Paula Kropf2
Universidade Federal Fluminense
paulakropf@gmail.com
I
Qual é o lugar da cultura numa sociedade de mercado onde tudo é submetido à oferta e à procura, à concorrência e à vontade de comprar? (JAPPE, 2013, p. 206).
Uma vez registrado em sua diferença pela indústria cultural, já faz parte desta, assim como a reforma agrária no capitalismo. A revolta que rende homenagem à realidade se torna a marca de fábrica de quem tem uma nova ideia para levar à indústria (ADORNO, 2002, p. 23).
Um guarda do Museu de Arte Contemporânea da Holanda caminha por suas galerias, passando tranquilamente pelas instalações. A cena é acompanhada por uma trilha sonora que ocupa os espaços vazios, preenchidos por obras devidamente posicionadas, e minuciosamente por ele checadas. Já prestes ao horário de abertura, desce as escadas, conferindo em todos os andares se tudo está no lugar. É surpreendido ao avistar um grupo de pessoas instaladas em uma área chamada O olho, espaço aberto anexo ao museu, separado por paredes de vidro. Ali, onde não tem telhado, se destina aos experimentos de arte de rua.
O inesperado, narrado por um repórter televisivo que noticiava o ocorrido, corresponde a um grupo de imigrantes que escapa de um trem que levava deportados, sob ordem do governo, para abrigo localizado fora da região da liga de países europeus. “Por razões desconhecidas, eles decidiram ir para o Museu de Arte Contemporânea.”3. A questão para o noticiário gira em torno de se eles teriam obtido ajuda para conseguir passar pela segurança sem serem interrompidos.
Ao fim da notícia, um grupo de atendentes do museu – o coro, anunciará as preocupações institucionais que, por conseguinte, refletem o pensamento social. “Não é permitido, mas acontece! O que os guardas estavam fazendo? Eles já foram deportados! Não há mais imigrantes em nossas cidades!”
A cena decorre com o diretor do museu explicando que os imigrantes pedem asilo ao museu, pois “alguém disse a eles que a arte está ao lado dos oprimidos”. Diretor e artista residente conversam, preocupados, sobre o que fazer. Se o primeiro pondera que a ajuda poderia representar o corte do financiamento que recebem, o residente insiste que se não puderem ajudá-los, “qual é o nosso projeto que vale a pena?” Pois, segundo ambos, a tarefa que os concernem é “despertar a sociedade”.
Eis que chegam a uma saída: a acolhida se dará forjando um projeto performático do museu, como uma provocação para o Centro de Prevenção Extremista. Pegam então os figurinos da próxima instalação e os utilizam, alegando ser uma releitura da ópera russa Vitória sobre o sol. A recomendação do diretor é explícita: “Temos que agir como se tudo estivesse normal”.
Antes do início, o coro mais uma vez entoa se expressando:
Nacional democracia é a lei das nossas vidas e nossa fortaleza!
Mas a humanidade não tem que ser destruída!
Lei e ordem.
Somos uma nação hospitaleira, mas para quem segue as regras.
Severa, mas justa!
A proposta de forjar uma intervenção artística sobre o real, embora alvo de posicionamentos divergentes dentro do museu – “Arte não é vida!” – acontece. O diretor é entrevistado pelo jornal e ‘explica’ o ocorrido, alegando que houve uma grande confusão e que tudo não passava de arte. Canta o coro, após a performance:
Tudo correu bem, inofensivo.
Bela arte. Arte autônoma.
Nacional Democracia precisa de arte também.
Ensina como pensar criticamente.
Bela, atemporal, revolucionária.
Ao final, após os aplausos, um casal passeia pelo museu comentando sobre a bela performance do dia, que os fez sentir “o espírito da arte revolucionária russa” e o “espírito da luta por fazer do mundo um lugar melhor”, afinal, “este é o poder da arte real!”. Comentam, com pesar, - e informam a quem assiste – que os atores foram presos. Indignados com tamanha injustiça, dado que não faz diferença que sejam imigrantes – são atores, e estavam fazendo arte. Cogitam protestar contra tal situação, mas, diante dos riscos frente ao embate com as instituições de segurança, voltam atrás. Afinal, concluem: isso não lhes diz respeito.
O filme é Museum Songspiel4, criação de 2011, de autoria do coletivo russo Chto Delat5. O grupo descreve seu quarto experimento audiovisual como baseado em uma tradição de filmes de distopia. O roteiro se situa num pano de fundo de um cenário imaginário da política holandesa no ano de 20XX, onde todos os imigrantes foram banidos do país. Segundo descrição no site do grupo, “A situação remete a um zoológico (humano), onde um grupo é separado do outro por uma parede de vidro”.
