Sibélius Cefas Pereira2
Resumo: O presente texto estabelece paralelos possíveis entre a mística e a literatura, a experiência religiosa e a experiência estética, a partir do percurso contemplativo do monge trapista Thomas Merton. Poeta, ensaísta, autor de uma vasta obra sobre temas religiosos, expressa de forma paradigmática as possibilidades e também as tensões entre o religioso e o estético, a religião e a arte. Na dinâmica da palavra e do silêncio, emergem temas centrais da tradição mística cristã.
Palavras-chave: Literatura; Mística; Thomas Merton; Poesia; Contemplação
Abstract: The present text establishes possible parallels between mysticism and literature, religious experience and aesthetic experience, from the contemplative course of the Trappist monk Thomas Merton. Poet, essayist, author of a vast work on religious themes, expresses in a paradigmatic way the possibilities and also the tensions between the religious and the aesthetic, religion and art. In the dynamics of word and silence, central themes of the Christian mystical tradition emerge.
Keywords: Literature; Mystic; Thomas Merton; Poetry; Contemplation
O presente texto estabelece paralelos possíveis entre a mística e a literatura, a experiência religiosa e a experiência estética, a partir do percurso contemplativo do monge trapista Thomas Merton. Poeta, ensaísta, autor de uma vasta obra sobre temas religiosos, expressa de forma paradigmática as possibilidades e também as tensões entre o religioso e o estético, a religião e a arte. Na dinâmica da palavra e do silêncio, emergem temas centrais da tradição mística cristã.
A mística transita pela escuridão e pelo abismo. Pelo desamparo de um sem-fundo, no movimento pendular entre o ser e o não-ser. E por onde circula a literatura – pelo menos uma certa literatura, senão por aí também? Abarcando autores como Hölderlin, Dostoiévski, Kafka, Rilke, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Adélia Prado ... tantos mais.
Mística e literatura, ambas se constituem como tentativas arriscadas de uma resposta a este imponderável que o desafio do viver convoca, e talvez imponha. E a palavra aí proposta e empenhada é um risco, porque ao invés de ultrapassar e vencer o abismo se apresenta ela mesma, a palavra, abismal. Pois a realidade da qual fala e pretende em algum nível dar o testemunho é da ordem de um inominável, o sagrado. Na intermitência de uma palavra que sempre falha, vai-se de um silêncio a outro.
Se este é o (não) lugar em que sempre se colocaram – mística e arte, no trajeto titubeante de um humano, desde a antiguidade, o que não dizer na modernidade. Aí, neste tempo da razão, uma razão, agora se sabe, não tão clara e forte como queria Descartes, sempre suspeita (Nietzsche), encobridora (Freud), ferida (Ricoeur), frágil (Vattimo), esse lugar de um “outro” vem agora a ser ocupado, mais do que nunca, pela mística e pela literatura. Uma afirmação mútua que não se dá por convergência e sim numa tensão. Como ressalta Octavio Paz: “Para a Idade Média a poesia era uma serva da religião; para a idade romântica a poesia é sua rival e, mais ainda, é a verdadeira religião, o princípio anterior a todas as escrituras sagradas”. E completa, “sem imaginação poética não haveria nem mitos nem sagradas escrituras”.3
Assim como Benedito Nunes já apontou como categoria hermenêutica para se pensar a relação entre Filosofia e Literatura a metáfora da “transa”, que aponta para uma recusa de misturas indevidas e sobreposições injustas, pode-se também falar da Mística e da Literatura como partilhando deste mesmo tipo encontro e diálogo. Propõe Nunes:
É o movimento de ir de uma a outra, portanto separadas, cada qual na sua própria identidade, sem que cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceira, numa posição de superioridade ou inferioridade do ponto de vista do conhecimento alcançado ou da verdade divisada, que constitui aqui o essencial. Se vamos de uma para outra, quer isso dizer que elas não são contíguas, mas que, guardando distância, podem aproximar-se entre si. A relação transacional é uma relação de proximidade na distância. A filosofia não deixa de ser filosofia tornando-se poética, nem a poesia deixa de ser poesia tornando-se filosófica. Uma polariza a outra sem assimilação transformadora.4
Em termos semelhantes pode-se pensar a relação da literatura com a mística neste mesmo tipo de movimento de um ir e vir, mesmo não sendo contíguas as duas áreas aproximam-se preservando uma distância, na expressão bem ajustada do filósofo, “uma relação de proximidade na distância”.
Também a categoria de Benjamin, retomada por Gagnebin, de um “limiar”, que não se confunde com a de “fronteira”, é bastante rica e ajuda a pensar o tipo de fluxo a que se está aludindo aqui. Lembra a autora que Benjamin emprega a expressão “fronteira” (Grenze) como demarcadora de um limite, a ideia de bordas bem definidas para que algo não se derrame para além desses limites, não se transpor linhas bem definidas. Já a expressão “limiar” (Schwelle) apontaria para espaços de fluxos, contrafluxos, viagens, desejos. Soleira e umbral que tem por função justamente a ideia de transição, de movimento, as “passagens” de Benjamin.5 Adotando esta perspectiva, entendemos poder se afirmar que literatura e mística, experiência estética e experiência religiosa, o sublime e o numinoso, se espelhariam mutuamente nesta espécie de região limiar.
Além da tensão entre os campos epistemológicos distintos, há a tensão mencionada no início do texto implicada na própria palavra, tanto poética como mística. Ambas só possibilitam a emergência do sentido nesta dinâmica entre o excesso e a falta. O filósofo francês Rancière chama a atenção para esta tensão. Sobretudo a literatura mas não só ela, e sim toda a trajetória da escrita no ocidente em sua visão, viria marcada por uma divisão; por um lado ser menos que escrita e, por outro, ser mais que escrita. Ou seja, a escrita se caracterizando por ser contraditoriamente muda e falante ao mesmo tempo; enquanto muda, na medida em que não haveria nenhuma voz presente que viesse oferecer garantia de verdade, como se fosse um logos liberto do ato da palavra, liberto do verbo. E enquanto falante ela seguiria órfã e errante rolando de um lado para o outro em busca dessa garantia. Num processo infinito, o que viria em socorro da escrita faltosa seria uma outra escrita. Uma outra escrita “menos que escrita, mais que escrita, falando quando é preciso falar, esquivando-se quando é preciso se esquivar”, afirma o autor. Na direção do menos, o trajeto visaria o ponto impossível de um logos sem palavras. Na direção do mais, a meta igualmente impossível seria de uma escrita indelével, infalsificável. Uma “mímese anti-mimética” ou ainda uma “dramaturgia da recusa da escrita e o mito da escrita mais que escrita”. Uma esquivança infinita, um jogo mimético. A escrita escandindo esse mútuo pertencer entre “a verdade plena e as palavras vazias” 6.
