Ficção e crítica: o ensaio crítico exercido por ficcionistas

Vera Lins1

E a experiência do ensaio pede espaço, quer ser deambulação (mas orientada), deriva (mas sem perder o norte), labirinto (com um zênite à vista),

centro que é permanentemente descentrado e a que sempre se regressa.

João Barrento2

A partir da leitura dos ensaios de Mario Faustino sobre poesia, comecei a pensar a relação de ficcionistas, poetas e prosadores3 com o ensaio crítico. E pude ver como seus ensaios são uma crítica aberta, um gênero intranquilo, como diz João Barrento ser o ensaio, pois geralmente não pretendem a crítica exaustiva, que tem a última palavra sobre seu objeto, mas um texto que se move com esse objeto. A inquietude da linguagem, própria da poesia, da ficção, articula um discurso crítico com afinidades com a obra.

Trabalho um texto de Valéry, “Poesia e pensamento abstrato”4, que me parece uma reflexão das mais inteligentes sobre poesia. Neste ensaio, ele lança mão de sua experiência como poeta, teorizando a partir dela. Valéry foi um poeta que se dedicou ao ensaio e os deixou reunidos em quatro volumes, Varietés, em que escreve sobre a literatura com um olhar que perscruta questões e articula um pensamento que interroga. Assim também faz Mario Faustino, em sua coluna no Jornal do Brasil, nos anos 50. No artigo sobre Mallarmé, “Poesia não é brincadeira”5, diz que seus poemas são novas maneiras de ser das palavras e das coisas.

Os ensaios desses poetas se inquietam, como seus objetos. Por exemplo, no seu livro que é um grande ensaio, Degas Dança Desenho, Valéry fala do pintor Degas e se interrompe e lança dúvidas sobre seu próprio discurso: “Aliás nem sei muito bem o que direi mais a frente. É possível que ao falar de Degas eu vagueie um pouco pela dança e pelo desenho”. Contudo não se exime de teorizar: “Mas o desenho de observação de um objeto confere ao olho certo comando alimentado por nossa vontade. Neste caso, devemos querer para ver e essa visão deliberada tem o desenho como fim e como meio simultaneamente”6.

A crítica ensaística não trabalha com a certeza dos conceitos, mas os articula na linguagem com imagens. Um bom exemplo é a imagem da prancha que Valéry usa em “Poesia e pensamento abstrato”, para fazer a diferença entre a linguagem da poesia e a linguagem da comunicação. Compara a linguagem a uma prancha sobre um abismo. Na linguagem da comunicação, passamos rápido sobre ela e nada acontece, mas se ficamos pulando e dançando sobre a prancha, como faz a linguagem poética com as palavras, caímos no abismo. Mas é esse abismo que vai nos trazer outras possibilidades de pensamento. Também o ensaísta, em idas e voltas, não tem que concluir, mas se abismar nas possibilidades do que examina.

Para Walter Benjamin7, a crítica desdobra a reflexão que existe na obra. Com isso não pode ser conclusiva, mas articula um infinito de conexões.

Canetti, em “O ofício do poeta”, diz que este, e aqui fala do escritor em geral, do ficcionista, está mais perto do mundo quando carrega em seu íntimo um caos:

Para dizer algo sobre este mundo que tenha algum valor, o poeta não pode afastá-lo de si ou evitá-lo. Tem de carregá-lo em si enquanto caos, o que é mais do que nunca, a despeito e todas as metas e planejamentos, pois o mundo se move com velocidade crescente em direção à própria destruição, assim, pois, tem de carregá-lo em si e não lustrado e empoado ad usum Delphini, ou seja, do leitor. Contudo não pode se permitir sucumbir ao caos, mas, a partir, justamente da experiência que dele possui, precisa combatê-lo, contrapondo a ele a impetuosidade de sua esperança.8

Temos, em nossa literatura, ficcionistas, poetas, que exercem também crítica de artes plásticas, como nosso primeiro crítico Gonzaga Duque (1866-1911), que escreveu ficção, o romance Mocidade Morta e o volume de contos Horto de Mágoas, além de Arte brasileira, Revoluções brasileiras, Contemporâneos e Graves e frívolos, ensaios críticos. Sua crítica, exercida em jornais e revistas, se aproxima da crônica, mas não se abstém de teorizar. Também cria e rebate polêmicas, pois move seu pensamento, uma atitude irreverente de um intelectual que quer interferir. Tem a intenção de não fazer o que chama de “crítica ensobrecasacada, circunspecta e doutoral”. Por exemplo, para falar do Salão de 1906, inventa um personagem, Policarpo, para acompanhá-lo e começa o artigo com versos de B. Lopes9:

Nessa radiosa manhã de feriado, em que o sol, lembrando um soneto de B. Lopes, parecia:

..........um guizo de ouro, cheio

Da alegria sonora de uma rima...

desci vadiamente para a poeirada da cidade em reconstrução. Caras alegres,

muita gente em casemiras claras, algumas mulheres bonitas. Radioso dia!