O filme acende o debate em torno do papel de um museu e, consequentemente, da arte, diante de circunstâncias políticas e sociais. Embora a menção às experiências artísticas russas e aos limites entre engajamento e autonomia, sob a ironia de ser sugestivamente descrito como uma distopia, o seu debate pode se localizar no lugar e em como se dá a relação entre vida e arte hoje. Não sendo mais uma cultura, mas tendo6, os museus abrigam o quê? O que cada obra carrega, de sentido e conexão com o autor, quando fixadas em paredes de uma instituição que, na corda bamba entre perder recursos e despertar a sociedade (que nada mais é do que a herança do mito do esclarecimento), é a tentativa de preservação retirando o real da realidade. Tal intento se realiza transformando, para o público e a sociedade em geral, uma situação real em experimento artístico.
II
A liberdade permanecerá uma promessa ambígua da cultura enquanto sua existência depender de uma realidade mistificada, ou seja, em última instância, do poder de disposição sobre o trabalho dos outros (ADORNO, 2002, p. 82).
É com base neste estado de coisas que se faz apropriado retomar a discussão sobre cultura, sob angulações distintas. Podemos tomar o autor galês Raymond Williams (1921-1988) como um marco importante para o pensamento sobre cultura7, se considerarmos as
rupturas que realizou com toda uma tradição da crítica literária vigente em seu país. Os avanços que trouxe para uma ampliação, do próprio conceito e da presença da crítica, inaugurou uma fase em que influenciou os rumos tomados pelo que se entendia por cultura e o seu lugar nesta forma social. Tomar o conceito de prática social para falar sobre a dimensão cultural significou colocá-la em seu devido e merecido lugar, retirando- a de um espaço superior, de suspensão, diante da objetividade da vida. A cultura é ordinária, é comum a todos (WILLIAMS, 1989).
Entretanto, havia outros estudiosos olhando para a questão da cultura em simultâneo a Williams, que avançaram no sentido de examiná-la a partir de uma exploração mais acentuada da perspectiva do fetichismo da mercadoria. Adorno fora um dos mais importantes teóricos desse grupo e, sob uma chave negativa, elaborou um pensamento sobre a questão com relevância para o significado do termo indústria cultural. Partimos aqui do entendimento de sua vigente atualidade.
A sociedade capitalista instaura um tempo em que as instituições e as relações sociais estão sob o mesmo jugo: a criação de valor e sua valorização. Os mecanismos intrínsecos à sua maior finalidade compreendem uma conformação do todo social, que o orienta irracionalmente rumo ao inesgotável objetivo. É uma forma de dominação impessoal que permeia as tramas constituintes, amiúde e em nível macro, instaurando a cultura em bases construídas sob uma (falsa) aparência de identificação entre o universal e o particular.
O universal construído pela sociedade fetichizada se impõe como determinação para a experiência individual. Mas o que compõe e como foi construído este universal não é senão relacionado aos princípios da acumulação capitalista. Um modo de vida que tem sua substancialidade referenciada pela centralidade do trabalho, enquanto categoria histórica, não transcendente, pela condução dos homens por coisas e pela produção e consumo de mercadorias. Um tal estágio em que “Quanto mais ricamente um universal recebe as insígnias do sujeito coletivo, tanto mais os sujeitos desaparecem aí sem deixar vestígios” (ADORNO, 2009, p. 280). Em outras palavras, significa pensar que um sujeito coletivo, formado a partir de valores e práticas reificadas, o faz de forma não identificada com o que seria uma representação conectada aos significados que canalizam os anseios substanciais dos indivíduos. Assim, a acachapante determinação que não somente paira sobre nossas cabeças, mas nos consome até as entranhas, quanto mais violentamente embebida pelo simbolismo do universal, mais nos conforma enquanto sujeitos identificados com a lógica do valor. Deste modo, “desde a mais rude matéria até os movimentos da alma, dobra-se a esse processo de identificação prática, segundo o único e distintivo traço dessa abstração realista” (KURZ, 2010, p. 56).
