O ABISMO SOCIAL BRASILEIRO NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES

Adriano de Paula Rabelo1
Universidade Federal de Minas Gerais
aprabelo@hotmail.com

Sem jamais ter tido qualquer intenção de fazer um teatro social ou apresentar qualquer tipo de denúncia da iniquidade que marca a estratificação das classes no Brasil, postura contrária a suas concepções estéticas, Nelson Rodrigues, ao simplesmente mergulhar nas paixões de seres humanos expostos à realidade brasileira “como ela é”, não deixa de pôr à mostra todo um panorama de nossas relações de classe. Livre das concepções engajadas que idealizam os pobres como puros e autênticos ou os ricos como progressistas e modernos, com toda a variedade dos setores médios entre eles, seu retrato das classes sociais no país é bastante convincente.
O dramaturgo, que viveu entre 1912 e 1980, atravessou um período de grandes transformações no Brasil. Morando no Rio de Janeiro, capital do país até 1960, e trabalhando desde a adolescência como jornalista, Nelson pôde acompanhar bem de perto a queda da Primeira República e das estruturas econômicas que vinham do século XIX, o período getulista com sua modernização conservadora e o crescimento acelerado dos grandes centros urbanos, o período formalmente democrático que vai de 1945 a 1964 com suas crises recorrentes de golpismo, a ditadura militar com a franca supressão de todos os processos democráticos e a violação dos direitos humanos. A despeito de todas essas mudanças, por mais que na superfície a realidade brasileira tenha se transformado extensivamente, é possível dizer que nossa estrutura de classes mudou muito pouco. É o que assevera Darcy Ribeiro (1995, p. 23) ao analisar “a formação e o sentido do Brasil”:

Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais.

O escopo deste texto está justamente na forma como essas distâncias sociais e suas consequências se materializam na obra teatral de Nelson Rodrigues. Para isso, o foco da análise será posto sobre alguns aspectos mais significativos, tais como as profissões, os lugares onde vivem e por onde transitam figuras pertencentes a classes sociais diversas, as formas de relação entre ricos e pobres, bem como entre negros e brancos, além do papel do sexo e do dinheiro em seu relacionamento.

Profissões

Nas peças teatrais de Nelson Rodrigues, pode-se identificar claramente uma hierarquia das atividades profissionais. No relacionamento com aqueles que exercem esta ou aquela profissão, bem como nas referências diretas a esta ou àquela função, fica muito claro que, em vez de serem vistas todas como dignas ou necessárias para o bom funcionamento do tecido social, elas possuem diferentes pesos morais que vão além de seus diversos pesos econômicos. Assim, exercer esta ou aquela profissão gera sentimentos de superioridade ou inferioridade pelo simples fato de exercê-la. Não importa muito a qualidade do profissional, a ética no exercício de seu trabalho nem a contribuição que ele dá para o aprimoramento da sociedade. Algumas atividades conferem prestígio e respeito por si mesmas, outras são desprezíveis e vergonhosas por si mesmas, a ponto de serem usadas como insulto.
Esse estranho lastro moral das atividades profissionais se explica pelo regime de trabalho escravo, praticado intensivamente por mais de 300 anos no Brasil. Jamais resolvida adequadamente desde a abolição em 1888, tendo deixado marcas profundas em nossa cultura, a escravidão gerou uma ética do trabalho elitista e preconceituosa que desvaloriza as atividades manuais como indignas, destinadas a pessoas inferiores, ignorantes e incapazes. Em Raízes do Brasil, ao refletir sobre nossa constituição cultural, Sérgio Buarque de Holanda trata do patrimonialismo das elites coloniais, de sua noção de felicidade como um far niente, de sua pose de superioridade e seu apego “aos títulos e sinais de reverência” (1995, p. 148). No lado oposto dessa mentalidade estava o “trabalho manual e mecânico, inimigo da personalidade” (1995, p. 29), obviamente destinado aos escravos, aos marginalizados e aos miseráveis de toda sorte:

Embora a lei não tivesse cogitado em estabelecer qualquer hierarquia entre as diferentes espécies de trabalho manual, não se pode negar que existiam discriminações consagradas pelos costumes, e que uma intolerância maior prevaleceu constantemente com relação aos ofícios de mais baixa reputação social (HOLANDA, 1995, p. 58).

Gilberto Freyre, por sua vez, mostra como o poder do patriarcado rural foi gradativamente minado pela atuação de profissionais especializados e identificados com a cultura urbana:

O absolutismo do pater familias (...) foi se dissolvendo à medida que outras figuras de homem criaram prestígio na sociedade escravocrática: o médico, por exemplo; o mestre- régio; o diretor de colégio; o presidente da província; o chefe de polícia; o juiz; o correspondente comercial. À medida que outras instituições cresceram em torno da casa- grande, diminuindo-a, desprestigiando-a, opondo-lhe contrapesos à influência (FREYRE, 1961, p. 122).