Mais do que um aparente jogo de palavras, entendemos que categorias como essas contribuem para se pensar essa possível embora complexa e arriscada relação da mística com a literatura.
Thomas Merton, o monge poeta7 tema de estudo deste texto, emerge como um paradigma da possibilidade do encontro em uma mesma pessoa da epifania da palavra poética com a palavra contemplativa – ambas titubeantes e afásicas; e um dos acontecimentos que foi determinante para que esse encontro ocorresse, foi o “acaso” do encontro com outro poeta-visionário, William Blake. Muitas reflexões podem emergir daí, sobretudo ao se considerar a complexidade da pessoa e da obra de Blake.
As referências de Merton a Blake, e sobretudo sua dissertação de mestrado sobre o autor, revelam uma aproximação mais convencional a este poeta, mas já digna de nota. Em sua autobiografia, a definição de sua abordagem na pesquisa de mestrado sobre William Blake é particularmente interessante a este respeito. Relata Merton que impactado pelas leituras de Etienne Gilson e Jacques Maritain, o livro Arte e Escolasticismo de Maritain será decisivo na trajetória escolhida. A partir deste instrumental, Merton pretendia estudar a natureza e a arte em Blake, evidenciando a reação de Blake contra todo tipo de literalismo e naturalismo. Contra um realismo estreito e clássico da arte, Merton sustentava que o ideal da arte, em Blake, era essencialmente místico e sobrenatural. Para Blake, a experiência estética e a experiência religiosa possuíam tamanha semelhança que seria possível confundi-las, ou ao menos fazê-las unir-se uma à outra como se pertencessem à mesma ordem de coisas. E, em meio a esta argumentação, relembra:
Afinal de contas, desde a minha infância, eu compreendia que a experiência artística, no seu auge, era de fato um análogo natural da experiência mística. Produzia uma espécie de percepção intuitiva da realidade através de uma quase identificação afetiva com o objeto contemplado – identificação esta que os tomistas chamam ‘conatural’. [E acrescenta]: Havia aprendido de meu pai que era quase blasfêmia considerar como função da arte simplesmente reproduzir certa espécie de prazer sensual ou, melhor, despertar as emoções para uma excitação passageira. Sempre entendi que a arte era contemplação e que ela envolvia a ação das faculdades mais elevadas do ser humano.8
Não é improcedente levantar-se a hipótese de que motivações e afinidades mais viscerais mobilizam essa aproximação de Merton a Blake. Há muitos elementos comuns entre os dois. Um temperamento inquieto, uma acentuada preocupação com o social, um percurso algo heterodoxo, o espírito visionário, a via mística e religiosa e, obviamente, o gênio artístico.9 Em sua discussão sobre a crítica da religião empreendida pela filosofia do século XVIII, quando aborda o tema do romantismo, especificamente numa sugestão de Coleridge de que a “imaginação poética” se aproxima da ideia de “revelação religiosa”, Octavio Paz chega a reconhecer em William Blake a condensação das contradições da primeira geração romântica.10 Mas a classificação no caso de Blake é complexa, pois carrega consigo paradoxos de todos os tipos e, também, mas ao mesmo tempo, vai bem além do romantismo.
Outros escritores, nos anos que se seguirão, irão ocupar este lugar da interlocução com a literatura: Albert Camus, Czeslaw Milosz, Boris Pasternak, muitos mais, e em particular poetas latino-americanos.11
O que se espera de um monge contemplativo, mestre de noviços? Que seja um mestre de leituras, e que por suas aulas passe o refinamento de um pensamento teológico e espiritual construído ao longo de séculos de sabedoria e tradição. E isso acontece: pelas aulas de Merton pode-se percorrer o melhor desta tradição cristã monástica, espiritual e mística e inclusive de outras tradições.
Mas este mestre contemplativo, inquieto e surpreendente, acrescenta algo mais ao currículo, conforme ele mesmo informa:
Durante o noviciado, cursos eram dados sobre os votos, sobre Cassiano, sobre História Monástica, sobre a história dos padres cistercienses, sobre teologia ascética, Escritura e sobre os Padres Monásticos, Liturgia, canto. Tudo isto era estendido por dois anos; [e acrescenta], de minha própria parte eu também, no fim de meu período como mestre de noviços, dei algumas palestras sobre literatura, para os noviços e todos aqueles que estavam em programa de formação monástica; [...] o terceiro ano do programa depois do noviciado concentrado era dar aos jovens monges mais tempo para ler por si mesmos e mais liberdade para penetrar profundamente na vida monástica.12
Para dimensionar essa opção de formação, convém remontar a um período precursor e decisivo, ponto alto em seus anos de formação na Universidade de Columbia,13 na qual entrou em janeiro de 1935 e em 1939 concluiu o seu mestrado com a dissertação intitulada Nature and Art in William Blake: An Essay in Interpretation. Foram anos definitivos do ponto de vista de entrada no cânone da cultura ocidental, nos moldes da rica tradição norte-americana das Humanidades,14 bem como da formação de um grupo bem próximo de amigos formados por Mark van Doren, Daniel Walsh, Robert Lax e Edward Rice, dentre outros. As lembranças dos tempos de Columbia são as mais elogiosas, lembra que “havia no ar uma vitalidade genuinamente intelectual”, e não deixa de mencionar a “resplandecente biblioteca nova” da Universidade.15 Assim, aos vinte anos, no inverno de 1935, matriculou-se no curso de literatura do lendário Mark van Doren, cujas aulas muito lhe impactaram, que no bom e clássico estilo dos mestres de leitura, respeitava o texto literário e a ele se atinha.
