Jean D. Soares1
PUC-Rio
jeandyego@gmail.com
Passagem
Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos, não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os. (BENJAMIN, 2009, N, 1ª, 7)
Ao caminhar pelas passagens diversas de Walter Benjamin, meus olhos (ou essas janelas leitoras de vitrines) distraiam-se e contraiam-se: viam anúncios de uma possível filosofia da linguagem com atenção para alguns processos: desmontagem das letras na linha do texto, remontagem constelativa, recreação pervivente.Como que por um ato de confiança, de fé ou de vontade, propus-me a escrever sobre esses anúncios. Desmontagem das letras na linha do texto – quem sabe não seja esse o trabalho do intérprete. Não se trata, porém de desmontagem como dissecação de um corpo morto cujas partes devem ser descritas e as relações entre as partes determinadas, nem como representação cartesianadas partes em eixos ou os conceitos no sistema; mas de desmontar como uma criança, na sede de encontrar entre os montes de coisas, na vontade de, em retirar os parafusos que apertam o brinquedo, ver-lhes algumas das engrenagens e regozijar-se com isso. Assim, desmontar seria o apreciar das passagens e, no infinito do céu repleto de constelações, dar atenção a uma, remontá-la encontrando nomes para formas. Desmontar para recrear o visado em novos modos de visar, dar pervivência aos retalhos escritos. Desmontar e dar passagem aos conteúdos. Ter passagem ao desmontar. Desmontar ou traduzir. Traduzir é desmontar um a priori histórico.
O que nos coloca diante de uma tarefa infinita, a da recreação. Recrear, ou seja, nomear novamente; criar; distrair; estar em recreio; propor um passeio, um roteiro turístico; mover o balanço contando uma história; mover o balanço da história dando expressão a ideias inexprimíveis; brincar de pique, ou seja, esconder-se, fugir para não perder, para não ser aquele que deve contar os segundos, que passa ao próximo a obrigação de perseguir (e repassar a perseguição); jogar; passar de uma criação a outra; pensar de novo; pavimentar um novo estrato sobre os precedentes; dar novas definições que fazem vacilar as anteriores;pensar no que vem; reviver aquilo que vence na morte;desconhecer o que vem; pensar no que vai; fazer um intervalo; ressignificar. No parque filológico, as recreações seguem infinitas enquanto houver histórias a contar, tempo a correr e acontecimentos a passar. Tudo poderia parecer ficção, se a ficção não se apresentasse como vida. Nesse jogo, nós nos recrearemos com as maneiras de perceber a linguagem no céu do corcundinha. E que Sr. Desajeitado não nos mande lembranças (Cf. ARENDT, H. 2008, p. 171).
Vários sentidos, mão única
POLICLÍNICA
O autor coloca os pensamentos sobre a mesa de mármore do café. Longa meditação: aproveita o tempo em que o vidro – a lente com a qual examina o doente – ainda não está na sua frente. Depois, vai retirando os seus instrumentos: caneta, lápis e cachimbo. A multidão de frequentadores, disposta em anfiteatro, constitui seu público clínico. O café, servido por uma mão solícita e assim saboreado, submete o pensamento aos efeitos do clorofórmio. Aquilo em que pensa tem tanto a ver com a coisa em si como o sonho narcotizado com a intervenção cirúrgica. Fazem-se incisões nas cuidadas linhas da caligrafia, o operador desloca acentos no seu interior, cauteriza as protuberâncias verbais e insere, como se fosse uma costela de prata, uma palavra estrangeira. Por fim, cose tudo com os pontos finos da pontuação e paga ao criado, seu assistente, em numerário. (BENJAMIN, 2004, p. 53)
“Policlínica”: anúncio ou imagem de um lugar (do pensamento) no qual problemas diversos são tratados para a resolução temporária da doença ou para, no enigma da não resolução, procurar outras vias possíveis de tratamento em meio à pluralidade de possibilidades. Já o título dessa recreação2 de Benjamin calha por tratar de seu próprio modo de pensar. Porém, na primeira frase, um desvio: o autor, esse personagem-autor e autor-apresentado3, coloca os pensamentos em uma mesa de mármore – a mesa do café. Nela se torna possível parar para depositar os pensamentos, meditar.4 Meditar com tempo e sem a presença do doente, de maneira autônoma, e sem vidro, sem óculos com os quais examina o doente. O doente aparece como aquele que potencialmente pode surgir ao pensamento – com uma questão, um problema, algo a se ver, uma imagem que aparecerá pela lente e, por hora, não se faz presente neste estado meditativo: os pensamentos sobre a mesa, o autor à mesa, uma mesa para o café.
