A PARÓDIA DA NOTÍCIA EM “DESAPARECIMENTO DE LUÍSA PORTO”

Cesar Garcia Lima1

Resumo

Em sua poesia narrativa, Carlos Drummond de Andrade incorpora os elementos de composição do fait-divers para construir perfis nos quais elabora a permanência da tragédia urbana, em contraste com o datado discurso jornalístico. Em “Desaparecimento de Luísa Porto”, de Novos Poemas (1948), analisado especificamente, o poeta compõe uma paródia polifônica influenciada pelas vanguardas europeias, que remonta também aos formalistas russos.

Palavras-chave:

Poesia; paródia; fait-divers; polifonia.

Abstract:

In his narrative poetry, Carlos Drummond de Andrade incorporates the composition elements of fait-divers to construct profiles in which he elaborates the permanent urban tragedy in contrast to the ephemeral journalistic discourse. In "Disappearance of Luísa Porto", from the book New Poems (1948), which is specifically analyzed in this article, the Brazilian poet not only composes a polyphonic parody under the influence of European avant-gardes, but also goes back to the Russian formalists.

Key words:

Poetry; parody; fait-divers; poliphony.

A poesia de Carlos Drummond de Andrade, analisada pela crítica por fases concêntricas - como irônica, social ou lírica - pode ser lida em um movimento espiralado, principalmente no que diz respeito a sua temática. Determinados assuntos ganham repetição ao longo de sua obra, adquirindo novos contornos e possibilidades nos quais me interessam as representações da mulher, dos amantes e do homem comum, especialmente em seus poemas narrativos.

Um poema derivado desse movimento de tema recorrente pode mostrar-se como um palimpsesto aperfeiçoado de textos novos sobrepondo-se aos antigos. A temática ligada à mulher, por exemplo, a ser utilizada em “Desaparecimento de Luísa Porto”, é relatada por Gledson (1981, p. 28) de maneira irônica, referindo-se aos últimos ecos de simbolismo na poesia de Drummond entre 1920 e 1924, vividos em Belo Horizonte. “As mulheres esguias, os ambientes crepusculares e melancólicos e os jardins misteriosos que eram as marcas da fábrica penumbrista” surgem em poemas juvenis de Drummond, mas transmutam-se no olhar do poeta, que vai cedendo espaço em seus poemas à mulher comum, sem nome, vista na rua, e também às mulheres amadas (não existe fidelidade à “falta que ama” do sujeito poético drummondiano).

Uma das primeiras referências à mulher comum em Drummond surge no poema “Passa uma aleijadinha” 2, de 1924, enviado em carta a Mário de Andrade, e não merece do poeta paulista mais do que uma referência ao incômodo provocado pela palavra “acolá”. Se o texto é menor e ressurgiu através da edição completa de sua correspondência com Mário (ANDRADE; ANDRADE, 2002), revela a precocidade da obsessão de Drummond pela personagem feminina vista na rua (assim como em “Margarida”, poema inédito mantido no acervo do poeta consignado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro). Tal obsessão pela mulher comum recebe tratamento modernista em “Desaparecimento de Luísa Porto”, não devendo, portanto, ser desprezado como gênese de um procedimento estilístico que eleva à categoria poética a observação do cotidiano e a reescrita da notícia. É como se um espectro de mulher avistada de relance na rua, tipicamente simbolista, à moda de Baudelaire, fosse ganhando espaço e nitidez como uma figura feminina moderna na obra de Drummond.