Toda esta postura naturamente que reflete o perfil do próprio Merton. Cunningham, em artigo que compõe uma coletânea de estudos produzidos na década de 1980 e que demarca alguns aspectos do seu precioso legado, acentua exatamente esta relação da espiritualidade de Merton com o que ele denomina a “alta cultura”.16 O autor parte de uma afirmação de Susan Sontag, segundo a qual, cada época tem que reinventar o projeto de uma espiritualidade para si mesma e, em nossa época, a arte teria ocupado este lugar, mas, curiosamente, uma arte que se realiza nas formas do silêncio, como testemunham figuras como Franz Kafka, Samuel Beckett ou John Cage. Um silêncio que fala, é bem verdade, mas que, seja como for, retrata os impasses de uma sociedade em crise e, por conseguinte, de uma crise quanto às potências da linguagem. Em última instância, esses “atos do silêncio” parecem ter como objetivo abolir quaisquer formas de mediação. Uma via negativa já bem presente na tradição mística e que, de certa forma, se espraia por essas outras linguagens, por esses outros campos. Interessa-nos aqui ressaltar a percepção de Cunningham de que Merton sentia-se atraído por essas expressões culturais e obras suas como Raids On the Unspeakable (Incursões no Indizível) faz eco a essas questões. Uma perspectiva contemplativa que se reconhecia numa certa proposta filosófico-estética contemporânea e que com ela intercambiava. É representativo, por exemplo, deste aspecto, o ensaio que Merton escreve, em setembro de 1968, sobre a obra O grau zero da escritura de Roland Barthes.17 Seguindo a inovadora crítica de Barthes, Merton se detém na expressão “escritura” que, em Barthes, ganha todo um novo sentido: “Barthes inventa sua nova categoria mística, ‘escritura’, e a situa contra todos os ‘deveres’ do estilo”.18 Mas Cunningham ressalta deste ensaio outro elemento chave que seria o destaque que Merton dá ao conceito gestus. É uma categoria utilizada por Barthes e acentuada por Merton que aponta para o exercício da palavra para além da escrita instrumentalizada, e mesmo para além do preciosismo de um estilo. Trata-se do artesanato da palavra, da experiência da escrita/escritura como puro gestus. Seria um ponto em que todas as posturas tivessem sido abandonadas e os próprios signos da arte tenham sido erradicados, é o “ponto zero” no qual o escritor se encontra e no qual a escrita está em sua nudez, demandando dele total fidelidade. Uma espécie de ponto zero da palavra que, paradoxalmente, possa também expressar seu ponto pleno. Em algumas de suas obras mais ousadas como Cables to the Ace e Geography of Lograire Merton enveredou por uma experiência deste tipo, a um só tempo com a palavra, com o sentido e com a vida.
Num estudo semelhante, outro estudioso propõe que a obra de Merton situa-se na grande tradição do romantismo crítico americano, sustentando que, embora Merton possa ser situado num universo mais amplo, sua obra, em específico a literária, constituir-se-ia sobretudo como a de um escritor americano e pode ser melhor compreendido se situado nesta corrente.19 O autor está se referindo particularmente à tradição que vem de Emerson, Thoureau, Emily Dickinson, T.S. Eliot. É uma hipótese interessante e curiosa, se se levar em conta que os autores são notórios representantes do que se poderia reconhecer como uma tradição cristã protestante. Assim, teríamos um Merton formado e imbuído de toda uma cultura católica que se refletirá em suas grandes obras mais especificamente religiosas, e ao mesmo tempo obras mais especificamente literárias, desta vez impregnadas de toda uma imagética e mesmo de um ethos protestante. Petisco, estudiosa e tradutora de poemas de Merton para o espanhol, acentua que “a influência do Romantismo americano na poesia de Merton é notável se nos determos a analisar o importante papel que nela desempenha a Natureza como símbolo do Espírito e lugar sagrado”, sugerindo que “esta consideração do natural como ordem moral superior parece ser o emblema que move quase toda a literatura americana”20.
Merton explora a palavra criativa em dois níveis: tanto no exercício poético como na prosa ensaística, resenhando e estudando diversos escritores, particularmente com aqueles com os quais guardava expressiva afinidade. Um ensaísmo primoroso, no melhor da sua tradição cultural.
Explicita inúmeras vezes seu compromisso, rigor e exigência de que arte, antes e acima de tudo seja isto: arte. E nesta convergência da mística com a literatura, teve predecessores invejáveis: São João da Cruz, Sóror Juna Inés de la Cruz , dentre outros. Entende que por mais bem intencionada que seja uma mensagem que se queira transmitir, esta, de per si, não sustenta a validação estética à qual o poema se pretenda. A verdade dita sem contornos na expressão direta do poeta dependerá de certa conjunção de fatores que estão ali presentes e fazem desta, e não de todas, uma obra de arte, seja um quadro, uma escultura, um poema. Do contrário, certa combinação de palavras, cuja rima fácil sugere uma suposta destreza da palavra, será apenas moralismo travestido de malabarismos verbais. É desta visão que brotam afirmações surpreendentes para um monge quando afirma: “Um mau livro acerca do amor de Cristo continua sendo um mau livro, mesmo apesar de ser sobre o amor de Cristo”21.
A sua relação com a linguagem precisa ser compreendida em uma trajetória que passou por dois momentos. Quando entrou para a vida monástica renunciando ao “mundo” (1941) e uma segunda fase quando reencontra o mundo, a partir do final da década de 1950. Sua poesia reflete este movimento. Na primeira fase, década de 1940, seu verso traz a marca do dualismo agostiniano, e uma linguagem mais rebuscada; já na segunda, tem-se a experimentação do verso curto, um estilo simples e direto, coloquial, segundo Petisco, “que recorda a livre dicção dos poemas de Whitman e que aproxima a obra mertoniana à poesia mais contemporânea”22.
