Bruno Miguel Gouveia Antunes1
Universidade de Lisboa
brunantes@hotmail.com
“ego contra hoc quoque laboris praemium petam,
ut me a conspectu malorum quae nostra tot per annos uidit aetas,
tantisper certe dum prisca tota illa mente repeto, auertam”
Titus Livius, Ab Urbe Condita
a) Situando geograficamente, e não só, o tema a tratar
Perseguir os seus sonhos é amplamente considerado como uma fonte de motivação inesgotável para animar as iniciativas de cada indivíduo, tal como um importante marco para fixar os objetivos pessoais e assim conferir uma orientação e uma direção magnética no decurso de cada vida e em cada encruzilhada servir como referencial incontornável nas estratégias de tomada de decisão. Mais literalmente, esta expressão poderia implicar que o indivíduo se ponha efetivamente em marcha, a caminho, encetando um curso de ação concreto, no mundo físico, tendo por base representações de imagética virtual pertencentes a um mundo outro: o horizonte imaginativo e figurativo inerente à própria mente. As recentes descobertas das neurociências,2 confirmando, outrossim, as intuições das investigações fenomenológicas de Edmund Husserl, e outros,3 permitem inferir que essa padronização tem uma eficiência muito mais ubíqua, penetrante e intrusiva do que habitualmente se poderia supor. Com efeito, qualquer processo de interação com o meio envolvente pressupõe todo um complexo encadeamento articulado por representações mentais antecipativas, de caracter evidentemente virtual.4 De modo figurado, ou de modo denotado, perseguir antecipações, quimeras, sonhos é aquilo que fazemos, a todos os instantes, na realidade. Mais radicalmente ainda, aquilo mesmo a que costumamos chamar “realidade” não é dada a experimentar senão na representação mental que dela fazemos. É hoje ponto assente, não só na filosofia, mas também nas ciências cognitivas, que o mundo e os objetos do mundo que cremos percecionar, de facto, representamo-los, nunca acedendo em última instância mais além do que à nossa versão das coisas, em nós (e não à “coisa em si” – Ding an sich – tal como Immanuel Kant5 já perspicazmente assinalara).
Por vezes, porém, a cenografia imaginativa da mente evolui para o estágio de conceber reinos inteiros de imaginário, confabulando com base em lenda, senão, quiçá, meros rumores. De tempo a outro, tais reinos imaginários magnetizam tal força de atratividade, ao ponto de motivarem, autenticamente, expedições e viagens de exploração e descobrimento. A Atlântida, ou o mito do Eldorado, são exemplos cabais da potência de fascínio e atração gravitacional da antimatéria de tais (porventura insubstanciais para a física, mas não indiferentes para a volição) buracos negros (ausentes) dos mapas geográficos sérios. Outro destes cativantes reinos inefáveis, porventura menos globalmente difundidos, mas sumamente influentes nas culturas e nas literaturas de língua portuguesa, que infundiram e que insuflaram o globo6, Terrestre, é o designado Reino do Prestes João das Índias que consistiu um inegável polo magnético de atratividade em torno do qual importantes projetos de navegação náutica gravitaram, desde o desenvolvimento de rotas comerciais marítimas da Europa até à Índia (passando por África, evidentemente) e, não esquecendo, até, que a viagem de Cristóvão Colombo, alegadamente descobrindo o continente que viria a chamar-se americano, fora inicialmente direcionada para “Cataio” (China) e essa Índia do imaginário; e que, só por (essa) coincidência, acabou por apelidar-se “índios” os nativos do Novo Continente, que mais coerentemente se poderia apelidar de Nova Atlântida, como quis sir Francis Bacon (BACON, 1627).
Obviamente que a propósito (ou a despropósito) do mito do Prestes João das Índias já mais tinta discorreu dos tinteiros dos literatos, curiosos e eruditos, do que águas desaguaram na foz do Tejo, do Congo, do Ganges e do Amazonas, juntas (mesmo que, figurativamente, claro está). Dando-me ao trabalho, ao enfado, mas também, por vezes, ao deliciado prazer de percorrer algumas milhares de páginas escritas sobre a matéria (mesmo que não tão figurativamente assim) pude encontrar revisões detalhadas de toda a sorte de missivas e de crónicas que reportam do confabulado Reino, pude encontrar também pesquisas judiciosamente meticulosas acerca da salganhada dos imbróglios da política europeia (e isto ainda apenas na Idade Média) focando-se, essencialmente, nas tensões relacionais entre o poder do Papado e o poder que o quereria papar, o do Imperador Romano-germânico, Frederico I (1122-1190), cognominado Barbarossa. Nenhum dos especialistas que consultei confere qualquer tipo de credibilidade à real existência de tal Reino (o do Prestes), tal que descrito na carta apócrifa endereçada ao Imperador Bizantino e, como tal, muitos são os que argumentam que as inúmeras versões e traduções da dita carta não passam de fraudes. Alguns especialistas virão mesmo realçar que tanto as cartas a Manuel I Comneno (de Bizâncio), quanto a audiência de Hugo de Jabala (ou Jableh, como hoje se diz) com o Papa Eugénio III em Viterbo (1145), poderiam não passar de uma conspirativa manobra política (e, sem dúvida, teriam sido efetivamente instrumentalizadas politicamente) com vista a reforçar o poder imperial, por um lado e, por outro, a reconfortar, ou a revigorar, o fervor dos cristãos europeus após o fiasco monumental do malogro das Cruzadas. Por muito que tanto a carta a Comneno quanto o relato do Bispo Franco da Síria (Hugo de Jabala) situassem o Reino do Prestes na Ásia, “ultra Persidem et Armeniam in extremo oriente”7, a maioria dos especialistas focar-se-á sobretudo na Europa, nas suas intrigas de bastidores e, porventura, vagamente buscarão correlatos na história militar da Ásia Central e acharão aí algumas similitudes intrometidas com os conflitos militares descritos pelo sírio Bispo, que, afinal, era franco. Outros ainda, acerca da Etiópia informam, como a verdade verdadeiramente verdadeira e última que ponha fim às elucubrações sobre o paradeiro incerto do intangível e desaparecido Rei e Preste (apud. Hugo: rex et sacerdos). A páginas tantas, e muitas foram elas, o que desapontadamente nunca cheguei a encontrar foi quem tentasse verificar se nas mitologias centro-asiáticas alguma semelhança com esta lenda fosse mais do que mera coincidência e achei por bem que tal trabalho se fizesse e por isso (mesmo que sem vencimento, e a crédito) fi-lo.
Ainda sem muito esgravatar, logo uma pista se me deparou, merecedora que a farejasse (farejar somente, que trincar não se mo permite): existe de facto uma tradição (pelo menos uma) oriunda da Ásia Central e atualmente difundida no mundo inteiro, quer pela sua derivação num livro e num filme de grande audiência, quer pela sua retransmissão assente numa linhagem, assumidamente autêntica, que apresenta semelhanças notáveis com a tipologia do Rei Preste e do seu Reino celestial – trata-se do Reino (inefável) de Shambhala que permeia os ensinamentos do mestre Tibetano que estabeleceu o Budismo na América, Chögyam Trungpa Rinpoche, e que permeia ainda o ritual de transmissão mais amplamente deferido por Sua Santidade o Dalai Lama, a largas audiências, designadamente o da “Roda dos Tempos” ou, em sânscrito, Kalachakra.
Esquematicamente, podemos esboçar assim uma listagem provisória das similitudes:
1. Os confins geográficos dentro dos quais ambos reinos míticos alegadamente se situariam
2. A descrição deslumbrante e miraculosa desses reinos
3. O pendor marcial do monarca e de seus súbditos
4. A atitude sacral do suserano: “rex et sacerdos” – rei e sacerdote
5. Uma particular forma de abordagem à espacialidade e à temporalidade
Esta lista, porém, não serve de índex nem de plano de exposição, nem será porventura exaustiva. Ficará cumprida a tarefa porquanto estes itens vierem, contudo, a aclarar-se ao longo da apresentação que aqui se irá explanar de forma, esperemos, fluída e cativante, para proveito e contentamento dos estimados leitores.
b) 1627, o ano do contacto
Como já opinava o poeta antigo, começarei da melhor das três maneiras possíveis: nem pelo fim, que ainda não chegou, nem pelo princípio (que se fixaria, creio, num in ovo arbitrário, pois é, ora, demasiado longínquo de apreender), mas sim através do meio, in medias res – como escrevera Horácio (FLACCUS, Ars Poetica, vs. 147-148): direto ao cerne da matéria. Reportemo-nos, pois, ao século dezasseis, pois esse ponto é um ponto de viragem. Por um lado, o fulgor da lenda quase se desvanece ao retomar-se o contacto com populações cristãs na Índia e sobretudo na África Oriental, por outro lado a lenda renasce, não na mesma forma, mas não perdendo a mesma essência, o que explicita o entrelaçamento histórico factual que levou europeus, sobretudo portugueses, ainda vagamente buscando pelo espectro do Prestes João a depararem-se, logo no século seguinte (1627), com a, algo análoga, lenda de Shambhala.
A partir do século dezasseis os europeus começarão a perder interesse por continuar a procurar o Reino do Prestes. O encanto desvanecia. Pois, em grande medida, as especulações acerca do paradeiro do Prestes Rei estavam sendo largamente dissipadas pela publicação em 1540 pelo Padre Francisco Álvares da Verdadeira Informação das terras do Preste João das Índias. Esse seu livro tornou-se extremamente célebre e foi amplamente difundido, tendo sido traduzido, na época, para diversos outros idiomas europeus. O livro consiste num relato descritivo acerca da Etiópia, onde Álvares havia vivido durante seis anos. A Etiópia era, de facto, um reino cristão, sendo inclusivamente o único reino cristão encontrado por emissários portugueses a caminho da Índia: nomeadamente, refiro-me aos emissários a quem D. João II outorgara a missão de ir para oriente em busca do Prestes, nomeadamente Afonso de Paiva, que alcançou o reino cristão da Etiópia, e Pero da Covilhã, que alcançou o reino, igualmente cristianizado, de Kerala, no sul da Índia.8 Francisco Álvares descreve a Etiópia enquanto um rude e tosco ermo, sem vestígios de sofisticação alguma. Quase o oposto da fabulosa terra de prodígios com que os ocidentais, há séculos, fantasiavam. Mal do menos, a Etiópia era cristã e isso já era o bastante para que se encetasse uma parceria logística e estratégica Luso-Etíope que durou 150 anos (até que o cristianismo etíope veio a ser declarado herético pelas autoridades eclesiásticas católicas). Não obstante, ainda antes mesmo do século dezasseis chegar ao fim, o mito iria reacender-se, assumindo uma nova forma, mas num novo contexto:
Foi um evento na corte de Akbar que uma vez mais atraiu a atenção para esse território perdido. “Um dia,” escreveu Xavier, de Lahore para Goa, em 1598, “um mercador maometano de aproximadamente sessenta anos de idade, foi admitido à presença de Akbar e relatou que provinha de Cataio a caminho de Meca. Pretendendo ser um embaixador, havia penetrado no país e vivido na capital, Xambalu, durante trinta anos. Era um poderoso império, o rei reinava sobre 1500 cidades, algumas das quais continham uma imensa população. Muitas das pessoas eram isauitae [seguidores de Jesus – cristãos] mas não todas, pois havia também mussavitae [seguidores de Moisés – judeus] e maometanos.”9
O “território perdido” a que Wessels se refere no parágrafo acima é Cataio e não propriamente o Reino do Prestes João. Mesmo assim, renasce aí (nessa conversa ocorrida na corte do Grão-Mogol em Lahore) a ambição antecipativa de reencontrar na Ásia, senão um reino cristão, pelo menos um reino onde muitos cristãos viveriam.10 A Europa tinha notícia da existência de Cataio, mas na época ainda era incerto e controverso se Cataio e a China eram a mesma nação e, caso contrário, onde exatamente é que Cataio se situaria. Ainda no século XIII, já alguns frades franciscanos idos para oriente mencionam Cataio nos seus escritos: Giovanni da Pian del Carpini (1246), na sua Ystoria Mongalorum, Willem van Ruysbroeck (1254) e mais tarde Odorico Pordenone (1316-1328). Além destes três frades franciscanos, ainda Marco Polo igualmente discorre sobre Cataio. Todos estes autores explicam que “Cataio” é o nome dado pelos Tártaros à região cuja capital é Cambaluc.11
Todos os viajantes falam de um grande número de cristãos nestas paragens, mas eram sobretudo nestorianos, e houve encontros sucessivos entre eles e os franciscanos, quando estes últimos foram chamados a Cataio pelo Kublai-Khan pelos finais do século XIII. No decurso dos anos seguintes os católicos cresceram em tão largo número que o Papa Clemente V julgou necessário enviar-lhes bispos, e em 1307 Giovanni da Montecorvino foi nomeado bispo de Cambaluc em Cataio.12
No dealbar do século XIV havia, pois, um arcebispo de Cambaluc em Cataio. Contudo, o império de Kublai Khan foi de curta duração, começando a dissolver-se em meados do século XIV e, em finais do século XVI, já há muito se haviam interrompido todos os contactos com os cristãos da região centro-asiática. Eis porquê se tornava tão inspiradora a comunicação que os missionários jesuítas testemunharam na corte de Akbar em Lahore. Esta nova indicação motivaria a Missão Jesuíta de Goa a encetar uma série de expedições em busca de Cataio, através da região do atual Afeganistão até à China; através de Cachemira e subindo os Himalaias, adentrando o Ladhak e, por fim, o Butão e o Tibete. Após a expedição inicial de Bento de Goes ter alcançado Su-Cheu (China) em 1605 onde este veio a falecer dois anos depois, António de Andrade viria a alcançar o reino do “Potente” (isto é, o Tibete) em 1624. Estas viagens demonstraram-se muito frutuosas para os intuitos de missionação dos jesuítas. Em Tsaparang, no reino de Guge, no Tibete Ocidental, Andrade erigirá uma igreja e fundará a primeira missão católica no teto do mundo, missão que deveria servir de posto avançado para lançar futuras expedições que ainda mais longe alcançassem… Cataio, contudo, continuava impossível de localizar: “Colocámos questões meticulosas acerca do reino de Cataio, e não obtivemos notícias acerca dele, sob esse nome, que é aqui totalmente desconhecido” relatou o missionário Estevão Cacela na carta que enviou ao seu superior, Padre Alberto Laércio, o provincial da província este-indiana do Malabar, a 4 de Outubro de 1627, “relatando a sua viagem a Cataio até ter atingido o Reino do Potente”. Malgrado os seus árduos esforços e aventurosas jornadas, os missionários jesuítas não foram, pois, bem- sucedidos no que respeita à recolha de informações sobre o reino de Cataio. “No entanto,” acrescenta Cacela, “há aqui um reino muito renomado a que chamam Xembala.”13 Assim se conclui que a primeira menção a Shambhala num escrito em línguas europeias se encontra nessa carta (entretanto publicada) escrita por Estevão Cacela em 1627, precisamente 357 anos antes de Chögyam Trungpa Rinpoche vir a publicar em língua inglesa (em 1984) o celebrizado livro Shambhala: The Sacred Path of the Warrior.
c) O cravinho, a canela, o Pero, o Preste, o Vaz e o Vasco
Como acima mencionei, mesmo antes ainda de o Padre Francisco Álvares ter estado na Etiópia (e ter escrito a Verdadeira Informação das terras do Preste João das Índias) já el Rei D. João II havia enviado emissários para leste, para buscarem, por terra, pelo Reino do Prestes João. Após dois frades haverem regressado da sua viagem que não fora, porém, além de Jerusalém, e isto, sem que relevantes informações se recolhessem, resolveu então o Rei ordenar a Pero da Covilhã e a Afonso de Paiva que ampliassem a averiguação.14 Começaram a viagem juntos, partindo de Santarém a 7 de maio de 1487. Posto atravessarem a Península Ibérica, por terra, navegaram desde Barcelona até Nápoles, depois até Rhodes e finalmente até Alexandria, onde, novamente por via terrestre, continuaram o seu périplo, atravessando agora regiões islâmicas. Disfarçados de mercadores, já que ambos falariam fluentemente árabe. Juntaram-se a uma caravana no Cairo, que já vinha atravessando todo o Norte de África, desde Fez, e rumaram a leste e depois para sul descendo toda a Península Arábica até Áden. Em Áden separaram-se, Afonso de Paiva velejou para oeste, até à Etiópia e Pero da Covilhã para oriente, até à Índia, primeiro a Cananor e chegando finalmente a Calecute em novembro de 1488.
Aí ter-se-á apercebido que o Prestes João, afinal, não era o líder da Índia, como rezava a lenda… Contudo, tal qual como o fabuloso lugar descrito na lenda, a Índia era efetivamente farta em especiarias e as especiarias talvez não fossem apenas umas das motivações colaterais da obsessão pela busca pelo famigerado Reino do Prestes João (pelo menos, assim o indicam diversos historiadores, e não só os de matriz mais vincadamente economicista, mas a esta distancia, impossível será saber com certeza, só possível é conjeturar)… Facto é que os portugueses estavam cientes do interesse económico do mercado de especiarias, pois haviam conquistado a cidade de Ceuta (em Marrocos), já em 1415, um importante polo de transações onde confluíam longas rotas comerciais, algumas trazendo especiarias, justamente. Sabia-se, pois, factualmente, virem as especiarias do oriente. De onde exatamente? Especular-se-ia, quem sabe, talvez proviessem mesmo dessa terra envolta em mistério para lá da Pérsia e da Arménia no extremo oriente tal como os relatos da lenda do Prestes João afiançavam. Passando da lenda à realidade, Pero da Covilhã recolheu, pois, na Índia, informações detalhadas acerca de duas coisas absolutamente cruciais: por um lado, a proveniência das próprias especiarias, por outro, acerca das rotas mercantes que as escoavam.
Acerca da proveniência das especiarias aprendeu que a canela vinha do Ceilão, que a noz moscada vinha da Malásia, que as rotas das especiarias convergiam em Calecute e que aí o cravinho, o gengibre e a pimenta superabundavam. Concernindo as rotas de escoamento, observou que Calecute era o principal porto de comércio na região, despachando um fluxo de mercadorias ainda mais significativo do que os portos de Goa ou mesmo de Ormuz que, ambos, visitaria na sua viagem de regresso. Ficou assim esclarecido que as especiarias eram embarcadas em Calecute rumo ao Mar Vermelho e daí, ou para Veneza, através do Mediterrâneo, ou então percorrendo todo o Norte de África nas caravanas, semelhantes àquela em que (em sentido contrário) tinham vindo desde o Cairo e que havia partido da longínqua ocidental praça marroquina, de Fez. Mas Pero da Covilhã aprendeu ainda outra coisa que iria ter um impacto de extrema importância na história da globalização do mundo, logo nas décadas subsequentes: aprendeu que já existiam rotas marítimas (e que já eram praticadas desde há séculos e provavelmente milénios, mesmo) ligando a Índia e a costa oriental de África. Decidiu, pois, e ajuizadamente, ir ver isso com os próprios olhos (já que com os olhos dos outros consta que não fosse capaz de ver…). Em dezembro de 1489, partindo de Ormuz, velejaria até Melinde (hoje no Quénia), Kilwa Kisiwani (hoje na Tanzânia), Sofala (hoje em Moçambique) e, por fim até às ilhas este-africanas de Moçambique e de Madagáscar, tendo sido (de que há notícia) o primeiro português (e europeu) a chegar a essas paragens.
O conhecimento acerca destas rotas marítimas revelou-se um fator decisivo. Visto que, recentemente, o cabo da Boa Esperança havia sido dobrado (no ano anterior, 1488) pela primeira vez, por Bartolomeu Dias, os navegadores portugueses já estavam começando a velejar no extremo sul da costa este do continente africano. Agora aprendiam que não necessitavam de navegar sempre ao longo dessa costa até ao extremo norte da mesma, na confluência com a Arábia e as regiões dominadas por inimistosos islamistas, mas que, com segurança, poderiam navegar diretamente para noroeste, atravessando o Oceano Índico. Seguindo os conselhos prodigados por Pero, pois que este já havia navegado essas águas com mercadores árabes, só que em sentido contrário, Vasco da Gama alcançaria as costas indianas, velejando para norte a costa este-africana até (adivinhe-se) Melinde e daí atravessando o Oceano Índico (exatamente a viagem que Pero da Covilhã já havia feito, só que em sentido inverso). Daqui se conclui que o inflado herói de que rezam os Lusíadas de Camões, quando dizemos que descobriu o caminho marítimo para a Índia, afinal o que estamos a dizer é que descobriu como é que se poderia ir da Cidade do Cabo até Moçambique por mar (ainda não havia comboios…), porque, dobrar o cabo, foi Bartolomeu Dias que o conseguiu e, de Moçambique para cima, já há muito que se navegava, e até o próprio Pero da Covilhã já havia tripulado nessas rotas, sob capitania alheia, claro está… E assim aportou a expedição de Gama em Kappadu, perto de Calecute, a 20 de maio de 1498 ou, como reza a estância 666 dos Lusíadas:
Já se viam chegados junto à terra / Que desejada já de tantos fora, / Que entre as correntes Índicas se encerra / E o Ganges, que no Céu terreno mora. / Ora sus, gente forte, que na guerra / Quereis levar a palma vencedora: / Já sois chegados, já tendes diante / A terra de riquezas abundante (Camões, 1572, p. 113)15
Seguidamente, após Afonso de Albuquerque “levar a palma vencedora” sobre Goa, conquistando-a em 1510, a administração colonial portuguesa e, com ela, a missionação jesuítica, implanta-se firmemente na Índia e, daí, pela Ásia meridional, ultra-taprobanal e mesmo extremo-oriental (o que não foi, de modo algum, banal…). E eis, pois, que, exatamente cem anos volvidos sobre a chegada de Gama à Índia, e mais alguns dias, 25 de julho (de 1598) e não 20 de maio (de 1498), Jerónimo Xavier estaria enviando a sua cartinha desde Lahore, para o dirigente da missão jesuítica de Goa, a carta que motivaria os jesuítas a empreenderem expedições em busca de Cataio, chegando porquanto ao Tibete e aí ouvindo falar de Shambhala…
d) Os tempos em roda, de Shambhala
A 4 de Outubro de 1627 a menção a Xembala (leia-se Shambhala) na carta que Estevão Cacela enviou desde o Tibete, não despertou, por aí além, curiosidade no ocidente. Pelo menos, não tanta quanto a carta medieval descrevendo o Reino do Prestes João havia suscitado, ou até mesmo a carta que Jerónimo Xavier enviara de Lahore, em 1598, propagando o diz-que-diz-que muitos cristãos viveriam em Cataio. Somente no século XX é que o imaginário dos ocidentais começará a pôr a designação de Shambhala em vinhetas de paisagens mentais idealizadas, enquanto um rótulo de origem demarcada. Primeiramente, por inspirar o romance, de James Hilton, Lost Horizon, de 1933, que atingiu índices de grande popularidade, especialmente após Frank Capra o ter adaptado ao cinema em 1937. Nessa ficção, um grupo de ocidentais, cujo avião se despenhara nos Himalaias, alcança o mosteiro tibetano (fictício) de Shangri-La, cujos habitantes viviam em paz e harmonia, envelhecendo tão lentamente que alguns atingiam os 300 anos de idade, como o Lama superior que, vem-se a descobrir, era um ex-monge católico, proveniente do Luxemburgo, o qual haveria fundado e estabelecido aí, dois séculos antes, o tal mosteiro. Claramente, o autor havia sido inspirado pelos factos históricos relacionados com a missão católica jesuíta de Tsaparang e, não é por acaso que, a dada altura, o personagem principal do enredo, Hugh Conway, cônsul britânico no Afeganistão, acaba por encontrar na biblioteca (fictícia) do mosteiro de Shangri-La, um escrito (autêntico) da autoria do missionário português António de Andrade…16
Malgrado o estrepitoso êxito deste enredo ficcional, os ensinamentos tradicionais acerca de Shambhala, todavia, só começarão a chegar ao conhecimento do grande público, no ocidente, cerca de meio-século mais tarde. De permeio, deu-se a invasão do Tibete pelo exército vermelho chinês, implementando o que, do lado maoista (que se reconhece a si-mesmo, note-se, numa linha de continuidade com o Iluminismo europeu), se considerava e se denominava por “revolução cultural” e que, do lado tibetano (e nas palavras do seu sumo representante diplomático, o Dalai-Lama), é descrito como um “genocídio cultural” perpetrado contra a população tibetana e o seu legado ancestral (ainda está por teorizar a hipótese de o maoísmo ter sido, afinal de contas, o estágio mais sofisticado, senão, do colonialismo, pelo menos, da aculturação europeia da Ásia, tema a ser explorado, seguramente, num futuro próximo, por algum pesquisador ousado e diligente que se aventure). Por entre os inúmeros exilados tibetanos que, para sobreviver à invasão chinesa, tiveram de deixar o seu país de origem, a grande maioria eram budistas, e alguns eram inclusivamente grandes mestres do budismo contemporâneo. Dois dos mais extraordinários mestres budistas que tiveram de optar por abandonar o Tibete e vir para o exílio (mas não os únicos, houve muitos mais) irão tornar-se determinantes na transmissão, e na propagação mesmo, da doutrina budista pelo mundo fora e, particularmente no que toca ao tema em que nos focamos, das tradições que se relacionam com a terra pura de Shambhala. Tentaremos em seguida começar a aflorar essa temática tão particular e em muitos aspetos algo hermética ou mesmo algo desconcertante, sobretudo quando retirada do seu enquadramento específico, procurando, justamente, de dentro do contexto que a enquadra, encontrar apoio e orientação em obras de dois dos mais proeminentes autores tibetanos da contemporaneidade: o próprio Dalai Lama e Chögyam Trungpa Rinpoche.17
Ao ensinar no exílio, frequentemente a audiências ocidentais, um aspeto que o Dalai Lama mais tem enfatizado nas últimas décadas tem sido precisamente o Kālachakra Tantra, pois Sua Santidade ofereceu repetidas vezes ensinamentos e iniciações com base neste Tantra, não raramente em cerimónias atendidas por milhares de participantes, tanto na Ásia como inclusivamente no Ocidente. De acordo com essa tradição budista preservada no Tibete e agora difundida pelo mundo, Buda explanou os ensinamentos do Kālachakra Tantra “a pedido do Rei Suchandra (…) o Rei Suchandra era de Shambhala (…) Após escutar o tantra, o Rei regressou a Shambhala, escreveu uma longa exposição do mesmo e propagou o Budismo Kālachakra enquanto religião oficial”18.
No final da década de 1970, por seu turno, em Boulder, Colorado, nos EUA, Chögyam Trungpa começou a proporcionar aquilo que designou por Shambhala Training, e que apresentou como sendo a atualização para um contexto ocidental de uma ancestral tradição centro-asiática de exercício espiritual. Nascido no clã Mukpo19, na ponta mais ocidental do Tibete, descendendo em linha direta do Rei Gesar, de Ling (também ele “rex et sacerdos”)20, Trungpa virá para o ocidente após obter exílio na Índia. Dirigir-se-á primeiro para Inglaterra, onde completará uma formação universitária em Estudos Religiosos Comparativos, em Oxford, e depois para a Escócia onde fundará Samye Ling, o primeiro mosteiro budista tibetano do ocidente. Por último, irá para os EUA onde acabará por fundar o Instituto Naropa (hoje, Universidade Naropa) que contou, por entre os seus Professores fundadores, figuras como Alan Ginsberg, William Burroughs, Gregory Bateson e Francisco Varela. Mas, paralelamente a esta vertente universitária, Trungpa Rinpoche criou também uma rede mundial de praticantes dos ensinamentos que veiculou, designada por Shambhala International, que conta hoje com centros em diversas localidades de cada um dos cinco continentes. Assim se denota que Shambhala tem estado muito presente nos ensinamentos de dois dos (senão, dos dois) mestres tibetanos budistas mais proeminentes no que concerne a apresentar o budismo a largas audiências de ocidentais. Bem presente nos ensinamentos, muito ausente dos mapas: (tal como o Reino do Prestes João das Índias) Shambhala “não é achável”, explica assim o Dalai Lama…
O Kālachakra Tantra tem uma conexão especial com um país, Shambhala, bem como com a sua religião geral e, por isso, também deste ponto de vista, é algo único. (…) O Kālachakra Tantra, contudo, tem estado intimamente ligado com o país de Shambhala – as suas noventa e seis províncias, os seus reis e a sua corte. Ainda assim, se estenderem um mapa e procurarem por Shambhala, ela não é achável; antes, parece ser uma terra pura que, exceto para aqueles cujo karma e o mérito amadureceu, não se pode avistar ou visitar no imediato. Como é também o caso, por exemplo, da Terra Pura Feliz (dga’ ldan, tuṣhita), dos Territórios do Céu (mkha’ spyod), da Terra Pura de Beatitude (bde ba can, sukhāvatī), do Monte Da-la, e por aí fora, apesar de Shambhala ser uma terra pura real – uma terra pura real – ela não é imediatamente abordável por pessoas normais, como ao comprar um bilhete de avião. Talvez, se, no futuro, as naves espaciais se aperfeiçoarem ao ponto de poderem avançar mais rápido do que a luz, seja possível lá chegar, mas os bilhetes poderão ser caros! Com efeito, podemos considerar que os bilhetes sejam as ações meritórias, o que, portanto, requer que alguém seja rico em mérito para chegar lá. (GYATSO, 1985, pp. 166-167 [Tradução do autor])
De acordo com o Dalai Lama “Shambhala não é achável” e, contudo, tanto essa terra, quanto a “sua religião geral” têm uma “conexão especial” com o Kālachakra Tantra. Porquanto Shambala não seja achável, ela é uma “terra pura real”. “Terra pura” sendo uma noção empregue, por vezes, em certos contextos específicos das doutrinas do budismo. No parágrafo acima, o Dalai Lama dá cinco exemplos de “terras puras”, todas as quais não são acháveis, e todas as quais são reais nessa perspetiva contextual: Shambhala, a Terra Pura Feliz, os Territórios do Céu, a Terra Pura de Beatitude, o Monte Da-la, “e por aí fora”, o que significa que estes cinco exemplos de terras puras não serão, portanto, os únicos. Podemos, pois, interpretar que terra pura é uma noção, inerente a este contexto cultural budista, designando regiões reais que não são acháveis, ou que só se tornam percetíveis a partir do momento em que alguém se torna “rico em mérito”. A noção budista de “mérito”, aqui empregue, designa o resultado kármico produzido através da prática de ações positivas; positivas significando, neste contexto: para o benefício de (preferencialmente, todos os) seres sencientes. O acesso à perceção de Shambhala é, pois, mediado pela prática de repetidamente se empenhar em praticar ações positivas para o benefício de (todos os) seres sencientes e, correlativamente, de se empenhar também no cultivo do ponto vista privilegiado resultante de se empenhar em tão preciosa prática. Ainda por outra, quando o Dalai Lama escreve “Shambhala, bem como a sua religião geral”, está aqui implícito que essa “religião geral” que é a de Shambhala possa não ser, em todos os seus aspetos, exatamente a mesma, que a religiosidade mais geralmente praticada no Tibete, ou que possa mesmo não corresponder inteiramente a todas as outras formas do budismo, se bem que as esferas de ambas vertentes religiosas se devam sobrepor e entrelaçar, como é particularmente manifesto no caso do Kālachacra Tantra.
Na mesma linha, Chögyam Trungpa ensina de acordo com esta distinção: “apesar da tradição de Shambhala estar assente na sanidade e na gentileza da tradição budista, ao mesmo tempo, ela tem a sua própria base independente…” (TRUNGPA, 2004, p. 19 [Tradução do autor]). E no que concerne a sua localização geográfica:
Nos últimos anos, alguns académicos ocidentais sugeriram que o reino de Shambhala possa efetivamente ter sido um dos reinos historicamente documentados dos tempos primevos, tais como o reino de Zhang Zhung da Ásia Central. Muitos académicos, porém, creem que as histórias de Shambhala são completamente míticas. Por muito que seja fácil descreditar o reino de Shambhala enquanto pura ficção, também é possível ver nessa lenda a expressão de um desejo, profundamente enraizado e muito realmente humano, por uma vida boa e frutificante. De facto, entre muitos mestres budistas tibetanos, tem havido uma longa tradição que olha o reino de Shambhala, não como um lugar externo, mas como o solo ou a raiz da espertina e da sanidade que existe enquanto potencial dentro de cada ser humano. Desse ponto de vista, não é importante determinar se o reino de Shambhala é facto ou ficção. Em vez disso, deveríamos apreciar e mimetizar o ideal de sociedade iluminada que isso representa (…) cultivando diretamente quem e o que somos enquanto seres humanos. Com os grandes problemas que agora se deparam à sociedade humana, parece de uma importância crescente encontrar vias simples e não-sectárias de trabalhar connosco mesmos e de partilhar o nosso entendimento com outros. Os ensinamentos de Shambhala ou a “visão de Shambhala”, como esta abordagem é mais amplamente denominada, é uma dessas tentativas de encorajar uma existência íntegra para nós e para os outros. (Idem, pp. 18-19)
A tradição de Shambhala surte assim definida como sendo “geral”, também no sentido de ser mais do que uma particularização específica ao budismo ou outra qualquer tradição, assumindo-se como uma das “vias simples e não-sectárias”. Sendo, porém, inegável que comparte chão comum com outras tradições, nomeadamente budistas. Como referido acima, o Dalai Lama afirma que Shambhala “não se pode avistar ou visitar no imediato”; antes sobrevindo que, como formula Chögyam Trungpa, cultivar a “visão de Shambhala” pode resultar de (e em) mimetizar “o ideal de uma sociedade iluminada” (relembre-se, que esse também foi o ideal das diversas variantes do Iluminismo europeu, por muito que por vias bem distintas).
Não obstante, por muito que Shambhala seja não “achável”, e que não se possa diretamente localizá-la entre os demais reinos centro-asiáticos, primevos ou não, ela é para todos os efeitos claramente identificável enquanto uma por entre as diversas tradições que evoluíram no espaço cultural centro-asiático. Por um lado, relaciona-se com os ensinamentos do Kālachakra Tantra e está, portanto, relacionada com o budismo. Por outro lado, relaciona-se com “a premissa de que há uma sabedoria humana básica que pode ajudar a resolver os problemas do mundo” e “esta sabedoria” – escreve Chögyam Trungpa – “não pertence a nenhuma cultura ou religião, nem provem do Ocidente nem do Oriente. É antes a tradição da marcialidade humana que existiu em muitas culturas em muitas alturas ao longo da história”. O cerne da “visão de Shambhala” é, logo, “uma sabedoria humana básica” “não-sectária” e essa sabedoria é caracterizada enquanto “marcialidade humana”. “Marcialidade aqui não se refere a fazer guerra aos outros”, adverte Trungpa. “A agressão é a origem dos nossos problemas, não a solução. Aqui a palavra guerreiro é extraída do tibetano pawo, que literalmente significa ‘alguém que é corajoso’”. A sabedoria da marcialidade não deve, pois, ser confundida com a estupidez da agressão, mas antes reportar-se à “tradição do destemor”. Tendo esta tradição “existido em muitas culturas e muitas vezes ao longo da história”, e tendo produzido exemplos (porventura míticos) como Shambhala, mas também “os índios norte-americanos tinham uma tradição assim”, “isso também existia em sociedades índias sul-americanas”, “o ideal japonês do samurai”, “o Rei Artur é um exemplo lendário de marcialidade”, “grandes líderes na Bíblia, como o Rei David, são exemplos de guerreiros comuns a ambas tradições judaica e cristã” (Idem, pp. 19-20).
De onde se conclui que a figura do Prestes João poderia perfeitamente também considerar-se como um “exemplo lendário de marcialidade”. E, para além do mais, e ao contrário da generalidade dos exemplos por Trungpa acima assinalados, os relatos iniciais acerca do Prestes João até remetem, efetivamente, para um mesmo fundo geográfico centro-asiático no qual a tradição cultural de Shambhala também está envolta. Não se demonstra, de modo nenhum, com isto, que a tradição centro-asiática de Shambhala seja a que está na origem da tradição cultural ocidental associada à figura e ao Reino do Prestes João das Índias, mas demonstra-se, contudo, que a semelhança entre ambas topologias pode muito bem ser mais do que mera coincidência. Demonstra-se ainda que as semelhanças entre ambas topologias se deixam explicar pertinentemente à luz das conceções expostas pelos dois grandes expoentes do budismo contemporâneo a que acima se aludiu, primeiramente a conceção de “terra pura”, tal que apresentada pelo Dalai Lama, e que, também, acessoriamente, a noção de “marcialidade” (warriorship) que encontramos no livro Shambhala, de Trungpa Rinpoche, podem ambas ser encaradas como chaves de leitura, como ferramentas de análise literária, fecundas para interpretar a estruturação topológica, tanto da figura do Prestes (rex et sacerdos) quanto da sacralidade do seu reino.
e) Yelü Dashi, Gürkhan do Império centro-asiático dos Qara Khitay
Finalmente, para reforçar a tese da consonância cultural e geográfica entre ambas tradições, Prestes João e Shambhala, concluir-se-á por uma sucinta revisão das análises históricas comparativas entre as narrativas veiculadas (na carta a Manuel I de Bizâncio e na audiência do Papa a Hugo de Jabala) e os factos da história militar e política da época (entrelaçando a Europa, o Médio-Oriente e até mesmo, pois, a Ásia-Central), tais que o estado da arte atual as pode apreender. Revisão, que temos realizada, mas cuja exposição exaustiva terá de ficar, por limitações de espaço, para artigos subsequentes, por ser forçosamente extensa, já que uma vasta plêiade de autores e historiadores se tem vindo a dedicar a essa temática. O mais sinteticamente possível, dir-se-ia que o resultado dessa revisão de literatura historiográfica (e este parece ser, hoje em dia, um ponto com que a generalidade dos especialistas concorda) aponta essencialmente no sentido de, a haver uma figura histórica por trás do relato do Bispo da Síria21, tratar-se-ia de Yelü Dashi, o Gürkhan do Império centro-asiático dos Qara Khitay (BIRAN, 2005, p. 176)22, o qual vencera, contra exércitos turcos muçulmanos, a batalha de Qatuan em 1141 o que parece corresponder (e até certo ponto) acertadamente aos factos alegados por Hugo de Jabala ao Papa Clemente V.
Os Qara Khitay reinaram sobre um vasto império centro asiático (entre a China e o Mundo Islâmico) composto de populações, algumas nómadas, mas essencialmente sedentárias, de uma pluralidade de etnias e professando uma vasta diversidade de credos, entre as quais, mesmo que porventura nestorianos (o que é uma designação corrente, mas muito pouco adequada, como já se aludiu23), viviam, de facto, inúmeros cristãos. Mais se pôde apurar que, em virtude da pluralidade e liberdade religiosas serem aceites e mesmo, atestadamente, incentivadas pelos governantes, o império dos Qara Khitay abarcaria áreas povoadas por cristãos, e que, provavelmente alguns cristãos fariam inclusivamente parte da corte, sendo que, porém, mesmo que não seja possível saber-se com certeza, o indicado como mais provável pelos especialistas no tema é que o suserano professasse uma confissão budista não sectária, tolerante e mesmo recetiva ao encontro inter-religioso (semelhante ao caso paradigmático e historicamente atestado de Kublai-Khan, iniciado no budismo tântrico pelo segundo Karmapa do Tibete, e anfitrião de diversos emissários professando outras religiões, entre os quais, os católicos que convidara, nomeadamente, diversos frades franciscanos e até mesmo um arcebispo nomeado pelo Papa Clemente V).
Desde o século XII, o Reino do Prestes João, entre factos e lendas, foi objeto de atenção e espanto para viajantes, investigadores, Papas e Reis. Este fabuloso reino e o seu fabuloso rei-preste continuam esquivos até à data. Porém, certo é que a designação de Prestes João terá sido efetivamente associada a diversas figuras históricas, como nomeadamente os diversos monarcas da Etiópia (inclusivamente as rainhas), mas não só da Etiópia, também reportadamente de regiões da Ásia Central, o que leva certos autores a especularem se “Prestes João” não designaria antes um “título”, em vez de uma pessoa. Possivelmente, o que é uma tese a explorar, já que existe uma importante tradição cristã no Oriente que se assume como descendente de comunidades fundadas pelos primeiros apóstolos, nomeadamente S. Tomé e S. João, talvez este título correspondesse à linhagem dos dignitários herdeiros da cátedra de S. João, tal como o Papa da Igreja Católica é o dignitário herdeiro da cátedra de S. Pedro, em Roma. Mas, especulações à parte, o que se conclui é que tanto o fundo historicamente verificável, que os historiadores colocam por trás desta lenda (a batalha de Qatuan), quanto o fundo culturalmente verificável que aqui abordámos (a conceção tradicional centro-asiática da existência real de terras puras), apontam para espaços de confluência e entrelaçamento efetivos entre as tradições cristãs da europa e as tradições (cristãs nestorianas e) budistas da Ásia Central.
Post Scriptum
Quanto à enigmática citação latina que se encontra no início do artigo, ela é extraída de uma célebre passagem do Prefácio à História de Roma, de Tito Lívio, que reza mais ou menos assim (na íntegra – tradução do autor):
Eu, por outro lado, procurarei consolo com os meus esforços, já que, porquanto dedicar a minha completa atenção a estes assuntos do passado, estarei distraindo-me dos males maiores que o nosso tempo tem testemunhado, por tantos anos, e estarei assim livre de maiores cuidados e aflições, mesmo que, nem assim, se possa totalmente desviar da verdade a atenção do autor.
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Resumo: Neste artigo procedemos a uma abordagem cultural-comparativa relacionando o mito de Shambhala com o mito do Prestes João das Índias. Demonstramos o impacto magnetizador deste último nos processos que conduziram à globalização das redes de transações à escala mundial. Demonstramos também como esses entrelaçamentos de redes levaram a que a palavra Shambhala (grafada “Xembala”) aparecesse pela primeira vez, num texto literário numa língua europeia, o português, ainda no século XVII (escrito no Tibete). Discutimos como estes processos se espelham em obras maiores da literatura portuguesa (Lusíadas, Peregrinação). Procedemos a uma revisão temática transcultural da estruturação de ambos mitos, a partir de explicações conferidas por destacados autores contemporâneos da cultura budista tibetana (Dalai Lama, Chögyam Trungpa) em torno das noções de “terra pura” e de “marcialidade”. Constatamos finalmente a consonância cultural e geográfica entre ambas tradições mitológicas, tanto por reflexos na história militar centro-asiática (batalha de Qatuan, 1141) quanto, sobretudo, pela consistência ente a tipologia sacro-marcial de ambos mitos e presença, a circulação e o impacto da tipologia sacro-marcial nas culturas do espaço centro-asiático.
Palavras-chave: Literatura comparada; Filosofar intercultural; Ciências contemplativas; História da globalização; Realidade virtual.
Abstract: This article promotes a cultural-comparative approach relating the myth of Shambhala and the myth of Prester John. The article accounts for the magnetizing impact of Prester John‘s myth upon the dynamics that led to the globalization of trade networks worldwide. It then explains how these entwinements of networks led to introduction of the word Shambhala (spelt “Xembala”), for the first time, in a literary text in a European language, Portuguese, written in Tibet in the XVII century. The article discusses how these dynamics are reflected in major works of Portuguese literature (Lusíadas, Peregrinação). It then inflects a transcultural thematical revision of both myths from a vantage point of cultural otherness: the explanations given by contemporary authors in the Buddhist Tibetan tradition (Dalai Lama, Chögyam Trungpa) on the notions of “pure land” and of “warriorship”. Finally, it debates how both mythologies are entwined with the geography and cultures of Central-Asia, looking into military history (the battle of Qatuan, 1141) and foremost the presence, the circulation and the impact of the sacral- martial typology upon central Asian cultural traditions.
Keyword: Comparative Literature; Intercultural Philosophizing; Contemplative Sciences; History of Globalization; Virtual Reality.
Recebido em: 27/2/2019
Aceito em: 25/3/2019
1 Investigador Associado do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Post- Doc). 2018 Professor Visitante na Faculdade de Letras Universidade de Lisboa em serviço à Universidade Humboldt de Berlim. 2018 Doutorado pela Universidade Humboldt de Berlim – Institut für Kulturwissenschaften. 2016 Docente Visitante na Universidade de Coimbra (Portugal) em serviço à Universidade Humboldt de Berlim. 2015 Concluiu a Licenciatura em Filosofia na Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. 2004 Concluiu o Curso de Formação de Atores do Instituto de Formação Investigação e Criação Teatral (Lisboa), 1994. Nasceu em Lisboa em 1973.↩
2 As neurociências são uma área científica em plena evolução onde proliferam publicações: não raramente referindo-se às funções antecipativas da consciência perante os fenómenos. Dentro do vasto campo eminentemente interdisciplinar que chegou a ser apelidado por Francisco Varela de “uma folgada federação de ciências” (“a loose federation of sciences dealing with knowledge and cognition […] the cognitive sciences” – 1999, p. 6), as Ciências Cognitivas (que abarcam a abordagem neurocientífica), destacaria os trabalhos desse autor (falecido em 2001) e dos seus próximos colaboradores, como nomeadamente Evan Thompson (2007, 2015). Mais radicalmente ainda, chamaria a atenção do leitor para recentes investigações neurobiológicas que demonstram que as funções projecionais, do cérebro, constituem um autêntico “gerador de realidade virtual”, pelo que a vigília poderia afinal considerar-se como nada mais sendo que um sonho com constrangimentos (ver nota 4).↩
3 Na abordagem fenomenológica de Edmund Husserl (1956) torna-se claro a persistência e a importância das estruturas antecipativas da experiência (expectativas) enquanto estruturas que acabam por se tornar, elas próprias, constitutivas dos próprios fenómenos, acomodando-os e formatando-os de dada maneira. O seu trabalho pioneiro influenciou um grande número de seguidores, tanto no campo da filosofia, no qual destacaríamos Martin Heidegger (1927) e Maurice Merleau-Ponty (1976), bem como no campo da neurofenomenologia inaugurado por Francisco Varela e seus colaboradores (1991) e das novíssimas Ciências Contemplativas (WALLACE, 2006). Para uma apreciação da influência de Husserl sobre o campo da neurofenomenologia e das Ciências Contemplativas consulte-se: (THOMPSON, 2007, p. 19 et seg.).↩
4 Exemplifico aqui o que referi na nota 2, por meio de um excerto de um artigo recente, com vista a realçar o ponto (de questionamento) a que já chega atualmente o estado da arte das investigações neurobiológicas, o qual, nem sempre é suficientemente acompanhado pelos especialistas de outras áreas (HOBSON et al, 2014, p. 1): “This article explores the notion that the brain is genetically endowed with an innate virtual reality generator that – through experience-dependent plasticity – becomes a generative or predictive model of the world. This model, which is most clearly revealed in rapid eye movement (REM) sleep dreaming, may provide the theater for conscious experience. Functional neuroimaging evidence for brain activations that are time-locked to rapid eye movements (REMs) endorses the view that waking consciousness emerges from REM sleep – and dreaming lays the foundations for waking perception. In this view, the brain is equipped with a virtual model of the world that generates predictions of its sensations.” Tradução do autor: “Este artigo explora a noção de que o cérebro é geneticamente dotado de um gerador de realidade virtual, inato, o qual – através da plasticidade, que é dependente da experiência – se torna num modelo, gerador ou preditivo, do mundo. Este modelo, que é mais claramente revelado no sono (REM) com movimento rápido dos olhos, pode proporcionar o cenário para a experiência consciente. A evidência neuro-imagiológica funcional das ativações do cérebro que estão acopladas no tempo aos movimentos rápidos dos olhos (REMs) corrobora a perspetiva de que a consciência acordada emerge do sonho REM – e que sonhar estabelece os fundamentos para a perceção acordada. Nesta perspetiva, o cérebro está equipado com um modelo virtual do mundo que gera previsões das suas sensações”.↩
5 Este tornou-se um problema epistemológico de importância fulcral que as teorias do conhecimento, desde então, não mais puderam deixar de tomar em consideração. A formulação Kantiana remonta às suas publicações de 1871 e 1873 (ver referências).↩
6 Nunca será demais frisar a importância do papel da língua e da literatura de língua portuguesa nas dinâmicas que conduziram à globalização. Se ainda hoje o Português é uma das línguas mais faladas no planeta, por volta dos séculos XVI e XVII o Português funcionou como uma autêntica lingua franca para a navegação e o comércio mercante por via marítima, que começava a estender as suas redes de transações à escala planetária. Um excelente exemplo ilustrativo desse facto é o livro de Fernão Mendes Pinto, Peregrinação (1614). Esse livro, que conheceu um grande sucesso em Portugal e no estrangeiro, tendo sido logo traduzido e publicado em diversos outros países europeus, não só era relativamente fácil de adquirir nas cidades portuárias, desde Portugal até ao Norte da Europa, mas inclusivamente era um artigo extremamente cobiçado em portos tão distantes como os do Índico e do Mar da China. A razão para tal é que essa extraordinária obra literária, pertencente ao género da literatura de viagens, não só era um deleite para a leitura, como continha informações preciosas que os navegantes e os comerciantes marítimos avidamente desejavam obter, acerca das rotas e dos portos pelos quais Mendes Pinto se aventurou, sobretudo no extremo-oriente. Para uma informação mais completa acerca desse tema consulte-se o excelente artigo de Sandra Pina Gonçalves (2015).↩
7 “Para lá da Pérsia e da Arménia, no extremo-oriente” (ver nota 21).↩
8 Evidências arqueológicas comprovam presença Cristã em Kerala desde pelo menos o séc. III, ou seja, ainda anteriormente à fundação da Igreja Católica Apostólica Romana pelo Imperador Constantino e, evidentemente, muito antes da própria cristianização da Península Ibérica e de Portugal continental. (THEKEPARAMPIL, 2006, pp. 485-497).↩
9 WESSELS, 1924, p. 11. [tradução/retroversão do autor] Wessel cita e traduz a Carta de Jerónimo Xavier de Lahore, de 25 de Julho, 1598 a qual está também patente in Joan Hay, De Rebus Japonicis, Indicis et Peruanis Epistulae recentiores, Antverpiae, 1605, p. 796 et seg., 875.↩
10 Certo é que os europeus, não haviam esquecido a originária presença cristã na Ásia, apesar de haverem perdido o contacto direto com os cristãos do oriente (também, mas erroneamente, designados por nestorianos) provenientes da missionação que já então houve através de toda o continente asiático e sobretudo ao longo da rota da seda, logo desde os primeiros apóstolos (razão pela qual em Kerala já viverem populações cristãs antes mesmo da chegada de Vasco da Gama a Calecute, como descrito, entre outros, por Fernão Mendes Pinto em Peregrinação). No contexto de um colóquio internacional comemorativo dos 400 anos da publicação de Peregrinação foi-me possível escrever um artigo onde exploro o tema da expansão originária do cristianismo através da Ásia (contemporâneo ou antecedente da expansão do cristianismo para a Europa) e de como esse se veio a entrelaçar pontualmente com o budismo. Refira-se ainda que, também em Peregrinação, após a sua breve estadia em Calecute, Fernão Mendes Pinto alega haver-se dirigido para a Etiópia onde fora acolhido pela “mãe do Preste”.↩
11 Cf. WESSELS, 1924, p. 4 et seg. Wessels anota: “The meaning of the Mongolian word Khan-bálig is ‘Khan’s Town’” – ou seja Cambaluc ou, em Mongol, Khan-bálig significa, literalmente, a cidade do líder, o Khan, denominando, pois, a capital do Império Mongol – sobre cuja matriz viria a desenvolver-se, mais tarde, a cidade de Pequim.↩
12 C. Wessels, 1924, p. 5; Cf. Baronius, Annales ecclesiastici ad annum 1307, vol. XXIII, 403.↩
13 Estevão Cacella, „RELAÇÃO QUE MANDOU O P.e ESTEVÃO CACELLA DA COMP.a DE JESU AO P.e ALBERTO LAERCIO PROVINCIAL DA PROVÍNCIA DE MALAVAR DA INDIA ORIENTAL, DA SUA VIAGEM PERA CATAYO, ATÉ CHEGAR AO REYNO DO POTENTE”, in WESSELS, 1924, Appendix II, pp. 314-312, aqui p. 327.↩
14 Nesta secção acompanhamos o estudo de C. F. Beckingham “The travels of Pero da Covilha and their Significance” in Congresso Internacional de História dos Descobrimentos: Resumo (1960): 3-16.↩
15 (Estância 1 do Canto VII: seiscentésima sexagésima sexta estância do livro).↩
16 James Hilton (1933) faz, pois, referência ao texto de António de Andrade, Novo Descobrimento do Gram Cathayo, ou Reinos do Tibet, pello Padre António de Andrade de Companhia de Jesu, no anno de 1624, Lisboa, 1626. Texto recentemente reeditado pela editora Livros de Bordo.↩
17 Entre a vasta obra literária, em línguas europeias, de cada um destes autores, em ambas se encontram relatos das suas viagens, através dos Himalaias até ao exílio, nomeadamente: GYATSO, 1991; TRUNGPA, 1966.↩
18 Jeffrey Hopkins, “History of the Kālachakra Tantra”, in GYATSO, 1985: p. 59. (Tradução do autor).↩
19 Cf. KORNMAN, 2004, p. 248: “The Tibetan oral epic of King Gesar of Ling presents an extensive and detailed description of an idealized nomadic government formed by a Tibetan tribe known as the Mukpo clan, which gradually expands to become an empire-sized nomadic confederation.”↩
20 Chögyam Trungpa, “Foreword” in DAVID-NEEL, 1981, p. 9: “In order for us to understand Gesar of Ling, the great warrior king of Tibet, it is necessary first to understand the principle of warriorship itself. This concept has for centuries been the heart of the lineage of Gesar of Ling, whose Tibetan descendants still exist today.” Cf. DAVID-NEEL, 1981, Introduction: “Chang Shambhala, the mysterious country of the north”.↩
21 Otto von Freising, Chronica sive Historia de duabus civitatibus, VII, 33, apud. HOFMEISTER, 1912: p. 365. [Reporta o Bispo Hugo de Jabala:] “Narrabat etiam, quod ante non multos anos Iohannes quidam, qui ultra Persidem et Armeniam in extremo oriente habitans rex et sacerdos cum gente sua Christianus est, sed Nestorianus, Persarum et Medorum reges frates, Smiardos dictus, bello petierit atque Ebactani, cuiús supra mentio habita est, sedem regni eorum expugnaverit.”↩
22 “the Qara Khitay empire as created by Dashi encompassed in 1143 at least the regions of Transoxania, Farghāna, Semirechye, the Tarim basin and Uighuria.” [Which is] “roughly equivalent to most of modern Xinjiang, Qyrghyzstan, Uzbekistan, Tajikistan and south Qazaqstan; until 1175 it also included parts of western Mongolia.”↩
23 O cristianismo que se desenvolveu na Ásia Central, antes e paralelamente ao catolicismo e em muito mais largo número de praticantes do que a (no fundo) minoria católica (à luz das mais recentes e aprofundadas pesquizas historiográficas e arqueológicas), pelo menos desde o século I até ao século VIII, é designado em Chinês por “Igreja da Luz” e o termo comum atribuído pelos representantes, ainda em atividade, deste culto cristão (hoje em dia reconhecido pelo Vaticano) é o de Igreja do Oriente. Em contrapartida, Nestor, de cujo nome provém a designação “nestoriano”, foi um bispo católico, que nunca pertenceu, pois, à congregação centro-asiática… Dedico-me a uma discussão mais aprofundada deste tema num outro artigo (ANTUNES, 2015).↩