vulgar way, but as an illuminating and catalyzing element of his own vocation. In this sense, he points out a way to consider the place of eros in the christian experience of God and to reconcile theological reflection with sexuality. To reach this end, to see the Saramagian literature as a space for the recovery of the citizenship of sexuality, it is necessary to emphasize the theological potential that the romanesque genre as a fiction possesses in contrast to the conceptual theology. In addition, it is important to clarify the methodology of José Saramago as a writer who in the re-use of the language, images and characters of the Bible moves them from their original context, to critically-creatively impart to them senses that enable new understandings. In this way the Saramagian "good news" will inevitably reveal itself as the possibility of the desire realized in the concreteness of the bodies to become a promise of an ever greater openness to the other.

Keywords: José Saramago; fictional theology; eros; sexuality.

Marcio Cappelli

Doutor em teologia pela Puc-Rio, professor na Faculdade Batista do Rio de Janeiro na área de teologia sistemática e filosofia; membro da ALALITE – Associação Latino Americana de Literatura e Teologia e do Apophatiké – grupo de estudos interdisciplinares em Mística. E-mail: alocappelli@gmail.com.


  1. Cf. TENÓRIO, W. “Meu Deus e meu conflito”: Teologia e Literatura. IHU-Online, 17 mar. 2008. Disponível em <http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/edicoes/1205796599.74pdf.pdf>. Acesso em 28 mar. 2015.

  2. Pagola fala de Jesus como “poeta da compaixão” e Espinel afirma que ele era “um mestre que ensinava poeticamente.” Cf. PAGOLA, J. A. Jesus: Aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 145-186; ESPINEL, J. L. La poesía de Jesús. Salamanca: San Esteban, 1986. p. 16.

  3. Cf. CAPPELLI, M. Por uma teologia ficcional: a (des)construção teológica na reescritura bíblica de José Saramago. Tese de Doutorado, Puc-Rio, 2017. p. 18-20.

  4. Cf. SALMANN, E. Letteratura e teologia. Incroce fra vita, poesia e fede. CredereOggi. n. 83, 1994. p. 5; Cf. MENDONÇA, J. T. Poética da Escrit(ur)a. THEOLOGICA, 2. série, n. 44, v. 2, 2009. p. 296; Cf. ALTER, R.; KERMODE, F. (Orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997. p. 12; Cf. GABEL, J. B.; WHEELER, C. B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2003. p. 17; Cf. STEINER, G. A Bíblia Hebraica e a divisão entre judeus e cristãos. Lisboa: Relógio d’Água, 2006. p. 9. Antônio Magalhães cita o inglês Johann David Michaelis e o alemão Gottfried Herder como os descobridores da Bíblia como literatura, no século XVIII. Cf. MAGALHÃES, A. C. Deus no espelho das palavras. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 138. Contudo, mesmo antes dessa expressão aparecer, outros pensadores destacaram o caráter literário da Bíblia. Ainda que esse destaque possa ser visto na história, ao contrário da literatura grega e latina, a Bíblia na tradição judaico-cristã passou a ser considerada somente como livro de fé. Cf. ALTER, R. A Arte da Narrativa Bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Recentemente estudiosos da literatura e exegetas, num colóquio sobre a Bíblia na literatura em 1994, realizado em Metz, reconheceram que “até há poucos anos, quando se falava das Sagradas Escrituras, o adjetivo tinha tendência de absorver o substantivo: a Escritura era de tal modo santa que deixava de ser Escritura. Os biblistas redescobrem agora que ela é também Escritura sem perder a santidade.” BEAUDE, P.-M. (Ed.). La Bible en littérature. Paris: Cerf, 1997. p. 345.

  5. Cf. HADOT, P. Patristique In: Encyclopaedia Universalis. Disponível em <http://www.universalis.fr/encyclopedie/patristique/> Acesso em: 13 fev. 2017.