O espírito do povo, enquanto consciência coletiva, expressão das ideias e valores que formam – e formados são – uma determinada sociedade, é paradoxalmente presente como elemento componente deste todo. Enquanto o conjunto de desdobramentos de um modo de vida, corresponde, sendo parte, a um momento histórico, que é composto por um processo constante de reprodução das relações sociais. O conjunto de coisas contempladas como espírito do povo o coloca em direta associação à dimensão cultural de um grupo social ou nação. A perda desta esfera, formada pelos elementos comuns que conectam certos grupos de indivíduos, é sucedida pelo advento de uma construção social que sobrepõem às particularidades originais de uma consciência coletiva com a lógica do valor. Falar sobre a perda de substancialidade do espírito do povo, como elaborou Adorno (2009), em referência a Hegel, é chamar a atenção para um caminho sublinhado por um possível distanciamento do cultivo das faculdades humanas. Pois o espírito do povo, escamoteado, é reposto como espírito do valor. Os indivíduos têm sua sociabilidade demarcada pela relação entre coisas que, uma vez criadas pelos homens, invertem o controle e conduzem a atividade social.
No conceito de espírito do povo, um epifenômeno, uma consciência coletiva, um estágio da organização social são contrapostos como essenciais ao processo real de produção e reprodução da sociedade. [...] Os predicados desse ‘mundo presente’: ‘religião, culto, hábitos, costumes, arte, constituição, leis políticas e seus atos’ também perderam, juntamente com a sua obviedade, aquilo que era considerado por Hegel como a sua substancialidade (ADORNO, 2009, p. 282).
Se se pode tomar o espírito de um povo como parte de sua cultura, falar sobre um necessariamente implicaria falar sobre o outro. Afirmar que os elementos constituintes da cultura de uma sociedade estão dispostos em contraposição ao processo real desta, permite encaminhar a suposição de que, sob uma lógica fetichizante, onde a identidade entre o sujeito e o objeto residisse em sua própria cisão, o movimento social paulatinamente se distancia do que é humano. Este distanciamento torna os indivíduos orientados por um processo que, primeiramente estranho a eles próprios, os incorporam em sua totalidade. À medida que avança a formatação destes em torno dos pressupostos operantes pelo capital, tanto mais estão distantes do que em tempos anteriores se reconheceu como seus atributos essenciais.
O alcance de uma predominância do esvaziamento das relações sociais daquilo que conferiria à subjetividade coletiva seu laço com o que é relativo à humanidade, é aprofundado com o amadurecimento do capitalismo. Perder a substância que compõe os costumes, hábitos, linguagens, a política, as artes e demais aspectos intrínsecos a um determinado modo de vida, é também perder a materialidade do que forma a cultura. Esta, ao ser incorporada pela lógica sistêmica produtora de mercadorias, passa a aprofundar sua conformação dentro destes moldes de maneira nunca antes possível de se perceber.
III
A indústria cultural é um termo cunhado por Adorno e Horkheimer, em meados da década de 40 do século passado, que diz sobre o processo social em curso, cujos traços operantes fundamentais aqui serão observados. Não se trata apenas de uma cooptação subjetiva mas, e sobretudo, de uma incorporação da técnica e do modo de produção contemporâneo por toda a dimensão cultural. Com isto, o que está em jogo é a sujeição absoluta à lógica do sistema, em detrimento de uma outra forma de ser e produzir cultura em estágios históricos anteriores.
A enfática asserção sobre a sua dimensão material é essencial para direcionar a compreensão de que o que se procede é uma transformação totalizante da dinâmica cultural de modo a colocá-la no compasso operacional capitalista. Embora seja muito difundida a ideia de indústria cultural articulada mais restritamente à produção artística, é fundamental não escapar a percepção de que o conceito é mais abrangente e contempla a cultura como um todo. Assim, não é somente sobre a produção cinematográfica, ou literária, mas também sobre a conformação das relações sociais e de uma subjetividade coletiva, bem como ressoando também na experiência individual.
Um dos mais significativos movimentos perceptíveis do fenômeno da indústria cultural é a perda da condição do sujeito. Um modo de vida orientado para produzir valor está mais apontado para os pressupostos fundantes da mercadoria e assim reorienta, em totalidade, a maneira como os indivíduos se relacionam com a sua cultura e suas respectivas manifestações. Qualquer atitude para com a bagagem de hábitos, artes, costumes e todo o conjunto que compõem a experiência social, passa a ser predominantemente orientada pela exigência do consumo; dos receptores aos produtores das práticas culturais. O indivíduo, portador de inquietações anestesiadas e padronizadas, passa a representar um potencial veículo de valorização do valor, passa a ser consumidor. O passo seguinte é o despontar de manifestações domesticadas, estandardizadas, por individualidades que bailam sob uma sinfonia sistêmica que arrebata nossos sentidos.