Esse interesse pela literatura e por uma escrita criativa nunca recuou, embora no início da vida monástica tenha pensado, equivocada e prematuramente, que teria de abandoná-lo. A ordem, e, especificamente seu Abade, incentivaram-no não só a publicar livros religiosos como também seus poemas, relata em seu diário.23 Seja como for, em alguns momentos isto se explicita de forma mais eloquente, e se confirma quando nos damos conta das ousadas obras poéticas que publica em 1968. Uma delas, com o título de Cables to the Ace, é uma coletânea de “antipoemas”, através dos quais focaliza o uso e abuso da linguagem na cultura moderna. Uma linguagem despersonalizada, manipuladora e coercitiva. E indica um contramovimento pela via do resgate poético. Entende que talvez só o poema possa resguardar a linguagem em sua força criativa e autêntica. No texto A Igreja e o Mundo sem Deus chega a falar em uma “rebelião poética” contra o “vigente culto à ciência”.24 E também em 1968, publica aquela que pode ser tomada como seu testamento final como poeta que é a obra The Geography of Lograire, seu texto poético mais longo e mais ambicioso. O poeta norte-americano, William Carlos Williams, identificou que a geografia representava aí todo um país da imaginação, mas também uma pessoa, o próprio Merton. De fato é um mapa, uma coreografia interior de sua mente à procura de um lugar onde encontrar a geografia de todos os homens. Trata-se, pois, de um conjunto de experiências pessoais reimaginadas num painel de textos históricos e antropológicos. Um mosaico de mitos, legendas, motivos artísticos e padrões religiosos de diferentes culturas. Assim, fez poesia e escreveu sobre poesia durante toda a sua vida, inseparável de sua permanente busca contemplativa. Um insistente impulso poético para ouvir e talvez nomear essa voz outra, índice de um sagrado.
Lentfoehr, religiosa e acadêmica, que vem se dedicando mais a este aspecto, da poética propriamente dita, já avançou com refinadas análises, percorrendo o processo evolutivo desta poética de Merton em sua busca por uma linguagem apurada, e às vezes experimental, o exercício tenaz de uma possível mestria da palavra, embora nunca distanciado de seu particular olhar místico e monástico. Esta autora, em seus estudos, que poderíamos classificar como de crítica literária e textual, identifica elementos e processos da poesia de Merton. A escrita de um poeta iniciante que passa por transições e se abre para novas dimensões. Identifica também elementos da escrita zen bem como estruturas surrealistas. Reconhece ainda, em sua escrita experimental, traços do que denomina de uma “fuga semiótica”, bem como uma abertura para temas míticos e para o sonho. E também sugere que é possível identificar temas recorrentes em seus versos, com algumas metáforas bem identificáveis.25
Nesse duplo trajeto de Merton, do exercício contemplativo e da incursão pela arte, duas dimensões, dentre outras, ganharam destaque em nossa pesquisa: a da solidão e do silêncio. Optamos aqui por apresentar alguns elementos quanto ao silêncio. O tema do silêncio, com toda a densidade de sentido nele inscrito, tem sido abordado em diferentes campos do conhecimento. Na filosofia, Merleau-Ponty o abordou de forma esplêndida no belo ensaio – A linguagem indireta e as vozes do silêncio, inserido na obra Signos, publicada em 1960.26 Retomando a ideia fundadora de Saussure, de “que os signos um a um nada significam, que cada um deles expressa menos um sentido do que marca um desvio de sentido entre si mesmo e os outros”, o filósofo chama a atenção para o fato de que “a língua é feita de diferenças”, e é nesta possibilidade que o silêncio terá importância tanto quanto a fala, tal como na partitura a pausa musical não é apenas uma ausência de som, mas constitui com este a estrutura de sentido da música como um todo. Direcionando sua reflexão para o trabalho criativo do escritor, percorrendo temas centrais da linguagem, em especial o campo semântico, o filósofo convida seu leitor a “detectar sob a linguagem falada uma linguagem operante ou falante”, que ultrapassa “a transparência da linguagem falada”. Assim, poder-se-ia dizer que, além da articulação som e sentido, teríamos uma outra “linguagem operante” que vem mais da articulação silêncio e sentido. A lógica pressuposta nestas reflexões é aquela que procura ultrapassar uma visão reducionista da linguagem limitada a suas possibilidades tão somente designativas. Merleau-Ponty encaminhará a discussão para evidenciar que, sobretudo a linguagem literária carrega consigo essa potência, pois é próprio da obra de arte conter não apenas uma ideia, mas “matrizes de ideias”. Mas mesmo as outras linguagens precisam lidar com o silêncio, já que “nenhuma linguagem se separa totalmente da precariedade das formas de expressão mudas, não reabsorve a própria contingência, não se consome para fazer aparecer as próprias coisas”. O texto sinaliza que a linguagem, embora muitas vezes, senão sempre, se pretenda total, o fato é que essa totalidade é apenas um ideal, ou mesmo uma ilusão, já que precisa aceitar os limites incontornáveis de suas impossibilidades. A linguagem não diz tudo, sempre falha, por intrínseca insuficiência, ainda que manifestada na forma paradoxal de um excesso.
Da mesma época, fim dos anos cinquenta, do campo dos estudos literários, vem a obra Linguagem e Silêncio – Ensaios sobre a crise da palavra, de George Steiner, autor que Merton não só conhecia como tomará como base em um de seus ensaios.27 Como informa Steiner, trata-se de “uma coletânea de ensaios sobre linguagem e a crise da linguagem em nossa época, esclarecendo ainda que os ensaios “argumentam que determinadas pressões da política totalitária, da barbárie social, do analfabetismo e dos modismos têm minado o caráter da linguagem”. A palavra manipulada, corrompida e desumanizada, esvazia os significados e de certa forma se torna impossível. O silêncio, em sua mudez, se coloca aí como uma possibilidade, uma alternativa, e constata o autor que boa parte da melhor literatura contemporânea se caracteriza por uma forma de se expressar mais elusiva, emudecida, silenciosa. A expressão “palavras da noite”, empregada pelo autor, converge para a ideia de uma literatura negativa, tal como se fala em teologia negativa, cuja potência expressiva estaria mais no vazio de uma ausência do que na eloquência de uma presença.
A psicanálise teria muito a nos dizer sobre o tema28, mas nos contentemos com uma última referência no campo da linguística. Eni Orlandi em seu estudo, em análise do discurso, esmiúça os variados sentidos do silêncio a partir de sua forma, ou seja, desde o ponto de vista do trabalho da própria linguagem, da linguagem em movimento. Afirma a autora, “Há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há silêncio nas palavras”. O silêncio - e não “silenciamento” que remeteria a uma posição de passividade - aponta para uma dimensão de “não-dito” na linguagem, de “resto”; aponta para um “caráter de incompletude da linguagem”, pois, “todo dizer é uma relação fundamental com o não-dizer”. O estudo da linguista não deixa dúvidas quanto às potencialidades semânticas do silêncio e quanto à sua inscrição constitutiva na/da linguagem.29
Pois bem, uma das expressões do percurso contemplativo de Thomas Merton é uma defesa do silêncio, não como um repúdio à palavra e ao diálogo permanente e audível com o mundo, pois há, com efeito, uma nítida presença de uma dialética entre silêncio e fala em sua vida e obra. Como ocorre com grandes místicos como João da Cruz ou Tereza de Ávila, Merton tem necessidade o tempo todo de expressar o seu silêncio. Na tradição mística, sempre esteve presente este tenso e delicado equilíbrio entre o falar e o emudecer.