  6. Cf. CAPPELLI, M. Por uma teologia ficcional, p. 40-47.

  7. Cf. SALMANN, E. La teologia è un romanzo. Um approccio dialettico a questioni cruciale. Milano: Paoline, 2000. p. 37.

  8. Doravante, ESJC.

  9. AIME, O. Il curato di Don Chisciotte. Teologia e romanzo. Assisi: Cittadella, 2012. p. 19. (Tradução livre)

  10. A origem da palavra “romance”, provavelmente, vem de romanìcé que designava, já no século XII, o “românico”, língua falada nas regiões ocupadas pelos romanos, e que já se diferenciava do latim. Essa diferenciação foi resultado da fusão do latim com as línguas de povos conquistados pelos romanos, sobretudo o grego. Dessa possível origem vem o termo romanço, que passou a qualificar obras de cunho popular e folclórico. Cf. Cf. MOISÉS, M. A criação literária: a prosa, I. São Paulo: Cultrix, 2006, p.157.-158.; Cf. “Novel” In: ENCICLOPEDIA BRITANNICA. Disponível em: <www.britannica.com/art/novel> Acesso em: 10. jan. 2017.; SILVA, V. M. A. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1992, p. 671-672.

  11. ROBBE-GRILLET, A. Por um novo romance. São Paulo: Documentos, 1969. p. 107.

  12. STEINER, G. Linguagem e Silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 101.

  13. REUTER, Y. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 18.

  14. Cf. KUNDERA, M. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 12-13.

  15. A teologia narrativa contribuiu para a valorização da narração frente à linguagem conceitual e se desenvolveu com o aporte da narratologia, que teve – sobretudo a partir da década de 60 do século XX, com Barthes, Genette, Greimas, Bremond, Todorov e Eco – uma sistematização. Aliás, Ricoeur aponta que “os principais recursos da teologia narrativa são as prodigiosas aquisições que podemos constatar no campo da narratologia” e que podem ser arrumadas sob quatro marcas: 1. na arte de tecer a intriga; 2. no estatuto epistemológico da inteligibilidade; 3. no papel da tradição; 4. na significação de uma narração. Cf. RICOEUR, P. Rumo a uma teologia narrativa: suas necessidades, seus recursos, suas dificuldades. In: A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 291. Nesse sentido, evoca-se a necessidade de se perceber o poder teológico da narrativa. Em 1973, a revista Concilium publicou uma edição sobre a crise da linguagem religiosa, expondo a insuficiência da “gramática dogmática” em que Harald Weinrich, ao destacar que Jesus era um contador de histórias e seus discípulos compunham uma comunidade de narradores, reivindica a recuperação através de uma teologia narrativa e do espaço metafórico da verdade. Cf. WEINRICH, H. Teologia narrativa. In: Concilium. n. 85, 1973, p. 210-221. Na mesma direção, estranhando a ausência da palavra narração nos dicionários teológicos, Metz lembra que há estruturas narrativas que são basilares na fé cristã. METZ, J.-B. Pequena apologia da narração. In: Concilium. n. 85, 1973, p. 580-592.

  16. A obra de Boccaccio influenciou diretamente a formação e o desenvolvimento da prosa romanesca, por isso está intimamente ligada ao desenvolvimento do gênero. No entanto, outros autores destacam que o gênero literário do romance nasce com Gargântua e Pantagruel de Rabelais, com Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, ou até mesmo com Robinson Crusoe, de Defoe. Cf. KUNDERA, M. A arte do romance. p. 12.; Cf. AIME, O. Il curato di Don Chisciotte, p. 2-23. Cf. WATT, I. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

  17. SALMANN, E. La teologia è un romanzo, p. 18. (Tradução livre)

  18. KUNDERA, M. A arte do romance, p. 146.

  19. Cf. Ibid, p. 147.

  20. Cf. RABELAIS, F. The Complete Works of François Rabelais. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1991. p. XXVII-XLVII.

  21. Cf. SIMÕES FEREIRA, M. Rabelais e A Abadia de Thélème, génese da antiutopia na Idade Moderna. In: Cultura. v. 22, 2006, p. 3. Disponível em <http://cultura.revues.org/2288> Acesso em: 14 fev 2017.