Quanto ao teatro de Nelson Rodrigues especificamente, nele os profissionais mais prestigiosos e poderosos são os empresários. Por serem donos de um negócio, ou de vários, têm sob seu controle as vidas de muitas pessoas – empregados e familiares –, de quem costumam abusar respaldados em seu poder econômico. Invariavelmente homens, mais ou menos entre 45 e 60 anos, são representantes do patriarcado urbano de que trata Gilberto Freyre, porém pertencentes ao momento histórico da dissolução da família patriarcal, estando no centro de todos os conflitos em torno desse fenômeno. No teatro de Nelson Rodrigues, tais homens tratam seus empregados como coisas, traem suas esposas (que invariavelmente não trabalham) e costumam ter conflitos graves com seus filhos, quando os têm. Embora possuam riqueza, quase sempre não possuem nenhuma sofisticação, tendo um horizonte intelectual limitadíssimo e gostos bastante vulgares. Parte deles ascendeu da pobreza e são os chamados novos-ricos. A despeito de não possuírem nenhum título, costumam ser chamados de doutor, palavra que no mundo do dramaturgo – e na mentalidade popular brasileira – aplica-se a qualquer um que tenha muito dinheiro ou que ao menos aparente tê-lo. Manifestam uma espécie de volúpia em humilhar os pobres, cujos corpos e consciências acreditam poder comprar como se fossem mercadorias. Várias peças de Nelson Rodrigues trazem essa figura como protagonista ou personagem secundário importante na trama. Olegário, em A Mulher sem Pecado, é um empresário muito rico e um ciumento doentio que decide fingir-se de paralítico para testar a fidelidade da esposa. Passa, então, a infernizar-lhe a vida de tal forma que ela acaba por fugir com o motorista da casa. Jonas, em Álbum de Família, se não é exatamente um empresário, também pertence ao patronato em sua condição de fazendeiro. Pai à maneira do líder da horda primitiva, dispõe dos filhos e da mulher a seu bel-prazer, além de deflorar adolescentes da região, pertencentes a famílias submetidas a seu poder econômico, como forma de satisfação vicária de seu desejo pela filha caçula. Em A Falecida, o dono de lotações João Guimarães Pimentel realiza suas fantasias sexuais com a suburbana Zulmira, traindo a esposa. Envolvido com negócios escusos, é desancado pelo periódico O Radical. Boca de Ouro, na peça homônima, é um banqueiro do Jogo do Bicho definido por um jornalista como “cancro social” e por outro como “Drácula de Madureira” (RODRIGUES, 1993a, p. 884 e 911). Para se vingar de suas origens miseráveis e seu nascimento numa pia de gafieira, trocou todos os dentes por uma dentadura de ouro como símbolo de sua ascensão social, sonhando ser enterrado num caixão de ouro, o que dá uma ideia de seu horizonte estético. Dr. Werneck, em Bonitinha, mas Ordinária, dono da empresa onde Edgard trabalha como escriturário, tenta comprar o empregado para que ele se case com sua filha Maria Cecília, que fora estuprada por cinco negros. Dr. J.B. de Albuquerque Guimarães, na “farsa irresponsável” Viúva, porém Honesta, é um todo-poderoso dono de jornal apresentado como “gângster da imprensa, a mascar o charuto de sua sórdida prosperidade” (1993a, p. 433). Chega a comprar um marido para a filha de 15 anos na própria redação do jornal, o crítico de teatro homossexual Dorothy Dalton, a fim de salvar as aparências ante uma suposta gravidez da adolescente. Em Anti-Nelson Rodrigues, Gastão, dono de indústrias de confecção, recebe todos os dias uma carta anônima do filho inútil e mau caráter, que o odeia. A missiva começa sempre com um “Meu prezado chifrudo”. O filho, por sua vez, nomeado para a presidência de uma das empresas, deseja comprar uma noite de sexo com uma das funcionárias.
Abaixo dos empresários, do ponto de vista econômico, mas dispondo de um poder diferente e sendo parte da mesma elite retrógrada e grosseira, estão aqueles que ocupam altos postos na hierarquia estatal. Em geral são vistos publicamente como a reserva moral da nação, mas na vida privada revelam-se figuras absolutamente imorais. Pertencentes a famílias tradicionais, com raízes no período colonial, também são invariavelmente homens mais velhos. Misael Drummond, em Senhora dos Afogados, é um juiz que está prestes a ser nomeado ministro de Estado. Porém, justamente nessa ocasião, seu sórdido passado como amante e assassino de uma prostituta do cais vem à tona. Em Perdoa-me por me traíres, Dr. Jubileu de Almeida, deputado e professor catedrático de Física, casado com uma mulher cujos avós foram barões do Império, excita-se sexualmente diante da adolescente Glorinha, no bordel de Madame Luba, dizendo um ponto da disciplina que leciona.
Aparentemente não exercendo nenhuma atividade profissional, vivendo de rendas e posicionando-se no topo da escala social, estão os que Nelson Rodrigues chama de grã-finos. Alvo especial de sua sátira, são sempre mostrados como inúteis, levianos e imorais. É assim que eles aparecem em Boca de Ouro e Bonitinha, mas Ordinária. A propósito, de um modo geral, no teatro de Nelson Rodrigues o trabalho é visto como vergonhoso pelos ricos. Tanto que, nesta última peça, Dr. Werneck dá o seguinte conselho a Edgard: “Você é meu genro, meu futuro genro. Não precisa trabalhar. (...) Faz o seguinte: não vai lá. Fica em casa. Vai só receber, pronto.” (RODRIGUES, 1993a, p. 1017).
Como atividades associadas à classe média, estão as de pequeno empresário e as profissões liberais. Médicos, jornalistas, funcionários de escritório, membros do baixo funcionalismo público, cafetinas e donos de empresas de pequeno porte são os representantes desse estrato que, embora esteja próximo da base da pirâmide social, cultiva uma visão de mundo, valores e preconceitos semelhantes aos dos grupos privilegiados, aos quais servem e que buscam imitar. Ismael, em Anjo Negro, foi um médico “preto” que ganhou muito dinheiro com seu trabalho, antes de se casar com uma moça branca depois de estuprá-la, tendo com ela filhos negros que são assassinados ainda na infância. Madame Clessi, em Vestido de Noiva, assim como Madame Luba, em Perdoa-a me por Me Traíres, são donas de casas de prostituição que possuem um padrão de vida mediano em virtude dos serviços que prestam a homens de sólida posição social. Dr. Portela, em Os Sete Gatinhos, é diretor de um colégio elitizado que, em sua formalidade, se mostra como um guardião dos valores da velha família patriarcal. Caveirinha, em Boca de Ouro, e Amado Ribeiro, em O Beijo no Asfalto, são repórteres policiais de jornais de grande circulação cujo trabalho se resume a humilhar e achincalhar os pobres. Timbira, em A Falecida, administra sua casa funerária exercendo toda uma técnica de papa-defuntos para tornar sua atividade rentável. Patrício, em Toda Nudez Será Castigada, empresário falido, dedica-se a destruir a vida do irmão bem- sucedido depois de ele não o haver ajudado a se reerguer.
Associados à parte inferior da escala social, estão os trabalhos servis, manuais e mal remunerados. O desprestígio dessas profissões é tão grande que algumas delas são utilizadas para xingar e injuriar aqueles que as exercem. Em A Mulher sem Pecado, Olegário lança ao rosto de sua sogra, de origens humildes, um aviltante “Sua lavadeira!” (RODRIGUES, 1993a, p. 340). Já em Os Sete Gatinhos, depois de ser esbofeteada pelo pai, Arlete, “como se cuspisse”, xinga-o de “contínuo” (RODRIGUES, 1993a, p. 841). Em Bonitinha, mas Ordinária, Edgard tem vergonha de dizer que começou a trabalhar na firma de Dr. Werneck como contínuo. Ao comprá-lo para que se case com sua filha, o patrão humilha-o: “Contínuo! Contínuo! Portanto, não se esqueça: você é um ex- contínuo! Põe isso na cabeça! (...) Quero que você se sinta inferior a minha filha.” (RODRIGUES, 1993a, p. 1008). Outras atividades depreciativas que aparecem ou são mencionadas no teatro de Nelson Rodrigues são criada, babá, chofer, telefonista, empregada doméstica, arrumadeira, garçom, datilógrafa, auxiliar de escritório, porteiro, enfermeira, coveiro, vendedor de pentes. Em geral, os que exercem tais atividades introjetam um sentimento de inferioridade, estimulados pelo descrédito social em relação ao que fazem, ainda que desempenhem trabalhos honestos, de modo que recebem com naturalidade o escárnio, a arrogância e a exploração de seus patrões ou dos medalhões com quem se relacionam.
Situando-se fora do sistema, há três categorias de pessoas relacionadas ao universo econômico em seu âmbito profissional: os marginais, os agregados e os desempregados. Sem profissão definida, eles vivem na dependência de um parente ou de pessoas que exploram. Os marginais podem se apresentar como vadios, loucos, doentes, praticantes de crimes ou exploradores de alguém. Aparecem vagabundos ou leprosos em A Mulher sem Pecado, Doroteia, Senhora dos Afogados e Bonitinha, mas Ordinária. Como criminosos ou delinquentes exploradores, pode-se mencionar Bibelot, de Os Sete Gatinhos, ou Alírio, de Bonitinha, mas Ordinária. Os agregados geralmente são tias ou simplesmente solteironas, como as que aparecem em Álbum de Família, Doroteia e Toda Nudez Será Castigada. Também há familiares acometidos pela loucura, como D. Aninha, D. Marianinha e D. Berta, as mães loucas em A Mulher sem Pecado, Senhora dos Afogados e Bonitinha, mas Ordinária, respectivamente; e parentes fracassados, como Patrício em Toda Nudez Será Castigada. Entre os desempregados, estão Tuninho, em A Falecida, Bibelot, em Os Sete Gatinhos, e Leleco, em Boca de Ouro.