No mundo contemporâneo, guardar o silêncio é uma forma de proteger a fala face ao ruído que a deforma sem cessar. O excesso de informação e comunicação, hiper-ampliados com o fenômeno dos mass mídia e mais recentemente com os recursos das redes sociais, acaba por provocar um esvaziamento dos sentidos. As palavras quando invocadas em excesso se desgastam, é preciso deixá-las em descanso, para que ressurjam no momento oportuno com suas possíveis e renovadas significações.
Merton irá afirmar que o silêncio, para além de si mesmo, é revestido de um sentido, de uma ordenação: “o silêncio é o pai da palavra. Uma vida inteira de silêncio é ordenada a uma declaração final, que pode ser posta em termos, uma declaração de tudo pelo que vivemos. Vida e morte, palavras e silêncio, são-nos dados por causa de Cristo”, e completa, “falamos para celebrá-Lo, e somos silenciosos para meditar nEle e entrar mais profundamente no seu silêncio, que é ao mesmo tempo o silêncio da morte e da vida eterna, o silêncio da noite de Sexta-feira Santa e a paz da madrugada de Páscoa”.30
Essa obra, Homem algum é uma ilha, de 1955, numa meditação que lembra o tom do saltério e evoca algo da tradição mística esponsal, assim se expressa:
1. A chuva cessa, e o canto puro de um pássaro anuncia, de repente, a diferença entre o Céu e o Inferno. 2. Deus, nosso Criador e Salvador, deu-nos uma linguagem em que Ele pode ser anunciado, pois a fé nos vem pelo ouvido, e as nossas línguas são as chaves que abrem o céu aos outros. Mas, quando o Senhor vem como um Esposo, nada fica por dizer, exceto que Ele vem e que devemos ir ao seu encontro. [...] Saímos, então, a encontrá-Lo na solidão. Aí nos comunicamos com Ele só, sem palavras, sem pensamentos discursivos, no silêncio de todo o nosso ser.31
Esta cena do encontro nupcial parece não admitir “pensamentos discursivos”, a intimidade deste encontro intenso só pode ser expressa pelo silêncio e no silêncio. Não um silêncio a que se chega de imediato mas que enfim se alcança, depois dos esforços da linguagem humana que se mostraram insuficientes e são de fato abandonados:
antes de chegarmos a esse inefável e impensável, o espírito ronda as fronteiras da linguagem, indeciso em ficar ou não nos seus próprios limites, a fim de ter alguma coisa a trazer aos homens. Essa é a prova daqueles que desejam cruzar as fronteiras. Se eles não estão prontos a deixar atrás as suas próprias ideias e palavras, não podem ir além.32
Além de toda esta perspectiva mais contemplativa do silêncio, há o aspecto já mencionado da falência da linguagem no mundo contemporâneo. Merton escreveu um ensaio central sobre a questão, War and the Crisis of Language, publicado inicialmente em 1969 e incluído posteriormente na coletânea de textos em torno do tema da paz publicada com o título de The Nonviolent Alternative.33
Merton abre o ensaio justamente com uma referência a George Steiner que demonstrara que a língua alemã, corrompida, fora uma das possíveis causas do Nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Menciona ainda que, desde a década de 1940, estudos já indicavam essa relação promíscua entre a linguagem e o poder, um uso manipulador e corrupto da língua, transformando-a em um instrumento político de opressão, a crise de uma “palavra enferma”. A leitura deste ensaio de Merton permite perceber o quão familiarizado estava dessa discussão em torno das relações entre a palavra e o silêncio, os impasses e entraves da palavra no mundo contemporâneo dadas as inúmeras distorções a que vinha sendo submetida, provocando-lhe mesmo um esgotamento. Demonstrando uma refinada capacidade de análise linguística e discursiva, analisa várias expressões que traduzem esta manipulação da palavra e a consequente inversão de seus sentidos, na medida em que jogavam com uma proposital e de má fé ambiguidade. Menciona, por exemplo, como “um clássico exemplo da contaminação da razão e da linguagem” a declaração de um major do exército americano que, em fevereiro de 1968, justificava calmamente o bombardeio da cidade de Bentre no sul do Vietnã com a explicação de que “foi necessário destruir a cidade no sentido de salvá-la”. Uma linguagem tautológica, ressalta Merton, que, de forma sinistra, funcionava na mesma lógica hitleriana na proposta da “solução final”. Ainda em relação ao Vietnã, Merton destaca que palavras como “pacificação” e “libertação” estavam sendo de tal forma deturpadas, que eram associadas aos ataques como se fossem medidas inevitáveis, que “têm adquirido conotações sinistras”.34
Em suas ponderações, relembra ainda, a peculiar “esperta negligência da linguagem usada pelos mandarins (banqueiros, políticos, prelados)” conforme estudados por Sartre; uma linguagem utilizada diretamente como forma de imposição e autoritarismo. Reportando-se à História da Loucura de Foucault, a partir do binômio razão/desrazão desenvolvido pelo filósofo francês, Merton chega a afirmar que são os discursos aparentemente racionais, mas de fato sustentados por mentiras psicopáticas, que expressam uma loucura da linguagem. A rigor, aquilo que parece o racional é que é de fato a própria expressão de uma desrazão.
Pois bem, um dos caminhos apontados por Merton como um recurso possível de enfrentamento desta crise da palavra é a literatura, a retomada da palavra poética, como um dos poucos lugares em que ainda seria possível a emergência do sentido, em sua verdade sempre inaugural, cuja criativa e desconcertante sintaxe pode escapar das emboscadas do insaciável sistema, seja em suas variações políticas, jurídicas ou midiáticas. Se lermos as meditações de Merton sobre o silêncio, projetando sua apologia sobre o pano de fundo das considerações sobre a crise da palavra, reconheceremos, com facilidade, que o silêncio emerge como o outro caminho possível de enfrentamento a essa crise. Também o silêncio resiste às emboscadas desta sociedade histérica e invasiva. É como se o silêncio resguardasse um tempo e um espaço intocáveis, permitindo que, em algum nível, o exercício de uma liberdade plena e a fidelidade à própria consciência preservasse a integridade da pessoa no que esta ainda pode ser chamada de humana.
