TRISTE BAHIA: CAETANO VELOSO E O CASO GREGÓRIO DE MATOS

Rafael Julião

Gregório de Matos (nascido em Salvador em 1633-6) e Caetano Veloso (nascido em Santo Amaro em 1942) são duas figuras fundamentais da cultura brasileira e, em especial, da cultura baiana. No disco Transa, dos anos 1970, Caetano incorporou parte de um soneto de Gregório na canção “Triste Bahia”, sugerindo aproximações latentes entre seus trabalhos.

O objetivo do presente artigo é refletir sobre a relação entre os dois artistas baianos a partir desse gesto de incorporação. Para tanto, convém primeiramente situar a figura do poeta Gregório de Matos em seu tempo histórico, mas também observar as representações que adquiriu no conjunto da fortuna crítica sobre a literatura brasileira. Em seguida, é preciso compreender em que momento esse processo se deu na trajetória artística de Caetano Veloso, na esteira do tropicalismo e das leituras de Brasil que foram afirmadas pelo movimento.

A triste Bahia

A vertente satírica da poesia de Gregório de Matos concentra-se, em grande medida, na formulação literária de múltiplas críticas à sociedade baiana do século XVII, cujos habitantes são acusados de corrupção e promiscuidade. É exemplar, nesse sentido, o famoso poema que, por meio de epílogos, descreve “a cidade da Bahia” como um lugar onde falta “verdade”, “honra” e “vergonha”.1 Na longa lista de criticados, constam os negociantes ambiciosos, a nobreza estúpida e vaidosa, os pretos e mestiços sem valor, a justiça corrupta e injusta, os religiosos hipócritas, a Câmara incompetente e a economia açucareira decadente.

O poema é descrito no título como um “juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República, em todos os membros e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia”. Veja-se que aqui Gregório de Matos associa diretamente a Bahia à metáfora do “corpo da república”. É preciso lembrar, nesse sentido, que a cidade de Salvador (“a cidade da Bahia”) foi a capital política do Brasil durante grande parte do período colonial (entre 1549 e 1763). Assim, o poeta, ao registrar a sociedade baiana daquele período, estava também registrando um momento fundamental da formação do povo, da cultura e do estado brasileiro.

Como sabemos, a lira maledicente de Gregório de Matos rendeu-lhe a alcunha de “Boca do Inferno”, o que frequentemente nos leva a construir uma imagem profundamente subversiva do poeta. No entanto, ao situá-lo em sua posição social e em seu tempo histórico, é possível descobrir componentes conservadores em seus versos críticos, especialmente quando compreendemos a própria natureza do gênero satírico naquela época.

Em A sátira e o engenho – Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, o pesquisador João Adolfo Hansen esclarece que a sátira apresentava, originalmente, uma função reguladora do corpo social. Desse modo, o caráter moralizante do gênero sinalizava um desvio em relação à sociedade ideal e às hierarquias que nela deveriam ser respeitadas. Em outras palavras, os poemas satíricos não apontavam exatamente contra o modelo de estado, contra a Igreja ou contra as estruturas sociais injustas, mas contra os personagens corruptos que atrapalhavam o sistema de funcionar corretamente.

Ainda segundo Hansen, mesmo as irreverências linguísticas estavam previstas como inerentes ao gênero, além do que a linguagem chula e agressiva era adequada ao objetivo de rebaixar o que seria imoral. A subversão vocabular, o riso crítico e a desproporção caricatural estariam, nesse sentido, a serviço da própria ordem e não o contrário. A sátira, portanto, mais reafirmava as estruturas sociais do que se propunha a transformá-las.

Feitas essas considerações, cabe agora devolver o poeta a seu contexto específico e localizá-lo socialmente enquanto sujeito histórico: trata-se de um homem branco de elite, nascido no Brasil (mas de avós portugueses), em uma sociedade colonial e escravista, entre o apogeu e a crise do mercado açucareiro. Com isso, é possível perceber, no conjunto de sua obra, todos os valores aristocráticos, patriarcais, racistas e misóginos (para usar termos atuais) que caracterizam o olhar comum de um homem em sua posição social.

Com isso, é possível nos encaminharmos para a análise mais detida do soneto “À cidade da Bahia”, que ficou mais conhecido pela exclamação que abre o primeiro verso:

Triste Bahia! ó quão dessemelhante

Estás e estou do nosso antigo estado!

Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,

Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando, e tem trocado,

Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda

Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente

Um dia amanheceras tão sisuda

Que fora de algodão o teu capote!

(MATOS, 2010, p. 44)

O texto trata, portanto, de um processo de transformação que gerou o empobrecimento da Bahia e do sujeito que enuncia tal processo. O espelhamento entre indivíduo e espaço apresenta seu correspondente formal por meio da construção de um jogo de antíteses, paralelismos e quiasmas, especialmente durante a primeira estrofe. Veja-se, nesse contexto, a oposição entre os adjetivos “pobre” e “rica” (paralelos a “empenhado” e “abundante”), bem como entre o passado e o presente em que se flexionam os verbos “estar” (“estás”/ “estou”) e “ver” (“vejo”/ “vi”).

Os quiasmas, por sua vez, aparecem nos dois últimos versos da primeira estrofe, quando notamos que a pausa (marcada pelas vírgulas) funciona como um espelho sintático. Os pronomes “eu”/ “mi” e “tu”/ “te”/ “ti” participam também da organização dessa estrutura, na qual o sujeito vê a pobreza da Bahia refletir-se em seu próprio estado.

Vale, por fim, observar que o substantivo “estado” reverbera o verbo “estar”, que aparece no mesmo verso sob as formas “estás” e “estou”. Nessa acepção, o termo se refere à forma como as coisas antes estavam. Por outro lado, é possível sinalizar uma polissemia, que nos permite ler a expressão “antigo estado” enquanto unidade federativa (“estado da Bahia”) e enquanto sistema político, econômico e social anteriormente vigente. Sobrepondo esses sentidos, a transformação estrutural do sistema apresentava como consequência o empobrecimento do sujeito, do estado e da cidade da Bahia (e, por extensão, do estado brasileiro).