Lugares

Outro aspecto praticamente definidor das classes sociais no teatro de Nelson Rodrigues são os lugares onde seus personagens vivem. Tal como no caso das profissões, os bairros que eles habitam lhes conferem automaticamente valor ou desvalor. Em peças diversas, são citadas como prestigiosas áreas como Copacabana, Gávea, Barra da Tijuca e Leblon. Nesses lugares, situados na zona sul do Rio de Janeiro ou em suas proximidades, vivem pessoas ricas ou de classe média alta em palacetes ou casas grandes e de boa qualidade, servidas por babás, arrumadeiras, choferes e jardineiros que vêm dos subúrbios. Nesses mesmos bairros, homens de boa condição social, num tempo em que não havia motéis, costumam ter garçonnières ou obtê-las emprestadas de amigos, para seus encontros clandestinos com amantes, quase sempre moças de bairros distantes ou prostitutas. Nessas áreas também ocorrem festas de grã- finos em que todos os limites morais são ultrapassados, como acontece num episódio de Bonitinha, mas Ordinária.
Quanto aos lugares desvalorizados, nas peças do dramaturgo, mencionam-se Grajaú, Aldeia Campista, Quintino, Madureira, Lins de Vasconcelos, Caju, Jacarezinho, São João de Meriti. Localizados em áreas bastante periféricas da cidade nos anos 1950 e 60, era onde moravam os pobres, os profissionais de baixa qualificação ou trabalhadores informais, os bicheiros, o lumpemproletariado em geral. Além de situarem-se em regiões distantes do centro e da zona sul, onde normalmente seus habitantes trabalham, quando trabalham, esses bairros são muito mal atendidos pelos serviços públicos. No edifício onde mora Edgard, em Bonitinha, mas Ordinária, falta água frequentemente, o que faz com que ele reclame: “O sujeito obrigado a tomar banho de panela. É o Brasil!” (RODRIGUES, 1993a, p. 1011). Em Anti-Nelson Rodrigues, ao saber que Joice, a moça que vinha cortejando, mora em Quintino, o playboy Oswaldinho comenta: “A condução deve ser uma tragédia.” (RODRIGUES, 1993a, p. 492).
Vale destacar que uma localização mais precisa e factual da ação nas peças de Nelson Rodrigues passa a acontecer somente a partir de A Falecida, de 1953, início de um longo ciclo que Sábato Magaldi, no prefácio à edição do teatro completo do dramaturgo (1993a), classificará como “tragédias cariocas”, um conjunto de peças que retrata mais de perto a realidade social do Rio de Janeiro, apresentando figuras típicas da cidade em seu cotidiano mais identificável. Até então, nos agrupamentos que o mesmo crítico chamou de “peças psicológicas” e “peças míticas”, pelas próprias especificidades da exploração da psicologia dos personagens e dos arquétipos de sua mentalidade profunda, a ação se passava fora do tempo histórico e do espaço social ou num tempo e num espaço muito vagos e mal definidos.

Ricos e pobres

A relação entre ricos e pobres no teatro de Nelson Rodrigues é de uso e abuso destes por parte daqueles. Sempre que aparecem na mesma cena, os pobres recebem ordens, são humilhados, tratados com rispidez e usados como objeto sexual. Na visão dos ricos, os pobres são simplórios, grotescos, imundos, o que não impede que tenham forte atração sexual por eles, que são tomados como amantes regulares ou esporádicos de pessoas casadas, tornam-se maridos ou mulheres comprados para salvar honras perdidas, são violados impunemente. Na imundície do sexo forçado ou comprado com os pobres, os ricos sentem uma espécie de volúpia em chafurdar na lama daquilo que lhes é interditado no casamento pela moral burguesa, fazendo com seus amantes de classe inferior tudo aquilo que desejam mas não podem fazer em casa com suas esposas e seus maridos, com quem vivem uma relação pretensamente recatada. Não somente as fantasias mais bizarras, mas também sua própria animalidade, vêm à tona quando se entregam ao sexo proibido mas excitante com os pobres. Para Sábato Magaldi (1992, p. 76), Nelson Rodrigues frequentemente “associa o sexo, sobretudo, ao desregramento do instinto dos donos da vida. O poder aguça o desejo de satisfação material, incluindo-se nele o sexo”. E David George (1990, p. 93) vai mais longe, vendo na violência do sexo desregrado das classes altas, tal como exposto pelo dramaturgo, uma expressão eloquente do tipo de relação entre ricos e pobres no Brasil, como escreve em sua análise de Álbum de Família:

Jonas se aproveita de sua envergadura social para abusar e até matar impunemente mulheres jovens, e as famílias das vítimas, das camadas mais baixas da sociedade, colaboram com ele, degradando-se totalmente. As ações de Jonas transformam o sexo numa metáfora social, o estupro das classes inferiores do Brasil. Os extremos de comportamento não existem só no distante cosmos mítico.