As bases da linguagem modernista no Brasil, que tomaram emprestada das vanguardas europeias a inspiração na arte popular, e, por conseguinte, a carnavalização, incorporam também a linguagem datada dos jornais, abrindo-se à urbanidade e à industrialização. “Desaparecimento de Luísa Porto”, publicado em Novos poemas em 1948, assim como “Necrológio dos desiludidos do amor”, de Brejo das almas, de 1934, e “Morte do leiteiro”, de A rosa do povo, de 1945, destacam-se na poesia completa do autor mineiro (ANDRADE, 2002) como poemas baseados na estrutura da notícia policial sem maior impacto social, o fait divers. Ao ler o título de qualquer um deles, o leitor obtém desde o início uma informação prévia. Da mesma maneira, o leitor da notícia de jornal tem acesso a um título que antecipa seu conteúdo, resumindo o que nela é mais importante, mas, em geral, com verbo que situa no tempo a ação descrita no texto.

Em todos esses poemas narrativos o que se destaca é a ausência, representada de diferentes maneiras, pairando como um paradoxo sobre a cidade. Em “Necrológio dos desiludidos do amor” e “Morte do leiteiro”, o discurso poético desenvolve-se através da narração de homicídios, o primeiro como paródia jocosa, o segundo na tonalidade da paródia elegíaca. Em “Desaparecimento de Luísa Porto” a ausência não tem explicação e, além da procura pela personagem, especula-se quem é o agente dessa ocorrência, se a própria desaparecida, um outro personagem ou uma circunstância imponderável.

É cabível, especificamente, um esclarecimento sobre a paródia. A abordagem de Affonso Romano de Sant’Anna (1999, p. 7-10) identifica uma consonância entre paródia e Modernidade. O autor retoma a contraposição dos conceitos de paródia e estilização de Bakhtin e Tynianov. Os teóricos russos formularam suas propostas, respectivamente, a partir da análise das obras de Dostoiévski e de Gogol. Sant’Anna mostra como a perspectiva adotada para a análise pode se estender a outras áreas e incorporar, inclusive, a visada semiológica que permite associações de leitura com o cinema. Sant’Anna acrescenta à proposta de análise literária os conceitos de paráfrase e apropriação. Nos estudos de Bakhtin sobre a paródia, há destaque também para o conceito de carnavalização. Assim, convém esclarecer cada um destes termos.

Sant’Anna pondera que, à parte seu destaque na Modernidade, a paródia existia na Grécia, em Roma e na Idade Média, institucionalizando-se a partir do século XVII. Derivada do grego para-ode, a paródia é apresentada pelo autor em seu sentido mais usual, de canto paralelo, revelando também sua origem musical. No caso do Modernismo brasileiro, “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, analisado por Sant’Anna (1999, p. 12), é um dos marcos iniciais desse procedimento paródico da notícia, tornando-se uma influência para Drummond.

A diferenciação entre paródia e estilização se dá através de textos de Tynianov e Bakhtin (Apud SANT’ANNA, 1999, p. 13-14). O primeiro, a partir de estudo realizado em 1919 sobre Gogol, diz que a estilização está próxima da paródia pela existência de dois planos narrativos. No entanto, na paródia, esses planos devem ser discordantes. Assim, a paródia de uma comédia será uma tragédia e assim por diante. Bakhtin refere-se ao uso da voz do outro por parte do autor, tanto na estilização quanto na paródia. Nesta última, porém, as duas vozes atuariam em oposição. Por isso a fusão de vozes, possível na estilização ou no relato do narrador, não seria possível na paródia. Dessa maneira, a estilização permite uma indistinção de vozes que a paródia não permite, esclarecimento que será importante para a análise que efetuo neste texto.

No que se refere ao caráter narrativo, os poemas apresentam elementos do romanesco a partir da carnavalização, definida por Bakhtin (1997, p. 106-107) como o processo de influência sofrido pela literatura antiga do folclore carnavalesco, em particular durante o Helenismo, desdobrando-se em inúmeros gêneros, nos quais o de interesse maior é o sério-cômico 3. As três principais peculiariedades do sério-cômico (a atualidade, a fantasia livre e a mistura de estilos através de vozes narrativas) estão presentes nos poemas 4. Em Drummond, no entanto, a expressão desses elementos acontece sempre de modo bastante particular, não sendo identificável nenhum autor da Antiguidade como influência direta.

