André Barbosa de Macedo1
Universidade Federal do Pará – UFPA
andredilim@gmail.com
Ler a poesia narrativa de Drummond no século XXI
Ler Drummond, a partir de “Morte do leiteiro”, nessa segunda década do século XXI? A obra do poeta já sofre os efeitos do tempo. Se são poucas as existências (“carteiro, ditador, soldado”)2, uma cada vez mais rara é a de leiteiro. O leite agora é conduzido primeiramente às indústrias de laticínios. Pasteurizado e encaixotado, tem longa vida nas prateleiras dos supermercados de qualquer cidadezinha. Tem ainda vida média, depois de aberto, no descanso frio das geladeiras. Tem – ainda – se for desidratado, vida longuíssima em latas de leite em pó. No entanto, contraditoriamente, não se pode dizer que “no país” a sede foi saciada. E, persistentemente, em um sinal de que nem tudo sofreu os efeitos do tempo, a legenda vigora ao menos parcialmente: “que ladrão se mata com tiro” (v. 6).
Entre o título do poema seguido dos seus seis versos introdutórios e a articulação com as restantes sete estrofes, apesar da possível inspiração em um fato de fatalidade cotidiana, o que chama a atenção é a alusão, poetizada, à escrita de notícias de jornal. Isso, num primeiro momento, para além de continuidades histórico-sociais, explica esse caráter datado e, ao mesmo tempo, persistente do poema, pois, diferentemente do primeiro parágrafo de uma notícia, que deve ser preciso (o quê? onde? quando? como? por quê?), na primeira estrofe há indeterminação, oposições, repetições e suspensão. Os versos iniciais assemelham-se à proposição de uma (anti)epopeia3.
Adiante, constataremos que esse “leiteiro” é uma existência entre poucas e, ao mesmo tempo, é uma vasta gama de existências: é um trabalhador (“empregado no entreposto”) “sutil”, que “veio do último subúrbio”, “ignaro”, sem tempo para dizer coisas de poeta. De modo similar àqueles que, hoje, batem o ponto ao entrar e ao sair do trabalho numa indústria alimentícia. Para Drummond, trata-se de “meu leiteiro”. E o eu poético, solidária e enternecidamente, cola-se a esse trabalhador imaginário para tecer uma pequena narrativa trágica. Vislumbra-se, assim, uma das muitas faces do poeta mineiro: o narrador. Apenas mencionada em algumas leituras críticas4, a dimensão narrativa predomina em diversos poemas, desde aqueles do livro inaugural até aos de Lição de Coisas (última obra que abarcaremos), e foi aprofundada somente no segundo capítulo do estudo de Davi Arrigucci Jr. (2002).
É certo que no capítulo – o maior do livro – dedicado ao poema “Áporo”, em Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond, Arrigucci Jr. aborda de maneira percuciente a construção poética de uma espécie de mito moderno, articulando-o com os outros dois poemas – “Poema de sete faces” (interpretado no primeiro capítulo), “Mineração do outro” (interpretado no terceiro capítulo) – e com a totalidade da poesia drummondiana.
De acordo com o crítico, a historieta da mutação de um inseto (um ciclo de transformação natural) leva – pela via da metamorfose – à esfera do mito. No entanto, não se trata apenas de mito, pois a fábula se vincula a um problema histórico concreto do presente de Drummond – o trabalho do poeta enquanto poeta e em suas relações com a contemporaneidade brasileira e global. Todavia, por estar com o foco voltado à metamorfose, que resulta no poema-flor, as especificidades e as recorrências da dimensão narrativa acabaram sendo pouco exploradas por Davi Arrigucci Jr.
O fato é que desde a primeira estrofe lírico-narrativa e instauradora do poliédrico “Poema de sete faces”, dos poemas-piadas e do irônico “Papai Noel às avessas”, até chegar aos pletóricos versos de “O padre, a moça”, a dimensão narrativa faz-se presente em poemas de qualidade estética variável. Tal dimensão perpassa poemas enigmáticos e excepcionais como “Áporo” e “A máquina do mundo”, mas também poemas em prosa como “O operário no mar” e “O enigma”. Um meio termo entre esses polos, em “Morte do leiteiro” é possível ler o equilíbrio tenso e discreto da face poética narrativa em um livro que se pretende, em alguns momentos, mais singelo, porque participante, porque de “poeta público”.
Pertencentes a uma poesia destacadamente reflexiva e perplexa em seu conjunto, trata-se aqui de fundamentar a hipótese de que, nesses e em outros poemas, Drummond vale-se da narrativa como poderoso recurso para uma configuração poética pensante, objetivante e distanciadora que procura compreender tanto os outros (espalhados por esse mundo apressadamente cambiante, contingente e inesgotável), quanto o lugar do próprio eu e de seu fazer poético-intelectual em meio a esses outros do mundo. Mundo que, sem dúvida, é o mundo moderno do “breve século XX”5, mas, nele, há um Brasil de múltiplas temporalidades que transita entre roça, “Cidadezinha qualquer” devagar, “Corumbá Jaraguá Pelotas”6 e capitais (Belo Horizonte, Rio, São Paulo).
Para complicar, há a sucessão no tempo de um eu poético que é, a cada livro, também de múltiplas temporalidades e remete, sem a ele se reduzir, claro, a um eu empírico a respeito de quem o conhecimento é sempre parcial. Nesse sentido, não podemos esquecer, há mais: esse eu poético traz consigo um imaginário-repertório que o coloca – literária, cultural e ideologicamente – em relação com múltiplas temporalidades (com um futuro, utópico ou não, inclusive). Tudo isso sem deixar de ser, de fato, do seu próprio tempo. Em suma: as narrativas, também modernas, que plasmam poeticamente mundo, eu e outros, devem ser abordadas nesse feixe complexo7.
As “coisas que lhe atribuo”
Fugindo em alguma medida à sequência lógica da narrativa do poema “Morte do leiteiro”, mas justamente visando melhor compreender sua formalização estética, convém iniciar a análise pelo comentário que são os versos 21 e 22, na terceira estrofe: “não tem tempo de dizer / as coisas que lhe atribuo”. O eu poético, ao mesmo tempo em que ressalta o próprio dizer que é esse poema, faz, de modo mais geral, uma consideração concernente à especificidade do fazer poético-intelectual. De maneira mais circunscrita, no âmbito de uma literatura engajada, a formulação sartriana ganha aí uma expressão cristalina: o ato de atribuir drummondiano pode ser interpretado pela via do nomear sartriano, pois, para o filósofo existencialista, cabe à literatura “nomear o mundo” (SARTRE, 1993, p. 13); sendo, nesse ato de nomear, a palavra como aquela que possui o estatuto de ação ao operar um desvendamento e tem como fim a mudança – “não se pode desvendar senão tencionando mudar” (SARTRE, 1993, p. 20). A palavra – e esse é o pressuposto fundamental do filósofo e romancista francês – não pode ser tomada exclusivamente como coisa8. Nesse sentido, o Drummond de A rosa do povo leva adiante o fôlego desvendante iniciado em Sentimento do mundo, tal qual evidencia no poema em prosa, perplexo e singelo, “O operário no mar”.
Isso, entretanto, se dá sem que o poeta desça ao nível de facilidade de um Jorge Amado e sem abandonar procedimentos caros à sua poesia, como é o caso do recurso às narrativas permeadas por comentários, indagações e ironias. E, ainda, sem que o próprio poeta coloque em xeque a própria noção de engajamento literário. É o que podemos inferir a partir de versos como os de “Poema do jornal”: “O fato ainda não acabou de acontecer / e já a mão nervosa do repórter / o transforma em notícia” – tal como o poeta transforma o fato em poema. Ou os de “Também já fui brasileiro”, poema em que prevalece a confusão e a perplexidade: “e aprendi na mesa dos bares / que o nacionalismo é uma virtude. / Mas há uma hora em que os bares se fecham / e todas as virtudes se negam.” Nas estrofes seguintes, o eu volta-se contra certo tipo de poesia: “Bastava olhar para mulher, / pensava logo nas estrelas / e outros substantivos celestes. / Mas eram tantas, o céu tamanho, / minha poesia perturbou-se”. Ambos os poemas são do inaugural Alguma poesia.
Já em poemas narrativos de Novos Poemas, obra posterior ao livro A rosa do povo e não rotulada como “participante”, “Desaparecimento de Luísa Porto” narra as “dores individuais” de uma mãe entrevada e dependente cuja filha sumiu. O eu poético conclama a perder um pouco de tempo com a demanda, esquecer a “luta política” e as “preocupações comerciais”. Mesmo em Claro Enigma, um poema como “Um boi vê os homens” tematiza e dá o nome de contradições humanas: “crueldade”, “fragilidade”, “vazio interior”. E em “O padre, a moça”, por sua vez, pertencente a Lição de coisas, a narrativa estende-se freneticamente por quase 300 versos em que a mistura de padre e amante problematiza dicotomias católicas e cristãs (sagrado e profano, certo e errado): “todo amor é o amor e ninguém sabe / onde Deus acaba e recomeça” (vv. 16-17).
Há ainda poemas nos quais os intérpretes defendem que as narrativas enigmaticamente poetizam o fazer poético: “O enigma”, “Áporo” e “A máquina do mundo” – principalmente os dois últimos, os quais são qualitativamente os mais artísticos dentre todos mencionados nesse texto. Em “Áporo”, temos a historieta de um inseto que miticamente se metamorfoseia em “antieuclidiana” orquídea. “A máquina do mundo” narra uma situação em que o eu poético impotentemente declina ante a oferta do segredo da máquina do mundo: “como se um dom tardio já não fora / apetecível, antes despiciendo” (vv. 86-87). São enigmas insolúveis porque passíveis de soluções diversas, mas “em país bloqueado” ou em “uma estrada de Minas, pedregosa”, o importante é que Drummond exerceu, a despeito de todas as adversidades, o seu fino poder de atribuir. Por ora, apenas adiantemos que todos os poemas aqui mencionados buscam, através da objetividade e distanciamento proporcionados pela técnica da narrativa, realizar um giro complexo que é afastar para aproximar após distinguir, para entender de perto o fazer e o eu poéticos, o mundo e os outros. Giro que já se prenunciava na primeira estrofe, e em outras, de “Poema de sete faces”: “Quando nasci, um anjo torto…” (v. 1).
Tanto no que tange ao engajamento, quanto a elaboração poética, decerto há uma arquitetura deliberadamente transparente em “Morte do leiteiro”. Entre a primeira e a oitava (última) estrofe, o eu poético traça oposições mais ou menos explícitas que remetem a contradições socioeconômicas e que conduzem à esperança de transformação condensada na última imagem e palavra: “pouco leite” vs. “muita gente”; “leite bom”vs. “gente ruim”; trabalhador acordado vs. “homens no sono”; morador do “último subúrbio” vs. morador não-suburbano; silêncio de aceitação (dominação) vs. “barulho” que “nada resolve” e “algum rumor” que “sempre se faz”; confronto trabalhador suposto “ladrão” vs. senhor proprietário; e, por fim, a sugestão de que a morte não foi em vão, pois a mistura das cores de leite e sangue anuncia o rosicler do porvir, a “aurora”.
O narrador, no encadeamento – comentado e, às vezes, irônico – do enredo, caracteriza mais de perto esse outro que é o leiteiro protagonista, sobretudo na terceira e quinta estrofe, até exercitar e propor o exercício da imaginação, a qual não se contenta com o esboço jornalístico do perfil (vv. 24-26): “Se era noivo, se era virgem, / se era alegre, se era bom, / não sei, / é tarde para saber”. A atitude poética distancia-se daquela de “O operário no mar”: “Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca”. É o que lemos nas ironias da sétima estrofe (“Bala que mata gatuno…”) e na esperança imagética da oitava. Na relação com o trabalhador e também com o eu poético, o antagonista é mesmo um outro mais distante, o senhor “em pânico”, cegado pela defesa violenta da propriedade.
Entretanto, na narrativa desse poema, que pode, mais especificamente, ser compreendido como uma pequena antiepopeia – no mesmo sentido em que o romance é uma antiepopeia –, a pedra no meio do caminho desses dois personagens é um terceiro que leva à peripécia dos destinos em meio a uma aparente estabilidade. O início da quarta estrofe o desoculta: “E como a porta dos fundos / também escondesse gente / que aspira ao pouco de leite…” (vv. 32-34). Trata-se de um mendigo gatuno? Não sabemos. O certo é que, nesse ponto, leiteiro e eu poético se irmanam na tentativa de pular a “pedra”: “avancemos”, “peguemos”, “depositemos”, “Sem fazer barulho, é claro” (v. 39). O trabalhador é cuidadoso e, num verso possivelmente irônico, que remete ao também irônico verso 39, “antes desliza que marcha”, evita “rumor”.
As ironias provêm de possíveis significados de palavras cujas conotações em português brasileiro novecentista é necessário considerar: barulho9, marcha10 e rumor11. Barulho, por exemplo, é a palavra usada por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere – “sujeitos mais ou menos comprometidos no barulho de 1935” (RAMOS, 1970, p. 201). O eu poético de “Morte do leiteiro” sugere que para ele, assim como para o trabalhador que apressadamente empreende a execução de sua lida diária, “barulho nada resolve”. No entanto, o procedimento difere do que é recorrente em Alguma Poesia, cujos poemas deixam o leitor suspenso na ironia, e de Brejo das almas, cujo poema “Aurora” sugere um aplacamento apenas momentâneo dos problemas do existir (“Dançai meus irmãos! A morte virá depois / como um sacramento.”) (vv. 27-29)12. O desenlace dessa pequena antiepopeia do leiteiro tematiza exatamente a inevitabilidade do conflito num período em que a noite dissolvia os homens: “e o sangue que escorre é doce, de tão necessário / para colorir suas pálidas faces, aurora.” (vv. 41-42). E a noite é nomeada nos versos anteriores do mesmo poema (“A noite dissolve os homens”): o “triste mundo fascista” (v. 31).
Em “Morte do leiteiro”, contudo, fala-se em “noite geral” e, pela correlação com o todo, é possível afirmar que ela metaforiza um país e um mundo sob a vigência da propriedade privada, mundo no qual a lógica da propriedade e do lucro prevalece sobre as imperativas necessidades humanas básicas – uma dessas necessidades é a de alimentos, como o leite; várias passagens universalizam o alcance humano, contemporâneo-capitalista e global-capitalista dos versos: “humana compreensão” (v. 28), “uma apenas mercadoria” (v. 31), “em nosso tempo” (v. 35). Coisificante, como verseja “Passagem da noite”, um poema anterior na sequência de A rosa do povo, a noite está em tudo, mas “É noite, não é morte, é noite”; novamente, prevalece a esperança: “Existir: seja como for”. Por fim, é justamente o sentimento de esperança na transformação do estado das coisas que predomina na reta final de A rosa do povo, a partir de “Cidade prevista”: “Este país não é o meu / nem vosso ainda, poetas. / Mas ele será um dia / o país de todo homem.” (vv. 42-45).
O recurso à narrativa
Historicamente, como se sabe, as epopeias Ilíada e Odisseia precedem as líricas de Arquíloco (reflexiva) e Safo (sentimental). Ainda na Grécia Antiga, propiciada pela liberdade possível no ambiente da polis, a lírica surgia como um gênero que possibilitava a poetização dos “direitos da vida individual” (JAEGER, 2001, p. 165). Contudo, numa rápida rememoração, verificamos que até em Dom Quixote, obra-marco da literatura moderna, predomina na literatura ocidental (cada vez mais cristianizada) a objetividade da poesia narrativa: Eneida, O Conto do Graal, A Canção de Rolando, A Divina Comédia, Os Lusíadas etc. Com a modernidade, a questão da subjetividade ganha novos contornos. Em cidades socialmente cindidas de um Estado-nação, além da tensão entre sujeito e mundo, emblemática na estória do cavaleiro da triste figura, a inversão filosófica formulada por Descartes coloca o sujeito na posição de inevitável ponto de partida de uma metafísica da modernidade – a equiparação entre sujeito e mundo (espírito: Geist) teria que aguardar a filosofia de Hegel. Nesse contexto, herdeiro das antigas epopeias, o romance moderno pode ser definido como “a antiepopeia do desencantamento, da vida fragmentária e desagregada” (MAGRIS, 2009, p. 1019).
É possível reconhecer naquilo que consideramos ser uma pequena antiepopeia, um viés nítido das narrativas da poesia drummondiana, o hábil e particular aproveitamento artístico de toda essa tradição literária (antiga e moderna). De fato, em um poema como “Morte do leiteiro”, há uma estrutura na qual podemos identificar, ao menos e claramente, proposição (primeira estrofe), narração (da segunda à sétima estrofe) e epílogo (oitava estrofe). Dando um passo além, embora nem todas as narrativas do poeta obedeçam a essa sequência, elas podem, por extensão, receber a mesma classificação de pequenas antiepopeias, pois, assim como romances e contos, narram o mundo da modernidade – apesar da condensação e concisão, proporcionadas por uma versificação moderna e modernista, são prosaicas e desencantadas.
Dessa forma, o recurso à narrativa, sem abdicar da eficácia estético-rítmica inerente à poesia, permitiu ao poeta mineiro valer-se microscopicamente da configuração espacial e temporal, do encadeamento de ações, da caracterização de personagens, seres, coisas ou Coisa e da alternância de foco em relação a eles. Assim procedendo, o eu poético narrador transita complexamente entre múltiplas temporalidades (do eu, do Brasil, do mundo): narra repetidamente rememorações da infância, narra seres e coisas da roça, narra o fora do lugar de um Papai Noel gatuno, narra a vida em lugares que merecem um “Eta vida besta, meu Deus”13, narra a dúvida em relação aos muitos outros (como, por exemplo, o operário: “Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?”)14, narra o desaparecimento desesperante de uma filha (Luísa Porto), narra as cidades do auge brasileiro da mineração, narra a multiplicidade da “luta brava” das capitais, narra o fim trágico do padre-amante que desafiou o celibato e perambulou pelo Brasil, narra a metamorfose de um inseto que escapa do labirinto, narra enigmas, narra – ainda – em tintas alegóricas, o encontro com a máquina do mundo.
Desde o “Poema de sete faces”, a opção preferencial do eu poético é pela lírica: “mais vasto é meu coração”. Entretanto, é sintomático o fato de a primeira estrofe ser narrativa. Em todos esses “narra” acima, e em outros mais que poderiam ser elencados na inquieta e vasta bibliografia marcadamente lírica de Drummond, a objetividade e o distanciamento proporcionados pelas narrativas operam um giro complexo. Isso porque o sair de si, sua mutação em narrador sem abandonar os fundamentos mais caros à poesia (em geral e, também, à sua própria poesia), possibilita formalizar poeticamente perspectivas diversas do “estar-no-mundo” (expressão heideggeriana utilizada pelo poeta em sua antologia) para melhor compreensão da posição que cabe ao próprio eu: o eu poético cola-se, sem se confundir com eles, a um leiteiro, a um senhor proprietário, a um repórter indiferente ao destino dos noticiados, a um Papai Noel abrasileirado e ladrão, a um operário que se dirige ao mar, a um inseto-metáfora que cava, a uma mãe dependente e impotente sem o auxílio da filha desaparecida em meio à indiferença geral, a pedras enigmáticas na estrada em que há uma “Coisa interceptante”15, a um boi que espreita a movimentação dos homens (“sempre esquecidos de alguma coisa”)16, a uma máquina do mundo reveladora da “total explicação da vida”17, a um padre-amante que desafia a ordem católica estabelecida e a lógica da notícia (“E que vale uma entrevista / se o que não alcança a vista / nem a razão apreende / é a verdadeira notícia?”) (vv. 141-144)18, a uma dupla de padres em que um encarna o vício e outro encarna a virtude (da flor que nasce sobre o túmulo dos dois, enterrados juntos, não se sabe “se é de compaixão divina / ou divina indiferença”)19. Certamente, há nisso uma relação vital entre duas posições, a do eu empírico e a do eu poético. Contudo, fazer a partir desta as pontes com aquela é, como se sabe, erguer vigas em um terreno minado. O relevante é atentar para a seleção de perspectivas operada na constituição do mundo poético, pois, na vastidão do mundo, não é possível dizer todas as coisas.
Retornando aos termos do poema “Morte do leiteiro”, é preciso atribuir certas coisas. É necessário não sucumbir ao labirinto em busca do dizer e da bela forma do poema, orquídea “antieuclidiana”20. Nesses dois sentidos, as metamorfoses na poesia drummondiana, captadas através da discussão que aqui realizamos sobre as narrativas, permitem constatar um engajamento literário se tanto engajamento, quanto literário, não forem reduzidos a uma significação simplista. As posições do eu poético em poemas diversos dão lastro a essa afirmação – conferir, a título de exemplo, poemas que balizaram esse texto: “Também já fui brasileiro”, “Poema de jornal”, “Papai Noel às avessas”, “O operário no mar”, “Áporo”, “Morte do leiteiro”, “O enigma”, “Desaparecimento de Luísa Porto”, “Um boi vê os homens”, “A máquina do mundo”, “O Padre, a moça”, “Os dois vigários”.
Eu sou o eu de um outro
Nesse ponto da leitura, para avançar na compreensão do giro complexo operado pelo eu poético, convém retomar uma esclarecedora formulação dialética elaborada por José Miguel Wisnik (a partir de reflexões de Fernando Pessoa, mas de cunho hegeliano- lacaniano) ao interpretar a poesia de Drummond:
se no pensamento eu sou o outro de mim, no sentimento o outro é eu. E se ‘o que em mim sente ’stá pensando’, então eu sou o eu de um outro, um não-eu e ao mesmo tempo sou o outro de mim que é eu, sendo que as duas frases se equivalem e diferem, conforme investidas pela (a)pessoalidade, onde o eu se põe e desloca” (WISNIK, 2005, p. 33-34).
Para a hipótese que desenvolvemos21, pensamento está (mais) para narrativa, assim como sentimento está (mais) para lírica. Desse modo, o narrador é um outro de si, mesmo sem deixar de ser um eu (que é o outro) lírico. O restante da formulação (“E se…”), para nossos fins, pode ser repetido tal e qual.
Entretanto, aqui, pelo que viemos argumentando a respeito de poemas tidos como uma pequena antiepopeia, consideramos ter realizado compreensão mais detida quanto a uma das maneiras como Drummond plasma seu “sentimento do mundo”, ao equilibrar poeticamente o desequilibrante conviver moderno entre eu, mundo e outros. Isso porque, de modo muitas vezes mais nítido que em poemas de predominância lírica, todas as perspectivas existentes nas narrativas passaram pelo cauteloso cadinho do eu poético. Nisso, é possível identificar graus de aproximação e afastamento em relação às perspectivas poetizadas, pois o eu visa justamente operar distinções no interior do mundo vasto.
Assim, depois de atentar para a seleção de perspectivas, convém atentar para adesões, recusas ou ambiguidades na posição que cabe ao eu poético: adesão à perspectiva do leiteiro, recusa à perspectiva do senhor proprietário, recusa à perspectiva de um repórter indiferente, ambiguidade em relação à perspectiva de um Papai Noel gatuno, adesão (um tanto quanto perplexa) à perspectiva do operário no mar, adesão à perspectiva de um inseto-metáfora, adesão à perspectiva de uma mãe dependente da filha desaparecida, recusa à perspectiva dicotômica cristã e católica que recai sobre o padre-amante e sobre dois padres antagônicos, e, ainda, a colocação do eu poético em perspectivas ambíguas (posto que enigmáticas) em relação, por exemplo, às pedras na estrada, a um boi e à máquina do mundo.
Em uma significação mais geral, sem desconsiderar tanto a seleção, quanto o posicionamento do eu poético em relação a essas muitas perspectivas, a simples existência de todas as obras de Drummond já fornece sinais para uma interpretação: é a materialização de um agir contra as muitas metafóricas noites e trevas, é um não a: “O mundo não tem remédio… / Os suicidas tinham razão”22. Vimos como isso ocorre em “Morte do leiteiro” recorrendo também, de forma mais pontual, a outros poemas. E esse fazer de equilibrar poeticamente o moderno desequilibrante parece ser, em remissão à expressão heideggeriana utilizada pelo próprio poeta, a razão de ser do ser do ente poético. Podemos compreender, nesse sentido, a declinação ante a coisa ofertada na também pequena antiepopeia que é “A máquina do mundo” – em já identificada intertextualidade com episódio de Os Lusíadas. Aqui, o eu inicia o poema em meio a sua atividade de poetar (palmilhar vagamente) e, ao fim do desencontrado encontro, prossegue nela (“seguia vagaroso”). Deter na mente “essa total explicação da vida” equivaleria a suspender todas as atividades de busca com suas metamorfoses modernas de sentido do existir.
Mesmo diante de todas as modernas adversidades labirínticas, o eu nunca cogitou cessar a atividade de fazer poesia, quer dizer, de cavar em busca da “antieuclidiana” orquídea. Tanto o sentido do existir, quanto a atividade do fazer poético foram, ora mais, ora menos, esperançosos; mas o fato de o adeus à poesia vir apenas com Farewell evidencia que a surda penetração no “reino das palavras”23 não era “a luta mais vã”24. Nem para o poeta, nem para seus leitores. E a paixão (medida ou não) era (e é) “inumerável delícia”25. Era para o poeta; era para os seus leitores (críticos ou não) contemporâneos; é para os leitores dessa segunda década do século XXI e daqueles ainda por vir nesse porvir em que a História renasceu após ter tido a morte decretada no fecho da “era dos extremos”.
Considerações finais
A aproximação entre “Morte do leiteiro” e outros poemas caracterizados pelo recurso a procedimentos próprios da prosa ficcional permitiu examinar a hipótese de que a narrativa, que se torna o que consideramos ser uma pequena antiepopeia, como no caso do poema sobre o leiteiro, é uma marca relevante da poesia de Carlos Drummond de Andrade – cuja marca maior é ainda a lírica reflexiva e perplexa (ARRIGUCCI JR., 2002; VILLAÇA, 2002).
Desde a primeira estrofe – que é narrativa – do lírico “Poema de sete faces”, passando pela importante seleção de poemas à qual aqui recorremos – com maior ou menor valor estético –, o poeta mineiro configura uma face poética narrativa associada ao verbo atribuir. E interpretamos tal face a partir da proposta sartriana do nomear (uma maneira de agir) para desvendar e tencionar a mudança (SARTRE, 1993).
Como sustentamos, o recurso – de maneira condensada – a procedimentos próprios da narrativa ficcional – configuração espacial e temporal, encadeamento de ações, caracterização de personagens, seres, coisas ou Coisa e alternância de foco – permite ao eu poético narrador transitar de modo complexo entre múltiplas temporalidades (do eu, do Brasil, do mundo). Nisso, há um movimento de distanciamento e objetividade, fazendo com que o eu poético opere um giro, saia de si e do lirismo para, ao final, voltar a si e ao lirismo. Assim, se a reflexividade e perplexidade do eu poético é, realmente, a marca maior da poesia drummondiana – oscilando tensa e liricamente entre a reafirmação da subjetividade (“mais vasto é meu coração”) e a sua negação (“Não, meu coração não é maior que o mundo”), o conjunto da poesia narrativa contribui para acentuar a marca maior.
Por fim, recorrendo à formulação dialética hegeliano-pessoano-lacaniana26 proposta por José Miguel Wisnik (2005) – “se no pensamento eu sou o outro de mim, no sentimento o outro é eu” –, aprofundamos teórica, filosófica e interpretativamente os desdobramentos do recurso técnico da narrativa nos poemas drummondianos. Em outras palavras, pela hipótese que procuramos aqui considerar, a relação entre narrativa e lírica vincula-se à relação entre pensamento e sentimento dialeticamente concebida. Nesse sentido, o narrador é um outro de si mesmo sem deixar de ser um eu (que é o outro) lírico.
O fato de um texto de Claudio Magris (2009) – “O romance é concebível sem o mundo moderno?” – servir como referência para as considerações constantes nesse artigo significa que reflexões de uma obra intitulada A cultura do romance – organizada por Franco Moretti – podem elucidar uma dimensão da poesia de Carlos Drummond de Andrade, que ainda é muito pouco explorada pela vasta fortuna crítica27 dedicada àquele que é considerado o maior poeta brasileiro de seu século.
Sendo assim, tanto as reflexões adornianas sobre a arte moderna e o romance do século XX, quanto aquelas sobre a relação entre lírica e sociedade (ADORNO, 2003a, 2003b, 1982), possibilitam mais um passo no processo de aprofundar teórica, filosófica e interpretativamente a abordagem do conjunto de poemas aqui examinados. A partir de Sentimento do mundo (1940), a lírica drummondiana aprofunda seu ato de atribuir – com a contribuição da face narrativa – ao reconhecer que o “coração não é maior que o mundo”, pois “o mundo é grande”:
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Nesse sentido, é possível – como procuramos assinalar nos diversos exemplos – compreender a especificidade brasileira do poema drummondiano 28 em sua concretização do princípio fundamental – a articulação, Artikulation – de toda a arte moderna: “A articulação é a salvação da multiplicidade no uno” (ADORNO, 1982, p. 216)29. A poesia narrativa acentua a complexidade da obra, que reside exatamente na articulação original de contradições (ARRIGUCCI JR., 2002). E, por outro lado, a articulação das contradições, através da face poética narrativa, também permite compreender o poema como “relógio solar histórico-filosófico” em sua especificidade brasileira e, além disso, em sua semelhança com “epopeias negativas” diante de uma realidade demasiado poderosa (ADORNO, 2003a).
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Resumo: A aproximação entre “Morte do leiteiro” e outros poemas caracterizados pelo recurso a procedimentos próprios da prosa ficcional permite formular a hipótese de que a narrativa, que se torna uma pequena antiepopeia, no caso do poema sobre o leiteiro, é uma marca relevante da poesia de Drummond. Nesse sentido, pela hipótese que procuramos aqui examinar, a relação entre narrativa e lírica vincula-se à relação entre pensamento e sentimento dialeticamente concebida.
Palavras-chave: Drummond; poesia; narrativa; lírica
Abstract: The approximation between “Death of the milkman” and other poems characterized by the procedures peculiar to fictional prose allows us to formulate the hypothesis that the narrative, which becomes a small anti-epopee in the case of the poem about the milkman, is a relevant mark of the poetry of Drummond. In this sense, by that hypothesis, that we try here to examine, the relationship between narrative and lyric is linked to the dialectically conceived relationship between thought and feeling.
Keywords: Drummond; poetry; narrative; lyric
Recebido em: 03/06/19
Aceito em: 07/09/19
1 Possui graduação em Letras (bacharelado e licenciatura) e em Filosofia (bacharelado e licenciatura), mestrado em Educação (2010) e Doutorado em Letras/Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (2015). Realizou período sanduíche na Universidade Livre de Berlim (FU-Berlin) para pesquisas no âmbito da Teoria Literária e da Literatura Comparada. É professor da Universidade Federal do Pará (Letras/Português). Principais áreas de interesse e de atuação: Literatura Brasileira, Teoria Literária, Literatura Comparada, Ensino-aprendizagem de Literatura e de Português, Literatura do Século XX.↩
2 A proveniência de trechos citados de poemas será indicada em nota apenas quando o próprio texto não a especificar. No caso, trata-se de “O medo”. Para evitar repetições excessivas, indicamos apenas em Poemas citados (nas Referências bibliográficas) os livros aos quais pertencem os poemas.↩
3 Nesse sentido, um conjunto de referências constituído por obras e textos de Sartre (1993), Wisnik (2005), Magris (2009) e Adorno (2003a, 2003b, 1982) merecem ser retomados ao longo desse texto.↩
4 Cf. textos da fortuna crítica aos quais recorremos: Milliet (1978), Lins (1947), Oliveira (1978), Martins (1978), Candido (2004), Bosi (1988), Lima (1989), Mário de Andrade (1978), Carpeaux (1978), Sérgio Buarque de Holanda (1978), Haroldo de Campos (1978), Arrigucci Jr. (2002), Villaça (2002), Wisnik (2005), Camilo (2001), Pilati (2009), Bischof (2005).↩