Na ação de Senhora dos Afogados, o juiz Misael tem de ajustar contas com seu passado. Dezenove anos antes do presente da ação, no dia de seu casamento, ele matou, a golpes de machado, uma prostituta do cais com quem se relacionava e com quem realizava suas fantasias. Em A Falecida, o dono de lotações Pimentel, casado com uma mulher que “é uma fera, dessas que precisam uns dez para segurar” (RODRIGUES, 1993a, p. 766), vangloria-se de haver atacado sexualmente a suburbana Zulmira no banheiro de uma sorveteria. Em Bonitinha, mas Ordinária, o milionário Dr. Werneck, com a intermediação de Peixoto, tenta comprar Edgard para que se case com sua filha Maria Cecília, depois de ela haver sido estuprada numa estrada deserta. A mesma situação se repete em Anti-Nelson Rodrigues, quando Oswaldinho deseja comprar uma noite de sexo com Joice, funcionária subalterna na empresa de seu pai. Ainda em Bonitinha, mas Ordinária, durante uma orgia promovida por Dr. Werneck, a grã-fina Ana Isabel confessa publicamente que seu michê mais baixo foi por ocasião da inauguração de Brasília, com um operário de obra “descalço”, “imundo” (RODRIGUES, 1993a, p. 1038). Na mesma peça, Maria Cecília acha que “dá charme” o fato de Edgard ser um “ex-contínuo” que “usava uniforme cáqui” (RODRIGUES, 1993a, p. 1013). Em Toda Nudez Será Castigada, o rico e pudico viúvo Herculano só abandona o longo luto pela morte da mulher depois de passar 72 horas ininterruptas num quarto de bordel com a prostituta Geni, xingando a falecida e dizendo palavrões enquanto fazia com a amante tudo o que nunca pôde fazer com a esposa.
Naturalmente os pobres não são vítimas passivas da lascívia dos ricos. Vários deles os manipulam, os traem, retribuem-lhes humilhações, chantageiam-nos para extorquir-lhes dinheiro. Na fragilidade de sua condição humana, inseridos na faina do dia a dia, vários também se degradam e também se tornam cafajestes. Ou já surgem em cena como cafajestes. Umberto, o motorista de Olegário em A Mulher sem Pecado, seduz a patroa dizendo-lhe palavrões ao ouvido, terminando por fugir com ela. Boca de Ouro, na peça homônima, bicheiro de origens miseráveis, humilha sexualmente três grã- finas atraídas pelo mito suburbano que ele encarna. A prostituta Geni, em Toda Nudez Será Castigada, consegue enredar Herculano a ponto de convencê-lo a se casar com ela, traindo-o posteriormente com Serginho, o enteado. Na mesma peça, Patrício, irmão falido de Herculano, detesta-o, mas faz de tudo para salvá-lo da morte, pois parasita-o a ponto de admitir que “Herculano não pode morrer. Cada tostão que eu gasto depende dele. Ele me esculhamba, mas solta a erva.” (RODRIGUES, 1993a, p. 1055). Tuninho, em A Falecida, arranca dinheiro do amante de sua mulher, chantageando-o.
A grande maioria dos pobres que aparecem nas peças de Nelson Rodrigues pertence mais a uma classe média baixa que labuta para ganhar salários baixos. Muitos deles cultivam os valores aburguesados dos ricos e sonham em ascender socialmente para ser como eles, em vez de cogitar sobre uma distribuição mais justa da riqueza nacional. Para isso, mesmo com sentimento de culpa, entregam-se à prostituição para realizar sonhos de pureza em casamentos tradicionais à moda patriarcal, colocam-se à mercê da lubricidade de amantes ricos com o fim de arrancar-lhes dinheiro para a realização de fantasias de possuir ou consumir luxos que sempre lhes foram vedados. As filhas de “Seu” Noronha, em Os Sete Gatinhos, assim como Ritinha, em Bonitinha, mas Ordinária, prostituem-se para que suas irmãs menores possam se casar “normalmente”, virgens, com vestido de noiva e celebrações. Boca de Ouro, na peça homônima, e Zulmira, em A Falecida, sonham realizar na morte, através de um caixão luxuoso e extravagante, um resgate de sua vida medíocre. Ainda em Boca de Ouro, a suburbana Celeste, mulher casada, entrega-se a um amante, senhor bem mais velho, porque ele promete levá-la à Europa para ver Grace Kelly. A então princesa de Mônaco representava tudo o que Celeste não era.
Em livro recente sobre a elite econômica brasileira, Jessé de Souza analisa esse comportamento dos estratos intermediários no Brasil: “A classe média tende a imitar a elite endinheirada na sua autopercepção de classe como sensível e de bom gosto, mostrando que essa forma é essencial para toda a separação das classes do privilégio em relação às classes populares” (SOUZA, 2017, p. 86). Mas não apenas isso. Segundo o autor, “a classe média sempre foi, desde meados do século passado, no Brasil, a tropa de choque dos ricos e endinheirados” (SOUZA, 2017, p. 68), tendo horror aos mais pobres e aos movimentos sociais, não apenas desqualificando-os, mas estando na vanguarda da repressão a suas manifestações.