Luísa Porto e a mescla estilística

Em “Desaparecimento de Luísa Porto”, publicado em 1948 no livro Novos poemas, Drummond mais uma vez exerce sua poética a partir da recriação polifônica de um fait divers. O livro situa-se entre o marcado teor social de A rosa do povo (1945) e o niilismo individualista de Claro enigma (1951), constituindo um momento intermediário na obra drummondiana. O próprio poema reflete, simbolicamente, uma passagem: como segundo texto de Novos poemas, coloca-se entre o anseio de uma lírica universalista de “Canção amiga” e o tom de manifesto de “Notícias de Espanha”, no qual o poeta duvida de seu próprio canto e se expressa como “imóvel dentro do próprio verso”.

Vagner Camilo (2001, p. 114-115), ao articular a relação entre “Desaparecimento de Luísa Porto” e “Notícias de Espanha”, observa que há entre os poemas o caráter de notícia, ainda que o primeiro remeta diretamente ao noticiário de época, enquanto o segundo é apenas um anseio de comunicação não formalizado. A originalidade de sua análise é perceber que os poemas têm, em comum,

a frustração dessa busca de notícias, sem qualquer resposta de/sobre o destinatário, levando o emissor seja à revolta, seja ao conformismo, de qualquer modo atestando a impotência de toda tentativa de comunicação. Isso é um dado significativo no contexto dos Novos Poemas, pois parece refletir de viés o fechamento gradativo de todos os canais de contato com a realidade até alcançar o hermetismo do próprio discurso poético, sinalizando a descrença em todo projeto de participação e comunicação da palavra poética (...).

Desse modo, o poeta reelabora nesses poemas a precariedade do discurso jornalístico diante do fragmentado sujeito contemporâneo e sua impossibilidade de ter todas as respostas. Faz, portanto, uma inversão, retomando os elementos noticiosos para redirecioná-los em sentido mítico, no qual o homem não se encontra dissociado do sentido de sua existência. A novidade no Modernismo brasileiro não era a pergunta do sujeito sobre si mesmo e sim o reconhecimento da dúvida sobre o outro, multiplicada com a expansão urbana e o modo de vida cosmopolita.

“Desaparecimento de Luísa Porto” é exemplar como objeto de estudo dessa perspectiva irônica do poeta que vê o mundo com o assombro de quem lê um caso policial não solucionado e o reinaugura como texto investigativo sobre a individualidade feminina. Ao fazer referências jornalísticas e religiosas, o poema lança mão da mescla estilística definida por Auerbach e citada por Merquior (1972, p. 44), no qual convivem a linguagem prosaica, reflexo da própria voz da mãe de Luísa, e a de um narrador-demiurgo, de tom mais elevado, que observa a situação e a questiona em suas motivações divinas e terrenas. Merquior (1996, p. 124) chama atenção para o poema como

obra de um virtuose do estilo mesclado, do estilo mesclado que Drummond se dispõe justamente a abandonar, ao mesmo tempo em que os temas históricos ou o drama cotidiano. Este poema é assim, no limiar da terceira época do poeta – uma soberba despedida de todo um gênero de elocução literária.

O autor observa também que em Novos poemas apenas dois outros textos – ­ “Pequeno mistério policial ou A morte pela gramática” e “Composição” – vinculam-se ao estilo mesclado, ligando intenções problemáticas e referências vulgares (MERQUIOR, 1996, p. 126).

Ainda que o poema inteiro decorra da estrutura do fait divers, sem que seja conhecida uma notícia-base (da mesma maneira que em “Necrológio dos desiludidos do amor” e “Morte do leiteiro”), a linguagem da primeira estrofe de “Desaparecimento de Luísa Porto” aproxima-se da escrita dos classificados, ou seja, da publicidade popularizada por pequenos anúncios de jornais dos anos 1940. O poema dispõe-se na vitrine de objetos perdidos da cidade, entre os quais está uma mulher, apropriando-se desse discurso efêmero para, no entanto, procurar permanência, ao estabelecer vínculo entre o cotidiano e o sagrado.