  22. KUNDERA, M. A arte do romance, p. 148.

  23. Cf. ANTOÑANZAS, F. T. Dom Quixote y el absoluto: algunos aspectos teológicos de la obra de Cervantes. Salamanca: Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca/ Caja Duero, 1998, p. 29-50.

  24. As referências com a teologia não se estabelecem somente a partir do protagonista, mas com muita força se pensarmos na figura de Sancho, o fiel escudeiro de Quixote. Um autor que deu destaque a Sancho, inclusive como figura complementar e necessária a Quixote, foi Miguel de Unamuno. Cf. UNAMUNO, M. Vida de Don Quijote y Sancho. Madrid: Espasa-Calpe, 1987.

  25. DUPLOYÉ, P. Réthorique et Parole de Dieu. Paris: Cerf, 1955, p. 28. (Tradução livre)

  26. WOOD, J. A herança perdida: ensaios sobre literatura e crença. Lisboa: Quetzal, 2012, p. 18.

  27. Cf. SPADARO, A. La grazia della parola. Karl Rahner e la poesia. Milano: Jaca Book, 2006, p. 88.

  28. COLERIDGE, S. T. Biographia literária ovvero schizzi biograficci della mia vita e opinioni ltterarie. Roma: Editori Reuniti, 1991, p. 236.

  29. PROUST, M. Alla ricerca del tempo perduto, I. Milano: Mondadori, 1983, p. 104. Cotejamos o original com a citação feita no livro O batismo da imaginação e seguimos a tradução feita nele. Ver: SPADARO, A. O batismo da imaginação: a experiência da palavra criativa. Lisboa: Paulinas, 2016, p. 47.

  30. Cf. Ibid, p. 48.

  31. Cf. AIME, O. Il curato di Don Chisciotte. p. 76.

  32. MENDONÇA, J. T. A hora da imaginação (Prefácio). In: SPADARO, A. O batismo da imaginação, p. 6.

  33. Cf. Ibid, p. 6-8.

  34. Cf. GESCHÉ, A. O sentido. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 150-156.

  35. MANZATTO, A. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1995, p. 75.

  36. Cf. STEINER, G. Errata. Récite d’une pensée. Paris: Gallimard, 1998, p. 102.

  37. JOSSUA, J.-P. Pour une histoire religieuse de l'expérience littéraire, III. Paris: Beauchesne, 1998, p. 11.

  38. MENDONÇA, J. T. A hora da imaginação (Prefácio), p.8.

  39. Ibid, p.8.

  40. Cf. FLAUBERT, G. Dicionário das ideias feitas. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.

  41. SARAMAGO, J. Cadernos de Lanzarote. Diários I e II. Lisboa: Círculo de leitores, 1998, p. 130.

  42. Ibid, p. 365.

  43. CAMUS, A. Carnets I. 1935-1942. Paris: Gallimard, 1962 apud MARTINS, M. F. A espiritualidade clandestina de José Saramago, p. 45.

  44. FLORY, S. Apresentação. In: OLIVEIRA FILHO, O. Carnaval no convento. Intertextualidade e paródia em José Saramago. São Paulo: Unesp, 1993, p. 11-12.

  45. Cf. FERRAZ, S. As faces de Deus na obra de um ateu – José Saramago. Juiz de Fora/Blumenau: UFJF/Edifurb, 2003, p. 33-34.

  46. Cf. BERRINI, B. Ler Saramago: O Romance. Lisboa: Caminho, 1998. p. 39.

  47. Cf. COSTA, M. R. Literatura, Religião: diálogo presente em Saramago. Disponível em <http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2009/08/1-4.pdf> Acesso em: 02 out. 2016, p. 46.

  48. Entrevista exclusiva concedida por Pilar em fevereiro de 2017 na sede da Fundação José Saramago em Lisboa. Cf. CAPPELLI, M. Por uma teologia ficcional, p. 318-321.