Brancos e negros

Relação próxima daquela entre pobres e ricos, e em muitos aspectos confundindo- se com ela, é a dos brancos com os negros. Se em suas crônicas de futebol, Nelson Rodrigues abominava o que ele chamou de “complexo vira-latas”, sentimento de inferioridade que em boa parte se realizava como um lamento por nossa condição mestiça, um sentimento de vergonha de nossas origens raciais, em seu teatro ele gostava de expor falas e atitudes racistas correntes na sociedade brasileira que, de tão significativas, não precisam sequer de análise e julgamento, pois falam por si mesmas. Nada que até hoje não frequente com inquietante naturalidade o cotidiano de nossos aeroportos, nossos restaurantes, nossos elevadores, nossos escritórios. Grande parte dessas falas e atitudes pertencem a figuras da mesma classe média de que trata Jessé de Souza. Os mais de três séculos de abuso sexual dos negros, no entanto, parecem ter deixado marcas profundas na libido do brasileiro, pois, entre os personagens do dramaturgo, vários deles, homens e mulheres, têm fixação por um parceiro negro.
Sobre Ismael, o protagonista de Anjo Negro, as pessoas sempre diziam que era “preto (...), mas de muita competência” (RODRIGUES, 1993a, p. 574-575) ou “preto, mas muito distinto” (RODRIGUES, 1993a, p. 587). Na mesma peça, Virgínia xinga uma senhora negra, referindo-se a sua cor como um insulto: “Negra ordinária, preta!” (RODRIGUES, 1993a, p. 583). Em O Beijo no Asfalto, Amado Ribeiro adiciona racismo e insensibilidade a sua absoluta falta de ética jornalística: “Imagine que, a arrumadeira, uma preta gorda. (...) Emprenhou. Ela faz aborto em si mesma. Com talo de mamona. (...) Mas parece que, desta vez, houve perfuração. Perfuração. Está morre, não morre. Vai morrer.” (RODRIGUES, 1993a, p. 981). Numa cena de Boca de Ouro, o protagonista conversa com um negro “com evidente desprezo racial, do branco pelo homem de cor” (RODRIGUES, 1993a, p. 903), chamando-o de “preto” o tempo todo e reduzindo-o a sua pigmentação de pele. Em Perdoa-me por Me Traíres, na sala de espera de um médico que pratica abortos clandestinos, estão “sentadas, mocinhas escuras e apavoradas, que parecem criadas domésticas” (RODRIGUES, 1993a, p. 794). São tratadas com a máxima desumanidade. Em Bonitinha, mas Ordinária, não concebendo que um negro possa utilizar um vocabulário relativamente elaborado, Edgard expõe seu preconceito: “Mas o Cadelão não é negro? O negro boçal? Não diria ‘violada’. É uma palavra que. Entende? Não usaria a palavra ‘violada’.” (RODRIGUES, 1993a, p. 1030-1031. Em Toda Nudez Será Castigada, ao tomar conhecimento de que alguém disse a Herculano, seu marido em crise de ciúme, que ela havia saído, Geni indigna-se: “Já sei! Foi a criada, essa negra, velha caduca! Ah, o ódio que eu tenho dessa miserável!” (RODRIGUES, 1993a, p. 1082). Pouco antes, na mesma peça, uma das tias solteironas de Herculano, comenta sobre o médico da família: “Pode ser bom médico, o sujeito que se amigou com a enfermeira? Uma mulata ordinária?” (RODRIGUES, 1993a, p. 1080). Em Bonitinha, mas Ordinária, ao ser estuprada numa curra arranjada por Peixoto, Maria Cecília realiza-se sexualmente ao gritar para seus violadores: “Negro! Negro! Negro! Negro!” (RODRIGUES, 1993a, p. 1029). Depois disso ela passa a cultivar uma obsessão pelo líder dos estupradores, certo “Cadelão”. Em A Serpente, Décio, impotente com a esposa branca e de “boa família” de classe média, só consegue excitar-se sexualmente com a empregada, uma “crioula de ventas triunfais” (RODRIGUES, 1993a, p. 1120), com quem realiza todas as suas fantasias.
Em suas memórias, ao tratar da estreia de sua peça Anjo Negro, a primeira em que enfrenta diretamente o problema racial, o dramaturgo faz uma reflexão eloquente:

Eu não sabia ler nem escrever e já percebera uma verdade que até hoje escapa a Gilberto Freyre: – não gostamos do negro. Nada mais límpido, nítido, inequívoco, do que o nosso racismo. E como é humilhante a relação entre brancos e negros. Os brancos não gostam dos negros; e o pior é que os negros não reagem. Vejam bem: – não reagem (RODRIGUES, 1993a, p. 225).

No teatro de Nelson Rodrigues, tal como em sua constatação no que diz respeito à vida real, os negros não apenas não reagem como introjetam o racismo de que são vítimas, a ponto de negarem a própria cor. Ismael, protagonista de Anjo Negro, nega sua cor para sua filha pequena, dizendo, antes de cegá-la, que ele era o único branco no mundo e que todos os outros eram negros. Já em Bonitinha, mas Ordinária, um dos negros que estupram Maria Cecília diz: “Quem me chama de negro, morre! Eu mato! Eu não sou negro!” (RODRIGUES, 1993a, p. 1029).