Na praça de S. Francisco de Paula encontrei o meu ilustre amigo Policarpo, todo dominical, numa fatiota cinzenta, enfeitando a sua lapela com um ramalhete de hortênsias [...]

E com esse amigo vai ver o Salão, construindo, num diálogo com ele, sua crítica dos quadros expostos.

- Magnífico! Disse.

- Sim, magnífico! Concordei.

Olhamos ambos o catálogo. Tem o número 8e traz a assinatura de Artur Lucas. Conheço muito este nome. Artur Lucas é um belíssimo artista desviado do curso natural de sua tendência por circunstâncias indebeláveis da sorte contrária. Pintor, e pintor por temperamento, fez-se caricaturista, fez-se ilustrador, porque o gênero lhe garantia a subsistência. Mas a sua qualidade nata de colorista, a sua grande vocação para a palheta, ficou latente e, por vezes, rompeu obstáculos de tempo e compromissos para externar em lindos painéis imaginosos, de uma suave fantasia de cores e de formas. [...]

Policarpo na sua terrível incontinência meridional fazia exclamações: Bravo! Bravíssimo!... Este é um artista!...

Já nos anos 60, 70, Murilo Mendes tem um livro de crítica de artes plásticas, A invenção do finito, que, trabalhando fragmentos, fala de pintores, especialmente de artistas italianos com poucas exceções como as brasileiras Mary Vieira e Isabel Pons, Volpi e o venezuelano Soto. Nele também consegue ensaios que são quase poemas em prosa. Como o texto sobre o branco “Texto branco”, em que fala do branco no poema e na tela e na filosofia zen, em fragmentos marcados por um ponto e usando o branco da página10.

Sur le vide papier, que la blancheur défend”, diz Mallarmé.

Construir por exemplo um quadro branco é:

isolar

situar uma parede pura

animar

acender

O branco mistura, separa, elimina. Corrige o temperamento do artista que tende a sobrepor-se à obra de arte.

E não se furta a reflexões sobre os limites do conhecimento, como no texto sobre Fontana, em que fala da filosofia e da ciência. Coloca a situação trágica do homem frente às perguntas sem resposta “Que fazemos nós de resto desde o princípio do tempo, senão formular perguntas a que ninguém responde, a não ser a própria palavra que as articula?”11.

Em textos, como os sobre Turcato, pintor italiano, tenta, mais de uma vez, escrever sobre o pintor, experimentando a forma, o que resulta em três textos. No terceiro, apresenta-o como “O Turcato das linhas livres, linhas sorridentes e graves”.12 Faz o mesmo com Graciliano Ramos nos Retratos-relâmpago13. Um primeiro texto mais discursivo e um segundo que é quase um poema, construído na repetição da palavra “seca”:

GRACILIANO RAMOS

A terra seca. As vidas secas. Os homens secos. Os peitos secos.

A sombra seca. O amor seco. A língua seca.

Os ramos secos de Graciliano Ramos. Os ramos secos de Graciliano Ramos.

A língua seca de Graciliano Ramos

Essa radicalidade da forma da crítica é rara. Voltando a tempos mais recentes, também Sebastião Uchoa Leite se coloca na tradição moderna do poeta crítico, tradição que ele mesmo aponta no texto sobre Octavio Paz, prefácio de Signos em rotação, incluído em Crítica clandestina14. Na crítica do poeta, diz ele, tudo é suspensivo e interrogante, porque este trabalha com a dúvida, a ambigüidade e a contradição, valores próprios da criação poética e valores da crítica moderna pós-romântica. Diz que em Octavio Paz há permanente dúvida metodológica, implícita no próprio mecanismo verbal de sua escrita. Com isso delimita uma crítica, que, na forma do ensaio, segue justamente um método sem método e faz do processo de sua escrita, o lugar em que o pensamento se delineia, articulado na linguagem.

Neste texto, vê em Paz a ideia do mundo como livro, própria do romantismo e que encontra no poeta crítico. Com a consciência de que tudo pode ser lido, Sebastião, em Crítica Clandestina, seu primeiro livro de crítica, depois de Participação da palavra poética, vai falar da música de Satie, de Carpeaux, de poetas menos conhecidos, tanto daqui mesmo, como Marcelo Gama, quanto do exterior, como Morgenstern, e ainda Leopardi, Marianne Moore e Lewis Carrol, que se torna recorrente no outro livro de crítica, Jogos e enganos15.

Participação da palavra poética, seu primeiro livro de crítica, de 196616, faz um percurso da poesia brasileira, culminando nos concretos, e diz que sua intenção foi traçar de cada poeta ou grupo um retrato de suas atuações críticas. Assim, a ideia do poeta crítico já estava presente. Cita Afonso Ávila e Mário Faustino com sua página no Jornal do Brasil. Vê, no entanto, como limites de alguns poetas, alguns poemas com “empostação sentimental”, alguns se salvando pela ironia.

Em Crítica de ouvido17, livro póstumo, o ensaio que o abre – “A poesia e a cidade” – é um exemplo de crítica como propõe Agamben, aquela que garante a inapreensibilidade de seu objeto. Sebastião, em idas e voltas no tempo, associa Baudelaire e Villon a Gregório de Matos, Marcelo Gama, Bandeira, Drummond, Mário e Oswald e ainda aos irmãos Campos, a Elliot, aos expressionistas alemães e a poetas hispanoamericanos, pela forma como aparece a cidade em seus poemas. A liberdade é total, em associações que incluem as artes plásticas e fogem a qualquer linearidade historicista. E a dúvida faz parte da linguagem do ensaio, trazendo questões que ficam como lampejos instigantes. E o poeta ensaísta termina, admitindo a não completude de sua tentativa. Completude, aliás, não é seu objetivo, pois avança como um passante por seu tema. O crítico coloca os limites de sua empreitada:

Como o leitor pode ver, o objetivo dessas notas não é chegar a conclusão alguma, mas apenas expor a viagem de uma visão da cidade como tema poético, bastante complexo, que provavelmente mereceria uma exposição mais detalhada, se este fosse o propósito do autor, que se contenta com os limites taticamente estabelecidos. (p.60)

Temos, hoje, poetas que fazem crítica de artes plásticas como Ronald Polito. Nos seus ensaios, tem a liberdade de com imaginação ir construindo afinidades eletivas entre artistas, estabelecendo um diálogo entre eles ou desfazendo relações imediatas como nos trabalhos de Leonino Leão, “Janela do caos”, que geralmente são relacionados ao poema de Murilo Mendes. Dá ênfase aos problemas pictóricos que levanta. Diz :

Esse caos aqui não é uma ilustração, as obras não se referem a nenhum poema de Murilo Mendes diretamente, elas antes se encarregam de fixar os diversos movimentos quase que corporais de caotização, tentando ordená-la, fixá-la, suspendendo-a momentaneamente ainda que sem impedir seus movimentos.18

Seus ensaios sobre outros artistas, como Luiz Norões e a litografia, e a pintura de Gafi, também estabelecem relações e diálogos com outros artistas e ressaltam suas diferenças dentro do panorama artístico brasileiro19.

Mas, voltando a Mario Faustino, entre 56 e 58, na sua coluna no Jornal do Brasil, cria os “Diálogos de oficina”20, em que dá a forma de diálogo entre dois poetas a uma teorização sobre poesia. Em “Que é poesia”, um deles pergunta: “Nesse caso estaria a linguagem poética mais próxima das artes plásticas e da música, enquanto que a linguagem prosaica seria sui generis, enquanto que artística?” Ao que o outro responde: “É mais ou menos isso”. E discorre. No final um deles se pergunta: “Mas com toda essa digressão não teremos estado apenas a evitar nossa questão primordial ou seja que é poesia?” Ao que o outro responde: “Como queiras” e continua teorizando poesia como “recriação do objeto em palavras” e citando Shelley e Carlyle, mas sem afirmações categóricas definitivas como faria a crítica tradicional. Em outros textos, Mario Faustino, além de tratar de autores como Rimbaud, Emily Dickinson, Whitman, Mallarmé e vários outros, também os traduz.

E sobre tradução, outro ficcionista, agora contemporâneo, J.M. Coetzee tem um artigo sobre as várias traduções de Paul Celan para o inglês, no livro Mecanismos internos21 em que escreve ensaios sobre autores como Sebald, Beckett, Whitman, Musil e outros. Ao falar das traduções de Celan vai comentando sua poesia e as traduções que fez como a de Mandelstam. Envereda pela complexidade da relação do poeta com a língua e termina com a questão da tradução como tarefa infinita.

