Felipe Vale da Silva1
Universidade Federal de Goiás
felipe.vale.silva@gmx.com
Na altura de 1850, dizer-se um “abolicionista” era incorrer a uma categoria vaga; o termo podia implicar uma infinidade de coisas. Muitos abolicionistas tinham em comum apenas a convicção de que a escravidão devia terminar, embora o modo como isso seria levado a cabo, além do destino dos escravizados dali em seguida, fossem fatores de discordância acalorada. Mesmo quando pensamos nas motivações por trás da causa da liberdade, entramos em um campo multifacetado: havia aqueles que defendiam a manumissão em função de suas convicções religiosas, por questões éticas ou por fidelidade ao proêmio da Constituição Americana. Havia os que não desassociavam a libertação dos escravos de um plano de compensação pelas perdas financeiras sofridas por escravocratas – afinal de contas, a escravidão foi o negócio mais rentável do jovem país, que alimentou a indústria têxtil da Inglaterra durante a Revolução Industrial. Os exemplos são muitos, e aqui não cabe a nós entrar em um debate sobre como chamar os diversos tipos de abolicionistas. A historiografia está repleta de compêndios sobre o assunto2, ainda que, de fato, revisar como cada autor e autora de literatura ficcional abolicionista se posicionou perante o assunto é um trabalho ainda a ser feito no Brasil. Enquanto não realizarmos tal tarefa, erros metodológicos continuarão a ser perpetuados pelo mercado editorial e divulgação jornalística: pensemos, ao observamos as poucas “Histórias da Literatura dos Estados Unidos” publicadas em português, na importância dada a figuras secundárias em detrimento de pessoas que de fato inovaram o pensamento antiescravista3. Fala-se muito de Lincoln e pouco de Seward; muito da moderada Harriet Beecher Stowe, e pouco dos radicais Harriet Tubman ou David Walker.
O caso de Stowe é um exemplo conveniente tendo em vista a recente publicação d’A cabana do Pai Tomás (Uncle Tom’s cabin, 1852) por três editoras brasileiras4. Stowe é muitas vezes considerada o que houve de mais expressivo no abolicionismo dos EUA, embora tenha sido a mesma que defendeu a deportação de escravos libertos para a África, que se contrapunha à possibilidade de uma sociedade multirracial integrada e muitas vezes foi rechaçada por suas atitudes paternalistas perante mulheres negras. Sem dúvida, ela foi uma divulgadora importante de ideias antiescravidão; não obstante, de um ponto de vista histórico-literário, nem sua técnica foi inovadora, nem suas ideias as mesmas que, na altura da Guerra Civil, decidiram o fim da escravidão.
A ideia que decidiu a batalha final da escravidão institucional, antes, surgiu dos intelectuais negros: não o credo do pai Tomás – o mártir disposto a virar a outra face para racistas incorrigíveis –, mas a crença de que não havia acordos com escravagistas; a escravidão tinha de terminar, custasse o que custar. Este artigo buscará identificar o momento de surgimento dessa inovação na história das ideias, ressaltando seu papel na passagem da fase reformista para a fase revolucionária da literatura da abolição.
Identificaremos não Cabana do Pai Tomás, mas outro livro de 1852, O escravo heroico [The heroic slave] de Frederick Douglass, como obra paradigmática para tal mudança. Nele, o antigo formato sentimental da literatura abolicionista é questionado e atualizado; Douglass constrói suas personagens anglo-saxãs como representantes de diferentes tipos de atitudes americanas perante a questão do negro. Nossa tarefa aqui é a de refletir os tipos sociais introduzidos na dita narrativa, pensando como o autor os constrói de forma a deixar um diagnóstico sobre a situação do abolicionismo em meados de 1850. Ademais, argumentar-se-á que Douglass é capaz de tematizar de forma inovadora o papel da violência em conquistas sociais: esse é um texto que reflete a situação de crise político-social dos Estados Unidos do antebellum para propor a ineficácia da reforma pacífica e pensar na inevitabilidade da revolução armada. O nome que damos a tal revolução é Guerra Civil Americana5.
O estopim: as políticas de disenfranchisement na década de 1830
A criação da linha divisória entre um Norte livre e um Sul escravista é produto de desenvolvimentos iniciados já na Independência Americana de 1776. Desde então, Norte e Sul representavam duas culturas políticas, duas ideias de nação que culminaram na guerra de 1861. Meio século, estados do Norte começaram a libertar homens e mulheres gradualmente, visando, sobretudo, mitigar problemas que surgem quando poucas famílias detém o monopólio da produção agrícola, de forma que governos pudessem desenvolver um plano econômico descentralizado, pautado na criação de redes de indústrias. Quando o último deles aboliu a escravidão (Nova Jersey, em 1804), já era possível falar de uma cultura política homogênea da região, com desenvolvimentos que determinaram sua história institucional. Não por acaso, todos os partidos políticos antiescravidão surgiram dessa cultura tipicamente nortista: o Free Soil Party, o Liberty Party e, por fim, o Republican Party (McNEESE, 2008, p. 76).
Não somente na história institucional, como também na literatura da época, lemos a polarização de duas ideias do cidadão americano: nortistas eram referidos como “ianques”, afeitos ao modo de vida urbano e ideias europeias; sulistas eram provincianos, menos afeitos à educação formal, crentes em uma concepção de mundo em que a divindade relegou ao homem branco o comando da sociedade. Como todo estereótipo, esses não foram 100% fiéis à realidade, embora tenham constituído as preconcepções individuais de forma significativa. Seu produto foi uma cultura de hostilidades entre as regiões que dura até hoje.
“É minha opinião que aquele camarada, o que carregou as próprias coisas pro andar de cima como se fosse uma mulher apavorada [...] é um nortista, daqueles mais torpes do que água parada”, veicula uma das personagens de Frederick Douglass sobre uma viajante que entra numa hospedaria (2019, p. 47). O sulista em questão vê seu compatriota como alguém temeroso do trato brusco (mas honesto) do homem da Virgínia. Toda a parte III d’O escravo heroico, retratada em uma hospedaria decadente deste estado outrora glorioso, traz um quadro sugestivo da relação impossível entre aquelas duas culturas, ao qual voltaremos no fim do artigo. Há em Douglass uma impressão inusitada de que nascer em X ou Y região não determinava o posicionamento do cidadão do antebellum; muitos optavam pela migração voluntária para o Norte como gesto de protesto contra governos escravistas. Douglass, diga-se de passagem, era sulista. Mesmo após adquirir sua alforria, optou por seguir o fluxo costumeiro da diáspora instalando-se em centros urbanos nortistas. Optar por abandonar o Sul e sua cultura foi uma escolha lógica para muitos; tratava-se de escolher entre estilos de vida que definiriam seu futuro e o de suas famílias.
Tal migração permitiu o florescimento de grandes centros de negros livres integrados, ativos na vida econômica e produtores de cultura; eles situavam-se na Pensilvânia, em Nova York, em Massachusetts. Foi ali que surgiu a primeira mídia dos negros, voltada a seus problemas e pautas históricas (RIPLEY, 1991, p. 8-9). Jornais como o Genius of Universal Emancipation salientaram a importância da educação e participação política a fim de minimizar as desvantagens sociais presentes até mesmo no Norte; esse foi um dos temas constantes e definidores também de outra mídia independente, as narrativas de escravos, tida como o primeiro formato de prosa afro- americana. Havia a convicção de que somente a formação de uma comunidade negra extensivamente educada seria capaz de refutar as ideologias racistas que permeavam os valores do americano médio, além de permitir o ingresso desse setor da sociedade no mundo da inteligibilidade social compartilhada. Nesse sentido, a educação é um passo essencial para conquista da liberdade. Aqui encontramos a consciência filosófica do conceito de liberdade em um sentido extensivo, não como mera ausência de coerção, mas capacidade de expandir-se.
A educação formal, além disso, serviria de ingresso à participação no processo democrático. As conquistas nesse campo iniciaram-se já no século XVIII, vide a Constituição da Pensilvânia de 1790. Nela, o direito de voto é reservado para “todo homem livre na idade de vinte e um anos, tendo residido no estado dois anos antes da eleição, e que neste período de tempo pagou um imposto estadual ou do condado”6. Entretanto, em maio de 1837, o status de cidadãos negros virou pauta de um referendo estadual, criando precedentes para o resto dos estados nortistas subsequentemente. A nova proposta da tal Constitutional Convention de 1837 (COMMONWEALTH OF PENNSYLVANIA, II, p. 473) previa a continuidade de direito de voto apenas para todos os cidadãos homens brancos que pagassem imposto. Em seguida, o democrata John Sterigere reiterou a proposta alegando que a restrição racial era devida por ser a palavra do dia de outras dezessete ou dezoito Constituições da União (COMMONWEALTH OF PENNSYLVANIA, 1837, p. 473). Notemos o detalhe perverso por trás do discurso em questão: as “dezessete ou dezoito” constituições estaduais eram majoritariamente sulistas. Aqui temos evidência do alastramento da cultura política do Sul para os primeiros estados da federação.
Tais eventos não constituíram uma exceção. A partir da década de 1830 viu-se um movimento crescente de interdição de direitos básicos dos negros, como mostra o levantamento estatístico de Berry e Blassingame (1982, p. 144). Na leitura de diversos historiadores, esse foi um reflexo direto do aumento da representação de estados sulistas no Congresso7. Em meados de 1850, o Sul estava mais forte que nunca, política e economicamente8. A guerra contra o México e consequente tomada do território que vai do Texas à Califórnia atualizou o mapa do país, multiplicando áreas para onde a escravidão podia se expandir. O algodão, além disso, constituía o principal produto de exportação, mais rentável que tudo o que o país produzia combinado (MCNEESE, 2008, p. 103). Logo o poder econômico se traduz em poder político: escravocratas passaram a controlar a Suprema Corte e os principais comitês do Congresso, sobretudo na administração do presidente James Buchanan (ele próprio um cidadão da Pensilvânia). Na altura da Guerra Civil, negros podiam votar em apenas cinco estados da Nova Inglaterra e, em Nova York, só podiam fazê-lo se atestassem propriedade no valor de US$ 250 (BERRY; BLASSINGAME, 1982, p. 145).
A resistência que ficou conhecida como a política de disenfranchisement (ou interdição de votos) surgiu principalmente de vários lados. Mesmo Benjamin Martin, um democrata, argumentou as consequências desastrosas da medida: aquele seria um ato de boicote da própria constituição estadual, cujos efeitos seriam unicamente destrutivos: ela traria ruína sobre um grupo economicamente expressivo na região e colocariam em jogo a isonomia da sociedade como um todo (cf. LATZKO, 2013, p. 4-9).
Apelos do tipo não surtiram efeito; em 20 de janeiro de 1838, o voto decisivo foi anunciado: negros estavam proibidos de votar e só eventualmente reconquistariam tal direito, com o término da Guerra Civil (LATZKO, 2013, p. 10)9. Para abolicionistas mais sanguíneos, aquele foi visto como um sinal de declínio da causa e indício da ineficácia das estratégias até então utilizadas.
No dia 3 de setembro de 1838, o jovem Frederick Bailey (mais tarde, Douglass) escapou a bordo de um trem rumo a Filadélfia, capital do estado da Pensilvânia. Seu ingresso no meio abolicionista se deu três anos mais tarde, num momento de tensão cuja pauta do dia era como lidar com a nova conquista do partido dos escravocratas?
Problemas em casa: os limites do testemunho e a gênese d’O escravo heroico
No momento em que Douglass chega ao Norte livre, o abolicionismo já era um movimento nacionalmente integrado sob a tutela da American Anti-Slavery Society (AASS), ligado a meios de divulgação editorial, jornais, igrejas, sociedades filantrópicas e até mesmo redes clandestinas de fuga de escravos. O grupo contava com mais de 1.300 filiais regionais e 250.000 de membros espalhados pelo país (EISENSTARK, 2010, p. 13; RIPLEY, 1991, p. 11-12). William Lloyd Garrison, mentor de Douglass e homem por trás dessa complexa máquina antiescravidão, dividia- se entre a administração da sociedade, seu célebre jornal The Liberator e turnês de divulgação país afora. As turnês foram verdadeiros carros-chefes da sociedade e criadoras da fama de um abolicionista. Discursos sobre palanque eram a principal fonte de entretenimento da época; aqui temos o show business em sua fase embrionária. Muitos abolicionistas se aproveitaram dessa cultura de massas nascente e viajaram por todo o mundo anglo-saxão como palestrantes – o próprio Douglass, dono de uma retórica notável e voz impactante, ganhou a vida como palestrante durante as décadas de 40 e 50.
Antigos escravos de lavouras, em especial, eram visados para servirem de provas vivas dos abusos da escravidão (EISENSTARK, 2010, p. 29). O formato de palestra promovido pela AASS iniciava com um sermão sobre os males da instituição (geralmente proferido por uma figura célebre do movimento ou uma autoridade ligada à igreja), seguido pela demonstração de cicatrizes, mutilações e testemunhos em primeira pessoa das vítimas do sistema brutal. Stauffer (2012, p. 60) observou como historiadores da Guerra Civil reproduzem até hoje a desconfiança oitocentista por abolicionistas brancos, julgando seu apelo imagético do sofrimento como indício de um desvio comportamental, uma inclinação à “pornografia da dor”. Repete-se, então, a ideia de que abolicionistas eram fanáticos com gostos perversos por explorar o sofrimento alheio, e de que tal atitude funcionou mais como um impedimento para a causa do que para sua eficácia.
Essa suposição é equivocada por três motivos. Abolicionistas desenvolveram suas estratégias em um contexto de debate contra escravistas, eles próprios fanáticos que se valiam de boicotes, campanhas de desinformação, perseguições pessoais e violência verbal contra qualquer um que se opusesse à “instituição peculiar” (STAUFFER, 2012, p. 75). Em segundo lugar, a estratégia da AASS foi de fato efetiva e forçou a sociedade civil e os governos a resolverem o problema institucional da escravidão. Por fim, a tal “pornografia da dor” servia a uma estratégia argumentativa mais ampla, a da moral suasion ou persuasão moral, herdada da filosofia moral do século XVIII. A chamada teoria do senso moral de Shaftesbury e Hutcheson (SAUDER, 1973, p. 125-226) surgiu como resistência a abordagens racionalistas da moralidade humana; contra a ideia de uma moral baseadas em imperativos analíticos, esses filósofos entenderam a propensão para o bem como algo instintivo. Hutcheson se valeu de observações advindas da estética – o poder de nos comovermos com a experiência de personagens ficcionais, por exemplo – para defender uma teoria intuicionista da moral. Princípios morais precedem sistemas normativos da religião ou dos sistemas judiciários calculados para garantir a ordem social; a moral é vivenciada e aperfeiçoada na experiência do indivíduo com o mundo desde a infância. Desenvolver uma sociedade capaz de sentir empatia é garantir harmonia moral existente em todos os indivíduos. Aí entra o interesse da ala imediatista do abolicionismo nessas teorias: livrar o país da escravidão significava aperfeiçoar a população moralmente, e isso deveria ser feito mediante persuasão moral, não teórica. Se todos somos potencialmente tocados pelo sofrimento alheio, cabe gerar discursos e uma mídia capazes de retratá-los convincentemente, de forma a predispor as pessoas a reformas sociais prementes. Aqui reside a lógica por trás do uso de literatura testemunhal do abolicionismo; a técnica da moral suasion chegou a ser eleita como estratégia oficial da AASS em seu manifesto de abertura.
Nesse sentido, as grandes obras de escritores afro-americanos da época são irmãs do testemunho, não da ficção romântica como então praticada. Narrativas de escravos, como gênero singular, logo ganharam um formato coerente e de grande sucesso junto ao público leitor a partir de preceitos do intuicionismo moral. A narrativa da vida de Frederick Douglass (Narrative of the life of Frederick Douglass, 1845) é essencialmente uma obra de caráter testemunhal, escrita em estilo objetivo a partir da retórica comum à AASS. Embora existam narrativas de escravos já no século XVIII, a de Douglass teve papel central para a legitimação artística do gênero. Como seus antecessores, ele une à história de sua vida detalhes etnográficos da vida no Sul, cenas de crueldade de capatazes, críticas à cumplicidade de autoridades religiosas e governamentais com escravocratas, e tudo isso para terminar o livro com uma mensagem de liberdade: a libertação do escravo é possível e prova que, em detrimento das teorias racistas do século XIX, ele também é um indivíduo apto à autonomia. Entretanto, Douglass vai além das demais narrativas da época concluindo a sua com a ocasião em que encontra William Lloyd Garrison no seio da AASS (BENNETT, 2016, p. 248); é como se o relato biográfico sobre a vida do ex-escravo fosse ampliado, vertendo-se em um quadro panorâmico sobre os bastidores do movimento abolicionista. A narrativa da vida de Frederick Douglass, de fato, é suspensa com uma antecipação da jornada coletiva da libertação negra.
Apesar de seu brilhantismo, a Narrativa da vida... esgotou na década de 1850, não voltando a ser republicada até 1960. Aquele era um mero início da longa carreira de Douglass, que em 1855 escreveu uma nova versão da história de sua vida, Minha clausura e minha liberdade (My bondage and my freedom), cerca de quatro vezes mais volumosa que sua precedente e alheia às convenções da narrativa de escravos10. No final de sua vida, Douglass voltou ao formato autobiográfico e escreveu Vida e tempos de Frederick Douglass (Life and times of Frederick Douglass, 1881).
Embora o autor tenha preferido atualizar as formas de relatar sua experiência, sua primeira obra deixou marcas profundas na história do gênero literário das narrativas de escravos. Abolicionistas brancos passaram a encorajar ex-escravos a seguirem as convenções textuais nela contida, já que se provaram bem-sucedidas junto ao público leitor, além de suficientemente provocativa para ideólogos da escravidão (ANDREWS, 1990, p. 24); ao ponto de o formato virar uma imposição. Via de regra, um ex-escravo tinha um único livro a escrever: a narrativa de sua experiência no cativeiro, de forma a servir de arma contra a instituição tirânica. Mas logo surgiram exceções; alguns escritores de narrativas tornaram-se figuras públicas, ganhando espaço no meio intelectual. E com isso surge necessidade de nova forma de expressão, a qual não recebeu qualquer apoio da AASS ou demais grupos antiescravidão nos Estados Unidos. O primeiro romance de Wells Brown foi lançado por uma empresa londrina, a Partridge & Oakey; Our Nig, de Harriet E. Wilson foi pago do bolso da própria autora e lançado por uma casa editorial sem ligações diretas com o abolicionismo, a Geo. C. Rand & Avery.
O curioso comportamento de grupos abolicionistas – que apoiavam a expressão de ex-escravos só enquanto estes seguissem suas regras – foi o que Bennett (2016, p. 246) chamou de “exclusão epistêmica” de pensadores negros. Douglass a sentiu na pele e problematizou em Minha clausura e minha liberdade, no famoso trecho onde relata como, uma vez que começa a ganhar fama como palestrante, passa a sofrer represálias de colegas da AASS. O abolicionista John A. Collins é hoje menos conhecido por seu ativismo do que pelas palavras desconcertantes endereçadas ao jovem Douglass quando este mostrava inovar seu discurso: “Dê-nos os fatos; nós tomaremos conta da filosofia” (DOUGLASS, 1855, p. 361)11. Em outras palavras, um ex-escravo deveria se limitar a torturas, sofrimento e abusos, pois era isso que o público quer ouvir. O abolicionista responsável cuidaria das ideias mais complexas. Douglass resume a atitude do colega como “constrangedora”.
Era-me impossível repetir a mesma velha história mês atrás de mês, mantendo meu interesse nela. É verdade que ela era nova para as pessoas, mas era uma história velha para mim; e percorrê-la noite após noite era uma tarefa, em geral, mecânica demais para minha natureza. “Conte sua história, Frederick”, sussurraria então meu respeitável amigo, William Lloyd Garrison, assim que eu subisse à plataforma. Eu nem sempre era capaz de obedecer, pois agora estava lendo e pensando. Novas perspectivas sobre o assunto foram apresentadas à minha mente. Não me satisfazia inteiramente narrar injustiças; eu tinha ganas de denunciá-las. (DOUGLASS, 1855, p. 361-362)12
Aqui reside a chave para a limitação do testemunho como então praticado. A formulação de DeLombard (2007, p. 137) a respeito é memorável e merece ser resgatada: o grande problema com essa “retórica do fato”, da cisão entre narração e interpretação, reside no relegar da autoridade testemunhal ao ex-escravo – só ele é capaz de autenticar a veracidade dos eventos – mas retirar-lhe a autoridade exegética, como se ele fosse incapaz de gerar interpretações consequentes sobre eventos de sua própria vida, contribuindo intelectualmente para o movimento. De fato, para muitos abolicionistas, um ativismo autônomo negro era impensável: cabia ao homem branco coordenar a agência política de seus compatriotas a fim de lhes construir uma nação livre.
Surgiu assim, na altura de 1850, o problema de divisão de pautas, discordância sobre prioridades, ao ponto de o abolicionismo se ver na necessidade de reformar a própria casa, digamos, antes de querer reformar a sociedade (EISENSTARK, 2010, p. 15, 60-61). O princípio integrativo de alguns abolicionistas brancos logo se mostrava limitado: houve casos escandalosos de educadores ativos no abolicionismo negarem vagas para crianças não-brancas em suas escolas alegando quererem evitar discrepâncias culturais, ou só empregarem escravos fugidos em capacidades mal remuneradas, em regimes de quase-servidão (BERRY; BLASSINGAME, 1982, p. 61-62). Geralmente os conflitos se deixavam resolver por vias pacíficas, levando a uma divisão saudável de grupos, o que proliferou práticas e métodos de ação. Ex-escravos tampouco deixaram de se valer das convenções da narrativa de escravos; a rigor, até Harriet Jacobs lançar sua narrativa em 1861, esse foi o formato literário mais prolífico de escrita afro-americana13.
Contudo, houve uma exceção à regra; Douglass se voltou para a ficção histórica n’O Escravo heroico sete anos após sua narrativa de estreia.
O abolicionista no divã: um retrato de Listwell
“Na primavera de 1835, numa manhã de sábado, [...] um viajante que vinha do Norte e passava pelo estado da Virgínia estacou com seu cavalo num riacho resplandecente, próximo às margens de um obscuro bosque de pinheiros” (DOUGLASS, 2019, p. 3). O início pitoresco da narrativa apresenta um viajante sobre o qual pouco sabemos, o sr. Listwell, prestes a interromper sua jornada a fim de contemplar os monólogos de um homem aflito. Deixando a região luminosa para voltar- se ao bosque escuro, ele opta por permanecer um espectador oculto, juntando-se ao leitor em um posto vantajoso de observação cênica. O que se segue é um longo solilóquio, em muitos pontos coincidente com o que Douglass escrevera anos antes, em sua Narrativa da vida...: aquele é o momento crucial em que o escravizado dá o primeiro passo à sua liberdade, reconhecendo as plenas implicações de sua condição de cativeiro:
O que, enfim, é a vida para mim? Ela é fútil e imprestável, até pior do que imprestável. Aqueles pássaros pousados sobre galhos balouçantes, em conclave amigável, soando suas notas alegres num aparente culto ao Sol nascente, estão em situação melhor que a minha, ainda que sejam suscetíveis à arma do caçador. Eles vivem livres [...]. Mas o que é a liberdade para mim, ou eu para ela? Eu sou um escravo, [...]. Mas aqui estou eu, um homem – sim, um homem! – com meus pensamentos e desejos, com poderes e faculdades mentais infinitamente superiores às desse réptil odioso – e ainda assim ele me é superior, menosprezando-me como se fosse meu mestre, o bastante para não parar e aceitar minhas pancadas (DOUGLASS, 2019, p. 4).
Enquanto em seu primeiro texto Douglass desenvolve um solilóquio do jovem perante as naus atracadas na Baía de Chesapeake14, aqui o objeto de comparação é alterado. O jovem contempla pássaros e répteis, e sente-se afrontado pela liberdade despreocupada dos animais. Daí em seguida, todos os outros elementos presentes em um registro se repetem no outro: a questão da violência sistemática que mantém um homem subordinado ao outro, o vazio de uma existência sem perspectivas de mudança, até que o protagonista d’O Escravo heroico apressa a resolução que o jovem Douglass tomará apenas no final do capítulo X de sua Narrativa da vida... e diz: “Libertação é o que terei, ou morrerei na tentativa de alcançá-la [...]. Eu serei livre” (DOUGLASS, 2019, p. 5-6).
Listwell e nós leitores deparamo-nos com o conteúdo condensado de uma narrativa de escravos tradicional, adaptado a um quadro dramático. Aqui desenvolvem- se as elucubrações filosóficas sobre o conceito da liberdade que ocuparam Douglass por toda sua obra de juventude; ele diz que, muito além de se livrar dos grilhões, um escravizado conquista a consciência da liberdade mediante um reconhecimento prévio do direito à autonomia compartilhado por todos os seres humanos. O próximo passo seria o de tomar uma resolução corajosa de enfrentar um sistema tirânico que impossibilita esse direito. O que, de uma perspectiva coletiva, significa recorrer à rebelião armada, como vemos na parte IV da novela. O que ocorre microcosmicamente na cena de abertura d’O escravo heroico, portanto, antecipa a resolução pela revolta que elencará, aos olhos de Douglass, Madison Washington – o proferidor do monólogo inicial – ao rol dos grandes heróis da liberdade.
Ainda na cena inicial é possível observar um certo jogo com a questão da performatividade. Uma vez que termina seu discurso, Madison “deu uma boa olhada ao seu redor, como se a ideia de que o estariam ouvindo tivesse vindo à sua mente” (DOUGLASS, 2019, p. 9). A curiosa intuição de Madison ressalta que, naquela ocasião, o ato de fala do jovem escravizado não volta vazio – agora seria o sr. Listwell o responsável por dar continuidade àquele apelo.
A seguir, Listwell continua sua jornada atônito, e logo se declara transformado pelo que ouviu. “Ele não estava, portanto, inclinado a permitir que uma oportunidade tão fortuita lhe passasse reto. Decidiu então ouvir mais; escutou mais uma vez aqueles tons agradáveis e pesarosos que, conforme diz, causou-lhe tal impressão que nunca poderão ser apagados” (DOUGLASS, 2019, p. 8). Como o jovem escravo, o conhecimento da situação leva a uma resolução radical: “Dessa hora em diante sou um abolicionista”, diz Listwell, “fazendo os esforços que puder em prol da emancipação imediata de todos os escravos do país” (DOUGLASS, 2019, p. 10).
Os termos são bastante precisos. Para o Douglass de 1852, já um veterano na AASS, aquelas personagens sem contornos bem definidos são representantes icônicas do abolicionista garrisoniano e de seu objeto de estudo, o escravo liberto. A comunicação indireta entre Madison e Listwell ocasiona o efeito imediato de moral suasion; a resposta emocional reverte-se em porta de entrada para uma atuação de Listwell na causa da manumissão.
Entretanto, as atuações costumeiras de agrupamentos abolicionistas históricos – panfletagens, palestras, atividades publicísticas, boicotes – não parecem fazer parte da rotina do recém-convertido. A narrativa, antes, dá um salto sem qualquer menção aos próximos passos de Listwell. “Cinco anos após a ocorrência singular relatada acima, no inverno de 1840, o Sr. e a Sra. Listwell estavam sentados juntos ao lado da lareira de seu alegre lar no estado do Ohio” (DOUGLASS, 2019, p. 11). Prestes a irem dormir, ouvem um barulho do lado de fora da casa. A noite é tempestuosa e a muito custo Listwell avista uma figura perdida na neve, que se aproxima da luz. Como é de se esperar, o viajante é o mesmo que outrora proferira seu monólogo, ignorante do efeito que causou no dono da casa.
Instantaneamente o Sr. Listwell exclamou [...]: “ah, senhor, não sei seu nome, mas vi seu rosto e ouvi sua voz anteriormente. Estou contente em vê-lo. Eu sei de tudo. Você está fugindo para a sua liberdade – sente-se – deixe todo o medo de lado. Você está seguro sob meu teto”.
Um reconhecimento tão inesperado desconcertou e inquietou bastante o nobre fugitivo. (DOUGLASS, 2019, p. 14, grifos do autor)
Madison é como o escravo da narrativa: um sujeito revertido em objeto de análise, insciente dos usos feitos de sua voz e imagem. Ele é aquele que relata; o abolicionista branco, aquele que julga “saber de tudo”. A mensagem é negra, embora seu invólucro seja branco15. É revelador que o autor tenha italicizado a tal asserção desconcertante de onisciência. Uma vez munidos de conhecimento sobre os desencontros de Douglass com a AASS, é coerente supormos que a pretensão por trás desse conhecimento total da mente do escravo também o tenha desconcertado pessoalmente.
Em inúmeras ocasiões os narradores de Douglass atuam como ironistas sutis; o suficiente para a ideia de Listwell ser um ouvinte questionável, condenável ou ao menos inconsequente, ter passado despercebida por praticamente toda sua crítica. Isso se deve, em partes, à apreciação tardia de críticos da única obra ficcional do maior escritor afro- americano oitocentista; o primeiro artigo a ser publicado sobre O escravo heroico foi o de Robert B. Stepto, já em 1982. Até a tese de Celeste-Marie Bernier, em 2002, Listwell foi tomado como um ouvinte ideal16.
Trazendo à memória as objeções à pornografia da dor que certos abolicionistas eventualmente derivariam dos testemunhos de cativeiro, pensemos na continuação do diálogo entre o casal Listwell e Madison:
[...] estamos bastante interessados em tudo o que puder esclarecer algo sobre as adversidades de pessoas que escapam da escravidão. Poderíamos ouvi-lo falar a noite inteira; não há por acaso algum incidente que o senhor possa relatar de suas viagens até aqui? [...].
“De modo geral, senhor, meu percurso seguiu sem interrupções. E, levando em conta as circunstâncias, foi, por vezes, até agradável. [...] Houve somente uma ocasião em que escapei por pouco durante toda minha jornada”, Madison disse.
“Vamos ouvir sobre ela”, disse o Sr. Listwell. (DOUGLASS, 2019, p. 25-26)
Circunstâncias agradáveis não interessam; o casal Listwell está ávido pela chance de serem confrontados por sentimentos piedosos dos quais as almas moralmente desenvolvidas se nutrem. “Esse trecho comunica a exposição por parte de Douglass de tendências brancas ao voyeurismo, e aborda em que medida o testemunho negro ‘autêntico’” – ao menos como existia na época – “é moldado por intervenção branca” (BERNIER, 2002, p. 117)17. A solução de Frederick Douglass foi transcender a narrativa de escravo e iniciar uma tradição de ficção afro-americana, desencadeando o processo de “novelização” da expressão afro-americana (os termos são de ANDREWS, 1990, p. 25 et seq.).
Não relativizemos a importância de Listwell: tanto ele quanto sua esposa são anfitriões benevolentes perante Madison, e um passo importante para o sucesso de sua fuga. Se nossa hipótese é correta e O escravo heroico pode ser lido como um acerto de contas, digamos, com a prática da AASS, é com o fim de aperfeiçoá-la, eliminando de si resquícios de suprematismo branco, de forma a atingir o único objetivo que unia todos os abolicionistas: não agradar seus líderes, mas acabar com a escravidão de uma vez por todas. Frederick Douglass se mostra, portanto, insatisfeito com o fato de ouvir, palestra atrás de palestra: “Frederick, conte sua história” – e notar que os espectadores nem queriam, nem seriam capazes de ouvi-lo de fato (cf. STEPTO, 1982, p. 368). Daí focar- se nas diversas vozes brancas que comentam Madison (o casal Listwell na parte I e II, Wilkes na parte III, Tom Grant e Williams na parte IV). A primeira obra de ficção afro- americana realiza uma inversão brilhante ao trazer uma mensagem branca num invólucro negro.
Tampouco a crítica mordaz contra os esforços brancos deve ser lida como mostra de ingratidão do autor (como Garrison interpretou; ver STAUFFER, 2004, p. 42-43, 154 et seq.). Antes, é mais produtivo pensarmos Douglass como um militante, e sua conclusão em 1852 era de que esforços da AASS eram insuficientes. A abolição nunca seria efetuada por vias pacifistas. O motivo para tal é expresso na parte III, quando Listwell se encontra em uma hospedaria em território sulista, cercado por beberrões que desconfiam de si por ser um nortista. Wilkes, um local, bajula-o o máximo que pode a fim de conseguir alguns trocados. Uma das primeiras perguntas que surgem é se Listwell estava ali na condição de comprador de escravos.
[...] era difícil para ele admitir para si a possibilidade da existência de circunstâncias nas quais um homem pudesse, propriamente, manter sua boca fechada sobre o assunto [da escravidão]. Tendo pouco do espírito de um mártir como Erasmo, concluiu como o próprio Erasmo que seria mais sábio confiar na misericórdia divina por sua alma a confiar na humanidade de escravocratas por seu corpo. O medo por sua integridade física, e não os escrúpulos da consciência, prevaleceu (DOUGLASS, 2019, p. 50).
O “medo por sua integridade física” desse pacifista o leva a ocultar suas convicções. No dia seguinte, a atitude de Listwell naquele ambiente hostil é testada mais uma vez; ele avista Madison Washington mais uma vez encarcerado, rumo a um leilão de escravos (DOUGLASS, 2019, p. 52). Wilkes volta a abordá-lo inferindo saber de sua intenção de comercializar pessoas no seguinte diálogo:
“Eles têm um bom grupo de pretos naquele beco”, disse Wilkes.
“Sim, eles são indivíduos de boa aparência. Um deles eu gostaria de comprar, e seria capaz de dar uma grande soma por ele”. (DOUGLASS, 2019, p. 59)
A ambiguidade da afirmação é a saída perspicaz daquela conversa. Mas, ao tratar- se de um ativista, Listwell age como um traidor parcial de sua causa. Como os tolos shakespeareanos, Wilkes faz o papel da personagem marginal e cômica que se revela capaz de iluminar as fraquezas morais das personagens centrais (pensemos no bobo da corte de Rei Lear; BERNIER, 2002, p. 122).
A conclusão da experiência entre Listwell e Madison é expressa por uma série de negativas; será necessário que o próprio escravo se livre de seus grilhões, convença seus comparsas e inicie uma rebelião armada no navio Creole, desviando sua rota para um local onde a escravidão não impera:
O Sr. Listwell ficou na costa, assistindo ao navio negreiro até o último ponto das velas superiores sumir de vista e anunciar o limite da visão humana. “Adeus! Adeus! Homem corajoso e honesto! Que Deus permita que o futuro lhe traga um céu mais limpo; mais limpo do aquele que o observa nessa jornada espinhenta”.