Sexo e dinheiro

A catástrofe que se abate sobre a grande maioria dos personagens de Nelson Rodrigues, fazendo com que encontrem a morte, o banimento ou a loucura, resulta sempre de um conflito entre os valores culturais – especialmente os morais – consagrados pela coletividade de que fazem parte e as solicitações obscuras de sua interioridade. Por baixo de uma frágil capa de civilização que os faz aderir a padrões de comportamento que tornam possível a convivência em sociedade, ainda que tal adesão se realize apenas como aparência, há todo um mundo interior incompreensível, composto por pulsões, desejos e fantasias que estão para além de todos os interditos. Só lhes resta apegar-se à cultura em sua dimensão ética e moral como antídoto contra esse mundo de trevas que não convém provocar e precisa ser controlado, especialmente pelo fato de ser muito tentador. No entanto, a maioria dos personagens do dramaturgo sucumbe à irrupção dessas forças interiores. Quando isso acontece, é através do sexo que os padrões de convivência são violados, fazendo vir à tona uma animalidade primal que não tem lugar na vida em sociedade. Os tabus que são quebrados nas peças de Nelson Rodrigues são sempre de natureza sexual: incesto, homossexualismo, adultério, prostituição, pedofilia. Sendo aquilo por meio do que surge a vida, quando corrompido por sua prática desvinculada do amor, o sexo frequentemente provoca a morte.
O amor é, portanto, a vazão possível para esse magma que carregamos nas profundezas de nossa psique. A própria recusa ao sexo é muito perigosa, pois “o casto é um obsceno”, como afirma Patrício em Toda Nudez Será Castigada (RODRIGUES, 1993a, p. 1056).
No processo de relacionamento entre as diversas classes sociais no teatro de Nelson Rodrigues, o sexo é um dos grandes agentes corruptores de pessoas de todos os níveis econômicos. Para começar, muito raramente os mais pobres deixam de ser vistos preconceituosamente pelos ricos e mesmo por membros da classe média como figuras reduzidas a uma sexualidade exacerbada e grotesca, o que muitas vezes é uma projeção da própria sexualidade exacerbada e grotesca daqueles que acreditam estar por cima. Em Anti-Nelson Rodrigues, Salim Simão declara que “sexo é para operários” (RODRIGUES, 1993a, p. 480). Em Perdoa-me por Me Traíres, Nair, adolescente grávida com planos de abortar, conta: “Imagine: a minha empregada, que põe fora um filho por mês, me ensinou uma porção de troços” (RODRIGUES, 1993a, p. 793). E uma grã-fina, em Boca de Ouro, completa: “Minha cozinheira tem os filhos em pé!” (RODRIGUES, 1993a, p. 912).
Na obra de Nelson Rodrigues, muitas vezes os pobres são usados como objetos sexuais por maridos infiéis, esposas frustradas, adolescentes em vias de iniciação na vida adulta. Cidadãos respeitáveis de meia-idade ou mesmo de idade avançada são clientes de bordéis onde mocinhas dos subúrbios lhes são oferecidas como um manjar. Empregadas e empregados domésticos são possuídos por patrões e patroas, o que também ocorre no âmbito de empresas. O prestígio dos poderosos coloca-os acima da lei. É o que o garçom de bordel Pola Negri deixa muito claro em Perdoa-me por Me Traíres: “Em primeiro lugar, aqui só entra deputado, quer dizer, freguês com imunidades. Te pergunto – a polícia vai prender um deputado? Com que roupa?” (RODRIGUES, 1993a, p. 758). Na mesma peça, Dr. Jubileu de Almeida confirma isso com sua versão de nosso conhecido “você sabe com quem está falando?”: “Pensa talvez que eu sou algum borra-botas! Diz-lhe quem eu sou! (...) Diz que os jornais me chamam de reserva moral! Explica, também, que eu sou professor catedrático!” (RODRIGUES, 1993a, p. 790).
Por sua vez, muitos pobres veem na sua objetificação pelos ricos a chance de se dar bem e realizar sonhos de ascensão que lhes são vedados por meio do trabalho. E outros, como Boca de Ouro, que enriqueceu na prática do crime, sentem a volúpia da desforra através da humilhação sexual das grã-finas que o procuram, além de consumir sexualmente toda uma longa série de amantes suburbanas subjugadas por seu poder econômico e seu mito de homem viril. Por fim, ricos ou pobres, todos se desumanizam ao chafurdarem na lama do sexo sem amor, liberando seus demônios interiores. O resultado é sempre e inevitavelmente o isolamento, tal como o de Ismael e Virgínia, em Anjo Negro, fechados numa casa sinistra; ou o clã endógeno de Jonas em Álbum de Família, sozinhos numa fazenda no meio do nada, com o filho Nonô enlouquecido e animalizado depois de haver possuído sexualmente a própria mãe; ou Olegário, em A Mulher sem Pecado, sozinho depois da fuga da esposa com o chofer, após atormentá-la com insinuações de adultério; ou ainda Herculano, em Toda Nudez Será Castigada, com a segunda esposa morta por suicídio e o filho em fuga para a Europa com o ladrão boliviano que o violara.