Outro poeta crítico que se desdobra em crítico-poeta, Ossip Mandelstam, judeu russo, no ensaio, fala sobre Villon, a poesia russa, Scriabin, Dante, numa reflexão que é também sobre seu próprio trabalho. Sua Conversa sobre Dante22 é um contra-comentário ao que chama de “retórica escolar” sobre o poeta. Sua crítica é também uma explosão contra toda tentativa de tornar Dante um clássico. Mandelstam traz Dante como um contemporâneo, faz dele “um companheiro de caminho”, quanto à poesia e quanto às suas relações com as transformações políticas que culminam com sua prisão em 34 e a morte num campo em 38. O ensaio é de 33. Nele vê Dante como um instrumentista da língua, como um regente de orquestra, que explode a sintaxe em danças experimentais. E diz ainda que “o que distingue a poesia da palavra maquinal é que a poesia nos acorda, nos agita no meio da palavra e nos faz lembrar que falar quer dizer estar sempre a caminho”23. Diz ainda: “As metáforas de Dante guardaram até nossos dias o charme das coisas jamais ditas”24.

Teorizado por Lukács, Adorno e outros, o ensaio é uma forma aberta, que mais coloca questões do que as resolve. Exercendo radicalmente a liberdade do ensaio, esses ficcionistas exercem uma crítica que agudiza as questões que as obras nos colocam.

Os ensaios desses escritores mostram que sua liberdade de imaginação constrói textos, em que a inquietude com a linguagem articula um discurso crítico também inquieto, que trabalha com fragmentos e imagens mais do que com conceitos e julgamentos definitivos.

Resumo

O texto examina ensaios críticos de alguns escritores brasileiros e estrangeiros, ficcionistas que se dedicam tanto ao romance, ao conto e à poesia, quanto à crítica literária vendo a mesma inquietude com a linguagem.

Palavras-chave

crítica- ensaio- ficção

Abstract

The text examinates critical essays from some fictionists, brazilian and foreigners, who dedicate themselves also to literary criticism, considering the same disturbance in language.

Keywords

criticism – essay- fiction


  1. Vera Lins é professora titular aposentada, do Departamento de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras da UFRJ.

  2. BARRENTO, João. O gênero intranqüilo, anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010, p.19.

  3. Sobre a relação do poema com a ficção, ver Costa Lima, A ficção e o poema. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

  4. VALÉRY, Paul. Variedades. Organização e introdução por João Alexandre Barbosa, tradução Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1999.

  5. FAUSTINO, Mário. Artesanatos de poesia. Organização Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 159.

  6. VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho. Tradução Cristina Murachco e Célia Euvaldo. SP: Cosac & Naify, 2003, p.69.

  7. BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Tradução, introdução e notas, Marcio Seligmann Silva. SP: Iluminuras,1993.

  8. CANETTI, Elias. A consciência das palavras. Tradução Marcio Suzuki e Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.284.

  9. GONZAGA DUQUE. Contemporâneos. Rio de Janeiro: Tipografia: Benedito de Souza, 1929, p.135.

  10. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.1347.

  11. Id. Ibid., p.1361.

  12. Id. Ibid.,p.1355.

  13. Id. Ibid., p.1235.

  14. LEITE, Sebastião Uchoa. Crítica clandestina. Rio: Taurus,1986.

  15. Id. Jogos e enganos. Rio de Janeiro: UFRJ, Editora 34, 1996.

  16. Id. Participação da palavra poética. Petrópolis: Vozes, 1966.

  17. LEITE, Sebastião Uchoa. Crítica de ouvido.São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

  18. POLITO, Ronald. “Outros objetos, outras geometrias”. http://www.peixe-eletrico.com/single-post/2016/11/28.

  19. Id. “Registros sobre algumas litografias de Luiz Norões”. Sibila: Revista de poesia e crítica literária. HTTP://sibila.com.br/cultura/luiz-norões/12775

    “No caminho de Gafi. ‘Peixe-elétrico: livros e idéias’”. São Paulo, n.4, fev. 2016 (e-revista).

  20. FAUSTINO, Mario. Poesia-experiência. Organização Benedito Nunes. São Paulo: Perspectiva, 1976, p.59.

  21. COETZEE, J.M.. Mecanismos internos. Tradução Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

  22. MANDELSTAM, O. Entretien sur Dante. Genève: La Dogana, 2002.

  23. Id. Ibid., p.32.

  24. Id. Ibid., p.74.