O jogo de forças entre o discurso coloquial e o de origem religiosa estabelece uma sutil competição pelo destino incerto da personagem, desenvolvendo-se como uma especulação em torno dos méritos terrenos de Luísa e de suas virtudes espirituais. Como a notícia policial, que levanta questões e nem sempre conclui algo, o poema narrativo revela indícios do modo de vida da desaparecida, de sua família, meios e costumes; no entanto é discreto nessa exposição, do mesmo modo que um diretor do cinema noir utiliza pouca iluminação para caracterizar o ambiente por onde se movem seus personagens.

Desde a época em que trabalhou nos jornais de Belo Horizonte, Drummond fez utilização paródica do fait divers, como em “Crônica policial” (ANDRADE, 1987 p. 162), com o pseudônimo de Barba Azul. Publicado posteriormente em livro, o texto é uma paródia surrealista sobre o noticiário policial, também ambientado no Rio de Janeiro.

No poema aqui analisado, o fato, banal, do desaparecimento de uma mulher de mais de 30 anos, solteira, no Rio de Janeiro, desenvolve-se incorporando os elementos informativos da notícia, com os dados básicos do lead jornalístico (quem, o quê, como, quando, onde e por que), implantados no Brasil a partir do jornal Diário Carioca 5. Os elementos da notícia são desvendados aos poucos, para compor um intrigante retrato em negativo, como observa Eucanaã Ferraz (1994, p. 100):

Os retratos drummondianos são expressividade absoluta: confluem para o texto a elegia, a crônica, o chiste, na busca de uma palavra capaz de exprimir ao máximo paixão, dor, revolta. Tudo é extremo: a organização textual parece entregue a ritmos contraditórios que estilhaçam sua economia; a caricatura, não raro, surge como efeito das cores/ formas/ discursos que procuram na coisa retratada sua dramaticidade. (...) Mas é preciso lembrar que essa expressão só aparece completa quando entendida como gesto utópico, como vontade revolucionária. O retorno ao figurativo é sobretudo uma restauração da subjetividade, uma pesquisa de territórios para a sensibilidade, o desejo, a poesia.

Em contraponto, há a figura da mãe de Luísa, doente e incapaz de encontrá-la. O poema narrativo transita entre o lírico e o prosaico, procurando ir além da persona, como se Luísa fosse uma “suspeita” sobre quem paira um mistério que, paradoxalmente, é descobrir quem ela é, sem artifícios.

Em sua análise, Eucanaã (1994, p. 98) observa que Drummond empreende uma “busca de singularidade através de personagens anônimos da cidade”, pensando a obra do poeta dentro da perspectiva da experiência urbana. Chamo atenção para o papel social de Luísa Porto, já que o poema destaca suas qualidades e sinais característicos, sem nomear sua ocupação, além das obrigações com a mãe “erma de seus cuidados” (v. 8).

Em termos de gênero, o poema mantém relação com o sério-cômico teorizado por Bakhtin (1997), abdicando de um estilo único através da paródia de gêneros elevados (no caso, a escrita bíblica) e valendo-se do uso de ditados populares. No conjunto, o poema averigua sobre possíveis motivos pelos quais Luísa Porto teria desaparecido, deixando, sub-repticiamente, a pergunta: afinal, quem é Luísa Porto?