No segundo quarteto, anuncia-se como causa dessa mudança a presença da “máquina mercante”, isto é, dos mesmos “negociantes” que aparecem criticados nos epílogos do outro poema. O comércio é assim figurado, de modo a conotar uma estrutura potente, contínua e sistemática (e, em certo sentido, “moderna”). No âmbito formal, a expressão promove as aliterações entre os fonemas /m/ e /k/ e sugere um ritmo mecânico no conjunto do verso. O termo “larga barra” (com a anteposição do adjetivo valorativo) sinaliza, criticamente, o excesso de abertura da costa brasileira aos negociantes estrangeiros.

Nos tercetos, a decadência da cidade também é representada por meio da oposição entre o “açúcar excelente” que a cidade produzia, agora desvalorizado nas transações comerciais com os estrangeiros “sagazes”, sobretudo os ingleses (note-se o termo coloquial “brichotes” em referência irônica ao termo inglês “british”). Na conclusão do soneto, o pretérito mais-que-perfeito apresenta-se como lamento por Deus ter desejado a repentina mudança que tornara a Bahia austera (“sisuda, séria”) e sua vestimenta pobre, feita de algodão.

Alfredo Bosi, em sua Dialética da colonização (1992), dedica o capítulo “Do antigo estado à máquina mercante” ao poeta Gregório de Matos, cujo título evoca justamente os versos de “Triste Bahia”. O autor analisa o poema dialeticamente, estabelecendo as devidas relações entre literatura e sociedade. Desse modo, observa o espelhamento formal e temático entre o sujeito e a Bahia, contextualiza a entrada dos navios estrangeiros naquele período e mostra como a posição social do poeta ajuda a compreender o caráter específico de sua crítica.

Nesse sentido, Bosi nos informa sobre a antiga existência de leis restritivas à entrada de navios estrangeiros, que foram “relaxadas” por D. João IV depois da Restauração de 1640. A tal “máquina mercante” do poema, bem como a presença do “sagaz brichote”, fazem referência a essa mudança, que marca a ascendência de uma classe mercante na Bahia, o que se dá em paralelo com a crise do comércio açucareiro nas últimas décadas do século XVII.

Com isso, é possível perceber que o protesto de Gregório de Matos contra o empobrecimento da Bahia não representa, prioritariamente, a defesa da cidade contra a exploração estrangeira ou contra o comércio ambicioso. O que se revela, essencialmente, é a situação do próprio poeta enquanto representante do antigo estado em declínio (filiado à aristocracia açucareira), diante do surgimento de um novo estado, mais aberto ao comércio internacional e aos novos produtos.

Alfredo Bosi segue analisando outros poemas de Gregório, observando também os elementos de raça e gênero que reforçam o caráter conservador (e, nos termos de hoje, racista, machista e misógino) de muitos de seus textos. Por fim, Bosi comenta o trânsito do poeta entre classes e raças, especialmente por meio de um convívio sensual e festivo, que, segundo o autor frisa, não significa uma redução efetiva das barreiras sociais. Ao “desmascarar” o poeta, o crítico insere-se diretamente na discussão sobre as grandes interpretações da brasilidade, em especial, a de Gilberto Freyre, como veremos a seguir.

O músico-poeta

Em sua História social da música brasileira, José Ramos Tinhorão dedica o capítulo “Gregório de Matos: glosa em cantigas no Recôncavo Baiano” a afirmar a importância do poeta baiano para a história da música brasileira no período colonial. Com isso, o autor também nos conduz à reflexão sobre a existência de um lugar de interseção entre a literatura e a canção (ou, por extensão, entre cultura erudita e cultura popular), que coloca “o poeta-músico” Gregório de Matos em um espaço muito particular dos estudos literários:

De entre as modalidades de versos cantados, o poeta-músico Gregório de Matos cultivava predominantemente, ao lado das glosas e cantigas, coplas e chansonetas, os romances que lhe permitiram contar, no estilo popular-tradicional das redondilhas maiores, ora fatos engraçados ora acontecimentos variados, sempre com função de acompanhamento à viola. (TINHORÃO, 1998, p. 57)

E completa:

A variedade e quantidade dos romances (alguns com estribilho, versos sobre motes e décimas cantadas, somadas às glosas, cantigas e chulas, bem como as liras e chansonetas declaradamente compostas para serem cantadas à viola), indica, afinal [...], que [...] a obra de Gregório de Matos Guerra deveria ser estudada quase toda não como obra poética mas como versos de música popular. A prova disso estaria no fato de, de entre as mais de seiscentas composições em versos recolhidas como do poeta [...], apenas duzentas e sete constituem sonetos, que era o gênero poético dominante na época, e cuja forma não convidava à música. (Ibidem, p. 57-58)

Assim, Tinhorão reivindica Gregório de Matos para o campo da música popular por meio de argumentos formais, que listam gêneros e estruturas característicos das produções poéticas feitas para o canto, além de associarem o poeta a um instrumento musical, a viola.

Historicamente, a aproximação entre a poesia e a música, embora já fosse presente na Antiguidade, tornou-se ainda mais contundente na Idade Média, quando emergiram as cantigas trovadorescas provençais e galego-portuguesas. Trovadores, menestréis e jograis utilizavam fartamente as composições musicais e o canto para transmitirem não só seus sentimentos, mas também as histórias e lendas de seu tempo (como ocorre no gênero “romance”).

Veja-se, assim, que Tinhorão, ao falar sobre a poesia-musical de Gregório, acaba por enfatizar a importância das canções populares para o registro de situações e episódios cotidianos, de modo a funcionar como fonte fundamental de pesquisa para a compreensão de determinado contexto histórico-social. Nesse sentido, destaca a relevância do conteúdo da obra de Gregório em relação ao registro muito vivo “de situações e episódios engraçados ou escatológicos da vida da cidade de Salvador e de outros centros urbano-rurais do Recôncavo”2, que, como já sinalizamos, são espaços centrais para a compreensão do Brasil do século XVII.

Tinhorão também registra o “ponto de vista contraditório” adotado pelo “filho da elite branca local”, envolvido frequentemente em “pagodeiras e aventuras sexuais com a gente negra e mestiça [...] que preconceituosamente desprezava”.3 O misto de desprezo classista e interesse sexual também diz muito sobre o processo de colonização, cuja violência se desenvolveu também em cenários de convivência, que dão origem a interpretações seminais sobre o Brasil.