O esfacelamento da individualidade vai além e está associada à dissolução do trágico. Ele se dissolve porque a ordem do dia é o insistente hábito de sobreviver às dificuldades acentuadas da vida, às suas próprias ruínas. “A liquidação do trágico confirma a liquidação do indivíduo” (ADORNO, 2002, p. 55). Neste sentido, liquidar o indivíduo retiraria do eixo em torno do qual gira a sociedade todos os traços que dizem que um homem é um indivíduo, seus valores e significados, desejos e buscas. Essa morte é uma passagem para uma forma de existir em que este conjunto de individualidades é substituído por um modelo, que se constrói na forma mercantil de se relacionar. O adormecimento do particular se refaz em uma vida que não vive.
Se a cultura é incorporada pela lógica do valor, devém mercadoria e tem sua dimensão produtiva ajustada ao processo técnico que permeia o trabalho. Com isso, “A violência da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas” (ADORNO, 2002, p. 16-17). A consolidação da indústria cultural é a firmação das bases capitalistas em todo o modo de vida social. A centralidade do trabalho e da lógica mercantil forçam o mundo, sob o ponto de vista da totalidade, não estar de fora, uma vez que “para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais” (MARX, 2007, p. 33), e nada disso é produzido e trocado fora de relações postas pela finalidade do valor. A adesão não é uma escolha.
Esse estado invertido, onde a irracionalidade da lógica coloca nas coisas a determinação essencial das relações, se traduz em um estado de encantamento que afeta aos indivíduos em geral. Adorno (2009) fala que esse encanto corresponde a figura do espírito do mundo. Tendo esse se dissipado e perdido sua substancialidade ao se contrapor à produção do real, o que atende tal denominação é o processo pelo qual se opera o fetiche. Nas relações sociais, os indivíduos são guiados por este universal perdido que, agora, se inverte.
Exatamente como antes, os homens, os sujeitos particulares, se encontram sob um encanto. Esse encanto é a figura subjetiva do espírito do mundo, uma figura que intensifica internamente o primado desse espírito sobre o processo exterior da vida. Eles se transformam naquilo contra o que eles não podem nada e que os nega. [...] eles se comportam de acordo com o inevitável. [...] o particular é ditado pelo princípio da universalidade invertida (ADORNO, 2009, p. 285).
Desde este estado de encantamento, a assim nomeada liberdade capitalista, do ponto de vista do consumo, se apresenta em distinção com o que poderia efetivamente ser a liberdade humana. Não havia uma explícita atitude coercitiva que empurrasse os indivíduos para uma adesão incondicional à sociabilidade do capital. Entretanto, a suposta possibilidade de negar o sistema e encontrar formas de socialização alternativas é ilusória, pois os meios de garantir a reprodução social se dão quase predominantemente através da relação de troca. Então, a opção por não fazer parte não devém um horizonte de relações permeadas por outros significados. Não aderir representava enfrentar uma “impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do isolado” (ADORNO, 2002, p. 25-26).
Entretanto, o estado de coisas atual, promovido por um capitalismo maduro, coloca a falsa liberdade em critérios novos. O aprofundamento das consequências de sua autocontradição fundante8, coloca grandes massas em situação de não poderem participar do processo de reprodução social. O crescente descarte de grupos sociais, decorrente de uma crise de contornos estruturais, das etapas da criação do valor, leva a uma situação, apontada por Jappe (2006), como o pior mal que o capitalismo proporciona aos indivíduos. Se antes, este era a exploração, hoje, a expulsão, o não fazer parte do processo, na maioria das vezes, não é uma escolha, e sim a falta dela.
A aparência de liberdade se dissipa e, já hoje, com o afunilamento das oportunidades, a meritocracia para a incorporação pelo sistema vem se desvelando e deixando expor o quanto o capital rui. É chegado o ponto em que a “humanidade continua se arrastando incansavelmente nessa direção, um cortejo sem fim de homens acorrentados uns aos outros que, curvados, não conseguem mais levantar a cabeça sob o peso daquilo que é. [...] ausência de liberdade sob o encanto” (ADORNO, 2009, p. 286).
Neste sentido, a supremacia do que é aparente, que inviabiliza a efetivação da substância da essência, afasta a experiência cultural atual da promessa de felicidade que um dia definiu a arte. Isto porque, vestidos de aparência, o que vai motivar a apreciação dos bens culturais no capitalismo não é a fruição propriamente, mas o ato do consumo. Se consumir se sobrepõe como finalidade, esta é a forma das relações sociais, deixando o seu conteúdo – o objeto, a música, o filme – como segundo plano, que vem a reboque. “Os ouvintes aprenderam a não dar atenção ao que ouvem” (ADORNO, 1983, p. 166).