Sejam quais forem os sentidos possíveis, o que predomina e é de fato impactante, para além dos esforços de compreensão, é a perspectiva contemplativa implicada na experiência do silêncio.
A ideia central deste texto, porque central em Merton, é seu insistente reconhecimento de que há uma inequívoca convergência entre a experiência religiosa e a experiência estética. Merton reconhecia aí tal conexão, que chegava mesmo a afirmar, especificamente quanto à poesia, que “nenhuma poesia cristã digna deste nome foi jamais escrita por alguém que, em certo grau, não fosse um contemplativo. [...] o verdadeiro poeta está sempre próximo do místico por causa da intuição ‘profética’, pela qual ele ‘vê’ a realidade espiritual, o sentido interior do objeto por ele contemplado”35.
E, no mínimo, convém reconhecer que:
A contemplação muito tem a oferecer à poesia. E a poesia, por sua vez, tem algo a oferecer à contemplação. Como sucede isso? Ao compreender o relacionamento entre poesia e contemplação, a primeira coisa a ser enfatizada é a dignidade essencial da experiência estética. É, em si, um dom muito elevado, ainda que somente no plano natural [...] Uma experiência estética genuína é algo que transcende, não apenas a ordem das coisas sensíveis (na qual, entretanto, tem início), mas o próprio plano do raciocínio. É uma intuição suprarracional da perfeição latente das coisas.36
Embora atribuindo à experiência da contemplação um sentido ainda mais profundo e quase intangível, reconhece, na arte, aquilo que estaria o mais próximo desta experiência no sentido das percepções humanas. Em suas palavras: “a poesia, a música e a arte têm algo em comum com a experiência contemplativa”37.
Em carta ao poeta chileno Nicanor Parra, com cuja poética guardava grande afinidade, Merton chega a assim se expressar: “concordo com suas dissonâncias e de fato as acho muito monásticas”, e prossegue o texto sustentando, inclusive, que hoje os poetas e os artistas tenderiam a desempenhar muitas das funções que uma vez foram monopólio dos monges, e lamenta que os monges a tenham abandonado, para de certa maneira de se adequarem ao convencionalismo no mundo moderno.38
De seus textos, constantemente perpassados por uma reflexão sobre a relação entre arte e contemplação, é possível identificar algumas tônicas sempre presentes.
Uma delas é o ponto já mencionado no tópico anterior, que é a forte convicção de que ocorre uma profanação da linguagem na sociedade contemporânea, sobretudo na mídia, na política e na ciência. Numa sociedade massificada a linguagem é manipuladora e alienante. Em seu viés pragmático e instrumental, quase sempre é falsa e se expressa por um falatório vazio e estafante. O mundo contemporâneo tenta se sustentar em cima de uma palavra adoecida. Que a palavra, em seu emprego usual pela mídia, pela política e pela ciência carrega uma falência dos sentidos, já seria um aspecto inquietante; mas Merton vai além, percebendo e denunciado que a própria palavra religiosa vinha padecendo deste esgotamento, perdendo-se em abstracionismos e formalismos inúteis, ou acovardando-se na cumplicidade com o sistema. Contra este espírito do tempo conformista, denuncia em um tom algo melancólico: “pois o que sobrevive, em nossos dias, é a religião como uma formalidade abstrata, sem um molde humanista, uma religião separada do homem [...], separada do próprio Deus [...] uma religião sem nenhuma epifania na arte, no trabalho diário, nos regimes sociais”.39
Neste sentido a arte, sobretudo a literatura, artesanato da palavra, pode despontar como uma mais autêntica expressão da condição humana. A literatura como lugar da verdade, na medida em que, ao menos potencialmente, permitiria traduzir a vida em sua pujança, inclusive no que esta se apresenta como contradição, como lugar de ambiguidade, mas sempre no desejo de ser. A experiência poética tomada como possibilidade de restaurar a pureza da linguagem, o retorno a uma espécie de estado edênico da linguagem.
Na medida em que pontua suas leituras da grande literatura, pode-se perceber que se delineia um mosaico de intuições e percepções que se mesclam com o seu próprio percurso existencial. É como se os diferentes momentos por que passa Merton fossem desvelados e intensificados por suas leituras, ocupando aí um lugar de destaque suas leituras literárias, como expressa, com beleza, o seguinte registro de seu diário:
Hoje de manhã abri realmente a porta das Elegias de Duino de Rilke e entrei (antes tinha apenas espiado pelas janelas e lido fragmentos aqui e ali). O melhor foi que consegui que o som do alemão funcionasse mesmo e pude captar a primeira elegia como um todo. (Antes fiz isso, em grau menor, com a oitava). Creio precisar deste morro, deste silêncio, deste frio gélido para entender realmente esse grande poema, para viver nele - como também vivi nos Quatro Quartetos. [...] as Elegias de Duino e os Quatro Quartetos falam de minha própria vida, meu próprio ser, meu destino, meu cristianismo, minha vocação, minha relação com o mundo do meu tempo, meu lugar nele.40
A palavra surge, pois, sobretudo o poema, como lugar de exercício criativo e de fruição estética. Lugar experiencial de uma liberdade, senão plena, ao menos profunda e radical. Compartilha com os grandes escritores, em especial os poetas, um especial cuidado com o texto, com a escolha das palavras e com a perfeição das frases, a busca artesanal e quase obsessiva por uma poética perfeita. O sentido e a beleza do poema não estão, necessariamente, no conteúdo que veicula, e sim, muitas vezes, em sua própria tessitura, que despertam o leitor a partir de sua intrínseca vitalidade:
Dizer, porém, que os poemas têm um sentido não significa que devam, necessariamente, transmitir informações práticas ou mensagens explícitas. Na poesia, as palavras estão cheias de sentido, mas de modo muito diverso das palavras de uma página de prosa científica. As palavras de um poema não são meramente sinais de conceitos; são ricas, também, em associações afetivas e espirituais. O poeta serve-se de palavras não apenas para fazer declarações e citar fatos. É isso, geralmente, a última coisa que o preocupa. Acima de tudo, procura reunir palavras de tal maneira que exerçam entre si misteriosa e vital reação, libertando, assim, o conteúdo secreto de associações, a fim de produzir no leitor uma experiência que lhe enriqueça as profundezas do espírito de modo absolutamente único. Um bom poema leva a uma experiência que não poderia ser suscitada por outra combinação qualquer de palavras. É, portanto, uma entidade dotada de individualidade que lhe dá cunho particular, diferente de toda outra obra de arte. Como todas as grandes obras de arte, os verdadeiros poemas parecem viver uma vida inteiramente própria. Portanto, o que devemos procurar num poema não é alguma referência acidental a algo que lhe seja exterior, e, sim, esse princípio interior de individualidade e vida que lhe é alma ou “forma”. O que o poema realmente “significa” só pode ser avaliado pelo conteúdo total da experiência poética que é capaz de produzir no leitor. É justamente essa experiência poética total que o poeta está tentando comunicar ao resto do mundo. 41
Nota-se, também, o reconhecimento de certa semelhança entre a solidão do escritor e do monge, pois que é uma solidão que permite uma comunhão íntima e compreensiva com os homens em toda a face da terra.