Da informação ao poético

Ao longo das quatro primeiras estrofes do poema, podem ser identificados os elementos do lead jornalístico ou a “cabeça” da notícia: quem (Luísa Porto), o quê (desaparecimento misterioso), quando (há três meses), onde (na feira de uma praça, no Rio de Janeiro), como (ao fazer compras) e por que (esse é o pretexto do próprio poema). A voz poética funciona como a de um repórter investigativo, transformando os leitores em cúmplices de seus questionamentos. Os elementos noticiosos cedem espaço a um apelo de fundo religioso feito pela mãe “a qualquer do povo e da classe média/ até mesmo aos senhores ricos” (v. 15 e 16) em busca do resgate ou de informações da “filha volatilizada”. Se as referências informativas são valorizadas, com a descrição de uma mulher alta, magra, morena, rosto penugento, dentes alvos, sinal de nascença junto ao olho esquerdo, levemente estrábica, com vestidinho simples e óculos (v. 20 a 25), o desaparecimento é tão misterioso que desloca a personagem para um universo mágico, no qual as circunstâncias não são esclarecidas. A mãe entrevada atua como intermediária entre a desaparecida e o sagrado, pois, afinal, é seu apelo cristão que dá materialidade ao poema-narrativa. O próprio endereço da família, “rua Santos Óleos, 48” (v. 4), sugere um fundo religioso.

A primeira estrofe resume a procura por uma mulher desaparecida ao estilo de classificado de jornal. O eu poético reveste-se da terceira pessoa, tratamento típico da pretensa objetividade instaurada pelo jornalismo de base norte-americana. De início, o leitor já se depara com uma ausência e a técnica de choque comentada por Walter Benjamin (1987) se faz presente por um poema narrativo que vai apresentando fatos em uma poesia sem aura na qual a incompletude e a polifonia são a mola-mestra. Bakhtin (1998, p. 94) defende que

o espaço para o plurilinguismo encontra-se apenas nos gêneros poéticos “inferiores”, sátira, comédias, etc. Entretanto, o plurilinguismo (isto é, as outras linguagens sócio ideológicas) pode vir integrado nos gêneros estritamente poéticos, principalmente nas falas dos personagens. Porém, nesse caso, ele é objetal.

Ainda que o poema não entre em choque com a teoria bakhtiniana, apresentando elementos satíricos (a começar pela própria apropriação do discurso jornalístico), parece-me uma redução avaliar como apenas objetal a fala de personagens inseridos em um poema.

Na segunda estrofe, a estrutura do fait divers começa a ser subvertida e sabe-se que o desaparecimento aconteceu há três meses, tirando o caráter de notícia de primeira mão, típico da crônica policial. O sujeito lírico introduz um pedido desesperado dirigido também a quem avistar a desaparecida: “que apareça, que escreva, que mande dizer onde está” (v. 11 e 12). Ao mesmo tempo, pede que todos se tornem repórteres, enquanto compõe uma autêntica ficha policial. A voz da mãe paralisada ao longo da estrofe e a utilização do gerúndio em seu final instaura uma atmosfera inconclusiva, como um grito que não encontra eco, apenas obstáculos (mais uma vez, a ideia da pedra no meio do caminho se repete em Drummond). O trecho pode ser comparado ao quadro expressionista “O grito”, de Munch, analisado por Jameson (1996, p. 38-42) como um dos ícones da ansiedade e alienação individual do Modernismo. No quadro, o que se vê é um personagem gritando desesperadamente e círculos que o rodeiam, como se o som ganhasse materialidade, mas o próprio meio em que isso se dá impossibilita sua transmissão. A mãe de Luísa Porto lembra esse personagem que grita de desespero por algo ou alguém. À medida que o texto se desenvolve, informando sobre outras características da desaparecida, Luísa se apresenta cada vez mais comum e indistinta, e quem se impõe é a figura da mãe/sombra. No ambiente polifônico do poema a voz lírica confunde-se com a voz da mãe da personagem, mas a desaparecida não deixa traços de sua própria fala, exatamente como em “Morte do leiteiro”.

Na terceira estrofe, o povo a quem a mãe de Luísa roga por notícias e a família Porto são dignificados. O primeiro é “caritativo”, a família é “digna de simpatia especial”. A voz poética assume o tom hiperbólico do lamento das beatas. O caráter de súplica ganha reforço na quarta estrofe, na qual a repetição do verso “Procurem Luísa” (v. 35, 37 e 39) substitui o “Rogai por nós” da liturgia católica, indicando a insistência devotada da mãe.