Indústria cultural e fetiche são a mesma face de uma forma social cujo laço conectivo dos homens está centralizado nas coisas. Este mergulho torna a consolidação do fetiche como um estado totalizado sobre cada elemento do modo de ser da sociedade. Isto significa que, se a forma reificada padroniza as relações, os homens então naturalizam a reprodução de suas vidas por meio da presença da mediação do dinheiro para a troca. Eles se distanciam do que poderiam ser, e da sintonia primeira com as questões apresentadas pela existência. Assim, “Na experiência humana, o encanto é o equivalente do caráter de fetiche das mercadorias. [...] Enquanto encanto, a consciência reificada se tornou total” (ADORNO, 2009, p. 286).
O fetiche carrega consigo um caráter dissociador, onde reside o que Adorno (2009) desenvolve como dialética negativa. Esta se centra no potencial de decomposição carregado pela lógica social do capitalismo, que insiste em se vestir de progresso e avanço civilizatório. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais se destrói. O elemento de dissociação que carregamos representa uma ameaça à nossa própria vida. Chegar aos seus limites e incessantemente tentar rompê-los o faz esbarrar em sua própria insolúvel autocontradição. Chega ao ponto em que se pode considerá-lo como um sistema que tem no seu avanço a sua destruição. À medida que suas forças se desenvolvem, elas pendularmente se deslocam do potencial produtivo para um impulsivo destrutivo.
A sobrevivência fica condicionada pelo adentrar no encanto. Nele, os homens se colocam para se reproduzirem e são envolvidos por um feitiço, sendo este em si próprio capaz de disfarçar o seu real peso. Tudo que é intrinsecamente humano, se torna distanciado da realidade, demarcando a adequação de se falar a partir do lugar de um caráter regressivo. Se estamos todos submetidos à lógica que nos orienta pelo fetiche, o barulho emitido por todas as vozes que promovem a sua constante manutenção abafa todo o dissonante dentro do espaço das relações sociais. O que não quer dizer que não haja tentativas de, ainda que sob o encanto, buscar o seu reverso. Entretanto, condições objetivas e subjetivas permeiam uma busca que se costura por dentro do que é tecido socialmente, e não para fora dele. O que Adorno (2009) insiste, com absoluta coerência, é que, ou se assume os limites que cerceiam e desenham iniciativas contrárias, com a coragem de apontar o que é mais parte do problema do que solução, ou continuaremos insistindo resistência sem correspondência apropriada da devida radicalidade. O reconhecimento sobre até onde práticas que se pretendem críticas podem chegar não deve necessariamente ser colocado em termos que imobilizem. Ou, dito em outras palavras, ao assumir a falta de horizonte como um problema do presente, que afeta uma experiência social em seu todo, o exercício da crítica como forma de compreender a realidade em sua raiz seja alçado como tarefa fundamental. Mas, uma crítica radical só se realiza a medida que a sua centralidade está na refutação do modo de produção do capitalismo.
IV
Há um perceptível contraste com formas de sociedade pré-modernas, onde o cultural se integrava ao modo de reprodução da vida e as suas esferas se interligavam. As práticas artísticas, ao contrário de serem finalidades construídas a partir de suas experiências materiais, se condicionam a serviço das relações econômicas, pois,
[...] na modernidade a economia desenvolveu-se como um absurdo fim em si mesmo e como conteúdo central da sociedade: o dinheiro tornado capital que retorna a si mesmo, e assim um ‘sujeito automático’ cego (Karl Marx), estando pressuposto fantasmagoricamente a todos os objetivos humanos e culturais (KURZ, 2004, p. 118).
A criação artística e as formas culturais elaboradas estavam fundidas com a própria vida, como parte de um processo de constituição da mesma, do pensar, do sentir e do imaginar esta experiência alicerçada por algo de emancipador. Com a modernidade, a arte passa da posição de finalidade para meio. Inverte-se aí a lógica das relações e, se antes as coisas estavam orientadas sob a vontade dos homens, agora são eles e suas ações que se orientam para atender às necessidades daquelas9.
A obra de arte, que deveria conter em si uma promessa de felicidade, ser a expressão dos significados substantivos do que pode ser a existência humana, na contemporaneidade outra coisa não é senão mercadoria. Como uma, significa que cumpriu a exigência de se adequar ao reino da necessidade, o que paradoxalmente a afasta de sua busca real. “Adequando-se por completo a necessidade, a obra de arte priva por antecipação os homens daquilo que ela deveria procurar: liberá-los do princípio da utilidade” (ADORNO, 2002, p. 61).