O outro grande agente corruptor no jogo entre as classes sociais é o dinheiro, que muitas vezes aparece associado ao sexo. Por causa dele, vários personagens de Nelson Rodrigues rompem os limites da moralidade e também se desumanizam. Tal como no caso da degradação sexual, eles também acabam por se isolar quando isso acontece.
É comum que os próprios personagens sejam conscientes da contaminação do caráter dos indivíduos e das relações sociais pelo dinheiro. É o que assevera Salim Simão, em Anti-Nelson Rodrigues: “O dinheiro corrompe. Qualquer um.” (RODRIGUES, 1993a, p. 495). Em Toda Nudez Será Castigada, o cínico Patrício diz ao irmão: “Você me insulta, porque me dá dinheiro! Insulta porque me paga!” (RODRIGUES, 1993a, p. 1077).
Há aqueles que acreditam que o poder monetário não tem limites. Para o mesmo Salim Simão, “o dinheiro compra tudo” (RODRIGUES, 1993a, p. 511). Na mesma peça, Gastão afirma que “dinheiro compra até amor verdadeiro, (...) também compra misericórdia” (RODRIGUES, 1993a, p. 512). Depois de enfiar cédulas nos bolsos do dentista, a quem ordena que substitua seus dentes perfeitos por uma dentadura de ouro, e ser questionado sobre se estava desacatando o profissional, Boca de Ouro, na peça homônima, retruca que “dinheiro não desacata ninguém” (RODRIGUES, 1993a, p. 882), destruindo com seu gesto a ética e o profissionalismo do outro. Depois de promover o defloramento de três mocinhas do subúrbio numa orgia que patrocina, Dr. Werneck, em Bonitinha, mas Ordinária, acredita que a virgindade delas pode ser simplesmente reconstituída por um médico que ele pagará.
Há todo um rol de personagens corrompidos pelo dinheiro. Zulmira, em A Falecida, envia o próprio marido traído para obter, com o amante, o dinheiro que tornaria possível realizar sua fantasia de um enterro de luxo. Em Os Sete Gatinhos, depois de perder as ilusões de casar a filha caçula à maneira tradicional, por dinheiro “Seu” Noronha abandona o emprego com a intenção de inaugurar na própria casa um bordel de filhas. Em Boca de Ouro, ao tomar conhecimento de que a mulher o trai com um homem da zona sul do Rio de Janeiro, Leleco diz a ela: “Você não pode ter amor por esse velho. É dinheiro. (...) Onde é que você enfia o dinheiro? O dinheiro que o velho lhe dá? (...) Você tem um amante. Amante rico. E vamos tomar dinheiro desse sujeito.” (RODRIGUES, 1993a, p. 907). Peixoto, em Bonitinha, mas Ordinária, marido comprado, diz para Edgard, noivo em processo de compra: “Você vai acabar como eu. Vai cair de quatro diante do dinheiro! Sabe o que é o dinheiro? O tutu?” (RODRIGUES, 1993a, p. 1026). Nem mesmo adolescentes de boa condição social escapam do miasma do dinheiro, como destaca Pola Negri ao definir o estabelecimento onde trabalha, em Perdoa-me por Me Traíres: “uma casa infanto-juvenil, que oferece alunas dos melhores colégios, a fina flor de dezessete anos para baixo, as filhas de famílias fabulosíssimas... vêm aqui, por dinheiro... (...) São pagas! Pagas!” (RODRIGUES, 1993a, p. 786).
Há os que, sentindo-se corrompidos pelo dinheiro, pretendem livrar-se dele para resgatar o amor de pessoas importantes em suas vidas, para purificar-se ou para começar vida nova. Gastão, em Anti-Nelson Rodrigues, diz para a esposa: “Tereza, quero que, ao morrer, meu cadáver tenha de você e do meu filho uma coisa parecida com amor. Dou tudo em vida e só quero para viver um salário de contínuo.” (RODRIGUES, 1993a, p. 512). Embora vivendo sempre no limite e cometendo as maiores abjeções, já que a guerra nuclear pode estourar a qualquer momento e varrê-lo da face da Terra, Dr. Werneck, em Bonitinha, mas Ordinária, pretende se livrar de suas posses antes de deixar este mundo: “Eu estou me despedindo. Estou dando adeus. Adeus às minhas empresas, aos meus cavalos! Cavalos, adeus! Nós vamos morrer. Tudo vai morrer.” (RODRIGUES, 1993a, p. 1041). Embora nada verbalize sobre o ato de desfazer-se do dinheiro sujo como meio de salvação, ao jogar para o alto a grande quantia de cédulas extorquidas do amante de sua mulher, em pleno Maracanã, durante a final do Campeonato Carioca, Tuninho realiza um ato que fala por si mesmo.
Por fim, há aqueles que se recusam a vender-se por dinheiro. Pela raridade dessa atitude, uma peça em que isso acontece e em que ocorre o triunfo da honestidade fundamentada no amor foi intitulada Anti-Nelson Rodrigues. Após receber de seu patrão Oswaldinho, que há muito vinha assediando-a, um cheque de altíssimo valor por uma noite de sexo, Joice rasga a ordem de pagamento em pedacinhos, joga-os no rosto do rapaz e esbofeteia-o, antes de lhe dizer: “Seu idiota, não quero teu dinheiro, quero teu amor.” (RODRIGUES, 1993a, p. 516). E Edgard, em Bonitinha, mas Ordinária, age de forma semelhante após dilacerar-se em tentação. Somente depois de rasgar o cheque de cinco milhões que o compraria como marido de uma mocinha extremamente devassa, ele consegue se livrar da frase de Otto Lara Resende que justificava todas as desonestidades, podendo ver o nascimento do simbólico sol de uma vida nova em que poderá amar e ser amado por Ritinha.