  49. FERRAZ, S. As faces de Deus na obra de um ateu – José Saramago, p. 155.

  50. Cf. Ibid, p. 15. Segundo Bakhtin, o escritor francês François Rabelais transpôs para a sua literatura os comportamentos sociais das festividades populares da Idade Média, sobretudo o carnaval. Seus textos são uma literatura carnavalizada e suas principais características seriam: a valorização da atualidade viva, sendo os heróis míticos e personalidades históricas do passado atualizadas e dessacralizadas, exploração consciente da experiência e da fantasia livre, recebendo a lenda um tratamento crítico e mesmo cínico desmascarador; pluralidade de estilos e variedade de vozes caracterizadas pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico. A carnavalização, portanto, estaria diretamente associada à aproximação de aspectos distantes e à ruptura de hierarquias. Para Bakhtin, a eliminação provisória das relações hierárquicas nas festividades associadas às comemorações sagradas produziu o aparecimento de uma linguagem carnavalesca típica. As obscenidades, injúrias, louvores, grosserias, falas ousadas permeadas de liberdade e inovações rompiam com a estratificação social, reelaborando noções de convivência. Cf. BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

  51. Cf. SANTOS JUNIOR, R. A plausibilidade da interpretação da religião pela literatura: Uma proposta fundamentada em Paul Ricoeur e Mikhail Bakhtin exemplificada com José Saramago. Tese de doutorado, Universidade Metodista de São Paulo, 2008, p. 138.

  52. Saramago afirmou em entrevista dada a Juan Arias: “não creio em Deus, mas se Deus existe para a pessoa com quem estou falando, então Deus existe para mim nessa pessoa.” E completa: “Se se fala de Deus, então quero saber que Deus é esse, que relação mantém ou não mantém com o homem, mas sobretudo com a humanidade.” ARIAS, J. José Saramago: El amor posible. Barcelona: Planeta, 1998, p. 128-129.

  53. SARAMAGO, J. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 65.

  54. Id. O fator Deus. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u29519.shtml> Acesso em 10 set. 2016.

  55. Cf. FERREIRA ALVES, C. No meu caso, o alvo é Deus. In: Revista Expresso. Lisboa, 02 nov. 1991, p. 82.

  56. Cf. SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 26-27.

  57. Ibid, p. 83.

  58. Ibid, p. 127.

  59. Cf. Ibid, p. 132-144.

  60. Ibid, p. 228.

  61. Cf. Ibid, p. 277-278.

  62. Ibid, p. 282.

  63. Ibid, p. 283.

  64. Ibid, p. 282-283.

  65. SARAMAGO, J. Um capítulo para o evangelho. In: O caderno 2. Lisboa: Editorial caminho, 2009, p. 179.

  66. Cf. Ibid, p. 181.

  67. Ibid, p. 182.

  68. Id. O evangelho segundo Jesus Cristo, p. 290.

  69. KÜNG, H. A Igreja tem salvação? São Paulo: Paulus, 2012, p. 110.

  70. Cf. Ibid, p. 111-112.

  71. Cf. MENDONÇA, J. T. A sexualidade na Bíblia: morfologia e trajectórias. In: THEOLOGICA, n. 42, 2, 2007, p. 238-248.

  72. Cf. RAVASI, G. Il linguaggio dell’amore. Bose: Qiqajon, 2005, p. 36.

  73. Cf. SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo, p. 281-282.

  74. Cf. GESCHÉ. A. L’invention chrétienne du corps. In: GESCHÉ, A.; SCOLAS, P. Le corps, chemin de Dieu. Paris: Cerf, 2005, p. 35.

  75. JACOBELLI, M. C. Il risus paschalis e il fondamento teologico del piacere sessuale. Brescia: Queriniana, 1991.

  76. KUSCHEL, K.-J. Im spiegel der dichter. Mensch, Gott und Jesus in der Literatur des 20. Düsseldorf: Patmus Verlag, 1997, p. 16.