O ANTIGO E O MODERNO NA OBRA NO GALPÃO, DE DARCY AZAMBUJA

Lucas Soboleswki Flores1
Universidade de Caxias do Sul
lsflores1@ucs.br

Salete Rosa Pezzi dos Santos2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
srpsanto@ucs.br

Introdução

O estudo de obras literárias remete a questões do uso da ficção para revelar relações que se estabelecem no imaginário de pessoas cujos vínculos aludem a um paradoxo entre o passado e o presente, entre o antigo e o contemporâneo. A literatura pode ser uma fonte para a investigação de culturas espacialmente situadas, bem como as práticas culturais locais, que surgem à luz da subjetividade do autor (sua liberdade de fabular) e de critérios culturais do local.
Este artigo, portanto, tem como tema o estudo de contos de Darcy Azambuja, presentes na obra No galpão (1955).

Azambuja e os aspectos regionalistas na obra No galpão

Nascido em Encruzilhada do Sul, RS, em 26 de agosto de 1903, o escritor Darcy Azambuja foi membro da Academia Brasileira de Letras, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico.
Apesar do êxito alcançado como escritor já em seu primeiro livro publicado, Azambuja deixou essa carreira um pouco de lado para se dedicar ao Direito e ocupar cargos públicos do Estado. Além disso, também foi pesquisador e professor universitário, tendo publicado diversos livros acadêmicos na área do Direito. O escritor faleceu em 14 de março de 1970, na cidade de Porto Alegre, aos 67 anos.
No galpão foi a primeira obra literária escrita por Azambuja, em 1925, composta por 16 contos (Fogão gaúcho, Contrabando, Carreteiros, Brinquedo pesado, Juca da Conceição, Por pena, Velhos tempos, Querência, Charla, Dia de chuva, Andarengo, Lagoa morta, Fazendo aramado, Beira da estrada, Emboscada e Passo brabo), todos tendo como cenário e pano de fundo o Rio Grande do Sul.
O conto que prefacia a obra é “Fogão gaúcho”. A narrativa serve como uma introdução para os demais e se alimenta de um enredo que narra uma noite fria do inverno gaúcho, cuja personagem principal é a velha Silvina, que conta fábulas para as crianças dentro de casa. Enquanto isso, os “peães” contavam casos em um galpão, dando a entender que as histórias que vêm a seguir são fruto da conversa entre os companheiros:

Lá fora, no galpão, à beira do fogo, os peães também, mateando, contavam os rudes “casos”.
Ora da vida campeira, das marcações ao pó e ao sol dos dias quentes, dos rodeios pelas madrugadas frescas, de estouros de tropas, e trabalhos perigosos; ora casos de amor, de guerras, de entreveros. (AZAMBUJA, 1955, p. 18).

Assim, nas páginas seguintes da obra são narrados os demais contos, tendo sempre como pano de fundo a região da Campanha gaúcha, a sua paisagem e seus aspectos culturais que culminam na formação do imaginário social do estereótipo do gaúcho. Exemplo disso pode ser observado no conto “Contrabando” que apresenta a história de uma comitiva de contrabandistas liderada por Fidêncio Lopes:

Afeitos àqueles perigos e sobressaltos, sempre em risco, na iminência da morte, cristalizara-se- lhes em hábito a existência errante e insegura, noite e dia sob as coxilhas da fronteira. Ora cautos, resvalando em fugas contornantes, ora afoitos, rebatendo de frente, à bala, o fisco vigilante, carregavam sempre as mercadorias que a tarifa fazia preciosas.
Entre a vida e a morte aproximadas na expectativa dos recontros, passavam calmos, quase indiferentes, derivando para aquêle comércio perigosíssimo a bravura e o estoicismo da raça, vindos de longe, do passado guerreiro, aceso outrora nas lutas que haviam feito vibrar o imenso arco da fronteira, distenso do Iguaçu ao Chuí, nos vaivéns incertos das guerras e revoluções. (AZAMBUJA, 1955, p. 29).