Depois da meditação, é tempo de preparação. Com os instrumentos dispostos, surge a multidão de frequentadores. Junto ao vidro, à lente, ou se quisermos, aos óculos estão caneta, lápis e cachimbo. Os frequentadores da policlínica dispõem-se em um anfiteatro. Benjamim apresenta a relação dele com os problemas, os autores, com as questões tratadas através das ferramentas do autor-clínico, com suas ferramentas – é no anfiteatro que o filósofo, nascido na ágora, lida com os doentes (o público) e as doenças (as questões) que ele se dispôs a tratar. O autor-filósofo e o jogo, o drama: spiel. Dentre as ferramentas, uma delas chama nossa atenção: o café que “submete os pensamentos aos efeitos do clorofórmio”, ou, o café que anestesia o pensamento e, com a morte da intenção (Cf. BENJAMIN, 2011a. p. 24) desencadeada por sua ingestão, o põe em um estado no qual é possível saborear ou, se quisermos: apresentar a relação entre conteúdos de verdade e conteúdos materiais. Sob os efeitos cloroformáticos ou anestésicos do café, o autor pode pensar em algo que “tem tanto a ver com a coisa em si [uma ideia] como o sonho do narcotizado com a intervenção cirúrgica” (BENJAMIN, 2004a, p. 53). A intervenção cirúrgica, ou seja, a escritatenta exprimir o sem-expressão: “fazem-se incisões nas cuidadas linhas da caligrafia, o operador desloca acentos no seu interior, cauteriza as protuberâncias verbais e insere, como se fosse uma costela de prata, uma palavra estrangeira” (BENJAMIN, 2004a, p. 53). A escrita busca apresentar as ideias presentes naquilo que o conteúdo histórico/material carrega consigo: essas doenças, essas questões, os pensamentos postos sobre a mesa de um café. O autor- médico intervém: linhas, pontos, cauterizações, deslocamentos através dos quais se dá a escrita, intervenção cirúrgica na anatomia do pensamento. Se não cura de vez, cura os pensamentos parcialmente – os faz passar pelo processo de secagem, de depuração, de tratamento. Por fim, o numerário que paga ao assistente – uma gorjeta – ilustra o sair breve da policlínica, o teatro cirúrgico no palco do pensamento.
Benjamin mergulha na vida cotidiana com novas vias para pensar – com novas passagens. “Policlínica” é exemplar recreação disto. O que antes possuía um sentido único prolifera sentidos, contamina a univocidade asséptica do sentido de uma placa hospitalar que exibia o significante agora ressignificado. Recreação que é também uma imagem de si próprio como autor-filósofo, enquanto um personagem-autor sentado à “mesa de mármore do café”, um autor-apresentado na imanência de escrever desmontando suas práticas nas linhas da escrita. Uma autoimagem do pensamento que não é só uma imagem de si, mas de como se pode recrear, como responder às solicitações do momento através de uma linguagem imediata, presente, cuja eficácia se percebe pela a alternância entre a ação e a escrita – entre o gesto de cura do autor- médico e a escrita acurada do autor-filósofo. Com isso, ele combina a intervenção em seu presente com um estilo intempestivo. Recreação que sabe onde injetar óleo e conhece bem os melindres das palavras. Ela sabe como nomear ou abastecer o mundo com nomes a serviço das ideias, a serviço das intervenções cirúrgicas – movimentos que se podem fazer quando se conhece bem cada junta, cada dobra da linguagem.5 Na “Policlínica”, a linguagem surge como tratamento das superfícies da história e das ideias nesta figura do autor – o corpo que escreve, o corpo que pensa.
O Prólogo
“Etimologicamente, alegoria deriva de allos, outro, e agoreuein, falar na ágora, usar uma linguagem pública. Falar alegoricamente significa, pelo uso de uma linguagem literal, acessível a todos, remeter a outro nível de significação: dizer uma coisa para significar outra.”
ROUANET, Apresentação, IN: Origem do drama barroco alemão, 1984, p. 37.