Nesse universo, destaca-se Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e sua tese sobre a hibridização cultural, identificando o Brasil como um lugar onde a miscigenação das culturas teria se dado de forma significativamente intensa e particular. Assim, o autor contribui para formar uma representação de um Brasil “mestiço” e “sensual”, dotado de grande riqueza cultural.

A tese de Freyre, como dissemos, aparece sob a mira de Alfredo Bosi no texto sobre Gregório de Matos, em que afirma que o trânsito e a convivência íntima entre as classes não significaram emparelhamento social, tampouco se deram sem violências físicas, simbólicas e discursivas. Embora represente um passo importante para a discussão sobre a cultura brasileira, o pensador pernambucano vem sendo constantemente problematizado, especialmente em nossos dias, por sua hipotética negligência com tais violências (e com seus componentes de raça e gênero).

Nesse cenário, Gregório de Matos, ao tematizar as próprias ambiguidades de seu lugar de homem branco de elite em trânsito frequente entre raças e classes, acaba por circular também entre dualidades fundamentais do Brasil, dividido em sua expressão brutal, violenta, misógina e racista e, de outro lado, sua dimensão mestiça, festiva, sensual e culturalmente rica. Em outras palavras, ao registrar, sob seu ponto de vista, o cotidiano da Bahia do século XVII, Gregório acabou por dialogar também com o próprio universo mítico que ecoa nas célebres interpretações do Brasil, especialmente na de Freyre.

O caráter dúbio do poeta será assunto também de Adriano Espínola, que chama atenção para o fato de ser o poeta “o primeiro grande escritor autenticamente brasileiro”, não só por tematizar aspectos locais do cotidiano baiano, mas por registrar uma linguagem já modificada pela miscigenação cultural. Além disso, o autor afirma:

Há mais de 300 anos, somos, assim, esse Narciso às avessas, diria Nélson Rodrigues, que cospe na sua imagem e ri de sua miséria. Tália, a musa da comédia e “anjo da guarda” do poeta, seria a musa barroca de nossa formação. A musa que preside desde nosso comportamento mais íntimo, feito de “manha e malícia”, à explosão rueira, sensual e fantasiosa do carnaval. Gregório de Matos, sob esse aspecto, se apresenta como o nosso primeiro grande intérprete; o tradutor cômico-poético das mazelas particulares e sociais, da mestiçagem mística e erótica, dos desejos, tormentos e prazeres da patuleia luso-tropical. De nossas contradições, enfim. (Espínola, 2010, p. 79)

O fragmento reverbera o “complexo de vira-latas”, expressão utilizada por Nelson Rodrigues para sinalizar a existência de um constante discurso autodepreciativo que os brasileiros fazem sobre o país. De outro lado, o Brasil conserva também outra face, alegre e triunfante, debochada e crítica, festiva e carnavalesca, que se expressa na irreverência, na criatividade e na malícia (hipotética) do povo brasileiro.

Assim, Gregório de Matos teria sido capaz de unir os traços gerais do movimento estético barroco (rebuscado, dramático e contraditório) com o caráter paradoxal da própria realidade brasileira, a um só tempo sensual e religiosa, racista e mestiça, violenta e conciliatória, regional e estrangeira, elitista e popular, orgulhosa e envergonhada, miserável e carnavalesca. E, evidentemente, aqui se encontra um dos pontos de maior interesse das representações de Brasil exploradas pelo tropicalismo musical de Caetano Veloso, três séculos depois.

O antropófago

Em seu prefácio de 1975 à antologia de poemas de Gregório de Matos, o organizador José Miguel Wisnik evidencia a presença de procedimentos antropofágicos na obra do poeta baiano, exemplificando sua tese com o poema “Aos principais da Bahia chamados caramurus”, que é assim:

Há coisa como ver um Paiaiá

Mui prezado de ser Caramuru,

Descendente do sangue de tatu,

Cujo torpe idioma é Copebá?

A linha feminina é Carimá

Muqueca, pitinga, caruru,

Mingau de puba, vinho de caju

Pisando num pilão de Pirajá

A masculina é um Aricobé,

Cuja filha Cobé, c’um branco Paí

Dormiu no promontório de Passé.

O branco é um Marau que veio aqui:

Ela é uma índia de Maré;

Copebá, Aricobé, Cobé, Paí.

(MATOS, 2010, p. 108)

Observe-se que a leitura do texto torna-se difícil, especialmente por causa da incorporação de palavras que pertencem a um vocabulário indígena, além de expressões características da linguagem coloquial da época. Para começar, seria importante saber que “caramuru” é uma palavra tupi-guarani que dá nome a um peixe marítimo de mordida perigosa, mas que também designava, popularmente, os europeus que viviam no Brasil.

No primeiro quarteto, já desvendamos o caráter irônico do poema incidindo sobre a tal “nobreza baiana” de origem europeia. Assim, a pergunta retórica do poema sugere, ironicamente, que não haveria coisa mais bonita que ver um “paiaiá” (um pajé) que se enaltece por se achar europeu (note-se que o termo indígena “caramuru” também participa da corrosão desse discurso), mas descende de sangue de “tatu” (outra palavra de origem indígena e que serve para depreciar os nativos) e fala o idioma “copebá” (falado pela tribo cobé).

No segundo quarteto, situa-se o que seria uma linha feminina, marcada por uma série de palavras indígenas especialmente vinculadas à culinária (“muqueca”, “pitinga”, “caruru”, “mingau de puba”, “vinho de caju”). No terceto seguinte, a linha masculina é designada como “aricobé” (que equivale a “Cobé”). Sua descendência, no entanto, aparece encenada em um processo de miscigenação entre a mulher indígena e um homem branco (observe-se a marcação do gênero, que muito diz sobre o sentido da miscigenação no contexto colonial), ao qual se atribui o adjetivo “paí”, que soa como indígena, mas evoca a palavra latina “pai” (sugerido pela relação com o termo “filha”).

Na estrofe de conclusão, a índia descendente acumula, no último verso, a sequência (coordenada de forma assindética) dos termos “Copebá”, “Aricobé”, “Cobé” e “Paí”. O conteúdo do poema aponta evidentemente para um processo de miscigenação (visto em chave irônica e depreciativa), que Gregório de Matos utiliza para ridicularizar a pretensa nobreza dos descendentes desta terra.