A cultura, ao nos retirar do estado de animalidade, seria o caminho de negação da barbárie. Entretanto, na sociedade burguesa, a mesma não só não a nega, como o seu ser a potencializa. Potencializar a barbárie significa potencializar as forças capitalistas, uma vez que a dimensão cultural se funde com a matéria das relações sociais e, esta, só se sustenta orientada por finalidades invertidas, pela lógica das coisas.
Uma sociedade que administra a ocorrência de massacres como regra, não mais exceção. Diante disto, a morte se retira de seu ocaso, inserida como parte do ciclo natural, e passa a se tornar um elemento descompassado diante do curso da vida e articulado às insígnias de relações sociais historicamente determinadas. Essa morte se retira de um campo de acontecimento individual para representar a eliminação de grupos sociais. A expulsão do sistema tem um perfil delineado para escalar suas vítimas. Se o genocídio é tomado como a forma de integração absoluta desta forma sistêmica, com ele lidamos cotidianamente – com os de um passado que não passa e com os iminentes – e continuamos vivendo.
Se cultura é um termo que diz sobre, não somente práticas relacionadas às linguagens artísticas, mas além, todo um conjunto de significados que referenciam um modo de vida, então é preciso incorporar quais direções de uma existência coletiva emergem dos mares atuais. É preciso que o seu debate contemple o fato do modo de organização das relações sociais estar contido de um elemento como a imposição da violência como pilar de sustentação de seu desmoronar. Dito isto, falar sobre o extermínio do diferente implica circunscrevê-lo no contexto de uma sociedade que se sustenta sob uma padronização total. Pois, quanto mais se aniquilarem as diferenças substantivas, que porventura possam potencializar algo que deve estar sufocado, maior garantia de sustentação de relações reificadas. A questão central sobre o que se elimina está no que se apresenta sem utilidade para a acumulação.
A morte como parte integrante confirma que, uma vez assentada sobre uma absoluta padronização, calcada pela exigência de relações de troca, é próprio do capitalismo fixar um crescente caráter de aptidão à fácil substituição. Ao capital interessa o trabalho abstrato de uma jornada completada, e não relações sociais desenvolvidas a partir das afinidades e desempenhos individuais. Posicionar o interesse no valor de uso da força de trabalho, uma vez que este só existe para o capital como valor de troca, é assegurar que a indiferença, como regra, mantém os indivíduos como peças substituíveis. O abafamento das particularidades faz dos homens apenas instrumentos que portam e propagam a valorização do valor. É essa tarefa que os torna requisitados a incorporar o processo ou aptos para eliminação. No lugar, entra rapidamente outro que corresponda melhor ao avanço pretendido. A violência se torna, então, parte constitutiva, como um elemento que ofereça alguma garantia de manter de pé os pedaços em dissolução (MENEGAT, 2012).
É preciso que se pense sobre que mundo seguimos tentando não permitir colapsar. Os medos que nos rondam, sobre a iminência do fim, se lançam para o novo ou nos prendem na velha forma destrutiva em curso? Desejamos realmente suprimir as mercadorias e suas relações, ou ir adiando uma catástrofe global, que encerre em níveis não vistos as possibilidades de continuidade do apelo pela sobrevivência nos moldes burgueses?
Se apresenta o desafio da urgência de uma radicalidade crítica. Radical sinaliza refutar a raiz da lógica capitalista, romper com a irracionalidade de orientar a vida pela produção de valor e não pelo desenvolvimento dela própria. Construir, em nível planetário, uma forma de vida em que sua lógica não se pauta por proporcionar um estado de bem-estar coletivo substantivo, é se distanciar do que radicalmente a humanidade poderia ser, mas não é.
A afirmação de uma compreensão do mundo orientada pela perspectiva de um estado de regressão exige um exame acerca do que ainda pode, como significado, ser atribuído à cultura, no sentido de nos ajudar a entender essa realidade. Cultura diz sobre o que nos alça a um lugar fora do estado de animalidade absoluta, compreendido pela construção de sentidos organizados por um conjunto de valores, hábitos, linguagens e práticas. É modo de vida e diz respeito a todos, reforçando o que disse Williams (1989). Como prática social, produz e é produzida pela totalidade da formação social.