Verificamos como o gaúcho é exaltado pela voz narrativa. Percebe-se a identidade do nativo rio-grandense como uma raça valente, sem medo do perigo, e muito confiante no seu modo de vida.
Na orelha da sétima edição do livro consta a informação de que No galpão rendeu a Azambuja o primeiro prêmio de contos da Academia Brasileira de Letras. O prefácio ainda diz que o autor e sua obra são apontados “[...] entre as coisas mais significativas já escritas sobre o Rio Grande” e que Azambuja “[...] soube aproveitar com inteligência os ricos motivos paisagísticos do Rio Grande do Sul.” Além disso, também salienta que “O regionalismo de Simões Lopes Neto encontrou em Darcy Azambuja o seu legítimo sucessor, tanto no domínio do conto, como da história e do folclore.” (AZAMBUJA, 1955).
Quanto aos aspectos regionalistas, a obra pode ser classificada de diferentes formas: literatura em uma região, literatura sobre uma região, literatura sobre a terra natal e literatura regionalista, conforme preceitos de Stuben (2013), Arendt (2015), Mecklenburg (2013) e Barcia (2004).
No galpão é considerada literatura em uma região pelo fato de ter sido publicada pela editora Globo, que possui matriz em Porto Alegre e filiais nos municípios gaúchos de Santa Maria, Pelotas e Rio Grande. Isso vai ao encontro do proposto por Stuben (2013, p. 47), que classifica esse tipo de literatura como aquela que “[...] objetiva a presença da literatura como oferta da recepção [...].”.
No galpão também pode ser considerada literatura sobre uma região, pois apresenta o Rio Grande do Sul como tema literário, adequando-se, assim, às exigências levantadas por Arendt (2015, p. 122) ao classificar esse tipo de literatura que “[...] pode ser reconhecida pelas regionalidades internas aos textos literários, ou seja, pelas particularidades culturais representadas ficcionalmente.”
Pode-se, também, classificar No galpão como literatura sobre a terra natal, que, segundo Mecklenburg (2013, p. 174), é aquela que enfatiza a “[...] relação que pessoas cultivam com lugares, espaços, regiões, justapondo-se frequentemente as dimensões espacial e social, pois a relação com uma terra natal é relação com um espaço social.” Na obra de Azambuja, os elementos que caracterizam a literatura sobre a terra natal podem ser vistos, principalmente, no conto “Velhos tempos”, que será discutido no capítulo a seguir.
Além das classificações anteriores, também podemos considerar No galpão uma obra regionalista, pois o Rio Grande do Sul é representado em tom laudatório, indo ao encontro desse tipo de classificação proposta por Barcia (2004, p. 39) ao dizer que

El regionalismo literario o la literatura regionalista suponem un grado de exasperación, un acentuar, por el sufijo, lo regional.” Ainda, segundo o autor, esse tipo de literatura “Es programática y poeticamente consciente de que abunda – y su imperativo es abundar – en rasgos específicos, distintivos de la región. (BARCIA, 2004, p. 39).

No galpão, portanto, apresenta o gaúcho como um ser heroico e valente, que não teme nada e ninguém, contribuindo para a criação de um estereótipo que até os dias atuais prevalece na mente de muitos idealistas e conservadores do gauchismo.