Com isso, é possível afirmar que Gregório de Matos estaria sendo antropofágico ao transcender a imitação do barroco europeu tanto no âmbito do conteúdo (ao falar sobre a formação específica do Brasil e da especificidade de seu processo de colonização), como também no âmbito da forma (ao se apropriar de um gênero europeu – o soneto – modificando-lhe a sonoridade, em especial, por meio da presença de vocábulos locais, sejam eles de ascendência indígena, sejam eles da expressão coloquial popular na Bahia do século XVII).

estaria subvertendo o modelo original ao se apropriar de um gênero europeu (o soneto) e impor a ele vocábulos locais, sejam eles de ascendência indígena, sejam eles da expressão coloquial popular na Bahia do século XVII.

Anos mais tarde, em 1986, Augusto de Campos dedicou um poema-ensaio ao poeta baiano, intitulando-o “Arte final para Gregório”. Logo na primeira estrofe, o ensaísta comenta que viajou para os Estados Unidos em 1971 a fim de dar dois cursos universitários, um sobre o barroco e o outro sobre poesia brasileira moderna. Segundo ele, o primeiro começaria por Gregório de Matos e o segundo terminaria em Caetano Veloso. Na bagagem, Augusto afirma que levava consigo uma fita com a gravação de “Triste Bahia”, feita em 1971.

Em seu texto, Augusto de Campos comenta a dualidade de Gregório de Matos (e de Caetano Veloso) entre o erudito e o popular, e também a relação do poeta com a música, com a Bahia e com a invenção poética. Para nosso assunto, interessa o seguinte fragmento:

vai-se ver e gregório aparece

como o primeiro poeta brasileiro

dotado de um amplo domínio da linguagem

ele é verbivocovisual

fanomelogopaico

ou o primeiro antropófago experimental

a nossa poesia

(CAMPOS, 1986, p. 90)

Percebemos nessa passagem uma ideia que aparece tanto na produção poética como na fortuna crítica produzida pelos poetas concretos, segundo a qual o valor da poesia advém, antes de tudo, do domínio da linguagem e de sua potência experimental e criativa. Além disso, a poesia deveria ser verbi/voco/visual, isto é, deveria explorar suas dimensões de sentido (logopeia), de sonoridade (melopia) e de potência imagética (fanopeia). E é nesses termos que Augusto estima a grandeza de Gregório.

Além disso, a exaltação da vanguarda antropofágica é também um ponto fundamental da perspectiva dos poetas concretos sobre a cultura e a literatura brasileira. Nessa narrativa, a figura de Oswald de Andrade, “um poeta da radicalidade” (na expressão de Haroldo de Campos), vai se oferecer como um paradigma de modernidade e um ponto fundamental dos preceitos dos poetas concretistas.

Na mesma década, o irmão Haroldo de Campos procedeu a outro gesto de valorização de Gregório de Matos, dessa vez atacando a linha evolutiva proposta por Antonio Candido em sua Formação da literatura brasileira – momentos decisivos, de 1959. Nesse sentido, Haroldo de Campos publicou em 1989 O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos, ironizando a ausência do poeta no percurso proposto por Candido.

Haroldo argumenta que o crítico centralizou o nosso modelo literário no momento do Romantismo, no qual a afirmação da subjetividade acompanharia um processo de afirmação de um “nós” nacional, isto é, de consolidação de uma ideia de nação (independente de Portugal) e de uma literatura empenhada em se sistematizar em torno desse objetivo. Além disso, o poeta concreto argumenta contra uma perspectiva evolucionista e integrativa da história literária, problematizando a ideia de que a literatura de um país se faça por meio da passagem de bastões entre escritores de um tempo a outro, e também a falsa sensação de que os autores e estilos eleitos para cada época forneçam um panorama válido da produção nacional como um todo.

Desse fértil debate, interessa-nos sinalizar, sobretudo, como os poetas concretos se empenharam em reconstruir as narrativas acerca do cânone brasileiro, o que se deu principalmente a partir da revalorização de poetas como Gregório de Matos, Sousândrade e, em especial, Oswald de Andrade, cujos manifestos servem como marco fundamental da criação de uma poesia moderna no Brasil. Essa linha literária se estendeu também em direção à própria poesia concretista e, na sequência, à produção poético-musical dos tropicalistas. Assim, por meio dos poetas concretos, enfim, tecemos o fio que conduz de Gregório de Matos a Caetano Veloso, interligados especialmente pela antropofagia oswaldiana.

O Transa

É possível afirmar que o momento de eclosão e de consolidação do tropicalismo musical se concentrou em um curto período, especificamente entre os anos de 1967 e 1968. Em geral, o marco escolhido para início do movimento é a apresentação das canções “Alegria, alegria” (de Caetano Veloso) e “Domingo no parque” (de Gilberto Gil) no III Festival da Canção da TV Record, em outubro de 1967. Em 1968, os artistas lançaram seus álbuns individuais propriamente “tropicalistas” e o disco-manifesto do movimento, um álbum coletivo intitulado Tropicália ou Panis et circencis.

No contexto dos festivais, o tropicalismo se opôs ao nacionalismo estreito dos defensores do purismo na “música popular brasileira” (que rejeitavam o rock e suas guitarras elétricas). Augusto de Campos publicou, entre 1966 e 1968, artigos que exaltavam a atitude tropicalista e a aproximavam da perspectiva antropofágica de Oswald de Andrade.

Em 1967, no artigo “A explosão de alegria, alegria”, Augusto defendeu que o movimento tropicalista estaria deglutindo as novas informações da cultura de massas, dando continuidade às conquistas da canção popular moderna do Brasil e produzindo uma linguagem inventiva, original, fragmentária e atual. A partir de 1968, os tropicalistas começaram a assumir a relação proposta por Augusto, passando a afirmar o movimento como neoantropofágico.

Caetano e Gil foram presos em dezembro de 1968, em função do acirramento da ditadura civil-militar no Brasil, encerrando o ciclo de afirmação do tropicalismo musical. Em fevereiro de 1969, os artistas foram soltos e, no mesmo ano, forçados ao exílio depois de um breve período em Salvador. Em Londres, Caetano Veloso gravou dois álbuns, que levam seu nome no título – o de 1969 (o álbum de capa branca) e o de 1971 (o mais marcado pelo universo do exílio, com destaque para a canção “London, London). Em 1971, Caetano conseguiu autorização para fazer duas visitas ao Brasil, retornando definitivamente apenas em 1972.