Prólogo: um termo herdado da tragédia grega para designar o momento que antecede a entrada do coro e da orquestra, a hora da apresentação. Prólogo: o discurso que antecede, estando já dentro do que virá. Não estando no interior, está por todas as suas partes. Seus enunciados retornam, porque traziam núcleos do que estaria por vir. O prólogo é o discurso que apresenta o discurso por vir, a ser relembrado na duração dos atos consequentes, em cada momento da trama. No entanto, é um fragmento, um simples fragmento.
Benjamin inicia Origem do drama trágico alemão com um prólogo. Um prólogo lógico-epistemológico, um ensaio “que só a pressa com que teve de ser escrito denunciará como algo prematuro, já que o amadurecimento exigiria um aprofundamento que ocuparia anos ou decênios”, como ele sugere em carta a Gershom Scholem6. No entanto, ele continua em outra carta, “esta introdução é de uma ousadia desmedida – nada mais nada menos do que prolegômenos a uma teoria do conhecimento, qualquer coisa como um segundo estádio do anterior trabalho sobre a linguagem (...) agora remodelado no sentido de uma doutrina das ideias”7. Um anúncio das pesquisas por vir, que se presentifica durante o livro sobre o Trauerspiel8,e se torna um marco referencial sobre os procedimentos do autor. É evidente que Benjamin demoraria a escrever um prólogo que o satisfizesse por completo – é duvidoso dizer que um escritor se satisfaz completamente com o resultado de sua escrita –, mas enquanto fragmento possível, um segundo estágio, o prólogo recria as possibilidades de apresentação do pretendido pelo alemão.
Antes de mais, o prólogo contempla e sugere a contemplação de ideias. Nele, a estrutura de interpretação imanente aparece: desvio benjaminiano que nos propõe estar com, ou melhor, nas coisas para pensá-las. Não há método, não há intenção, nem objetos, há um mar de singularidades por nomear designadas pela linguagem – via de apresentação das ideias. No prólogo, há uma interiorização, dispersa, descontínua, da arte de encontrar ideias. Essa apresentação do método contemplativo – do mosaico de ideias – é já um grande mosaico. De saída, algo que nos chama a atenção é a fluidez com que se misturam forma e conteúdo, gesto de escrever o que se pensa e de fazer jus ao conteúdo pensado pela escrita. A todo tempo, há uma mão que gira o mosaico e “recreia” o modo como as ideias sobre a ideia, a origem, a linguagem, a apresentação entre várias outras se combinam. A mão que escreve e gira, imerge o leitor na experiência de escrita e pensamento de Benjamin: faz com que ele pare a cada frase e contemple, pense várias vezes, aprecie a arte de pensar em cada frase: “o próprio da escrita é, a cada frase, parar para recomeçar”; a escrita “só está segura de si quando obriga o leitor a deter-se em ‘estações’ para refletir”, entre outros tantos exemplos de imersão do conteúdo na forma9. Com isso, ele cria estações de serviço nas quais “só esta linguagem imediata se mostra capaz de responder ativamente às solicitações do momento” (BENJAMIN, 2004a, p. 9). Esta é a prática da forma condicional de Benjamin para que a filosofia conserve a lei de sua forma como apresentação da verdade. Seu método é o de apresentação das ideias, em caminho indireto, em desvio (Cf. BENJAMIN, 2011b, p. 16; BENJAMIN, 1984, p. 50). No desvio, mantém-se uma relação imanente com os fenômenos – não é nem relação direta, reta e descritiva, nem relação indireta, curvilínea, plenamente parabólica – é um deslizar entre imagens, entre composições, entre pensamentos, uma forma composta, de retas e curvas, um fragmento. Assim, o ensaio se mostra como um mosaico de ideias, caleidoscópio que em giros desviantes não induz, nem deduz – arrisca-se a apresentar o que é contemplação. A verdade resultante daí não o seria a partir de processos premeditados, porque estes a congelam, retiram-na do fluxo do pensamento. Por isso, parar e recomeçar. O leitor sente a inércia da leitura em fricção com a escrita: ele deve recomeçar; recomeçar para recrear as relações com o pensamento; recomeçar ainda uma vez e se desviar de uma imagem congelada; desviar-se pelo devir entre imagens de pensamento, inintecionado, imergido na experiência contemplativa das ideias e, em sequência, se preciso for, continuar a escrever. Nesse sentido, compreende-se porque escrever a verdade talvez seja, cito-o, “injetar algumas gotas em rebites e juntas escondidos que têm de se conhecer bem” (BENJAMIN, 2004a, p. 9), ou desencadear uma “relação harmoniosa entre a música dessas essências” (BENJAMIN, 2011b, p. 26). O ensaio possui uma incompletude fluída nos fragmentos, dispostos em conformidade com a apresentação da verdade. Mosaico no caleidoscópio, o pensamento flui, dispõe na superfície “da mesa de mármore do café” elementos heterogêneos, configura imagens, escreve.
Com frequência, pontos culminantes das argumentações de Benjamin são imagens: mosaico, mônada, constelação, rua de sentido único, adão nomeador primevo, anjo da história. Elas exigem uma abstração radical que pressupõe familiaridade, algum reservatório de sentidos suscitado pelas imagens e capacidade de desviar-se com elas. A leitura que Benjamin faz de Platão no prólogo exemplifica esse processo. Cito o trecho intitulado Beleza Filosófica:
O documento mais significativo a este respeito é, sobretudo O Banquete,que contém duas afirmações decisivas neste contexto. Aí, a verdade – o reino das ideias – é ilustrada como conteúdo essencial da beleza. Aí, a verdade é declarada bela. A compreensão deste ponto de vista platônico sobre a relação entre verdade e beleza é, não só um propósito fundamental de toda a filosofia da arte, mas também um pressuposto insubstituível para a determinação do conceito de verdade. (...)As duas afirmações referidas são talvez o domínio em que melhor se evidencia o modo de ser das ideias. A segunda dessas afirmações merece um comentário mais preciso. A tese de que a verdade é bela deve ser compreendida no contexto d’O Banquete em que se descrevem os vários graus de desejo erótico. Eros – é este o sentido dessas passagens do diálogo – não trai seu impulso originário ao orientar o seu desejo no sentido da verdade, pois também a verdade é bela. E o é, não tanto em si, mas para Eros. Afinal, a mesma relação determina o amor humano: o ser humano é belo para aquele que ama, e não em si. (...) O mesmo se passa com a verdade: ela não é bela em si, mas para aquele que a busca. (BENJAMIN, 2011b, p. 19)
A imagem benjaminiana de Platão propõe uma releitura que exige uma imagem familiar do que seja a ideia. No início do trecho supracitado, ele salienta que em O Banquete “a verdade – o reino das ideias – é ilustrada como conteúdo essencial daverdade.” Porém a relação entre ideia e verdade foi desviada de seu fim ontológico de hierarquizar as imagens (Cf. PLATÃO, 2006, Livro X) para encontrar nova relação em um estrato estético: lá onde a verdade é bela. Benjamin se desvia da discussão tradicional que tende a contrapor verdade e falsidade sob um crivo meramente ontológico estabelecido por analogia com um reino de ideias – em sua interpretação da doutrina das ideias, não há verdade ou beleza em si, mas sim para aqueles que as buscam. O desvio surge em imagens:
Mas este conteúdo [do belo] não se revela no desvelamento, manifesta-se antes num processo que, para usar uma outra expressão metafórica, poderia ser visto como o momento em que se incendeia o invólucro que entra no círculo das ideias, como o incêndio da obra, no qual a sua forma alcança o máximo de intensidade luminosa. (BENJAMIN, 2011b, p. 20)
É como ver um arco-íris, belo, dado à contemplação, mas que só alcançamo-lo através do olhar imerso no momento em que os nossos olhos se orientaram em sua busca. As imagens conclusivas de Benjamin solicitam busca.
Ao deslizar entre imagens, Benjamin sugere que a busca pela ideia é a tarefa do filósofo e “se a tarefa do filósofo é a de se exercitar no esboço descritivo do mundo das ideias, de tal modo que o mundo empírico é absorvido naquele e nele se dissolve, então ele ocupa um lugar elevado de mediador entre o cientista e o artista.”(BENJAMIN, 2011b, p. 20). Benjamin avança aqui no sentido de retirar as ideias de um plano divorciado das coisas. Se o empírico é absorvido e dissolvido no mundo das ideias por um lado, promovendo extinção da mera empiria (ligação entre cientista e filósofo); por outro lado, cabe ao filósofo descrever, apresentar, dar forma às ideias (o que o liga ao artista). A tarefa do filósofo é de uma remontagem constelativa: lança nas linhas, os trechos, as passagens sobre as estrelas – as constelações. “As ideias relacionam-se com as coisas como as constelações com as estrelas.”(BENJAMIN, 2011b, p. 22) A materialidade das últimas existe, interage e se apresenta nas formas que as primeiras encontram. As ideias são como as normas mais gerais da língua: uma sintaxe que o processo de nomeação põe em curso de apresentação e uso. Daí dizer que as ideias são as interpretações objetivas dos fenômenos.10São as maneiras que encontramos de falar do que se nos aparece, mas não são aquilo que se nos aparece. Uma ideia é uma unidade simples, autônoma, universal existente em cada singularidade.
O que nos interessa aqui é o deslocamento da ideia de sua significação usual. Se até então, o reino das ideias era puramente formal, ao reler Platão através de Leibniz, Benjamin parece recrear a relação entre ideias e coisas. No parágrafo sobre monadologia, ele repete por três vezes como um ritornelo: “A ideia é uma mônada” (Cf. BENJAMIN, 2011b, p. 35). Enquanto substância simples, sem partes, átomo sem “pontos de janelas pelos quais alguma coisa possa aí entrar ou sair” (LEIBNIZ, 2012, §7), uma mônada é unidade inalterável pelas criaturas, presente em todas as substâncias compostas, ou seja, dotada de extensão. Porém, por não ter aberturas, a mônada torna-se impenetrável, inextensa. Benjamin percebe a semelhança entre essa leitura da unidade e a ideia – à maneira de Platão, Leibniz postula algo que não é o fenômeno, por sua inextensão, mas está presente no extenso, já dado e inintencional. Porém, à diferença dos dois, Benjamin parece engendrar na ideia predicados linguísticos: “a ideia é da ordem da linguagem, mais precisamente, na essência da palavra, aquele momento em que esta é símbolo” (BENJAMIN, 2011b, p. 24-25). A ideia enquanto palavra. Palavras- símbolos são vias de apresentação das ideias. Benjamin insiste em demarcar a distância entre a ideia e o fenômeno. A inintencionalidade da ideia a deixa livre de toda fenomenalidade. A verdade da ideia pode aparecer no ser do nome, o único livre de toda fenomenalidade, livre de intenção, determina o modo como são dadas as ideias, não em uma língua primordial – na qual repousaria a essência das coisas –, mas na percepção primordial – na maneira de perceber de Adão. Adão nomeador primevo não precisava comunicar, não tinha a intenção de comunicar. Adão é o personagem filosófico por excelência de Benjamin. A tarefa do filósofo é restituir a representação do caráter simbólico da palavra, sua percepção primordial: nem empírica, nem comunicativa. O ato de (re)nomeação ou de recreação quer reconstituir a percepção original das palavras – gesto de contemplação filosófica do ser do nome, maneira adâmica de falar das coisas.
Este é um dos problemas mais interessantes ao qual Benjamin dá um tratamento inusitado: o problema da origem. “A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho” (BENJAMIN, 2011b, p. 34), quer dizer, emerge do processo, do centro de algo que gira, proporcionando a possibilidade de restaurar e reconstituir o que já se foi e de salientar a incompletude e o inacabamento do por vir. A origem não é gênese, não é marco factual na linha do tempo que determina ruptura. Pensar a origem requer desviar- se. Um redemoinho no fluxo do devir diz de um processo de devir e desaparecer, de escavar. Escavar é fazer desaparecer a superfície primeira e a renomeação/recreação deste estrato em busca de outros estratos: é um redemoinho que se movimenta com liberdade entre estratos, criando ligações entre coisas temporalmente impossíveis de serem conectadas do ponto de vista da gênese. Giros de caleidoscópio: eclosão de formas em seus pontos de origem, as ideias em mosaicos. Não há um retorno à gênese, porque qualquer retorno é fragmentado, inacabado, incompleto, pré-histórico. Benjamin é um arqueólogo diferente que busca nos fragmentos maneiras de recrear as possibilidades de ler e pensar a nossa relação com a história. Então, o que permite salvar os fenômenos e apresentar as ideias é a combinação entre a-histórico e histórico. Segundo Rouanet, “a forma é histórica na medida em que se origina, mas a-histórica quando vista em sua estrutura” (BENJAMIN, 1984, p. 20). Na origem, há um evento primordial, histórico não linear, fragmentado, no qual se originam formas – percepções primordiais – que do ponto de vista da estrutura, das possibilidades de combinação entre mônadas, é a-histórico. Salvam-se os fenômenos porque recebem uma interpretação objetiva na história através da forma a-histórica que as ideias ganham.
A incansável tarefa do filósofo é esta de renomear, recrear: ao vislumbrar essa estrutura, cria novas formas de apresentação; tenta apresentar as percepções primordiais; busca o inexprimível guardado no interior da mônada, através dos compostos que as exprimem, que as tornam extensas. A tarefa do filósofo é a de tentar traduzir a linguagem geral do mundo para a linguagem dos homens. Benjamin, neste prólogo, através das estrelas, das constelações, das histórias de Platão, Adão ou Leibniz, dos redemoinhos, das mônadas, buscava alegorias para falar de outras ideias e coisas. Ele agia de maneira a significar o que apresentava; e apresentava a maneira como agiria; tentava traduzir ali as formas de seu modo de fazer filosofia, através do fazer, da prática dessas formas. Uma constelação sobre constelações, os núcleos, as mônadas de um spiel.
Recrear, perviver
Assim,poder-se-ia falar de uma vida ou de um instante inesquecível, mesmo que todos os homens o tivessem esquecido. Pois se sua essência exigisse não serem esquecidos, aquele predicado não conteria nada de falso, apenas uma exigência à qual os homens não correspondem e, ao mesmo tempo, também a referência a uma esfera, na qual essa exigência fosse correspondida: a uma rememoração de Deus. (BENJAMIN, 2011a, p. 103)
Não há como evitar. Todas as dobras do pensamento de Benjamin sobre a linguagem acabam por esbarrar em uma mônada, sem janelas e nem portas: a língua maior, a pura língua, a língua paradisíaca (Cf. BENJAMIN, 2011a, p.49-73; p. 101-119). Se a tarefa do filósofo é a de traduzir essa língua maior, essa língua paradisíaca, essa tarefa está fadada ao insucesso. O ato de nomear/traduzir o mundo será sempre casto, parcial, incompleto, fragmentário.
O pecado original é a hora de nascimento da palavra humana,aquela em que o nome não vivia mais intacto, aquela palavra que abandonou a língua que nomeia, a língua que conhece, pode-se dizer: abandonou a sua própria magia, de certo modo, a partir do exterior. A palavra deve comunicar alguma coisa (afora si mesma). Esse é realmente o pecado original do espírito linguístico.(BENJAMIN, 2011a, p. 67)
Ao mesmo tempo em que salienta a incompletude de qualquer gesto nomeador humano por se submeter ao dever de comunicar, por sua incapacidade de ser infinita em si mesmo, por ter perdido a magia interior e paradisíaca do gesto nomeador adâmico, Benjamin persiste nomeante. Nestes tempos em que a magia da palavra se esvai em seu estado pós-paradisíaco, a língua não deixa de ser meio sem fim determinado, não deixa de guardar recordações e de, em seu interior, impelir o autor a escrever. “A essência linguística do homem está no fato de ele nomear as coisas” (BENJAMIN, 2011a, p. 55 [grifos do autor]). Por mais que o autor não seja capaz de curar todas as doenças, na policlínica, os pensamentos são submetidos a instrumentos capazes de produzir a escrita, a tradução das ideias, a sua apresentação. Nomear, recriar, traduzir,recrear – infinitivos nas mãos finitas, nas palavras finitas que devem comunicar, devem tentar comunicar a infinitude do original.
Nada impede de falar de uma vida, de um instante inesquecível, mesmo que todos os homens os tivessem esquecido – ainda que não se esteja à altura dessa tarefa. Pois buscar os nomes, as ideias originais, por mais que não correspondam ao tamanho da tarefa, dão-lhe maior pervivência, fazem com que as formas “originais” fabricadas pelos homens busquem rememorar uma esfera perdida. O tradutor, no entanto, por mais que busque não ter intenções, está sempre à sombra do original. No caso mais limítrofe, à sombra de uma totalidade, de um deus, de uma língua pura que seja capaz de dizer tudo a si mesma sem extensão, o tradutor deriva, registra temporalmente, aquilo que é intemporal. O tradutor é incapaz de abrir as mônadas, os nomes, porque são simples e fechados. O que ele busca é apresentar uma constelação transparente – reúne os cacos do vaso, que, depois de quebrado, nunca será mais o mesmo. Os cacos, esses fragmentos, reunidos em outra língua criam uma nova maneira de apresentar o original. “A tradução deve (...) conformar-se amorosamente, e nos mínimos detalhes, em sua própria língua, ao modo de visar do original, fazendo com que ambos sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um vaso” (Cf. BENJAMIN, 2011a, p.115). Benjamin – um arqueólogo diferente – entre os cacos, entre as línguas, ao olhar para o passado, busca a vida mais abrangente entre os vestígios, utilizando-os para tentar traduzir a linguagem geral do mundo (BENJAMIN, 2011a, p. 55). A importância da traduzibilidade é a de fazer essa ponte entre o original e tradução. Quanto mais elevada a qualidade do primeiro tanto mais permanecerá traduzível, maior a sua traduzibilidade e mais estimulante à construção dessas pontes (Cf. BENJAMIN, 2011a, p.118).