Vagner Camilo (2001, p. 108-109) reflete que, a partir da segunda estrofe, a alternância de vozes entre o eu lírico e a mãe vai cedendo espaço para o apelo cristão desta, mas que em alguns momentos há ambiguidade, citando a quinta estrofe. Camilo identifica nisso uma estratégia de distanciamento do poeta, já que “o cuidado do eu lírico em preservar a distância visa não só conter o pathos, como também assinalar a não-pactuação com as crenças e valores pequeno-burgueses da mulher (...)”.

Nessa mesma estrofe, a ambiguidade acentua-se com a introdução de mais uma personagem: a costureira Rita Santana, amiga de Luísa, que nada sabe de seu paradeiro. O eu lírico “acha esquisito” (v. 52) essa falta de contato, em uma velada desconfiança que aparece também na nona estrofe. Luísa é caracterizada não apenas em negativo, mas também por contrapontos que tanto levam a pensar que se suicidou ou fugiu com um namorado desconhecido. A independência da figura feminina é o pano de fundo do poema, como uma narrativa inter e intratextual sobre o desaparecimento da representação fugidia de mulher, cara aos simbolistas e ao próprio Drummond. As ambiguidades sobre Luísa Porto remetem também aos paradoxos da ironia romântica, que isentam a poesia de coerência.

Eucanaã Ferraz (1994, p. 101) aponta em sua análise que o poema se desenvolve de modo falsamente unívoco, porque vai trazendo à tona várias polifonias. Primeiramente, segundo ele, identifica-se “uma voz que parece voltada apenas para a descrição dos fatos e dos personagens”, segundo o grau zero de Roland Barthes (Apud Ferraz, 1994) que guarda similitude semântica com o autor da notícia, em função pretensamente objetiva. Esse narrador insiste que Luísa é “sem namorado”, compactuando com a visão social estabelecida de que uma mulher de 37 anos não pode viver sozinha, lembrando-se que o poema foi publicado em 1948, apenas 16 anos após a garantia de voto feminino na Constituição brasileira.

A partir da sexta estrofe, Luísa Porto parece deixar de existir para se tornar meramente um caso policial como o de tantas pessoas que desapareciam (e ainda desaparecem) anualmente no Rio de Janeiro, igual ao próprio chefe de polícia que a mãe de Luísa soube ter desaparecido através do Diário Mercantil (oitava estrofe), em uma digressão cara ao jornalismo investigativo.

“O jornal embrulhado na memória”, ainda na sexta estrofe, soa como metáfora da inconsciência da mãe diante de sua própria história social. A voz narrativa aproxima-se da onisciência divina e compara o destino da mãe ao desaparecimento da filha. A notícia esquecida remete à biografia trágica da mãe, fazendo de Luísa mais um percalço dessa trajetória. A ironia adquire um tom perverso e associa o psicológico ao físico (“afável posto que estrábica”, v. 68).

As referências à providência divina ganham contundência ao longo do poema através da voz da mãe que, na sétima estrofe, “pela última vez e em nome de Deus”, clama que “procurem a moça, procurem” (v. 72), em contraponto às preocupações sociais. O eu lírico e o poeta confundem-se, pois, como mencionei, Novos poemas marca também um momento em que Drummond dedica-se mais ao destino do indivíduo, em detrimento do coletivo.

A oitava estrofe impõe um parlatório no qual as vozes intercalam-se, sendo que uma delas insiste que o “santo lume da fé ardeu sempre em sua alma, que pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus” (v. 86 a 88), confundindo-se com a voz beata da mãe. A balbúrdia de vozes agiliza o texto com tom carnavalesco em que se misturam tragédia, referências religiosas e a escrita jornalística. A voz poética, ao remeter ao jornal, o faz pela negativa, criando uma auto-ironia:

(...) Tampouco foi vítima de desastre

que a polícia ignora

e os jornais não deram.