Vale lembrar que esse período coincide justamente com a contraditória contemporaneidade entre o auge da repressão da ditadura civil-militar brasileira, com o governo de Médici (entre 1969 e 1974) e o apogeu da contracultura no país, sob o influxo dos movimentos jovens na Europa e nos EUA, que foram marcados pela politização do corpo e pelas lutas por direitos civis e liberdades individuais.

As gravações de Transa aconteceram, como já dissemos, em Londres, em 1971, pouco depois da primeira visita de Caetano Veloso ao país, referida há pouco. O título ecoa não apenas uma gíria corrente na época (“transa” era uma expressão ampla que se referia não apenas às relações sexuais, mas a qualquer forma de “transação”, de comércio, de troca, de diálogo, de conquista), mas também acaba reverberando o nome da rodovia “Transamazônica”, obra monumental da ditadura, que estava recebendo grande investimento publicitário (o próprio Caetano foi “convidado” pelos militares a fazer uma canção propagandística, mas conseguiu se esquivar).

O disco conta com 7 canções (“You don’t know me”, “Nine of ten”, “Triste Bahia”, “It’s a long way”, “Mora na filosofia”, “Neolithic men” e “Nostalgia”), a maioria delas misturando o inglês e o português (com a exceção de “Mora na filosofia” e justamente de “Triste Bahia”). Os arranjos são de Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa. Para muitos críticos, trata-se da obra máxima da discografia de Caetano Veloso.

As canções do disco são emblemáticas em relação a muito dos procedimentos tropicalistas fundamentais: a subversão das hierarquias culturais, a estética fragmentária, o uso das colagens, os deslizamentos de sentido, a revisão da tradição, as incorporações antropofágicas, a afirmação da linguagem pop da cultura de massas internacional (e da língua inglesa) em tensão contínua com a afirmação da singularidade brasileira e da valorização da língua portuguesa, e, por fim, as dialéticas entre o universal e o regional, o arcaico e o moderno, o erudito e o popular.

As colagens, por vezes, atravessam vários desses procedimentos, fazendo com que a sobreposição do conjunto afirme muito mais do que a soma dos fragmentos isolados. A canção que abre o disco, “You don’t know me” (de Caetano Veloso), nesse sentido, mostra-se um cartão de visitas não só do sujeito que se apresenta (para aqueles que não o conhecem), como apresenta também o inventário de recursos formais e de proposições temáticas que caracterizam a produção de Caetano Veloso sob a égide do tropicalismo.

A letra começa em inglês com a sequência de versos “you don't know me/ bet you'll never get to know me/ you don't know me at all/ feel so lonely/ the world is spinning round slowly/ there's nothing you can show me/ from behind the wall”, seguida da repetição insistente do verso “show me from behind the wall”. Veja-se que a frase inicial (dita em inglês) mostra a convicção de que o interlocutor (potencialmente estrangeiro ao sujeito e ao lugar de onde ele veio) não o conhece e nem vai conseguir entendê-lo (apesar de a canção ser um evidente desejo de comunicação).

Interessante também notar a ambiguidade do verso repetido: no primeiro contexto, trata-se de parte de uma oração subordinada, de modo que se afirma que “não há nada que você possa me mostrar por trás do muro”. Note-se que o verso acaba por sinalizar a existência de um muro, que separa locutor e interlocutor que, imersos em línguas, em países e em culturas diversas, acabam incomunicáveis, não conhecendo um ao outro. Apesar de afirmar essa impossibilidade, Caetano repete seis vezes (com ênfase dada pela subida do tom e do volume de voz) apenas o fragmento “show me from behind the wall”, tornando-o um imperativo que ordena ao interlocutor que o veja exibir-se por detrás do muro que os separa.

O transe

“Triste Bahia” é a terceira faixa do disco, na sequência de “You don’t know me” e “Nine of ten”. Trata-se de mais uma colagem, desta vez, toda em língua portuguesa, que tem como base estruturante a incorporação dos quartetos iniciais do soneto de Gregório de Matos. Para análise, dividiremos a letra em partes, começando pela citação direta do poema de que estamos tratando:

Triste Bahia, oh quão dessemelhante

estás e estou do nosso antigo estado

Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado

Rico te vejo eu já, tu a mi abundante

Triste Bahia, oh, quão dessemelhante

a ti tocou-te a máquina mercante

que em tua larga barra tem entrado

a mim vem me trocando e tem trocado

tanto negócio e tanto negociante

Vale lembrar aqui que José Ramos Tinhorão, ao defender o espaço de Gregório de Matos no âmbito da canção popular, argumenta que a maior parte de suas produções pertence a gêneros adequados ao canto (romances, coplas, chansonetas), enquanto apenas a menor parte é de sonetos, menos propensos ao suporte musical. Não deixa de ser interessante que Caetano tenha escolhido justamente um soneto para musicar, o que evidencia ainda mais o trânsito possível entre a poesia escrita e a poesia cantada.

É preciso observar também a inclusão apenas dos quartetos em detrimento dos tercetos. Possivelmente, essa escolha se deu, em primeiro lugar, pela alusão direta à “Triste Bahia” nas duas primeiras estrofes, desvelando o cenário evocado por Caetano Veloso, tornando mais reconhecível a intertextualidade com Gregório e, por fim, explorando a sonoridade das aliterações, assonâncias e jogos de palavras já comentados. Vale ainda notar que os tercetos são mais obscuros em termos de sentido (e mais rebuscados em termos de forma), de modo que dificultariam a transposição para o universo musical.

Na canção, a primeira estrofe do soneto original é pontuada com pequenos suspenses, que tornam os versos bipartidos. Isso é facilitado pela própria composição de Gregório, com sua exclamação e seus espelhamentos (“Triste Bahia!/ oh quão dessemelhante”; “estás, estou/ do nosso antigo estado”; “pobre te vejo a ti/ tu a mim empenhado”; “rico te vejo eu já/ tu a mim abundante”).

Na segunda estrofe, Caetano utiliza a repetição anafórica do primeiro verso como recurso musical e dá sequência ao segundo quarteto do soneto original. Note-se que aqui a pausa que divide os versos no canto é mais discreta, especialmente em versos nos quais a bipartição é menos conveniente (como “que em tua/ larga barra/ tem entrado”), aumentando o número de pausas e tornando-as mais breves, de modo a promover uma maior cadência do fluxo de leitura. O canto aqui soa solene, lamentoso e, sobretudo, maquinal, como a “máquina” de que trata o fragmento.

Esse deslizamento, aliás, é mais uma vez facilitado pela qualidade musical de Gregório de Matos, com sua profusão de aliterações e de assonâncias vocálicas, muitas delas produzidas por paranomásias e, inclusive, por palavras de mesmo radical (“trocando”/ “trocado” e “negócio”/ “negociante”). Vale lembrar que tal virtude é destacada tanto por Tinhorão (para reivindicar o poeta para o âmbito da música popular), como pelos poetas concretos (ao destacarem a potência verbivocovisual de seus poemas), e por Wisnik (que fala sobre a “maquinaria das trocas poéticas”4).

Nos três casos, sublinham-se os traços lúdicos e sonoros do fazer poético, que tornam possível que um poeta do século XVII, de um estilo usualmente rebuscado, seja capaz de ser comunicativo ao ponto de ser incorporado por uma canção popular. Por outro lado, a opção de manter o arcaísmo “mi” no canto (no lugar de “mim”) e a escolha justamente de um soneto são emblemáticas do desejo de gerar a tensão entre o popular e o erudito e, no mesmo passo, o presente e o passado, a tradição e a modernidade.

Devemos também comentar alguns processos do arranjo e da dicção do canto. Veja-se que Caetano Veloso prolonga a primeira sílaba da palavra “triste” em todas as estrofes em que o verso sofre anáfora (mesmo na variante “Triste Recôncavo”). Logo na entrada da canção, um toque de berimbau introduz a sílaba prolongada de “Tris”, a que se segue a emissão mais breve (quase apocopada) da última sílaba em “Bahia” (por sua vez seguida de sons de berimbau e percussão de capoeira). Essa opção estética do canto acaba por emular o tipo de dicção dos cantos afrobrasileiros de fins do século XIX e início do XX, condizente com o canto de capoeira.

Aliás, não deixa de ser sintomático que pela mesma “larga barra” que possibilita o comércio de produtos, também se tenha dado o comércio de escravos. É interessante pensar que o sujeito lírico que fala “a mim vem me trocando e tem trocado”, ao emular a dicção de ascendência africana, acaba por se projetar na voz de um personagem escravizado (ou de um descendente). Desse modo, por meio da intervenção de Caetano Veloso, o poema de um homem branco e racista da elite do século XVII (prejudicado pela emergência da classe mercante), é deslocado de modo a tornar-se o canto de lamento e resistência da população de origem negra, a quem a “máquina mercante” toca e troca diretamente (note-se que Caetano transcreve o poema como “tocou-te” em vez de “trocou-te”), seja no tráfico negreiro do Brasil antigo, seja na exploração do trabalho do Brasil moderno.

Além disso, vale observar como a “máquina mercante” do século XVII, que causava desconfiança do aristocrata Gregório de Matos, é muito diferente da “máquina mercante” do século XX, atualizada na voz de Caetano. O desenvolvimento do capitalismo nos últimos séculos e as relações comerciais que foram se estabelecendo no cenário internacional apontam para outros perigos. Nesse sentido, podemos pensar nas relações de dependência comercial e financeira, nos progressos econômicos que concentram renda em vez de distribuí-la (vale notar o paradoxo entre a Bahia, ao mesmo tempo rica e pobre, na versão de Caetano) e, por fim, no uso ideológico das promessas de desenvolvimento da economia (vale lembrar que, nos anos 1970, a ditadura propagava fartamente o discurso do “milagre brasileiro”).

Por fim, é possível observar como o espelhamento entre o “Eu” e a “Bahia” volta na voz de Caetano Veloso com novos sentidos estéticos e políticos, nos quais se consolida uma representação de país que, desde sua formação, mantém traços ambíguos de atravessamento entre público e privado (registrados de Gregório a Caetano), como também da afirmação de possibilidades vantajosas dessa combinação, especialmente quando no cenário dos anos 1960-1970 a transformação individual é vista como chave da mudança social: o eu transformado torna possível um novo estado de coisas para a Bahia e, por extensão, para o Brasil.

Voltando à canção, o primeiro fragmento a ser colado ao verso anafórico “Triste Bahia...” é o seguinte:

Pastinha já foi à África

Pastinha já foi à África

Pra mostrar capoeira do Brasil

Eu já vivo tão cansado

De viver aqui na Terra

Minha mãe, eu vou pra lua

eu mais minha mulher

Vamos fazer um ranchinho

todo feito de sapé,

Minha mãe, eu vou pra lua

e seja o que Deus quiser

Triste... Oh, quão dessemelhante

Ê, galo cantou

Ê, galo cantou, camará

Ê, cocorocou,

Ê cocorocou, camará

Ê, vamo-nos embora,

Ê vamo-nos embora camará

Ê, pelo mundo afora,

Ê pelo mundo afora camará

Ê, triste Bahia

Ê, triste Bahia, camará

As duas estrofes iniciais não são de autoria de Caetano Veloso, mas cantos de capoeira atribuídos ao domínio público. Em algumas versões, as estrofes formam uma só canção, chamada “Eu vivo enjoado” e, em outras, a estrofe inicial faz parte de outro canto independente, chamado “Pastinha já foi à África”, que conta com uma estrofe anterior, que diz: “ê, cidade de Assunção/ capital do Itamaraty/ somos todos das nações/ dessa cultura do Brasil”.

Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981) foi um importante mestre baiano que viveu em Salvador e foi fundamental para a divulgação da capoeira da Angola, enquanto o também baiano Mestre Bimba (1900-1974) desenvolveu e propagou a capoeira Regional. Os dois mestres foram fundamentais para a difusão, a descriminalização e a conquista de prestígio do jogo de capoeira no Brasil ao longo do século XX. Em 1966, Pastinha foi convidado para fazer parte de uma comitiva à África (que também levava Clementina de Jesus) para participar do Primeiro Festival de Arte Negra, que aconteceu no Senegal.

O canto “Pastinha já foi à África” diz respeito, portanto, a esse processo de divulgação internacional da capoeira. Como se sabe, o tropicalismo, enquanto movimento, sempre desejou reverter o processo de colonização cultural, acreditando que o Brasil é capaz de criar produtos complexos e bem acabados, que podem ser exportados e podem gerar influência no contexto da cultura internacional (ambição essa projetada também nos manifestos de Oswald de Andrade). A incorporação do canto de capoeira (oriundo enquanto forma de resistência da mesma “Triste Bahia” que se apresenta no poema-canção) funciona como exemplo dessa ambição.

Em 1969, o Mestre Patinha lançou um disco com canções de capoeira, cuja segunda faixa é uma sequência de cantos atribuídos ao domínio público (“Eu já vivo enjoado”, “Quebra gereba”, “Dona Maria, o que vende aí” e “Lapinha”). Assim, aparecem em sequência no disco as estrofes de “Pastinha já foi à África” e “Eu já vivo enjoado” (que, na versão de Caetano, aparece como “Eu já vivo tão cansado”). O toque mais lento da capoeira de Angola também é perceptível no arranjo e no canto dessa parte do mosaico.

Aliás, os cantos de domínio público são importantes exemplos da prática coletiva que aparece nas composições para a capoeira, mas também no samba-de-roda da Bahia, no samba na casa das tias baianas do início do século XX, além de aparecerem no substrato de diversos sambas de Dorival Caymmi. A inclusão desses cantos aqui também é uma referência (e uma homenagem) a esses elementos de domínio público e produção coletiva que estão nas bases do desenvolvimento da canção popular brasileira moderna.

Não deixa de ser curioso o fato de que há muitas discussões sobre a questão da autoria na obra atribuída a Gregório de Matos, que não publicou pessoalmente um poema sequer. Seus poemas foram recolhidos e organizados em códices por outras pessoas, gerando inclusive dúvidas sobre as questões de autoria e aventando a hipótese de que muitos dos poemas a ele atribuídos possam ser de outros autores desconhecidos. A possibilidade de ser também a obra de Gregório uma expressão coletiva da Bahia do século XVII aproxima ainda mais o poeta do mosaico de cantos de domínio público que aparecem na composição de Caetano.

Sobre a letra de “Eu já vivo enjoado”, vale notar como a lua é um elemento frequente de cantos de capoeira, funcionando como cenário noturno e clandestino dessa prática a céu aberto. Nesse caso, a lua aparece como possibilidade utópica de saída para o sofrimento vivido na terra, tudo em conformidade com as temáticas típicas do gênero de que estamos tratando. É dado curioso, porém, que a virada dos anos 1960 para os 1970 tenha colocado na ordem do dia a viagem espacial, tema fartamente explorado pelo tropicalismo, o que acaba ecoando aqui também nessa incorporação.

É também estrutural dos cantos de capoeira, momentos de diálogo entre o solista e o coro, introduzidos pelo brado “ê” e completados pelo “camará”, abreviação de “camarada”, que se reporta ao traço coletivo da resistência pela capoeira e que reproduz a suspensão – ou quase – da sílaba final (que há pouco citamos como peculiar à dicção desses cantos afro-brasileiros).

Caetano produz suas próprias variantes desse diálogo, elegendo, na sequência: o canto do galo (que aparece na versão de Pastinha e que marca novamente a prática noturna, dessa vez em seu término no amanhecer), o “vamo-nos embora” (reforçando a necessidade de deixar a “Terra”), o “pelo mundo afora” (que completa a oração anterior, mas altera o seu sentido, evocando a necessidade de levar a capoeira e a cultura brasileira pelo mundo inteiro – além do que, reverbera o contexto de exílio de Caetano e Gil na Europa), e, por fim, o retorno de “Triste Bahia”, fechando o ciclo. A letra segue imediatamente por outros caminhos:

Bandeira branca enfiada em pau forte

Afoxé leî, leî, leô

Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte

O vapor da cachoeira não navega mais no mar

Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante

Maria pegue o mato é hora, arriba a saia e vamo-nos embora

Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai-se embora

Oh, virgem mãe puríssima

Bandeira branca enfiada em pau forte

Trago no peito a estrela do norte

Bandeira branca enfiada em pau forte

Observe-se, em primeiro lugar, que os dois primeiros versos aí citados estão colados, na letra original, à estrofe de conclusão do canto de capoeira, fazendo a transição para um novo ciclo de referências, sempre costuradas por aspectos da dicção (nota-se no áudio as apócopes em “Bandeira bran...” e “não navega mais no ma”), do instrumental (os instrumentos de capoeira e de afoxé) e pelas repetições de alguns versos, como “Triste Bahia...” (e sua variante “Triste Recôncavo”) e “Bandeira branca enfiada em pau forte”. A qualidade da mistura se comprova, sobretudo, pela dificuldade de determinar o que é de Caetano Veloso e o que é citação e, por vezes, que citação pertence a qual origem (ainda que algumas pausas e mudanças melódicas nos levem a suspeitar dos recortes).

“Bandeira branca enfiada em pau forte/ trago no peito a estrela do norte” é um fragmento do “Ponto do guerreiro branco”, evocando aqui as religiões afro-brasileiras que se desenvolveram na Bahia e que influenciaram profundamente o imaginário mítico-musical do samba e da canção brasileira. Vale lembrar que o ponto foi gravado no LP Maria Bethânia, de 1969, dois anos antes da gravação do disco. Mais uma vez, sua autoria é indeterminada, atribuída ao domínio dos “cantos tradicionais” ou do “folclore”, reforçando a relação estabelecida com os cantos de capoeira.

A estrofe original do ponto diz: “oh Deus nos salve essa casa santa/ oh Deus nos salve espada de guerreiro/ bandeira branca enfiada em pau forte/ trago no peito a estrela do norte”. Como se sabe, a prática das religiões afro-brasileiras também foi criminalizada e perseguida, de modo que o uso de uma bandeira branca era uma forma corrente de indicar que em algum lugar havia uma “casa de santo”. Veja-se aqui que a “estrela do norte” trazida no peito, no contexto de incorporação de “Triste Bahia”, marca menos uma filiação a uma entidade, falange ou religião, do que uma filiação a uma cultura, marcada pela presença dessa religiosidade.

Esse universo também se cola à referência aos afoxés no verso “afoxé leî, leî, leô”. O termo dá nome ao ritmo, estritamente relacionado a festejos de religiosidade afro-brasileira, mas também ao instrumento (que junto aos atabaques e aos agogôs compõe a sonoridade do gênero), ao cortejo religioso e aos blocos de carnaval derivados dessa tradição (como é o caso do Afoxé Filhos de Gandhi).

A próxima citação é de um conjunto de temas folclóricos que se ligam tanto à tradição infantil, como ao samba-de-roda da Bahia, como é o caso dos versos “pé dentro, pé fora,/ quem tiver pé pequeno vai embora”. Vale acrescentar que tais cantigas tradicionais são muitas vezes incorporadas inclusive pelos cantos de capoeira. Não é rara, em nenhum desses estilos, a junção de cantos diversos da cultura popular, sequenciados de modo a dificultar, por vezes, a determinação dos limites entre eles. Isso quer dizer que a própria prática da colagem feita por Caetano, que soa como vanguardista, foi inspirada na própria tradição da cultura popular.

“O vapor de cachoeira” é outro exemplo, e faz referência ao antigo navio que ligava Salvador a Santo Amaro desde o século XIX. Nas muitas versões da letra, geralmente aparecem variações de “o vapor de Cachoeira não navega mais no mar/ o vapor de Cachoeira não navega mais no mar/ arriba a prancha, toca o búzio/ nós queremos navegar/ Ai ai ai! Nós queremos navegar”. A cantiga também é de domínio público, marcando mais uma vez um elemento de origem popular e retornando à Bahia (tanto a mítica Bahia da origem do Brasil, como também a Bahia da infância de Caetano Veloso em Santo Amaro).

Essas cantigas são seguidas pelo verso “ó Virgem Mãe puríssima...”, que faz parte do “Hino a Nossa Senhora da Purificação”, que começa com “ó Virgem Mãe puríssima/ dai-nos paz e proteção/ para que possamos chegar/ ao vosso coração” e termina com “sois nossa grande esperança,/ refúgio e consolação/ no perigo e na bonança,/ doce Mãe da Purificação”. Aqui emerge a Bahia católica, cujos cânticos, missas, festas e rituais estão presentes na lírica de Gregório de Matos, mas também perpassam a produção de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Imediatamente a essa citação, retorna o verso do “Ponto do Guerreira Branco”, marcando o dado de sincretismo cultural e religioso que faz parte da formação do Brasil e é tão evidente na Bahia. A aceleração do canto e o aumento do volume dos instrumentos percussivos nos momentos finais da letra aumenta a sensação de aproximação entre todos esses fragmentos de cultura, além de nos conduzir à sugestão do “transe”, que comporta não só a dimensão mítico-brasileira, mas também o misticismo que atravessa toda a produção tropicalista, tensionando sempre suas raízes brasileiras sincréticas e afro-religiosas, com os ideais contraculturais de negação da racionalidade ocidental. A letra de “Triste Bahia” é também uma revelação de um Brasil desconhecido, levado para além dos muros.

Caetano e Gregório

Conforme tentamos demonstrar, Caetano Veloso e Gregório de Matos podem ser relacionados por uma série de componentes históricos, estéticos, políticos e sociais. Podemos aproximá-los em diversos aspectos: a presença de traços barrocos e rebuscados na escrita e no pensamento, o gosto pela contradição e pelo paradoxo, a irreverência e o humor dos versos, a relação estreita com a música, os trânsitos entre o erudito e o popular (e entre a tradição e a inovação), o temperamento polêmico e antropofágico, mas, sobretudo, na argúcia com que registraram em seus versos uma Bahia, a um só tempo, mítica e prosaica, que se oferece como chave de leitura para o Brasil e suas contradições.

Em Transa, de 1972, Caetano acabou nos convidando a refletir sobre todas essas relações. Em 1989, o artista participou do filme Os sermões – a história de Antônio Vieira, de Júlio Bressane, justamente no papel de Gregório de Matos Guerra. Caetano incorporou o personagem para cantar os versos de “Triste Bahia”, em uma cena sugestiva das aproximações aqui investigadas. Anos depois, em 2012, Caetano Veloso lançou o disco Abraçaço e decidiu incluir a canção no repertório do show, reafirmando sua atualidade e sua importância para o projeto estético que o artista vem propondo ao longo dos anos. E evocando, novamente, a importância da obra e da figura de Gregório de Matos para a cultura brasileira.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Oswald. Obras Completas VI – Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeirro: Civilização Brasileira, 1970.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CAMPOS, Augusto de. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do Barroco. São Paulo: Iluminuras, 2011.

ESPÍNOLA, Adriano. O nativismo ambíguo de Gregório de Matos. Revista de Letras da Universidade Federal do Ceará, n. 22, v. 1/2, jan/dez. 2000. Disponível em: http://www.revistadeletras.ufc.br/rl22Art11.pdf

HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Ateliê; Campinas: Unicamp, 2004.

MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Referências discográficas:

PASTINHA, Vicente. Capoeira Angola – Mestre Pastinha e sua academia. Rio de Janeiro: Philips, 1969.

VELOSO, Caetano. Transa. Rio de Janeiro: Polygram, 1972.

Resumo: O objetivo do presente artigo é refletir sobre as relações entre Caetano Veloso e Gregório de Matos, a partir da canção “Triste Bahia” do disco Transa, de 1972. A incorporação do poeta pelo compositor revela importantes questões sobre a representação da Bahia e do Brasil, como também questões estéticas relacionadas à antropofagia de Oswald de Andrade.

Palavras-chave: Caetano Veloso; Gregório de Matos; tropicalismo.

Abstract: The aim of this article is to reflect on the relations between Caetano Veloso and Gregório de Matos, from the song "Triste Bahia". The intertextuality between the composer and the poet reveals important questions about the representation of Bahia and Brazil, but also of aesthetic issues, related to the anthropophagy of Oswald de Andrade.

Keywords: Caetano Veloso; Gregório de Matos; tropicalism.


  1. MATOS, 2010, p. 41-44.

  2. TINHORÃO, 1998, p. 55.

  3. Ibidem.

  4. “Nesse ponto parece estar uma das chaves da sátira gregoriana: diante de um mundo trocado pela troca, Gregório põe em jogo a maquinaria das trocas poéticas, afiadas também nos seus truques, trocadilhos, jogos paranomásticos, em suma, numa série de deslocamentos de significantes e significados”. (WISNIK apud MATOS, 2010, p. 25)