Considerações finais

Como se viu, no teatro de Nelson Rodrigues as relações entre as classes sociais no Brasil são, muitas vezes, o pano de fundo para conflitos resultantes de forças que emergem da interioridade de suas personagens e entram em choque com os padrões morais que regem a vida em sociedade. Embora o foco de interesse do dramaturgo esteja nesses conflitos, seu conhecimento profundo da cultura de nosso país – obtido numa trajetória biográfica muito intensa e muito densa, numa extensa atuação profissional como jornalista cobrindo os mais diversos campos da atividade humana e numa prática constante de leitura e reflexão crítica – permitiu que em suas peças as relações entre os diversos estratos da sociedade fossem apresentadas com a grande acuidade do excepcional observador e crítico da vida brasileira que ele foi. Infelizmente somos obrigados a constatar que, nos nossos dias, se os padrões morais se transformaram bastante em relação àqueles vigentes em meados do século passado, quase nada mudou na realidade social que ele expõe em seus trabalhos.

Referências bibliográficas

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Resumo: : Em sua obra teatral, Nelson Rodrigues expõe criticamente as relações de classe no Brasil como pano de fundo para os conflitos entre a desordem interna de seus personagens e a ordem social em que estão inseridos, tema constante de seus trabalhos. Este artigo focaliza como se dão essas relações de classe em sua obra dramática, explorando cinco aspectos significativos: as profissões, os lugares, a relação entre ricos e pobres, a relação entre brancos e negros, o sexo e o dinheiro como agentes de corrupção de todas as classes.
Palavras-chave: : Nelson Rodrigues; estratificação social; Brasil; ordem e desordem.

Abstract: In his plays, Nelson Rodrigues critically exposes class relations in Brazil as a backdrop for the conflicts between the internal disorder of his characters and the social order they are part of, which is a constantly approached subject in his works. This article focuses on how these class relations take place in his plays, exploring five significant aspects: professions, places, rich and poor relation, black and white’s relation, sex and money as corruptors of all classes.
Keywords: Nelson Rodrigues; social stratification; Brazil; order and disorder.

Recebido em: 06/2/19
Aceito em: 10/3/2019

  • 1 Professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais; Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo; Pós-Doutor em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas.