CONTINUAR SIMBOLIZANDO O MAL: QUASE NADA, QUASE REAL.
BATAILLE, RICŒUR E A LITERATURA

Cristina Henrique da Costa1
UNICAMP
cristinahenriquedacosta@hotmail.fr

Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha
Clarice Lispector

Introdução

A década de 50 do século passado, imediatamente subsequente aos horrores da segunda guerra mundial, os quais vieram para redobrar e confirmar outros horrores, da primeira, dedicou-se intensamente a pensar sobre o mal. Nomear, localizar, mapear o mal é uma tarefa milenar e uma preocupação constante da humanidade, mas no século XX esta tarefa se tornou tanto mais problemática quanto mais necessária na medida em que o saber fracassou duplamente: mesmo sob a forma do esclarecimento preconizado pelo século das Luzes, não foi capaz de impedir que se cometesse o mal em escala cada vez maior, e tampouco teve competência para explicar racionalmente os males cometidos. Temos aí dois sinais de alerta, a impotência diante do mal e a imprevisibilidade do mal, que soam como apelos para que a questão continue pelo menos a ser problematizada.
Proteiforme, o pensamento sobre o mal continua no centro das éticas modernas2 sem ser frontalmente nomeado: chama-se muitas vezes violência, com Foucault e Bourdieu, angústia com Freud, vida precária com Butler, alienação e Estado burguês com Marx. Nutre estudos sobre o sagrado – pense-se no homo sacer de Agamben ou na tese incontornável de René Girard, acerca, justamente, de A violência e o sagrado, e também circula em nossas denúncias atuais contra os males de injustiça: o neoliberalismo, a homofobia, o machismo e o racismo.
Na tradição dominante da filosofia ocidental, o mal é considerado inversamente como fonte de ilusão, de irracionalidade, de mitificação e de religiosidade, de modo que é preciso muita coragem para enfrentar uma análise do fenômeno do mal e muito talento para ter do mal um pensamento esclarecido que não sucumba ao mal de parcialidade, de obscurantismo e de moralismo religioso. Entretanto, motivos éticos não faltam para falarmos do mal: da ameaça de fascismo ao perigo de uma nova guerra mundial, da destruição ecológica iminente do planeta à uberização da sociedade, do contexto obsceno de empobrecimento da maioria dos seres humanos ao enriquecimento financeiro exponencial de poucos, da fome no mundo ao sofrimento animal, tudo aponta para o mal que não queremos, mas que pode nos vencer. Revela- se hoje ainda uma crise da vontade humana, e a afirmação de Paulo (Aos Romanos,
7:19) – o bem que eu quero, não o faço, e o mal que não quero, faço-o – volta a ressoar hoje na destruição capitalista do mundo habitável.
Tudo se passa então como se o mal inconfessável e inominável, mas sempre implicitamente presente na maioria dos discursos teóricos da contemporaneidade, ameaçasse o pensamento de sucumbir ao mal.
Dois livros fundamentais sobre o mal afirmaram, cada um a seu modo, que falar do mal não é estar a serviço de uma religião, nem resulta em realizar magicamente o mal com as palavras, e ainda que pensar o mal deve ser uma tarefa filosófica de esclarecimento inconformada com a alternativa entre a ação onipotente e a impotência. Fundadores de obras que assumiram eticamente a questão do mal, estes livros estão hoje em condições de nutrir o pensamento contemporâneo e de tecer ricas relações com a literatura e com os estudos literários. Trata-se de A Simbólica do mal de Paul Ricœur e de A literatura e o mal de Georges Bataille.

Pensar o mal para repensar o sujeito moderno

Embora agir dependa da vontade humana, não se pode tudo, ensina o filósofo Paul Ricœur em A Filosofia da vontade, cujo objetivo era dar ao mundo uma fenomenologia da volição, isto é, uma análise eidética da volição como fenômeno de consciência. O que é querer, postos entre parênteses os objetos que se quer? O que é a passividade, fora de suas condições externas? Quais são os móbeis intencionais da ação? Como se manifesta na consciência a liberdade da vontade humana? Tais eram as questões das análises eidéticas de Ricœur acerca da vontade, independentemente de estar se tratando de vontade boa ou má. Mas o primeiro tomo de A Filosofia da vontade se conclui em 1948 (e se publica em 1950) com uma fórmula que já antecipa muitos temas da futura filosofia ricœuriana: “Querer não é criar”3 (2009a: p. 605).
A fórmula de Ricœur exprime a necessidade para a filosofia de reconhecer a limitação
dos poderes da vontade – inclusive da vontade de fazer uma análise eidética da vontade –, pois a consciência humana da vontade não se torna um objeto claro em si, e como a vontade humana não cria o mundo dos objetos alheios a ela – os que queremos ou os que não queremos –, a origem do esclarecimento das nossas ações não está nem no sujeito nem no objeto. O sujeito humano, pelo ângulo de sua vontade, precisa abandonar o narcisismo de se crer pleno e seguro de si, e embora o sentido do ato de “querer” exista, se afirme, se ateste, não é conceitualmente claro. Em suma, não existe um domínio do conhecimento conceitual que permita distinguir totalmente entre agir e padecer, entre o Bem e o mal, o que não impede que estas duas categorias estejam implicadas na compreensão que os homens têm de qualquer uma de suas ações. Pelo mesmo raciocínio, para Ricœur não existe agir puro (ou liberdade pura), mas também não existe padecer puro (para Ricœur o ser em vida testemunha sempre de um esforço originário para existir ativamente).
Esta dolorosa condição real do homem dotado de uma vontade “recíproca de um involuntário” (p. 605) orienta então a virada hermenêutica do filósofo, como consta do segundo tomo de A Filosofia da vontade, intitulado Finitude e culpabilidade. Ricœur levou dez anos para escrever este segundo tomo, com base na impossibilidade, para o cogito, de autofundar-se por vontade própria. A estrutura do livro é complexa e há duas partes. Na primeira, O Homem falível, Ricœur olha para o homem como ele se vê, reflexivamente, quanto ao mal. Ora, o homem se vê finito, e a finitude humana – ou seja, a incapacidade humana de criar os objetos de sua própria volição –, explica a falibilidade do homem, isto é, a possibilidade do mal, mas não a efetividade do mal. Na esteira de Kant, para quem o mal é radical4, isto é, humano, Ricœur opõe-se ao dogma agostiniano da natureza má do homem. Dizer que quem faz o mal é o homem, e não o sagrado, um deus, o destino ou a natureza é tornar pensáveis a imputabilidade e a responsabilidade, logo, a liberdade. Dizer que o homem não comete o mal por natureza má é dizer que o mal não é uma fatalidade ontológica, embora seja sempre possível. O homem é falível.
A segunda parte de Finitude e culpabilidade, que Ricœur intitulou A Simbólica do mal, assume as consequências desta argumentação anterior: embora nada na natureza humana explique a efetividade do mal, o mal existe na história dos homens desde sempre. A passagem de um estado de natureza para uma história do mal não é algo explicável no sentido crítico e moderno, mas está documentado nas linguagens simbólicas e narrativas da humanidade. Nenhuma filosofia resolve sozinha: “como passar da possibilidade do mal humano à sua realidade, da falibilidade à falta?” (2009b: p.205).
Há de fato, para Ricœur, um paradoxo insustentável da especulação: quanto mais racionalmente se explica o mal menos se reconhece que ele existe mesmo como mal, ou seja, como algo opaco, equívoco e escandaloso. A proposta de Ricœur é substituir o paradoxo especulativo, eticamente insustentável, pelo paradoxo hermenêutico, o fato de ter que pensar o mal a partir do mal, isto é, do opaco, do equívoco e do escandaloso.
Na impossibilidade de explicar o mal, Ricœur explica a especulação sobre o mal: ela nasceu, junto com a filosofia, sob a forma de um gesto crítico de negação (logos) dos mitos religiosos da Grécia arcaica (mythos), apoiando-se, para realizar seu trabalho crítico de negação, em outra crença religiosa importada do Oriente, a qual Ricœur chamou de mito órfico.
A análise de Ricœur é a seguinte: a filosofia ocidental, considerando-se que sua certidão de nascimento está em Platão, busca uma verdade que se associa à ideia de partilha ontológica. As coisas que são – e porque são, são cognoscíveis e desejáveis –, opõem-se às coisas que não são – e estas nem são cognoscíveis nem desejáveis. Mas esta partilha entre ser e não ser foi fortemente inspirada pelas religiões de mistérios orientais. Naquele momento, a conotação ética positiva estava ligada à busca do ser pelo pensamento, e a conotação ética negativa vinculava-se ao equívoco de buscar o não ser, que equivalia a não saber pensar, à impotência de ser, à ilusão5. Quando se decreta que “de verdade” só existe o ser, acredita-se também que o não ser é o mal.
O que Ricœur diz é que a partilha ontológica do ser e do não ser não é um gesto originário do pensamento, e sim uma forma de dividir as coisas que depende de um pensamento moral e religioso, o qual qualifica e classifica estas mesmas coisas em função de elas serem materiais ou ideais. A origem do não ser e do mal de não ser, neste contexto religioso oriental, é a matéria. Mas uma vez feita a partilha, esqueceu- se que mal, não ser, ilusão e matéria eram equivalentes. Duas crenças: que o mal não tem substância ontológica (logo, não é o objeto real da filosofia), e que quem se interessa por ele só pode se equivocar, nutre a gnose dualista, avizinha o budismo e sua crença nas ilusões da vontade individual, mas de fato apoiam-se no critério ontológico cuja origem não é racional.
Ora, quando se chega, por especulação, novinho em folha, à conclusão de que o mal é o nada da ilusão, repetindo a crença órfica, há nisso a ocultação de outras experiências dos homens. Se o complexo edifício da tradição filosófica não se reduz à origem antiga da crença no mal como ilusão e não ser, é porque a filosofia reconhece também a existência de outras interpretações. A crença no mal está nos mitos, nos símbolos, na confissão do penitente. Como afirma a primeira introdução de A Simbólica do mal, que versa sobre uma fenomenologia da linguagem da confissão:

Por trás da especulação, debaixo da gnose e das construções anti-gnósticas, encontramos os mitos [da origem e do fim do mal] (...). A aventura seria sem esperança se, por baixo da gnose e por baixo dos mitos, não houvesse mais linguagem. Ora, não é o caso; há a linguagem [simbólica] da confissão da qual o mito e a gnose são as expressões de segundo e terceiro grau. (2009b: pp. 206-209)

A consequência radical da insuficiência dos discursos especulativos é que o mal, por não se identificar com o nada da ontologia, nem com a natureza supostamente má do homem6 , é algo que desestabiliza a filosofia. A fim de compreendê-lo, é preciso voltar-se para a hermenêutica dos símbolos e para o campo da ação humana (e não da substância ou da essência). A tarefa filosófica consiste em aceitar o desafio do desvio simbólico que dá o que pensar. Ricœur, para ser entendido racionalmente, falará, na contramão da ontologia, em quase nada do mal que se torna um quase ser quando é feito pelo ser do homem e pelo nada de sua finitude, como está na conclusão última de A simbólica do mal: “Então se colocará o problema de saber como se articula no ser do homem e no nada de sua finitude, o quase ser e o quase nada do mal humano”. (2009b: p. 576).
A vantagem ética desta argumentação é reconhecer a força existencial do mal, para permitir que dele façamos uma crítica que conduza à ação humana transformadora. Com Ricœur, a pretensão da filosofia ocidental em postular a existência de um cogito integral capaz de autofundar-se fundando seu próprio discurso encontra-se contrabalançada pela exigência filosófica de postular a existência de um cogito partido pelo mal, mas por isso mesmo seria inimaginável que pudéssemos nos dispensar de pensar o valor da subjetividade partida, enquanto instância prática que nos põe em relação com o mal.
O teórico, antropólogo e escritor Georges Bataille, por sua vez, representa hoje uma figura de destaque sui generis no que tange a questão do mal. Se La part maudite (1949) descobre que o mal não pode ser totalmente reduzido através do pensamento crítico, é porque o mal possui uma forma de criatividade concreta, a qual se deduz de sua essência: o mal é justamente o mal, isto é, uma força indomável racionalmente, motor histórico de um sistema eficiente e falido.
Bataille associa a história do mal à modernidade. Para ele, hoje o mal deve-se à valorização exclusiva da utilidade, esteio de todo nosso sistema moral individualista.
Para um moderno, queimar energia inútil tornou-se maléfico, não servir para nada tornou-se imoral. Daí o paradoxo do mal. Explico: o recalque racional do inútil produz uma economia de energia. De fato, tornamo-nos mais produtivos. Organizamos nossas vidas com vistas ao útil. Entretanto, o acúmulo de energias disponíveis que provêm da racionalização da vida humana tem efeito perverso e irracional, pois as energias que a ética da utilidade economiza tornam-se patológicas e extravasam destrutivamente. Sem poderem confessar-se como gastos inúteis, estas energias mantêm a máscara mistificadora da utilidade, e por isso produzem a patologia maléfica específica da sociedade moderna, que é o excesso e não a carência. Hoje, uma guerra é produzida por excesso de armas e interesses econômicos, e não pela fome que é apenas uma de suas consequências.
Uma clássica crítica da ideologia produtivista teria aqui um alimento farto: os efeitos exponenciais da ética da utilidade estão hoje na gestão patológica das forças do trabalho, gestão que possui o objetivo claro de ocupar todo o espaço do tempo humano com utilidades que todos sabemos ilusórias e inúteis, e que servem a causa de uma consumação igualmente patológica de energia disponível por quem usufrui sem trabalhar. Estão na exacerbação de uma contradição obscena. Para Bataille, porém, a questão não é apenas desmistificar a ideologia utilitarista da modernidade, e sim descobrir as molas íntimas que a permitem, e conduzem a uma contradição muito maior, localizada no interior do indivíduo concreto, cuja realidade não se esgota na posição que ele ocupa no interior da contradição social.
Cada indivíduo quer o útil para si, como forma de conservação vital, mas quanto mais ele se conserva, mais ele precisa se consumir, isto é, se destruir. E esta é a verdadeira natureza do mal, que não há como resolver apenas criticamente, o que não significa que a crítica das ideologias esteja ausente das análises de Bataille. A crítica é fundamental para rasgar o véu de Maia da hipocrisia burguesa ocidental, e opera nos moldes eles mesmos meio nietzschianos que caracterizam Bataille. O contexto é de decepção com o Cristianismo produtor de sua própria doença:

O pai de família esquece, quando brinca com sua filha, os maus lugares onde entra como um porco inveterado. Ele se surpreenderia, nestas condições, ao se rememorar o sujo indivíduo que ele continua a ser, infringindo todas as regras delicadas às quais ele obedece na companhia de sua filha. (1976: p. 17)

Uma vez explorado o coração íntimo da contradição gerada no mal, Bataille preconiza o gasto de energia numa atitude assumida de consumação e de desperdício, e clama por soberania. Soberanas são justamente as ações que não servem para nada de forma assumida. A soberania, em Bataille, vincula-se ao mal, pois não há nada que afirme que, no final das contas, os equilíbrios entre o bem e o mal se restabelecerão se os indivíduos se assumirem. A verdade é que as ações de consumação não atendem à lógica do equilíbrio dualista entre as forças, e por isso a consumação não pode ser um desperdício qualquer. Se pudesse, nossa sociedade teria já resolvido todos os seus problemas, a julgar pelo frenesi consumerista que nos assola.
Ocorre, porém, que a consumação só acontece quando se torna erótica, e acreditar que o erotismo restabeleceria a paz e as condições sociais das ações úteis seria ainda colocar-se do ponto de vista da moral da utilidade. A questão de Bataille tem fundo especulativo, vertiginoso: para que o erótico seja erótico não basta que ele não sirva para nada, é preciso que ele seja erótico e portanto não sirva para servir. Disto, quem sabe é o homem moderno, consciente que o erótico é uma força de destruição estrutural e histórica.
Chegamos então ao cerne do abismo: a definição mesma da consumação erótica por Bataille significa a impossibilidade de desonerar o erotismo de sua essencial cumplicidade com o mal. Desde uma análise da sexualidade humana, Bataille detecta uma intransponível ambivalência na forma como ela se organiza, estendendo-se, pela via erótica, em organização do conjunto da existência não natural do homem. O que revela esta sexualidade, espantosamente repleta de tabus invariantes – o desgosto pelos excrementos, a ojeriza em relação ao incesto, o pavor dos cadáveres humanos por exemplo –, e de proibições históricas variáveis – a sodomia, a homossexualidade, as formas específicas de exogamia, etc. –, é uma estruturação perversa, inconcebível sem as proibições correspondentes. Por um lado, por baixo desta construção histórica e transhistórica feita de proibições e tabus, nada encontraremos. Na animalidade bruta não poderíamos nos reconhecer. Por outro lado, o conteúdo histórico do erotismo não é o espaço do permitido (por oposição ao proibido), e sim a própria proibição7.
Dizendo de outro modo, o erotismo se autoengendra, não no prazer, e sim na dependência erótica do prazer em relação à proibição. Esta última, longe de ser uma reificação da coisa proibida, é ao contrário o elemento mediador do comportamento sexual humano, motivado às custas de uma fascinação pelo interdito muito mais que pelo objeto interditado.
Este fascínio erótico que descortina a compulsão de transgressão humana não produz uma forma de conhecimento ontológico dos objetos proibidos, e sim uma consciência do mal humano enquanto fazer transgressor. Antes mesmo de saber o que é a árvore do conhecimento, Adão e Eva experimentam o fascínio pelo mal que leva a pecar. Bataille leu Paulo, que diz: “A lei, de fato, fornece apenas o conhecimento do pecado” (Aos Romanos, 3: 20). A ordem no mundo humano não ocorre como no mundo das leis naturais. Pela lei, os homens sabem que pecam. E pecam. Bataille repete a ideia em A Literatura e o mal: “O interdito diviniza aquilo a que proíbe o acesso. Subordina o acesso à expiação e à morte (...) não deixa de ser um convite, ao mesmo tempo que um obstáculo” (1957: p. 17).
Destes fenômenos concomitantes - proibição/transgressão/punição - surge a elaboração de um espaço que Bataille chama de sagrado, ele mesmo definido como manifestação da criatividade do mal. A consumação, daí o abismo do mal moderno, está implicada na lógica do sagrado, mas uma vez suprimidos os alicerces políticos e religiosos do sagrado, não há como enquadrar suas profanações.
Longe de serem dominados por uma bestialidade sexual, os sujeitos humanos modernos, eróticos por essência, radicalizaram a soberania e disseminaram o poder de destruição e de autodestruição da consumação. Sabem que não há alternativa, pois a falta de soberania torna-os vis, e tanto mais destrutivos por excesso de recalque do inútil.
Assim como os símbolos do mal de Ricœur, a literatura do mal de Bataille diz o enigma de um poder do fazer bem diferente de qualquer ontologia. Ambos estes pensadores interpretam o mal como uma experiência que transforma o sujeito e por isso mesmo exige ainda sua existência.

De onde vem a crise do sujeito, da Razão ou do mal? Limites da especulação

Como põem em evidência as análises imediatamente anteriores, o fenômeno do mal, sobretudo à luz da história contemporânea, problematiza o conhecimento racional, não só por configurar-se como objeto inatingível de conhecimento mas também por produzir paralelamente uma exigência de esclarecimento. Na luta da Razão contra o mal, o mal, que sempre já teve lugar, está sempre em vantagem, daí ele ser o mal. Mas o limite paradoxal do problema do mal para uma análise especulativa, é a tensão entre o reconhecimento do mal na história e sua explicação histórica. O diagnóstico moderno, de que os poderes da própria Razão se tornaram maléficos, situa-se no extremo do paradoxo da explicação do mal. Como está na Introdução da Dialética da Razão de Adorno e Horkheimer:

(...) mostramos que a causa desta regressão da Razão para a mitologia nem deve tanto ser buscada nas mitologias modernas nacionalistas, pagãs, etc., especialmente concebidas com vistas a esta regressão, e sim na própria Razão, paralisada pelo temor que a verdade lhe inspira.

A fórmula, significativa, correlaciona a racionalidade e a produção histórica dos males: estes, identificados com a dominação dos homens, realizam uma regressão que se aprofunda no aspecto destrutivo do progresso pela razão instrumental, e excedem, pelo horror que representam, tanto à sujeição da natureza pelo homem, quanto ao domínio do homem pela natureza. Nesta análise dialética, em que a história humana se define primeiro, na esteira de Hegel, como negatividade, a existência dos males modernos decorre do próprio desvario da negatividade, como se o desenvolvimento dialético da história houvesse descaminhado e se voltasse agora contra os próprios homens, nutridos pela ilusão racional patológica de que será possível – Adorno não crê nisso – realizar racionalmente uma negação total da natureza.
Se nos referirmos ainda à Dialética da Razão, escrito em parceria com Horkheimer, observamos em “O conceito de Aufklärung” que a constatação do fracasso da Razão (sob forma de sua autodestruição) é histórica. Pois o objetivo do “pensamento em progresso” (p. 21) – de libertar os homens do medo e torná-los soberanos –, não foi atingido e prolongou-se no seu contrário, isto é, no pensamento mítico sobrevivente (por exemplo, no fascismo, mas também no positivismo). Nas palavras de Gilles Moutot:

O desenvolvimento cada vez mais puxado da abstração, e do domínio franqueado por ela sobre o mundo natural, explora o “princípio do equivalente” que já operava nas trocas primitivas. Destarte, a Razão repete, amplificando-a, a regra característica da mentalidade mítica do sempre “semelhante”. Daí, notadamente, a crítica [de Adorno e Horkheimer] ao positivismo que, reduzindo a operação de conhecimento à “classificação e à avaliação” dos fatos observáveis, sujeita desta forma o espírito àquilo que é, como fazia outrora o fatum mítico”. (p. 81)

O diagnóstico quanto ao fracasso da Aufklärung em realizar a liberdade na história desdobra-se em crítica e lamento pelo destino de Kant. Das duas vertentes antiobscurantistas da Razão kantiana, teórica e prática, a história reteve apenas a teórica, e isto já se lê por exemplo no discurso da Juliette do Marquês de Sade, no qual a legitimidade dos atos imorais depende da legitimidade dos raciocínios teóricos. Juliette, antes mesmo de planejar o uso total dos corpos nos jogos sexuais que os instrumentalizam, domina sobretudo perfeitamente o órgão do pensamento que sustém esta planificação. Ela conhece “o gozo intelectual da regressão (...) o prazer de destruir a civilização com suas próprias armas” (p. 104). Ora, se, na verdade, apenas o aspecto teórico do ideal kantiano da Razão sobreviveu à modernidade burguesa, mas não o ideal prático, e se a unidade sistemática dos conhecimentos teóricos, sem a Razão prática, não é nem moral nem imoral, a história transcorrida demonstra que a universalidade da moral kantiana, isto é, a estrutura transcendental que tornava pensável uma vida humana social e livre, não passa de uma ficção da Razão. Em outras palavras, a Razão é o objeto (prático) e o sujeito (teórico) desta mistificação racional. Mas obviamente, este poder exorbitante da Razão já não é o da Razão kantiana estritamente controlada pelo tribunal das críticas, e sim o da Razão dialética de Adorno e Horkheimer.
Nesta visão dialética, mais verdadeira e concreta, constata-se a ultrapassagem da moral universalista de Kant, tal como ela ocorreu na história que a negou, mas também produziu, sob forma de resultado dialético do universalismo, a uniformização dos indivíduos. No lugar de acreditar no substrato subjetivo universal do homem, o que agora é racional é ter consciência da moral concreta do indivíduo burguês da qual o universalismo era uma figura ainda abstrata. Mas, para ir mais a fundo na compreensão do concreto, o que ensina então a moral burguesa? A transformação da finalidade ética, móbil das ações morais, em lógica da conservação individual. Todos os meios de poder, inclusive o domínio sobre a natureza, terão sido disponibilizados ao homem através de uma natureza trabalhada racionalmente no sentido de possibilitar a obtenção desta nova e concreta finalidade moderna.
Os resultados estão aí: o indivíduo burguês, em plena contradição, almeja seus próprios interesses egoístas mas sujeita-se com isso ao seu crescente processo de massificação: “enquanto o indivíduo desaparece diante do aparelho que ele serve, este mesmo aparelho encarrega-se dele melhor do que nunca” (p. 18).
Toda a dificuldade de Adorno e Horkheimer consistirá então em construir as mediações que remedeiem à doença, de maneira que ela não tenha o destino catastrófico de um câncer (embora o destino catastrófico já tenha ocorrido em Auschwitz). Se o primeiro passo, já referido pela citação acima, é atribuir este fenômeno regressivo da Razão à própria Razão, e não ao poder de eventuais mitologias modernas, é que nada de bom se espera de uma ideologia do retorno à natureza, pois a dialética histórica é sem volta: o mundo tornou-se racional, e qualquer ideia de regresso às origens apenas redobra o caráter manipulador da racionalidade patológica. Daí ser a Teoria crítica a esperança de superação da patologia pela consciência crítica espiritual da necessidade do trabalho de esclarecimento. Se o pensamento vitorioso “sai voluntariamente de seu elemento crítico para se tornar um instrumento a serviço de uma ordem existente, ele tende à sua revelia a transformar o elemento positivo que escolheu em algo negativo, destruidor” (p. 14).
Ora, a função esclarecedora da Razão passa pela exacerbação da postura crítica, a qual nem sempre possibilita o pensamento pela Teoria crítica de ações transformadoras da realidade concreta. Ou seja, “A única filosofia cuja responsabilidade possamos ainda assumir diante da desesperança seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam do ponto de vista da redenção” (p. 333). A Razão, para manter-se crítica, leva ao paradoxo de uma tarefa de emancipação que nem pode ausentar-se do mundo, nem pode nele agir. No mesmo último fragmento de Minima moralia: “Quanto mais o pensamento, em nome do incondicionado, se fecha com paixão ao que arrisca de o condicionar, mais ele se entrega (...)” (p. 333)
Se os elementos de uma possível salvação existem, pelo menos em forma de horizonte, mas estão estritamente associados à dimensão crítica da Teoria crítica, não há modelo de ação. Adorno está como “aprisionado” na especulação dialética:

Sem dúvida, porque o desenvolvimento da Razão fez-se às custas do esquecimento de seu próprio caráter dialético (ela está sempre já separada da natureza, mas esta separação é a da própria natureza, enquanto nela o humano surgiu), qualquer leitura de mão única da história como progresso encontra-se marcada pelo interdito (...) mas inversamente, na medida em que, pelo menos em teoria, o movimento de autorreflexão crítica da Razão é sempre possível, por meio da qual o espírito cesse de considerar como nada “o conhecimento que ele tem de si mesmo enquanto natureza dividida” tampouco pode-se remeter o processo histórico, a partir da constatação da dialética da Razão, a uma espécie de processão da decadência: “A Razão é mais do que a Razão, ela é a natureza tornada inteligível em sua alienação”. (p. 93)

O astuto Ulisses, amarrado ao mastro do navio para poder ouvir o canto destrutivo das sereias encarna desde já o egoísmo da autoconservação burguesa, mas quando justifica a crítica do capitalismo, enterra a possibilidade de pensar uma superação real e concreta. Se a Razão patológica se objetivou e tomou totalmente conta do mundo, não há o que interpretar: com o indivíduo burguês não se sai da barbárie moderna, mas a barbárie é o inferno da lógica individualista racional8.
Se o inferno situa-se sempre na periferia do pensável que o próprio pensamento produziu, Auschwitz é um paradoxo da Razão ao qual chegamos por especulação e “nomeia a relação da filosofia com o que ela em absoluto não é” (BADIOU, 2005: p. 1). Para Adorno, Auschwitz não é apenas o dado empírico da exterminação, e sim o nome próprio “no qual desaparece todo nome próprio, de maneira que, escreve ainda Adorno, “nos campos já não era o indivíduo que morria, e sim o exemplar” (MOUTOT, p. 99).
Badiou observa que o final da Dialética negativa consiste na passagem do “nome filosófico” de Auschwitz para a passividade irredutível da experiência de Auschwitz. Moutot assume a especulação: já o homem industrial, reduzido à mercadoria, preparava a redução total e absoluta do individual ao genérico que ocorreu nos campos, realizando uma tendência tautológica do pensamento ocidental. Para ambos, Auschwitz é a falência, pensável a partir de Adorno, do conceito de identidade, logo, do conceito em si: em Auschwitz expõe-se o paradoxo do acontecimento absolutamente singular que é ao mesmo tempo fenômeno do pensamento identificador. Auschwitz é incompreensível porque não é um caso de, um tipo de, um exemplo de. “E torna-se, como o Deus da teologia negativa, um nome radicalmente apofático: aquilo que é o mais real é também o indeterminável, um não lugar em cuja margem se quebra a própria forma da proposição atributiva” (MOUTOT, p. 100).
Ora, o fato que a história produza alteridades ao pensamento não é problema para uma especulação dialética clássica. Em Hegel, o sujeito se define inclusive como perpétuo devir outro. A negação, nesta filosofia, é o modo de desenvolvimento da identidade efetiva que se torna mais real à medida em que vai se tornando consciente de não coincidir com suas figuras (em linguagem hegeliana: com qualquer determinação finita). Neste sentido, a contradição é a marca da verdade especulativa hegeliana, é a negação da negação.
Se, para Adorno, a contradição de Auschwitz (ao mesmo tempo singular absoluto e anônimo absoluto) é irrecuperável, e se seu negativo inominável não é, por sua vez, negável, isto é, superável, não há teodiceia hegeliana. Por que então permanecer na lógica da especulação conceitual?
Reduzido à condição de horizonte de possibilidade do impossível9, Auschwitz não
pode ser exemplo do mal, pois tudo se passa como se tomar Auschwitz como exemplo equivalesse a negar a sua essência. O acontecimento real, que se abisma na condição de um impossível começo, passa então a ser um nome próprio cujo conteúdo vivencial é o sofrimento indefinível, inefável e passivo. O problema do reconhecimento do mal desloca-se para a questão do necessário reconhecimento da vítima.
O paradoxo do mal e da Razão talvez exija uma saída ética da especulação. Está em jogo não acreditar na ilusão de uma vitória final do mal enquanto fabricação racional do nada absoluto. Paul Ricœur já nos alertava na conclusão do primeiro tomo de A Filosofia da vontade, com uma fórmula que agora adquire um novo significado: “Querer não é criar”. Nem mesmo o nada.
O acontecimento histórico de Auschwitz deixou restos, e não por acaso o conceito de restos passou a exercer uma função fundamental nos estudos literários contemporâneos sobreviventes à negatividade moderna. Ora, a experiência não é a passividade absoluta. Sobre sua experiência de Auschwitz, Primo Levi conta:

Pertencíamos a um mundo de mortos e de larvas. O último rastro de civilização desaparecera ao redor de nós e em nós. A obra empreendida pelos Alemães triunfantes chegara ao termo com os Alemães vencidos: eles fizeram de nós verdadeiras bestas (...). Aquele que esperou que seu vizinho acabasse de morrer para tirar dele um quinhão de pão é, mesmo que não seja culpado, mais afastado do modelo de homem pensante que o mais rude Pigmeu e o mais abominável sádico. (p. 106)

Mas confessa também, nas últimas palavras do Apêndice de 1976 a Se isto é um homem (na edição francesa de 1987), sua retomada do pensamento e da reflexão apesar do mal de sobreviver. Para ele, a sobrevivência, não se reduz ao egoísmo, e deve-se também:

À vontade que tenazmente preservei, mesmo nas horas mais sombrias, de sempre ver, em meus camaradas e em mim mesmo, homens e não coisas, e de evitar deste modo essa humilhação, essa desmoralização totais que para muitos conduzia ao naufrágio espiritual. (p. 122)

Etapas de uma consciência subjetiva do mal: simbolização e literatura

Retorno então a Bataille e Ricœur para dizer que, de certa forma, o interdito crítico contemporâneo que pesa sobre a linguagem do mal pesa também, de forma prescritiva, sobre a verdade da literatura.
Começo por lembrar que o problema da verdade da literatura (ou mais exatamente da verdade poética) é hoje ainda uma questão teórica. Teorias dominadas pela linguagem especulativa decidem tanto sobre a verdade da literatura quanto sobre a impossibilidade de verdade da literatura (esta segunda vertente reúne uma série de pensadores franceses que adotaram como lema a famosa frase de Bartleby: I would prefer not to10 ). Ora, para ser entendido, o assunto difícil da questão da verdade poética na modernidade precisa referir-se ao pensamento especulativo do século XIX, cujas raízes fundas estão na crise kantiana da filosofia. Quando o ser deixou de coincidir com o conhecer, e a verdade filosófica deixou de ser o conhecimento da coisa em si, a crise da metafísica, que contém a crise clandestina do orfismo mais antigo, teve como consequência a escalação do poético para a função de reconciliação – no lugar da filosofia, mas logo depois, de mãos dadas com novas filosofias –, entre o ser e o conhecer.
Hoje, quem teoriza situa o lugar de legitimação da verdade poética em um discurso conceitual fora da própria literatura, e parece que o tipo de verdade que se produz na literatura nunca está à altura do tipo de verdade teorizada na especulação sobre a literatura. Ignora-se a dimensão de alteridade da linguagem literária ou poética enquanto realidade irrecuperável para uma teoria geral da verdade. Algo parecido ocorre com o mal: reduzido por Platão ao estatuto do irreal, e por Hegel aos efeitos da astúcia da Razão na história, o mal em certa tradição filosófica não é reconhecido como produção de sentido.
Segundo Ricœur, é na linguagem da confissão que melhor se vê o uso de símbolos partilháveis do mal, e por isso mesmo uma confissão, qualquer que seja, ultrapassa a instrumentalidade de uma linguagem apenas individualista. Enquanto discurso que possui destinatário e endereçamento, a confissão é o primeiro elemento fundamental da experiência humana coletiva concreta do mal que uma filosofia é incapaz de reduzir racionalmente.
Ricœur então dedica-se a reconhecer o estatuto do símbolo para poder reconhecer o mal nas confissões mais arcaicas. Tanto na criteriologia do símbolo (Introdução da primeira parte de A simbólica do mal) quanto em O conflito das interpretações (1969), o símbolo é definido como uma realidade de linguagem que apresenta, unidos e indivisíveis, um sentido literal junto com um sentido figurado. Interpretar o símbolo é não desfazer esta unidade do literal e do figurado, não dissolver a linguagem em explicação racional desta união que produz a intensidade do conteúdo afetivo. Até hoje, o penitente que reconhece o mal se confessa manchado, daí sua emoção intensa, e a força de alastramento do símbolo da mancha supera qualquer raciocínio sobre o mal.
Um moderno aprofunda o enigma do mal reconhecendo o estatuto do símbolo, mesmo arcaico, e se torna consciente de como se vive o mal, tornando-se disponível para uma segunda inocência crítica e pós-crítica da crença nos símbolos. Se o homem foi interiorizando subjetivamente a experiência enigmática do mal (do sagrado para a falta, desta para o pecado e do pecado para a culpa), objetivando paralelamente o mal em objetos homônimos correspondentes a estas experiências, e se, para Ricœur, o processo se completou historicamente com a interpretação cristã do mal por Paulo – pois como se sabe, o problema de Paulo era ultrapassar o caráter objetivo da lei, última figura do mal a ser vencida e ponto de partida para a consciência moderna da liberdade diante do mal –, nada impede a consciência moderna do mal de continuar simbolizando. Até mesmo a alteridade vivencial se lê pelo critério da confissão: o mito trágico, por exemplo, visão de um mundo governado por deuses realmente maus que se dedicam a nos destruir; podemos reconhecê-lo, mas não podemos confessá-lo. Está aí uma chave para pensar nossa relação com a literatura: ela é uma simbolização situada entre o reconhecimento do outro e a confissão de si.
Bataille parece inscrever-se igualmente nesta perspectiva histórica: para ele, o espaço da literatura do mal, centro da simbolização moderna do mal, é uma literatura na qual se acredita e não está fora do alcance da crença de um ocidental. Trata-se, até mesmo, de uma literatura que tem chances de ser, ao contrário, a própria retomada paradoxal da experiência de crença de um ocidental que agora se confessa sem fé em Deus.
Apenas a literatura não está turvada pela interferência das ilusões do Bem, que são ilusões da ação voluntária necessariamente fracassada. Apenas ela desvela hoje o mal em sua pureza fascinante. Este fascínio que se dota de um estatuto ontológico próprio quando se torna o modo de ser e de aparecer do mal puro está afastado da lógica das ações individualistas. É a forma como a consciência moderna alcança tematizar uma experiência histórica nova em luta contra a interpretação do mero egoísmo como Bem inteligível e finalidade da ação.
Bataille sintetiza de forma original a questão da verdade do mal e a questão da verdade da literatura, e sai eficientemente da especulação sobre o mal alcançando a ideia de uma simbolização poética da experiência histórica. Para tanto, a literatura revela uma experiência do mal sem esperança e interioriza a culpa: “a literatura não é inocente, e culpada, ela tinha, no fim das contas, que se confessar como tal” (p. 10). Entenda-se bem a questão: Bataille diz-se totalmente alérgico ao discurso religioso da confissão. Não quer confessar do interior de uma confissão religiosa, como está no começo (intitulado sintomaticamente “Crítica da servidão dogmática”) de A experiência interior: “aludo menos à experiência confessional (...) do que a uma experiência nua, desvinculada, e até mesmo livre de origem, em relação a qualquer confissão que seja. Por isso não gosto da palavra mística” (p. 15).
Mas o que a literatura moderna precisa confessar já não está totalmente ao alcance do discurso religioso: a forma aguda do mal encarna-se em símbolos do horror tais que somente uma consciência moderna é capaz de vê-los, de compreendê-los, de suportá- los, e que constituem o coração mais íntimo e comunicável da experiência moderna de ser um homem. Para Bataille, o acontecimento histórico vivido literariamente, sem Deus, agora é o que permite simbolizar o mal na história. Nasce, em suma, uma nova consciência da criatividade poética do mal. Por isso Heathcliff (O morro dos ventos uivantes), figura maléfica por excelência criada por uma autora inocente e pura que nunca saiu do presbitério paterno, já não transgride interditos religiosos, como faziam os heróis da literatura trágica, mas viola as leis da Razão identificadas com o Cristianismo.
A tarefa de leitura do mal é hermenêutica: o momento histórico de Baudelaire, Mon cœur mis à nu, a Correspondência de Baudelaire, a leitura do Baudelaire de Jean-Paul Sartre, tudo isto ajuda a entender o mal em Baudelaire. Mas Baudelaire não é Baudelaire, é o símbolo de um novo vício do mal: “se a escolha de Baudelaire era possível em outros tempos, em outros tempos não produziu As Flores do mal”. Justamente porque não entendia de símbolo Sartre não intuiu o significado do mal poético puro e nada compreendeu de Baudelaire nem de seu fascínio: “o mal, que o poeta faz menos do que sofre sua fascinação, é com certeza o mal, pois a vontade, que só pode querer o Bem, não tem nada a ver com isso” (p. 45).
Kafka ficou criança e por isso gozou, gozou de sua recusa da lei paterna sem ter que crescer e contestar: possuía um senso agudo da transgressão.
Nas mais belas páginas de A Literatura e o mal, que são também as mais imbuídas de entusiasmo bachelardiano, Bataille capta com precisão o significado, em William Blake, da poesia que garante a renovação da religião. Ora, não por acaso será estratégico mostrar que Blake foi um poeta que jamais cessou de simbolizar. Apesar de ter mergulhado no abismo do inconsciente, e apesar de o louco estar definido na modernidade como o “homem que os símbolos do inconsciente submergiram” (Witcutt, citado por Bataille, p. 61), Blake manteve-se sempre “na fronteira da loucura” (p. 61) que conduz à poesia, recusando-se a reduzir racionalmente o mundo às coisas, intuindo a exterioridade a si como algo que não permite divisão objetiva das coisas em limites que as tornem coisas. E isto é o gênio poético, do qual a religião é apenas um efeito: “tudo o que é sagrado é poético, tudo o que é poético é sagrado” (p. 64)
Nobodaddy alcança falar desse sagrado nos termos poéticos de uma ausência de limites capaz de simbolizar o mal que infecta a explicação dos acontecimentos históricos mais extremos do mundo moderno. O Blake de Bataille se entope de mitologia oca e vazia para melhor viver a morte do religioso, de onde nasce a pureza do mal poético.
Ao contrário de Adorno e Horkheimer, Bataille afirma que o discurso racional de Sade está todo errado. A “filosofia” de Sade não interessa, pois a linguagem literária é o domínio absoluto da vontade, sob forma de possibilidade de dizer tudo. Ora, Sade comunica, vejam o perigo, logo, possui um acesso inegável à verdade embora interprete o sujeito moderno além da racionalidade cartesiana, como poder total do querer, fabricação do infinito, tanto mais monótono quanto mais infinitamente destruído como objeto: “Somente a interminável enumeração, entediante, possuía a virtude de desdobrar diante de seus olhos [de Sade] o vazio, o deserto ao qual aspirava sua sanha (...)” (p. 88).
Ao conservar o conjunto do aparato simbólico judaico-cristão que forma, para Ricœur, a história da consciência do mal, Bataille acrescenta uma camada moderna à consciência de culpa. As figuras literárias assumem com ele a emoção do sagrado e do gosto pelo abjeto. Gozo porque não tenho esperança: a fórmula paradoxal de Bataille se entende melhor nesta perspectiva histórica: “o mal não é somente o sonho do malvado, mas também, de certa forma, o sonho do Bem” (p. 17).

Conclusão

Uma rápida síntese da questão levantada por este artigo precisa começar por reconhecer que estamos ainda no limiar da reflexão contemporânea acerca do mal nos estudos literários.
Um dos legados marcantes da filosofia de Ricœur é ela ter pensado a via longa do símbolo que pode nos levar à transformação da história concreta pela simbolização das experiências do mal.
O interdito especulativo e racional contra a possibilidade de continuar simbolizando o mal na literatura moderna e contemporânea proíbe a linguagem opaca sobre o mal, e ao impor a visão alegórica imediatamente clara do sentido da experiência, funda-se no decreto do inominável que desqualifica a linguagem da equivocidade do sujeito individualizado, sem a qual não há potência para imaginar uma transformação do mundo.
O que salvou a obra de Bataille, pessimista, muitas vezes obscura, e por vários aspectos muito vinculada à tradição do gnosticismo poético, foi sua tese acerca da simbolização do mal moderno na literatura, onde a experiência da história prossegue. Por isso quero lê-lo como um continuador da consciência ocidental. Ricœur mostrou: o pertencimento ao Ocidente não é mais uma questão religiosa, mas é uma questão de crença determinante para a forma como falamos e agimos diante do mal. Sem ela, não há crítica.
Talvez, segundo Bataille, não haja razão claramente positiva para sobreviver, e em todo caso viver não é conservar-se em vida. O Jesus de A última tentação de Kazantzákis, quando pregado na cruz, deixou-se tentar pelo mal de querer ser um homem feliz. Era o mal. Mas o importante é o enigma subjetivo de Kazantzákis: a consciência torturada de Jesus só chegou à compreensão de si mesma pelo reconhecimento do mal que a vencia.

Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu.
Clarice Lispector

Referências Bibliográficas

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Resumo: Este artigo apresenta-se como contribuição para o pensamento ético contemporâneo em suas ligações com o campo dos estudos literários. Hoje, a preocupação com os males não tem produzido uma reflexão coerente sobre o mal. Dois livros que se dedicam frontalmente a esta questão e vêm aqui articulados de forma ousada, A Simbólica do mal de Paul Ricœur e A Literatura e o mal de Georges Bataille permitem mostrar que a promoção do campo simbólico é indispensável para a consolidação do discurso ético, e que a literatura, fundamental na tarefa de simbolização, participa da história da consciência do mal e da realidade humana. Argumentando que o pensamento crítico atual precisa ultrapassar o interdito racional que pesa sobre o símbolo para aceitar sem ingenuidade o desafio da interpretação, o artigo defende que esta é a melhor opção para imaginar novas formas de transformação do mundo.
Palavras-chave: A Simbólica do mal; A Literatura e o mal; Paul Ricœur; Georges Bataille; O mal; O símbolo.

Abstract: This article presents itself as a contribution to contemporary ethical thinking in its links with the field of literary studies. Today, concern for evil has not produced a coherent reflection on evil. Two books that are dedicated to this question and come boldly here, The Symbolic of the Evil of Paul Ricœur and The Literature and the Evil of Georges Bataille allow us to show that the promotion of the symbolic field is essential for the consolidation of the ethical discourse, and that literature, fundamental in the task of symbolization, participates in the history of the consciousness of evil and of human reality. Arguing that current critical thinking must overcome the rational prohibition that weighs on the symbol in order to accept without ingenuity the challenge of interpretation, the article claims that this is the best option to imagine new ways of transforming the world.
Key words: The Symbolic of the Evil; The Literature and the Evil; Paul Ricœur; Georges Bataille; the evil; the symbol.

  • 1 Cristina Henrique da Costa é professora de teoria literária na UNICAMP. Trabalha com questões de imaginação poética e de hermenêutica crítica. Autora do importante ensaio Imaginando João Cabral imaginando (Editora da UNICAMP, 2014), escreveu vários artigos e capítulos de livro versando sobre o papel da imaginação poética na constituição da realidade. Lidera o grupo de pesquisas «Mulherando» e acaba de realizar na França (EHESS – CRAL – Fonds Ricœur) um pós-doutorado sobre «o lugar da literatura na filosofia da imaginação de Paul Ricœur».

  • 2 Ao contrário da ética antiga. A Ética a Nicômaco, de Aristóteles. O primeiro livro da Ética tem por título: “o que é o bem para o homem”. Dedicar a reflexão filosófica ao mal não faz sentido neste pensamento.

  • 3 Todas as citações provêm de textos lidos em francês e diretamente traduzidos por mim.

  • 4 Kant. La religion dans les limites de la simple raison. Trad. J. Gibelin. Paris: Vrin, 1983, primeira parte, seções 1 a 3.

  • 5 COSTA, C.H.: Estragos do real: o reconhecimento do mal na poesia de João Cabral de Melo Neto. Texto poético, 14 (25) pp. 334-364, 2018.

  • 6 Refiro-me ao dogma agostiniano do pecado original, que Ricœur interpreta como especulação ontológica abusiva da experiência judaica do pecado, com vistas a explicar a presença do mal na história humana, inserida no seio de uma criação boa.

  • 7 Esta já é a lógica do mal em Agostinho, Confissões, livro II.

  • 8 Como se realiza e se pensa com Adorno a ultrapassagem do indivíduo burguês inserido no contexto da indústria cultural e do capitalismo é um problema contemporâneo. Ver Butler: Rassemblement. Pluralité, performativité et politique. Paris: Fayard, 2016, p. 243.

  • 9 Ver também Derrida, Donner la mort. Paris: Galilée, 1999.

  • 10 O recente livro de Gisèle Berkman, L’Effet Bartleby. Philosophes lecteurs. Paris: Hermann, 2011 é um balanço dos autores que fizeram da frase do Bartleby de Melville um lema de modernidade.