Como vimos, a violência é um elemento imanente ao processo social vigente, faz parte do seu desenvolvimento. À medida que o capitalismo se tornou maduro, ela se absolutiza. Violência como forma e prática social orientada por sentidos vinculados aos fundamentos que constroem uma experiência humana substancial não se conciliam. Se a cultura foi referenciada ao cultivo do que é humano, e no capitalismo não há espaço para sermos o que poderíamos nos tornar, então o sentido usual atualmente fica desconectado do que a realidade apresenta. O real nos impõe a negação do que é de fato a cultura, como forma de mantê-la uma promessa de emancipação e felicidade. Conformada em produto, cultiva o valor. Se o cultivo da mercantilização funciona sob o preço do sacrifício do terreno fértil que a experiência humana poderia carregar, enunciar uma recusa sobre o poder ser do que é cultural, ao contrário do que se supõe, abre o caminho para uma fala não distanciada das condições e lógica postas no e pelo real. Portanto, “A negação real da cultura é a única coisa que lhe conserva o sentido. Já não pode ser cultural. Desse modo, ela é o que sobra, de certa forma, no nível da cultura, numa acepção bem diferente” (DEBORD, 1997, p. 135).
Liberar-se das formas de dominação em operação é algo que, com vistas a suprimir o horror presente, só se dará pela totalidade; não é possível salvar a cultura, ou suas formas estéticas, a política ou qualquer outra esfera isoladamente. A justificativa da importância de uma radicalidade substantiva na prática anticapitalista reside na compreensão de que o alcance de estágios emancipatórios, completamente incertos, devem ser precedidos pela crítica ao que é atual.
Também a própria arte só pode ser superada positivamente quando conscientemente se tornar momento de um novo movimento social que transcenda o antigo marxismo do movimento operário e ponha a nu as raízes que têm produzido o sistema de cisões e separações funcionais. Uma integração cultural da sociedade em novos e mais elevados graus de desenvolvimento só será possível quando se tiver destruído o fim em si da economia e superado a cisão fundamental entre os sexos. O pressuposto de um novo debate emancipatório é hoje a legítima defesa contra a economificação capitalista do mundo (KURZ, 2004, p. 131).
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POSTONE, Moishe. Repensar a crítica de Marx do capitalismo. In: ––––––. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 17-59.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: 1780-1950. São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1969.
––––––. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 (p. 15-21/ 276-294).
––––––. Problems in materialism and culture: selected essays. London: Verso, 1980.
––––––. Resources of hope. Ed. Robin Gable. London: Verso, 1989.
Experimento audiovisual:
Museum Songspiel, Chto Delat. Disponível em: <https://chtodelat.org/category/b8- films/fa_3_1/>. Acesso em: 22 fev. 2017.
Resumo:Este é um texto que tenta esboçar uma leitura sobre o nosso tempo e reflexões acerca da atualidade do conceito de indústria cultural diante das transformações do capitalismo. Sob sua totalizante realização, tal conceito, em Adorno (2002), permite conectar sentidos e realidade, desvelando a fusão entre cultura e forma mercantil, em adequação aos objetivos escusos ao modo como poderia ter se realizado – ou devir em outra sociabilidade. Falamos ainda sobre o lugar da arte, posto de modo a reforçar uma sociedade centralizada no trabalho, bem como sua conformação à lógica sistêmica.
Palavras-chave: indústria cultural; cultura; arte; capitalismo.
ATTEMPTS ON THE CULTURE: CULTURAL INDUSTRY, ART AND MERCANTILIST SOCIETY
Abstract: This essay tries to sketch a reading on our time and the actuality of the concept of cultural industry considering capitalism transformations. Under its totalizing realization, this concept, in Adorno (2002), allows us to connect senses and reality, unveiling the fusion between culture and commodity form, according obscure objectives of how it could have been realized – or become in another social form. We also talk on the place of art, as part society centered on work, as well as its conformation to the systemic logic.