Em seguida, na nona estrofe, o narrador mais uma vez faz insinuações quanto à moça casta para, em seguida, inserir Luísa em um mundo mágico, musical, que traz um momento particular de lirismo, outro choque à maneira moderna (“Mas há de voltar, espontânea/ ou trazida por mão benigna, / o olhar desviado e terno/ canção.”, v. 104 a 107).

A décima estrofe é um desdobramento do anúncio contido na primeira, consolidando a imagem de Luísa Porto como notícia de jornal devido ao seu desaparecimento, não por sua existência. A personagem e sua lista de características sem materialidade assemelham-se a um verbete da Conservatória Geral de Todos os nomes (SARAMAGO, 1997, p. 112), arquivo público da vida burocrática, “quando o mais importante era precisamente isso, o que o tempo faz mudar, e não o nome, que nunca varia”.

A décima primeira estrofe contrapõe social e individual, público e privado, transcendente e imanente. A voz poética refugia-se na inspiração bíblica. Os versos “Vai, procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração” (v. 123 e 124) parodiam a frase de Cristo durante a crucificação, no Novo Testamento, quando se dirige a Maria e João como mãe e filho. Há um resgate do transcendente sem endossar o religioso, como uma estilização laica do léxico bíblico.

Na décima segunda estrofe, a ironia diante do sagrado se torna explícita, sem que se negue, no entanto, a culpa judaico-cristã. A compaixão, no entanto, é resgatada e a salvação divina converte-se em fraternidade: a mãe de Luísa se sabe indigna, mas é imediatamente absolvida porque é igual a todos nós (v.125 e 126). Assim, a amartia trágica faz da existência um exercício de precariedade.

A partir daí, a voz da mãe de Luísa toma conta do poema-narrativo, contrapondo-se à massificação que transforma tudo em simulacro. À mãe não interessam mais fotografias, “disfarces de realidade mais intensa e que anúncio algum proverá” (v.135 a 139). Nesse poema de amor transcendente pelo próximo, que transforma a piedade cristã em solidariedade humana, Drummond parodia a estrutura do jornalismo policial, mantém o suspense inerente ao percurso da existência, que permanece misteriosa em seu início e seu final, para celebrar o amor incondicional de uma mãe pela filha, de um repórter por um poema, de um poema através dos vários olhares dos leitores.

Ao buscar no jornalismo a estrutura do fait divers como base de elaboração de “Desaparecimento de Luísa Porto”, Drummond constrói um poema paródico que remete à tragédia em seu caráter antecipatório e no paradoxo evidenciado por uma polifonia narrativa. Como na tragédia, já sabemos de um fato de complexidade inegável (o desaparecimento de uma mulher), sem que possamos decifrar se houve crime ou foi um ato de vontade própria. Luísa Porto e o trágico operário de “Morte do leiteiro” só ganham importância no meio em que vivem quando se transformam em fait divers, o que se dá, paradoxalmente, por sua ausência. Todos são a expressão de uma cidadania reificada.

Como na Paris modificada por Haussmann e vista por Baudelaire, o Rio de Janeiro aparece nos poemas de modo a exilar seus personagens na periferia e na notícia. Na polifonia dos textos, os personagens estão limitados por sua classe social e formação cultural em uma cidade-exílio que não lhes oferece abrigo ou consolo. Luísa Porto resta apenas como um nome submerso entre esses desvalidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, paráfrase & cia. 7ª ed. São Paulo: Ática,

1999.

SARAMAGO, José. Todos os nomes. Companhia das Letras, 1997.


  1. Cesar Garcia Lima é doutor em Literatura Comparada pela UERJ. Desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutorado em Literatura Brasileira na UFRJ a partir da autoficção brasileira do século XXI. Poeta, publicou “Águas desnecessárias” (Nankin, 1997) e “Este livro não é um objeto” (Edição do autor, 2006). Como documentarista, dirigiu “Soldados da borracha” (2010) e “Onde minh’alma quer estar” (2015).