O antigo e o moderno: as relações e contradições entre rural e urbano

Grande número de pessoas carrega em seu imaginário a ideia de que o antigo é algo velho e, muitas vezes, visto como aquilo que existiu outrora e não está mais em atividade. Também é velho aquilo que foi vivenciado no passado e pertence a pessoas de outras gerações e de outros tempos. Já o moderno refere-se a tudo aquilo que pertence ao presente, ao tempo atual e que é inovador, também classificado como o entendimento que denota a última moda.
Definir antigo e moderno é algo que pode parecer simples, porém a conceituação envolve o entendimento de diferentes áreas do conhecimento, como a história, a sociologia, a antropologia e os estudos culturais. O passar do tempo e os avanços das tecnologias e dos meios de comunicação mudou e muda, a cada instante, de acordo de como uma sociedade realiza suas atividades e se comporta em determinadas situações. Castells (1999) mostra que a habilidade ou inabilidade de uma sociedade dominar a tecnologia ou incorporar-se às transformações dela decorrentes remodela a sociedade em ritmo acelerado e traça a história e o destino social dessas sociedades.
Por outro lado, as mudanças não ocorrem de maneira igual e total em todos os lugares e nem mesmo na mesma velocidade; as transformações são um processo temporal e, em alguns aspectos, demorado. As formas de compreender, de perceber, de sentir e de aprender devem considerar a afetividade, as relações, a imaginação e os valores. Por isso, são vários os fatores que permitem a inserção de novas culturas e a invenção e popularização de novas máquinas e equipamentos. Whitrow (1993, p. 9) diz que estamos tão habituados às ideias de tempo, “[...] história e evolução, que nos inclinamos a esquecer que esses conceitos nem sempre tiveram a importância que hoje lhe atribuímos. [...] Para entender porque o tempo tende a dominar nossa maneira de viver e pensar, devemos adquirir algum conhecimento sobre o modo como isso veio a ocorrer”.
Whitrow (1993) mostra que existe uma relação entre antigo e moderno e ela é compreendida por uma linha chamada a “linha do tempo”. Nela, as mudanças que ocorreram assumem um espaço que se pode chamar de registros. São configurações da noção humana de tempo ligadas, de forma íntima, às percepções fornecidas pelos sentidos. Nessa linha de raciocínio, os movimentos sociais são mostrados na perspectiva evolutiva. Darcy Azambuja, na obra No galpão, discute a questão de o moderno substituir o antigo e não ignora que o passar do tempo, na maioria das vezes, impõe mudanças, e essas tendem a levar as pessoas a aceitarem novos movimentos sociais e novas formas de pensar e agir.
Na obra de Darcy Azambuja, que acumulou os títulos de escritor, advogado, político e professor, transparece que nem sempre aquilo que é moderno é aceito imediatamente pelos seguidores de uma determinada cultura ou parte dela. Nesse sentido, o autor de No galpão
mostra a oposição entre o passado e o presente e apresenta as diferenças existentes entre habitar no campo e na cidade, sobretudo, por uma série de transformações socioespaciais que ocorreu, principalmente, após a Revolução Industrial. Essa mesma relação entre o antes e o depois é trazida pelo autor na relação em que se estabelece entre homem livre e primitivo versus homem civilizado e complexo. As relações estabelecidas entre a vida rural e a urbana são baseadas em critérios que são usualmente empregados para a caracterização do urbano e, por oposição ou complementação, do rural.
Talvez as relações estabelecidas pelo autor tenham surgido da necessidade de relembrar a Campanha, sua paisagem e seus tipos, como forma de superar a angústia e as incertezas na reafirmação do mito oriundo desse espaço: o gaúcho. Exemplo disso pode ser observado no conto “Velhos tempos”, presente na obra de Azambuja. O conto narra a história de Severo, um velho que vive em um vilarejo fora das divisas desde o seu nascimento, que sente muita saudade do seu tempo de mocidade e um profundo desânimo em relação aos rumos que a sociedade tomou. No trecho a seguir, é possível verificar essa informação:

O velho pôde, então, naquela derradeira vista de conjunto, ver quanto estava mudado o seu campo natal. Não parecia o mesmo. E êle, que nescera ali, e vivera e envelhecera entre aquelas dobras verdes da terra, já quase não conhecia mais o pago. Retalhara-o em pedaços um emaranhamento constritor de aramados inumeráveis. Aproveitando-o melhor, tinham-no deformado e morto, matando-lhe a alma imensa, que era a vertigem de extensão desmarcada. Naqueles retalhos curtos não corriam mais manadas de éguas xucras e as pontas de gado bravio. Reses de raças longínquas pastavam calmas e nédias, sem alvorôço selvagem da gadaria crioula. Tinham desaparecido os baguais que antes retouçavam ali, ligeiros e esquivos, devorando quadras. Presos em estacas, estadeando as linhas soberbas, os pastôres puros enfastiavam-se, nostálgicos de outros climas e céus distantes. (AZAMBUJA, 1955, p. 81-82).

A personagem Severo é um homem que não sabe lidar bem com as mudanças que ocorreram na localidade em que vive. Os novos modos de vida o incomodam e até trazem certa inquietação, pois os costumes antigos, em sua concepção, eram mais corretos quando relacionados com aqueles que ocorrem na contemporaneidade em que a obra se passa. Ele luta contra os tempos modernos e vive angustiado com as mudanças, até que surge nova guerra. Com isso, a tranquilidade começa a tomar conta da personagem, pois Severo entende que a guerra civil instalada na região faz com que algumas situações vivenciadas em sua juventude sejam reprisadas em seus pensamentos:

Um ano. Setembro, de novo, aclarava os céus. Era porém, uma primavera de sangue. O pampa convulsionava-se em mais uma guerra civil.
A comoção empolgou, repetindo fielmente as fases de desdobramento das lutas anteriores. Mobilizavam-se os homens, mudavam-se os gados, sítios eram abandonados, grupos cruzavam-se, reuniam-se, engrossando; piquêtes autônomos, corpos defluindo às agregações prefixadas; brigadas volantes, divisões efêmeras. A fronteira animava-se como no tempo das invasões; tropas de gado emigrando para invernadas seguras, grupos de guerrilheiros indo e vindo, contrabandos de equipamento às fôrças improvisadas – a osmose secular de três povos em contato. (AZAMBUJA, 1955, p. 88-89).

Azambuja, na maioria de seus contos, aponta que a felicidade depende do viver os costumes existentes há tempo, e descarta a possibilidade de ser feliz com a conquista de posses, ou seja, para ele o mais importante é viver sem alternância das formas de se vestir, da linguagem usada e dos modos que estabelecem os relacionamentos:

[...] Severo foi um dos primeiros a cair, e ficou à meia-encosta, ouvindo o eco pavoroso dos gritos e detonações, nitridos e estrondos num bárbaro reboar. E morrendo, numa última visão, sintetizou os pagos todos, vendo-os como os vira outrora, há muitos anos: tudo aberto, escampo, e o solar feito baluarte estrondejantes de descargas em meio à campanha em guerra... E o duto lutador ainda murmurou: - ‘Agora sim...’ Agora sim, os seus pagos tinham revivido. E pendeu a cabeça, os olhos já vidrados, consolado em morrer pela vida que voltava. (AZAMBUJA, 1955, p. 94).

Nas perspectivas mencionadas pelo escritor gaúcho, percebe-se uma abordagem que remete à diferenciação social, a partir de questões que levam ao entendimento da existência de uma oposição entre urbano e rural. Essa relação possibilita, enquanto procedimento analítico, considerar os processos de “relação entre cidade e campo” e revelam os sentidos e papéis desses espaços e, consequentemente, a unicidade e complementaridade compreendida por esse par dialético.
Ainda, em relação ao campo e à cidade, a dicotomia trazida pela voz narrativa remete a um conjunto de atividades que passou a ser desenvolvido de forma diferenciada, traçando-se essa relação entre o antigo e o moderno. Percebe-se que na cidade existe a materialização da produção de bens materiais ligados ao ciclo da terra com a agricultura urbana. Junto à produção de bens de consumo, surgem os rituais praticados em centros urbanos, e esses possuem características e manifestações culturais diferenciadas. Carvalho (2007, p. 64) salienta que “os rituais são manifestações culturais que estão no centro do espaço ocupado por grupos sociais, independente de eles estarem no meio urbano ou rural”. Nesse sentido, as manifestações culturais são representativas da voz social, “uma forma subjetiva que um grupo de pessoas encontra para expor seu interior, expressar o que pensam, o que desejam realizar ou modificar” (CARVALHO, 2007, p. 64). No campo, as manifestações culturais aparecem, muitas vezes, arraigadas às atividades ligadas ao lazer, à prestação de serviços e ao trabalho comunitário, reunindo pessoas em um mesmo espaço social atuando em atividades constitutivas do bem comum.
A relação entre campo e cidade, representando o antigo e o moderno, também aparece em “Querência”, outro conto escrito por Azambuja, constante na obra No galpão. Esse conto narra a história de Sérgio, um jovem que estava terminando o período de prestar serviços à Pátria quando foi convidado por seu capitão a seguir carreira militar. No entanto, ao voltar para casa para comunicar os familiares sobre a decisão, Sérgio muda de ideia e opta por permanecer no campo, na sua querência.
Mais uma vez, o universo ficcional de Azambuja mostra uma forte identificação do homem com o mundo rural. O imaginário do autor revela reações de estigmatização, de diferenciação na relação entre os hábitos do mundo moderno e das formas de viver no mundo rural. O fato de a personagem Sérgio voltar atrás quanto à decisão de seguir carreira no exército mostra uma diferença entre aquele jovem que mora no campo e aquele que mora na cidade.
No final do conto, Sérgio permanece no ambiente rural e abandona a ideia de seguir carreira militar. Porém a personagem não esteva convicta, durante toda a narrativa, de que permanecer no campo era o ideal. Em diversos momentos, é possível perceber as dúvidas que permearam a mente do jovem em relação ao que seria mais adequado para o seu futuro. Isso pode ser observado com bastante riqueza de detalhes no trecho a seguir:

Sérgio ficou aquêles dias todos pensativo. Não sabia o que fazer. O capitão indubitàvelmente estava com a razão. As suas palavras haviam lhe mostrado uma estrada larga e clara, como ainda não tinha imaginado. Era pegar ou largar. A mãe estava bem onde estava. Êle, agora, tinha tôdas as facilidades de fazer-se. Depois, se esperasse, talvez nunca mais teria uma oportunidade. Quem se lembraria dêle, perdido no campo, como agregado do velho Amâncio? Mas, a mãe, coitada... Também, nem por isso. Ficava bem acompanhada, gostaria de vê-lo encaminhado. E êle voltaria de vez em quando, poderia conseguir mais tarde uma guarnição próxima. Até lá, porém, quantos anos... Acumulava razões pró e contra, discutia consigo. Chegava a resolver-se; arrependia-se logo, voltava a hesitar. No fundo de tudo, quem argumentava, o que persistia entravando a deliberação era a sua timidez. Assustava-o a brusca mudança na vida. Inda se fôsse perto, no seu estado... mas ter que ir para o norte, entre outra gente, sem conhecidos, nas cidades populosas... E se adoecesse? (AZAMBUJA, 1955, p. 100-101).

As dúvidas de Sérgio mostram que a sociedade rural apresenta laços fortes com a família, pois o espaço familiar e o do trabalho estão muito próximos, quando não são o mesmo. Sérgio deixa claro, em suas dúvidas com relação a seguir a carreira militar, a importância da vida em comunidade, em que a interação com a família é muito intensa. O mesmo não ocorre no espaço urbano, quando, na maioria das vezes, o espaço do trabalho é separado do espaço da casa.
Sérgio tem preferência pelo antigo, por aquilo que já lhe era de costume, rechaçando a oportunidade de levar uma vida moderna nos grandes centros urbanos. Dessa forma, podemos pressupor que as relações entre o antigo e o moderno também podem estar relacionadas às questões emocionais que rodeiam cada pessoa. Nesse sentido, Williams (2011) mostra os significados da palavra campo, quando traduzida para o idioma inglês:

O termo em inglês country pode significar tanto “país” quanto “campo”; the country pode ser toda a sociedade ou só sua parte rural. Na longa história das comunidades humanas, sempre esteve bem evidente essa ligação entre a terra da qual todos nós, direta ou indiretamente, extraímos nossa subsistência, e as realizações da sociedade humana. E uma dessas realizações é a cidade: a capital, a cidade grande, uma forma distinta de civilização. (WILLIAMS, 2011, p. 11).

Como se observa, a palavra country possui diferentes significados, podendo representar um país como um todo, como também apenas a sua parte rural. Trazendo esse conceito para a realidade criada por Azambuja, em “Querência”, sobretudo para a personagem Sérgio, o campo, local em que cresceu e viveu toda a sua infância e adolescência, representa algo maior do que apenas uma área rural, pois foi ali que ele estabeleceu suas relações pessoais, a convivência com a família e amigos, fatores preponderantes na decisão do jovem em não viver o moderno, preferindo o modo de vida antigo.
Por mais que a vida na cidade seja desafiadora, é no campo que Sérgio se realiza e é ali que pretende passar toda a sua vida:

[...] Sérgio ficou longamente olhando a paisagem dos seus pagos, sentindo quanto era profundo o sentimento que o ligava a êles. Era a sua querência... Nunca poderia abandoná-la, nunca poderia trocá-la, assim amiga e tranqüila, por outras terras de inquietas ambições e duros egoísmos. E era feliz, sentindo-se definitivamente unido à sua terra e à sua vida antiga. (AZAMBUJA, 1955, p. 114).

A natureza simbólica de defesa do antigo, da vida rural, propõe certos valores e normas e dão continuidade às relações entre o passado e o presente. Desse modo, o espaço do campo reproduz os rituais das gerações passadas, reforça as tradições, repete códigos comportamentais e também cria novos códigos. Segundo Beltrão:

[...] enquanto os discursos da comunicação social são dirigidos ao mundo, [as relações existentes na linha do tempo] se destinam a um mundo em que mantêm relações muito tênues com o idioma, a escrita, a dança, os rituais, as artes plásticas, o trabalho e o lazer, com a conduta, enfim, das classes integradas das sociedades (BELTRÃO, 1980, p. 40).

Falar do passado e do presente significa falar das formas de expressão da cultura de uma localidade, que se traduzem por meio das formas de linguagem e todo o aparato simbólico que as acompanha e particularizam um lugar: rituais, canções, danças, pratos típicos, indumentárias. Nessas manifestações, as relações sociais são produzidas de maneira a manter a identidade e, ao mesmo tempo, construir novas identidades em função da interação entre culturas diversas.

Considerações finais

Este estudo possibilitou entender que os cenários e personagens criados por Darcy Azambuja na obra No galpão contribuem para a construção da representação do gaúcho da campanha como um valente ou herói, muitas vezes utilizando-se das relações antagônicas vivenciadas em tempos diferentes, como o que é considerado antigo e moderno. Desse modo, percebe-se que o autor contribuiu para a construção de uma identidade regional idealizada no início do século XX, porém cultuada até os dias de hoje por simpatizantes e seguidores de movimentos tradicionalistas.
No entanto, apesar de os universos antigo e rural serem, muitas vezes, apresentados no decorrer da obra, Azambuja idealiza um modo de vida arraigado em práticas comuns de ambientes de campanha e sofre ao perceber a influência dos grandes e modernos centros urbanos sobre a vida do campo. Pozenato, ao abordar as relações entre os dois estilos de vida, ressalta que:

[...] o mundo rural existe numa contraposição com o urbano. Ele só é rural porque há um mundo urbano, e o mundo urbano porque há um mundo rural. Não são dois universos que se desenvolvem em separado, cada um com a sua dinâmica própria. Pelo contrário, tanto a dinâmica urbana quanto a dinâmica rural são influenciadas por um mesmo processo. Dentro dessa perspectiva dá para dizer que qualquer transformação que se opere no mundo urbano acaba gerando transformação no mundo rural. Possivelmente o contrário também ocorra: transformações no mundo rural acabam se refletindo no mundo urbano, embora a possibilidade seja um pouco mais difícil de acontecer, porque a cidade é também o centro do poder. (POZENATO, 2003, p. 93).

Azambuja trabalha as relações entre o moderno e o antigo, reconstruindo a região da Campanha e suas principais características sociais e culturais por meio da disseminação de expressões, vestimentas, valores, crenças e outras formas de manifestação. A abordagem levantada pelo autor vai ao encontro de Pozenato (2003, p. 93), que chama de sentimento pré- crítico do contexto cultural rural, “[...] o sentimento de que é uma pena que as coisas estejam se modificando, se transformando, desaparecendo.”.

Referências

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BARCIA, Pedro Luis. Hacia un concepto de la literatura regional. In: CASTELLINO, Marta Elena; RIVERO, Gloria Vidella de (Orgs.). Literatura de las regiones argentinas. Mendoza: Universidad Nacional Del Cuyo, 2004, p. 25-45.

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980.

CARVALHO, Samanta V. C. B. Rocha. Manifestações Culturais. In: GADINI, Sérgio Luiz, WOLTOWICZ, Karina Janz (Orgs.) Noções básicas de folkcomunicação. Ponta Grossa- PR: UEPG, 2007.

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MECKLENBURG, Norbert. Regionalismo literário em tempos de globalização. In ARENDT, João Cláudio; NEUMANN, Gerson Roberto (Orgs.). Regionalismus-Regionalismos: subsídios para um novo debate. Caxias do Sul: EDUCS, 2013, p. 173-195.

POZENATO, José Clemente. Processos culturais: reflexões sobre a dinâmica cultural. Caxias do Sul: EDUCS, 2003.

STÜBEN, Jens. Literatura regional e literatura na região. In ARENDT, João Cláudio; NEUMANN, Gerson Roberto (Orgs.) Regionalismus-Regionalismos: subsídios para um novo debate. Caxias do Sul: EDUCS, 2013, p. 37-69.

WHITROW, G. J. O tempo na história: concepções sobre o tempo da pré-historia aos nossos dias. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Cia. das Letras, 2011.

Resumo: o presente artigo analisa como as relações entre os conceitos de antigo e moderno são desenvolvidos nos espaços ficcionais criados por Darcy Azambuja na obra No galpão. Para isso, foram estudados os contos “Velhos tempos” e “Querência”, observando as formas como as personagens lidam com as questões que envolvem o antigo e o moderno, sobretudo na relação entre campo e ambiente urbano.

Palavras-chave: No galpão; Darcy Azambuja; Antigo e Moderno

Abstract: The present paper aims to analyze how the relations between the concepts of ancient and modern are developed in the fictional spaces created by Darcy Azambuja in the literary work No galpão. For this, analyzes were made of the tales of “Velhos Tempos” and “Querência”, observing the ways in which the characters deal with the issues that involve old and modern, especially in the relationship between the countryside and the city.

Keywords: No galpão; Darcy Azambuja; Ancient and Modern.

  • 1 Mestrando no programa de pós-graduação Mestrado em Letras e Cultura da Universidade de Caxias do Sul. E- mail: lsflores1@ucs.br.

  • 2 Doutora em Letras (UFRGS), professora e pesquisadora no curso de Letras, pós-graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: srpsanto@ucs.br.