Keywords: cultural industry; culture; art; capitalism
1 Este trabalho é composto por uma parte das ideias desenvolvidas na tese de doutorado, apresentada no último ano. Esta versou, em linhas gerais, sobre reflexões acerca do conceito de cultura enquanto parte de uma formação social observada pela sua força destrutiva, sobretudo na periferia do capitalismo. O processo de pesquisa e escrita da tese foi integralmente realizado com bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), nas modalidades Programa de Demanda Social (DS) e Programa Doutorado Sanduíche no Exterior (PSDE).↩
2 Paula Kropf, doutora em Serviço Social (ESS/UFRJ), professora adjunta na Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (ESS/UFF).↩
3 O filme é realizado em holandês, e dispõe de legenda somente em inglês. Então, o trecho aqui reproduzido e todos os subsequentes que expressem fala das personagens são uma livre tradução, feita por mim, para o português.↩
4 <https://chtodelat.org/category/b8-films/fa_3_1/>.↩
5 Chto Delat (que significa “O que é para ser feito?”) é um coletivo fundado em São Petersburgo, no início de 2003, por um grupo de trabalho de artistas, críticos, filósofos e escritores oriundos da cidade, além de Moscou e Níjni Novgorod. O objetivo do grupo é reunir teoria política, arte e ativismo. O coletivo se compreende como organizadores de uma variedade de atividades culturais, buscando a politizar a produção de conhecimento através de redefinições de uma autonomia engajada pela prática cultural e artística de hoje. Em 2013, o grupo iniciou uma plataforma educacional junto à Escola de Arte Engajada em São Petersburgo e também desenvolvem o espaço chamado Rosa's house of culture. Publicam um jornal voltado para a politização da situação cultural russa, em diálogo com o contexto internacional. Suas atividades artísticas compreendem experiências que abrangem vídeo e peças de teatro, programas de rádio, projetos artísticos, seminários. Mais informações, o site do grupo é: <https://chtodelat.org/>.↩
6 Diferente da modernidade, em uma sociedade que não tem, mas é uma cultura, esta faz parte da totalidade do modo de vida não fragmentado, não enquanto um instante da exposição. A arte não é um produto a ser consumido, estanque e independente, ela é experiência inseparável da vida, e “sempre a expressão de um modo de existência cultural único e coerente” (KURZ, 2004, p. 114). Este é o centro da discussão em A estética da modernização – da cisão à integração negativa da arte, onde KURZ (2004) vai apontar como os desígnios sistêmicos do capitalismo repercutem na conformação da cultura e das práticas sociais.↩
7 Raymond Williams foi um importante escritor, nascido no País de Gales, cujos estudos e obras se debruçaram a pensar a cultura e suas dimensões nas relações sociais no capitalismo. Foi expressão dos estudos culturais britânicos, integrante da Nova Esquerda, e cunhou o movimento teórico denominado materialismo cultural. A partir dele, construiu uma compreensão de cultura e literatura tomadas como práticas sociais, produtoras e produto da realidade. Para isso, vai avançar no que diz respeito à relação entre as dimensões de base e superestrutura, propondo ressignificar a ideia sobre o modo de se constituir da determinação da superestrutura pela base material. Este foi o ponto de partida para tentarmos construir algumas reflexões sobre as possibilidades da cultura hoje, elaboradas e expressas da tese de doutorado. O presente artigo, como já dito anteriormente, compreende parte das ideias da segunda parte do trabalho acima referido, onde se buscou observar como Adorno elabora a cultura a partir de uma tônica negativa, distanciada de seu sentido proposto por Williams, de cultivo das faculdades humanas. Tomando tais pressupostos, se chega a uma hipótese: seria ainda a dimensão cultural um elemento anti-barbárie frente ao caráter regressivo do estágio atual do capitalismo?↩
8 Nos referimos aqui a um elemento fundante do modo de funcionamento capitalista, que é o trabalho como fonte absoluta de valor. Sua autocontradição está localizada no fato de que a ampliação das forças produtivas, interpretada do ponto de vista do desenvolvimento do primado das tecnologias no processo de produção, implica diretamente na paulatina retirada de força de trabalho do processo de produção. Ao fazê- lo, dando lugar às máquinas, proporcionalmente reduz sua capacidade de gerar valor – seu único e grandioso motor. Por outro lado, não obstante reduzir sua capacidade de corresponder exitosamente ao seu fim, supostamente isso liberaria os homens das extensas jornadas de trabalho. Entretanto, numa sociedade pautada pela relação de troca, quanto menos trabalha, menos este indivíduo pode se colocar para dispender dinheiro e obter mercadorias. Pois primeiro ele próprio precisa se manter constantemente sendo uma mercadoria. “[...] Quanto mais amplamente crescem as forças produtivas, tanto mais a perpetuação da vida concebida como seu próprio fim perde a sua objetividade. [...] o esforço torna-se objetivamente irracional, e, por isso, o encanto torna-se metafísica realmente dominante. O estágio atual de fetichização dos meios enquanto fins na tecnologia aponta para a vitória dessa tendência até o contrassenso manifesto: a lógica da história faz surgir, sem os modificar, modos de comportamento que, por mais que tenham sido outrora racionais, são ultrapassados. Ela não é mais lógica.” (ADORNO, 2009, p. 289).↩
9 Em Marx: “Seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las.” (MARX, K. A mercadoria. In: O Capital: Crítica da economia política. Livro 1, São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 72-73).↩