Reconhece-se logo que quando Merton está falando da arte, está falando da arte de qualidade reconhecida pelo seu autêntico esplendor estético, e não aquelas que se estruturam como obras piedosas, cheias de boas intenções mas esteticamente pobres, como afirma:
Um poema verdadeiramente religioso não nasce apenas de um propósito religioso. Nem poesia nem contemplação são feitas de “boas intenções”. De fato, um poema que não brota de uma necessidade espiritual mais profunda do que uma intenção devota, inevitavelmente há de parecer, ao mesmo tempo, forçado e insosso. Arte que é “forçada” não é arte e tende a exercer sobre o leitor o mesmo efeito perturbador que a piedade forçada e a tensão religiosa sobre aqueles que fazem força para se tornar contemplativos, como se a contemplação infusa pudesse ser o resultado do esforço humano e não um dom de Deus. Parece-me que seria melhor se tal poesia não fosse escrita. Pois tende a confirmar os incrédulos na desconfiança de que a religião amortece, em lugar de nutrir tudo que há de vital no espírito do homem. Os salmos são, ao contrário, os mais simples e, ao mesmo tempo, os maiores poemas religiosos.42
A partir desta concepção, de uma radical fidelidade à arte, do tipo que não faz concessões, é que Merton coloca para si um alto grau de exigência estética e de qualidade literária:
A integridade de Dylan Thomas como poeta faz-me sentir vergonha da poesia que escrevi até hoje. Nós que dizemos amar a Deus: por que não nos esforçamos para ser perfeitos em nossa arte, tão perfeitos quanto pretendemos ser em nosso serviço a Deus? Se não nos esforçamos para ser perfeitos no que escrevemos é porque, apesar de tudo, não estamos escrevendo para Deus. Como quer que seja, é deprimente que aqueles que servem e amam a Deus escrevam às vezes tão mal, enquanto que as pessoas que não O amam se esforcem tanto para escrever bem. Não falo de gramática e de sintaxe, mas de ter alguma coisa a dizer e de dizê-la em frases que já não estejam mortas de nascença. [...] A imperfeição é o castigo da pressa de se ver publicado. As pessoas que têm pressa em se verem publicadas raramente têm alguma coisa a dizer. [...] Um mau livro acerca do amor de Cristo continua sendo um mau livro, mesmo apesar de ser sobre o amor de Cristo.43
No mesmo tom, se impõe: “como poeta, tenho de me fazer agudo e preciso como Eliot ― senão, desistir” e expressa repulsa à “retórica piedosa” que, em sua autoavaliação, chegou a sustentar no início de seu monacato.44
Também, pode-se perceber um particular interesse por escritores e expressões artísticas que tendem a retratar situações ou contextos particularmente de sofrimento, de intensidade existencial, ou de situações-limite. O que é nitidamente reconhecível em seu interesse pela literatura existencialista, latino-americana e da Europa oriental. Não obstante esta sua empatia com o sofrimento humano e, por consequência, com uma criação artística que seja capaz de, ainda que alusivamente, nomeá-lo, o que de fato predomina, no que se poderia denominar de uma poética da contemplação, é um olhar sereno e harmonioso quanto às afinidades entre arte e contemplação. Sendo assim, talvez a principal ideia quanto a esta questão seja a da afinidade, convergência e analogia entre a experiência estética e a experiência religiosa; ou talvez, melhor ainda, como apontávamos no início do texto, as categorias de limiar e tensão sejam as que mais fielmente traduzam esta dupla articulação entre arte e contemplação, entre poesia e contemplação.
Da cela ao mundo, Merton compartilha sua palavra que anseia por ser lida. Um monge poeta e ensaísta que busca seu leitor para além dos muros do mosteiro. E como fazer isso senão publicando. Neste sentido Merton é a expressão mesma do escritor e do poeta que não quer outra coisa senão publicar, ainda que no início de sua vida monástica tenha se disponibilizado a renunciar esta sua vocação. O tempo o mostrou, e a própria ordem através de seu abade o incentivou, que o seu trajeto contemplativo seria inseparável de seu exercício textual e poético. Mas em momento algum sacrificou sua experiência radical de contemplação, no silêncio e na solidão de um eremitério, num “trabalho de cela” que lhe permitia um tempo promissor de paciência e espera. Percurso contemplativo que lhe possibilitava também um amadurecimento e um refinamento dos sentidos. Intensificava uma experiência de fé e humana, a um só tempo. Esvaziamento, despojamento, mergulho no nada, movimento que não deixará de se refletir nas suas últimas obras poéticas do final da década de 1960, que serão marcadas pela experimentação de um verso livre e minimalista. E para finalizar, mais um aspecto: Merton entendia que, ambas as experiências, a religiosa e a estética, se autênticas, abririam para uma atitude amorosa, generosa e compassiva, instaurando um espírito de receptividade, acolhimento e atenção.