5 A expressão é de Hobsbawm (1995), designa o período entre 1914 (início da Primeira Guerra Mundial) e 1991 (colapso da URSS).↩
6 Palavras de “O padre, a moça”.↩
7 Drummond, como se sabe, era funcionário público e residia na cidade do Rio de Janeiro, mas provinha da interiorana Itabira (Minas Gerais) e de uma família de fazendeiros – um de seus livros, inclusive, recebeu o título de Fazendeiro do ar. Apesar de ter saído da terra natal para a realização de estudos no antigo secundário em Belo Horizonte – e nunca mais ter retornado –, a origem do poeta possui grande importância para a compreensão e a interpretação de sua produção poética, com seu imaginário-repertório e suas múltiplas temporalidades no movimento entre a realidade do interior e as realidades das capitais (Belo Horizonte, Rio de Janeiro). Nesse sentido, entre os poemas inaugurais de Alguma poesia (1930) e aqueles finais de Farewell (1996), como assinalamos ao longo desse texto através dos muitos exemplos retirados dos versos drummondianos, o poeta transita entre o modernismo destacado das capitais e do “Poema de sete faces” (Villaça, 2002) e o memorialismo da província e de “A ilusão do migrante” – “Quando vim da minha terra, / se é que vim da minha terra / (não estou morto por lá?)” (“A ilusão do migrante”, Farewell).↩
8 O exemplo de palavra tomada exclusivamente como coisa é: “Florença [Florence] é cidade e flor e mulher, é cidade-flor e cidade-mulher e donzela-flor ao mesmo tempo. E o estranho objeto que assim aparece possui a liquidez do fluir do rio, o doce e fulvo ardor do ouro e, por fim, se abandona com decência e prolonga indefinidamente, pelo enfraquecimento contínuo do a final átono, seu desabrochar pleno de recato.” (SARTRE, 1993, p. 15). O tradutor coloca uma importante nota nessa passagem: “Sartre joga com às palavras fleur/fleuve, flor/rio; descobre or, ouro, no interior de Florence; e chega a décence, decência, pela rima.”↩
9 Drummond sempre ressaltou a necessidade poética de penetrar no “reino das palavras” e lá buscar os poemas em seu “estado de dicionário” (confira o poema “Procura da poesia”, A rosa do povo). Convém, portanto, examinar previamente as palavras em tal estado. Nesse sentido, confira no Dicionário Houaiss: “tumulto por motivo político ou social; revolta, motim”.↩
10 Cf. idem: “manifestação não violenta destinada a atrair a atenção das autoridades para determinados problemas de interesse geral, ou para alguma reivindicação particular”. Pilati (2009) notou, apenas em relação a essa palavra, esse possível significado.↩
11 Cf. idem: “manifestação de insatisfação ou revolta; alvoroço, agitação”.↩
12 Versos de “Aurora”.↩
13 Verso de “Cidadezinha qualquer”.↩
14 Trecho de “O operário no mar”.↩
15 Palavras de “O enigma”.↩
16 Palavras de “Um boi vê os homens”.↩
17 Palavras de “A máquina do mundo”.↩
18 Versos de “O padre, a moça”. Uma nota: as muitas referências na poesia de Drummond ao caráter dos acontecimentos sob a dinâmica da notícia talvez sejam uma chave para a compreensão da epígrafe de Claro enigma (Les événements m’ennuient. P. Valéry).↩
19 Versos finais de “Os dois vigários”.↩
20 Palavra de “Áporo”. A interpretação de a orquídea ser o próprio poema é de Pignatari – cf. Arrigucci Jr. (2002).↩
21 Desde as formulações iniciais desse texto, o objetivo foi fundamentar a hipótese de que em um amplo conjunto de poemas de Drummond recorre a procedimentos próprios da prosa ficcional, ou seja, vale-se da narrativa como poderoso recurso para uma configuração poética pensante, objetivante e distanciadora que, como também procuramos fundamentar, é mais uma face da poesia cuja lírica reflexiva e perplexa é a marca maior.↩
22 Versos de “A noite dissolve os homens”.↩
23 Palavras de “Procura da poesia”.↩
24 Palavras de “O lutador”.↩
25 Palavras de “A paixão medida”.↩
26 Confira, nesse sentido, Hegel (2003), Hyppolite (2003), Lacan (2005, 1966) e Pessoa (1997).↩
27 Confira, nessa direção, para ficar em poucos exemplos: Milliet (1978), Lins (1947), Oliveira (1978), Martins (1978), Candido (2004), Bosi (1988), Lima (1989), Mário de Andrade (1978), Carpeaux (1978), Sérgio Buarque de Holanda (1978), Haroldo de Campos (1978), Arrigucci Jr. (2002), Villaça (2002), Wisnik (2005), Camilo (2001), Pilati (2009), Bischof (2005).↩
28 A especificidade brasileira do poema através do poema drummondiano – com seu imaginário-repertório e com suas múltiplas temporalidades –, pois, sem dúvida, há a especificidade brasileira do poema bandeiriano, do cabralino etc.↩
29 “Artikulation ist die Rettung des Vielen im Einen” (ADORNO, 2003b, p. 284).↩