A cada nova tentativa de tradução, o original pervive: esgota e renova suas tendências, modifica-se em certa medida, matura e aproxima-se cada vez mais da língua maior, da língua paradisíaca. Redenção benjaminiana do tradutor ou do filósofo – o homem vivo fadado a morrer, apartado do mundo mítico, insiste em escrever de novo, nomear, recrear as palavras, as ideias, a história e a vida. “A tarefa do tradutor é redimir, na própria, a pura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação.”(BENJAMIN, 2011a, p. 117).
Ações finais
Assim, ao percorrermos algumas recreações de Walter Benjamin, imagens ressignificadoras do que é, vemos convergir tarefas aparentemente distintas. As tarefas do filósofo e do tradutor convergem na direção de um amplo pensamento sobre a linguagem. Nas palavras de Rua de Mão Única, eles se misturam nas três etapas cruciais para o escritor, a saber, o pensamento, o estilo e a escrita, imbricados na tarefa de recrear, cito-o: “O pensamento mata a inspiração, o estilo aprisiona o pensamento, a escrita recompensa o estilo.” (BENJAMIN, 2004a, p. 28). A linguagem belicosa faz lembrar as últimas cenas de um filme de faroeste, potencialmente protagonizado por qualquer uma dessas duas personagens, o filósofo ou o tradutor. Como num recreio, a fantasia ressignifica a linguagem e transforma as ações em metáforas agora úteis para pensar, mas não só. Pois pensar implica afastar a inspiração, mas ainda aí é preciso conter a velocidade dos pensamentos. Isso se faz através de um estilo, de um jeito de manusear, como o médico da policlínica que manipula os pensamentos na mesa do café. Com isso, o pensamento é aprisionado, isto é, deixa de desaparecer e se restringe a uma cela, isto é, a um modo de estar graças aos limites de uma vivência particular. Por fim, a escrita, quase que como o delegado dessa saga, recompensa o estilo, fornecendo o estrato da aventura que é traduzir e filosofar.
Referências Bibliográficas
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BENJAMIN, Walter.Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Ernani Chaves e Susana Kampf Lages. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2011a.
––––––. Origem do Drama Barroco Alemão. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
––––––. Imagens de Pensamento. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004a.
––––––. Origem do Drama Trágico Alemão. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004b.
––––––. Origem do Drama Trágico Alemão. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2011b.
––––––. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
––––––. Rua de sentido único; Infância berlinense: 1900. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
––––––. Rua de sentido único. Trad. Isabel de Almeida e Sousa. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.
DAMIÃO, Carla. Sobre o Declínio da sinceridade. São Paulo: Loyola, 2006.
LEIBNIZ, G. W. Monadologia. Ed. Nolen [1881]. Versão disponível em <http://fr.wikisource.org/wiki/Monadologie/%C3%89dition_Nolen_1881> retirada em 19 de junho de 2012.
MOLDER, Maria Filomena. O químico e o alquimista: Benjamin leitor de Baudelaire. Lisboa: Relógio d’Água, 2011.
MOTA, Virgínia. Um caso fotográfico. Cadernos Benjaminianos, n. 9. Belo Horizonte: UFMG, 2015.
MURICY, Kátia. Alegorias da dialética. Rio de janeiro: Relume Dumará, 1999.
PLATÃO. A República. Trad. Jacob Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.
Resumo: Através de uma montagem experimental, esse texto elabora imagens em torno do pensamento de Walter Benjamin fazendo convergir duas figuras: a do filósofo e a do tradutor. A sugestão de trabalhar a partir de “recreações” governa tal experimento: as recreações constituem uma maneira estimulante de expor o caráter simultaneamente livre e ressignificante das imagens benjaminianas mobilizadas aqui. Assim, visitamos alguns fragmentos do autor com o intuito de compreender a tarefa do filósofo e do tradutor como convergentes graças a essas recreações. Tornaremos isso notório em trechos pouco conhecidos de Rua de mão única, em casos mais conhecidos como o prólogo de Origem do drama trágico alemão e “A tarefa do tradutor”. É de se salientar a metodologia desviante do academicamente canônico, de modo a lidar com um autor cujos procedimentos heterodoxos foram inovadores para o pensamento filosófico, literário e artístico do século XX.