  2. Da mesma maneira que a Macabéa de Clarice Lispector, a personagem anônima de Drummond é um símbolo de alteridade, nesse caso personificada na deficiência física. O poema é transcrito no livro Carlos & Mário, em carta sem data:

    PASSA UMA ALEIJADINHA

    Passa uma aleijadinha,

    Toda curvada no seu vestido de chita

    (uma coisa nas mãos do destino).

    Vai apoiada às muletas, que batem na calçada,

    Vai apoiada... vai coxeando.

    E ninguém a vê na sua tortura muito real,

    Ninguém a vê fugindo dos autos,

    Recuando, tropeçando,

    Insistindo.

    Todo mundo tem pressa,

    Todo mundo tem negócios, amores, aperitivos a tomar.

    A aleijadinha vai coxeando.

    Súbito, um bonde dispara.

    A aleijadinha corre... as muletas caem...

    Ela torce o corpo, desamparada,

    E rola nos paralelepípedos.

    Mas logo se levanta (foi apenas um susto!)

    Acha uma muleta aqui, outra acolá,

    E lá vai toda curvada, coxeando.

  3. Na introdução da segunda edição brasileira de Problemas da poética de Dostoiévski, de 1997, o tradutor Paulo Bezerra explica a mudança do termo: “Embora assim consagrado na história da crítica literária, a reflexão de Bakhtin deixa patente que não é o cômico que se torna sério mas o contrário: na história da cultura, particularmente no clima que envolve o riso ou momentos carnavalescos, os símbolos elevados, oficiais e sérios são destronados do seu pedestal, postos em contiguidade com manifestações e símbolos culturais populares e, uma vez desfeita a distância que antes os separava desse outro universo, tornam-se cômicos. Logo, é o sério que se torna cômico. Por essa razão, substituímos cômico-sério por sério-cômico, como, aliás, está grafado em russo.”

  4. No domínio do sério-cômico interessa-me aqui a sátira menipéia, espécie de subgênero no qual uma situação extraordinária serve à experimentação de uma verdade. A menipéia manifesta-se por uma particularidade específica: a publicística. Bakhtin (1997: 118) define a publicística como “uma espécie de gênero ‘jornalístico’ da Antiguidade”, na qual a atualidade e as referências ideológicas são elementos fundamentais para sua caracterização.

  5. Segundo Nilson Lage (In: www.jornalismo.ufsc.brbancodedados/md-redacao46.html), um dos autores mais dedicados ao estudo da história do jornalismo brasileiro, “a reforma do estilo da imprensa brasileira começou na década de 1950 num pequeno jornal do Rio de Janeiro, o Diário Carioca, de forte tradição política e orientação conservadora”. O Diário Carioca introduziu a adaptação do lead - primeiro parágrafo da matéria impressa, onde consta o fato principal ou mais importante de uma série, tomado por seu aspecto principal - à língua portuguesa evitando, por exemplo, o estilo uma proposição por período, que é ainda hoje norma imposta na Folha de S. Paulo, e dá aos textos aspecto telegráfico, de leitura cansativa. Para isso, foram consultados outros modelos de adaptação, principalmente dos jornais ingleses e franceses; a incorporação progressiva de usos propostos, na literatura, pelos modernistas de 1922, para aproximar a escrita da fala corrente brasileira. Nessa linha, as pessoas deixaram de morar à Rua X para morar na Rua X. Os tratamentos tornaram-se menos cerimoniosos; passou-se, aos poucos, a escrever o nome das pessoas sem a precedência de um título - senhor, senhora, doutor, excelência, dona e, para os desqualificados, indivíduo. Os redatores do Diário eram leitores constantes de autores modernos, particularmente de Graciliano Ramos, cujo estilo enxuto tomava-se como modelo.