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Thomas Merton (1915-1968). Monge trapista da Ordem Cisterciense da Estrita Observância (OCEO). Escritor e poeta. Escreveu poesia, crítica literária, estudos espirituais, ensaios de cunho social. Talvez a figura católica dos EUA de maior influência na sociedade norte-americana no século XX. O presente texto retoma, com novos enquadramentos, temas desenvolvidos em Tese de Doutorado publicada com o título: Thomas Merton: contemplação no tempo e na história (São Paulo: Paulus, 2014). Nesta obra o tema pode ser melhor situado em relação ao seu percurso contemplativo como um todo.↩
Professor da PUC Minas, Departamento de Filosofia. Doutor em Ciência da Religião (UFJF), Mestre em Linguística (UNICAMP), Graduado em Teologia e Letras. <sibelius@pucpcaldas.br>↩
PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 74.↩
NUNES, Benedito, Poesia e Filosofia: uma transa (1999) In: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Rio de Janeiro, 2010, p. 13.↩
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, Aura e rememoração: Ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: 34, 2014, p. 34-36.↩
RANCIÈRE, Jacques, (1995), Políticas da Escrita, Rio de Janeiro: 34, 1995. p. 10-12.↩
Para o percurso de vida, pode-se iniciar por sua própria autobiografia: MERTON, Thomas. A Montanha dos Sete Patamares, Petrópolis: Vozes, 2005a. Quanto à sua obra literária recomendaríamos dois textos: The Collected Poems of Thomas Merton. New York: A New Directions Book, 1977 (que reúne toda a sua obra poética); e, The Literary Essays of Thomas Merton. New York: New Directions, 1981 (que reúne os seus ensaios de crítica literária, incluindo sua dissertação de mestrado sobre William Blake).↩
MERTON, Thomas. A Montanha dos Sete Patamares, op. cit, p. 184.↩
Boas coletâneas bilíngues de poemas de Blake trazem esclarecedores ensaios introdutórios: BLAKE, William. Poesia e Prosa Selecionadas, 3ª ed., Trad. Paulo vizioli, São Paulo: J.C.Ismael, 1986; BLAKE, W.; LAWRENCE, D.H. Tudo o que vive é sagrado, Trad. Mário Alves Coutinho, Belo Horizonte: Crisálida, 2001; BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel, Trad. José Antônio Arantes, São Paulo: Iluminuras, 2007.↩
PAZ, Octavio. Os filhos do barro, op. cit, p. 77.↩
MERTON, Thomas. Coraje para la verdad: cartas a escritores. Buenos Aires: Lumen, 2005b.↩
MERTON, Thomas. The School of Charity: Letters on religious renewal and spiritual direction, New York: Farrar/Straus/Giroux, 1990. p. 305.↩
RICE, Edward. The Man in the Sycamore Tree: The Good Times and Hard Life of Thomas Merton, New York: Image Books, 1972.↩
È rico o livro de Edward Said publicado em 2004, pouco depois de sua morte em 2003, que tendo sido professor de Literatura e Humanidades na Universidade de Columbia desde 1963, reporta-se ao ambiente lendário da uma rica tradição de estudos humanistas da Universidade, com cujos remanescentes ainda conviveu, como por exemplo Mark van Doren, que foi um professor determinante na vida de Merton. A amizade entre ambos foi das mais profícuas. As cartas de Merton para van Doren se iniciam em 1939 e vão até novembro de 1968 (MERTON, Thomas. The Road to Joy: Letters to new and old friends. New York: Farrar/Straus/Giroux, 1989, p. 3-55). (SAID, Edward W. Said. Humanismo e crítica democrática, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 22).↩
MERTON, Thomas. A Montanha dos Sete Patamares, op. cit, p. 126.↩
CUNNINGHAM, Lawrence S. High Culture and Spirituality, In: HART, Patrick (ed.). The Legacy of Thomas Merton. Kalamazoo,Michigan: Cistercian Publications, 1986. p. 83-90.↩
MERTON, Thomas. Roland Barthes – Writing as Temperature. In: Literary Essays, op. cit, p. 140-146.↩
Ibid., p. 141.↩
McINERNY, Dennis Q. Thomas Merton and the Tradition of American Critical Romanticism. In: HART, Patrick (ed.). The Message of Thomas Merton. Kalamazoo,Michigan: Cistercian Publications. 1981, p. 166-191.↩
PETISCO, Sonia. Thomas Merton Oh, corazón Ardiente: poemas de amor y de disidencia. Madrid: Trotta, 2015, p. 19.↩
MERTON, Thomas. O Signo de Jonas. São Paulo: Mérito, 1954, p. 73.↩
PETISCO, Sonia. Thomas Merton Oh, corazón Ardiente: poemas de amor y de disidencia, op.cit, p. 20.↩
MERTON, Thomas. Águas de Siloé, Belo Horizonte: Itatiaia, s/d. p. 46.↩
MERTON, Thomas. A igreja e o mundo sem Deus, Petrópolis: Vozes, 1970, p. 55.↩
LENTFOEHR, Sister Thérèse. Words and Silence: On the poetry of Thomas Merton. New York: News Directions Book, 1979.↩
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 39-88.↩
STEINER, George. Linguagem e Silêncio: Ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 11.↩
NASIO, J.-D. O Silêncio na Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.↩
ORLANDI, Eni P. As Formas do Silêncio: no movimento dos sentidos. 4ª ed. Campinas: Unicamp, 1997.↩
MERTON, Thomas. Homem algum é uma ilha. 6ª ed. Rio de Janeiro: Agir. 1976, p. 212.↩
Ibid., p. 209.↩
Ibid., p. 209.↩
MERTON, Thomas. The Nonviolent Alternative, 4ª ed., New York: Farrar/Straus/Giroux, 1984, p. 235-246.↩
Ibid., p. 238.↩
MERTON, Thomas. Poesia e contemplação, Rio de Janeiro: Agir. 1972, p. 196.↩
Ibid., p. 200.↩
MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, Rio de Janeiro: Fissus. 2001a, p. 9.↩
MERTON, Thomas. Courage for truth: Letters to writers. New York: Farrar/Straus/Giroux, 1993, p. 212.↩
MERTON, Thomas. Sementes de Destruição. Petrópolis: Vozes, 1966, p. 244.↩
MERTON, Thomas. Merton na Intimidade, Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fissus. 2001b, p. 302. Registro do diário em 29/11/1965.↩
MERTON, Thomas. Pão no Deserto, 3ª ed., Petrópolis: Vozes, 2008. p. 57.↩
Ibid., p. 59-60.↩
MERTON, Thomas. O Signo de Jonas, op.cit, 1954, p. 73.↩
Ibid., p. 112, 130.↩