Palavras-Chave: Tradução; Filosofia; Linguagem e Recreação
Abstract: Through an experimental montage, this text elaborates images on Walter Benjamin’s thought to converge two figures: the philosopher and the translator. The suggestion of working by “recreations” governs such experiment: they create a good way to show the ressignifiant and free characterists of benjaminian images. So, we visit some fragments of this author with the intention to comprehend the task of philosopher and translator as convergents thanks to those recreations. It becomes notorious in few known quotes of One-way street, in known cases as the prologue of Origin of German Tragic Drama and “The Task of Translator”. We assume a deviant methodology from the academic canon to deal with an author which heterodoxus procedures are inovators to philosophical, literary and artistic thought on Twentieth century.
Keywords: Translation; Philosophy; Language and Recreation.
Recebido em: 23/6/2018
Aceito em: 10/3/2019
1 Jean D. Soares é doutor e mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, graduou-se na mesma área pela Universidade Federal de Ouro Preto. Atua nas áreas de história da filosofia, filosofia da linguagem, da ciência, da ficção e literatura, em retórica e em estética. Desenvolve projetos em filosofia da educação e práticas de convivência.↩
2 Procedimento comum da maneira de escrever de Benjamin, o que apresento aqui como ‘recreação’ é um ato ou efeito de recrear na linguagem, como se pode entrever na passagem anterior. Poderia chamar o trecho de parábola ou alegoria, no entanto, ‘recreação’ justifica-se por ser já uma maneira alegórica de propor uma relação com o texto de Benjamin, cuja atitude solicita parentesco com a do autor.↩
3 Personagem-autor pela razão simples de ser o sujeito da frase que inicia a recreação. Autor-apresentado porque, como defenderemos nesta primeira parte, a partir de “Policlínica” é possível falar de uma autoimagem do pensamento de Benjamin, uma apresentação de seu próprio modo de apresentar. Ressalta- se a diferença, crucial para muitos intérpretes (DAMIÃO, 2006; MOTA, 2015), entre a questão do declínio da autobiografia, referente à vivência do escritor e, o que salientamos aqui, isto é, a problematização do lugar e da imagem do autor.↩
4 Cf. outra tradução portuguesa do mesmo livro: BENJAMIN, W. Rua de sentido único. Trad. Isabel de Almeida e Sousa. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.↩
5 Cf. também “Estação de Serviço” (BENJAMIN, 2004a, p.9).↩
6 Carta de Benjamin a Scholem datada de 13 de junho de 1924 (BENJAMIN, 2011a, p. 283).↩
7 Carta de Benjamin a Scholem datada de 19 de fevereiro de 1925 (BENJAMIN, 2011a, p. 289). João Barrento acrescentou em colchetes o nome do texto ao qual Benjamin se refere [“Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”] no corpo da tradução.↩
8 Drama barroco, drama trágico ou drama lutuoso são as traduções correntes do termo quando usado por Benjamin. Como “uma costela de prata”, insiro o vernáculo em alemão, como fazem, por exemplo, MURICY, 1999; e MOLDER, 2011.↩
9 Ambos os trechos de BENJAMIN, 2011b, p. 17.↩
10 Cf. BENJAMIN, 2011b, p. 22, 23 e 36. Benjamin desvia-se nessa formulação ao longo do prólogo, apesar de não renegá-la. Na página 22, ele estabelece uma relação mais direta entre ideia e fenômeno: “as ideias [em relação ao fenômeno] são antes a sua disposição virtual objetiva, são a sua interpretação objetiva.” Na página 23, ele desvia-se da primeira definição da relação, ensaiando a troca de fenômeno por elementos dos fenômenos: “é a ideia, enquanto interpretação objetiva dos fenômenos – ou melhor, dos seus elementos – a determinar as formas da sua inteiração recíproca.” Por fim, na página 36, há uma última redefinição: “a ideia é uma mônada – nela repousa, preestabelecida, a representação [representation] dos fenômenos como sua interpretação objetiva.”↩