Dizendo isso para si próprio, nosso amigo não perdeu tempo em completar seus assuntos e, ao chegar em casa, limpou com satisfação o barro da Velha Virgínia de suas botas. (DOUGLASS, 2019, p. 61)
O fracasso da missão iniciada na parte I nos convida a questionar a efetividade das atitudes constitutivas do tipo histórico representado por Listwell. Este tipo, o qual ligamos à ala garrisoniana do movimento abolicionista, encararam O escravo heroico como um atrevimento ao propor certa contaminação das narrativas de escravo por vozes anglo-saxãs. Abolicionistas brancos se viram pela primeira vez confrontados com a ideia de que, ao dar voz aos negros, acabavam por silenciá-los à sua própria maneira. Tal querela pode ser entendida como um momento de virada no movimento durante a década de 1850. E, como buscou-se argumentar, também de sua literatura: até então, o surgimento de um romantismo afro-americano, como movimento criador de um repertório de imagens e simbolismos, fora algo inviável. Os grandes escritores e escritoras negros conheciam bem a sua época bárbara e estavam ocupados da tarefa de relatar as muitas facetas daquela instituição para o público leitor ianque, geralmente ignorante (ou indiferente) ao que de fato acontecia no Sul escravista. Recorrer à ficção nos moldes disponíveis seria, como consequência, um luxo não conferido ao intelectual negro. Era algo a ser almejado em tempos melhores, caso viessem.
A era da grande ficção afro-americana teve de esperar Douglass para receber um grande expoente de obras da imaginação. O escravo heroico resulta do mesmo impulso testemunhal que serviu de musa a Douglass nos textos sobre a própria experiência sob a escravidão. Não se trata mais do relato do indivíduo, mas da fatura da experiência coletiva do movimento abolicionista – de qual seria o próximo passo. Desdobramentos recentes de tal experiência, enfim, confirmavam a impressão de Douglass de que não haveria manumissão sem rebelião e guerra.
Referências bibliográficas
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Resumo: Partindo de uma análise de The heroic slave (1852) de Frederick Douglass, o artigo lida com a gênese da primeira prosa de ficção afro-americana à luz dos debates político-institucionais da época. Há de se questionar o que fez escritores afro- americanos como Douglass abrirem mão do formato das slave narratives para produzirem textos de ficção. Argumentar-se-á que a participação desses pensadores nos debates daquela época de crise institucional teve reflexos diretos em sua produção artística. Assim, se o jovem Douglass escreveu uma narrativa de escravos pautada no testemunho e resistência pacífica ao governo, o Douglass da década de 1850 inaugurou uma modalidade de literatura pautada no ativismo, refletora de sua radicalização como pensador político. O que ocorreu para que tal mudança se efetuasse, e que novos dispositivos expressivos surgiram para expressar esse momento de virada, são duas questões que balizarão o presente estudo.
Palavras-chave: Literatura afro-americana; Frederick Douglass; radicalismo negro; abolicionismo; imediatismo.
Abstract: Departing from an analysis of Frederick Douglass’ The heroic slave (1852), this article deals with the genesis of the pioneering African-American fiction with a view of the political-institutional debates of its time. One has to question what prompted African-American writers such as Douglass to relinquish the format of the slave narratives in order to produce fictional works. I argue that the involvement of these intellectuals in the debate of those times of institutional crisis had direct effects on their artistic production. Thus, if on the one hand the young Douglass wrote a slave narrative grounded on the testimonial and pacifist resistance against the government, the 1850 Douglass inaugurated a literary modality grounded on activism, which reflected his own radicalization as a political thinker. What happened for such a change to ensue, as well which expressive devices were created to express this turning point, are the two questions which will guide this study.
Key words: African-American literature; Frederick Douglass; black radicalism; abolitionism; immediatism.
Recebido em: 13/4/19
Aceito em: 07/09/19
1 Doutor em Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo e pela Martin-Luther-Universität Halle-Wittemberg. O artigo foi escrito durante uma pesquisa de pós-doutorado desenvolvida na Universidade Federal de Goiás entre 2018 e 2019.↩
2 Ver McNeese (2008), Newman (2002), Eisenstark (2010) e DeLombard (2007).↩
3 O Perfil da literatura Americana (VANPANCKEREN, 1994, p. 46) dá ênfase em especial a Stowe, Sojourner Truth e às narrativas de Frederick Douglass, Harriet Jacobs e Harriet Wilson. Estudos sobre a literatura clássica americana (LAWRENCE, 2012) se foca nas décadas de 1790 a 1850, portanto a época mais turbulenta para os abolicionistas, mas trata do tema somente ao falar sobre Walt Whitman, alguém sem envolvimento com o abolicionismo até a Guerra Civil iniciar. Em Portugal traduziu-se The literature of the United States de Marcus Cunliffe em 1990, onde toda a literatura de afro-americanos é resumida em vinte e tantas páginas, e bizarramente relegada à seção de literaturas de imigrantes (ver CUNLIFFE, 1986, p. 377 et seq.).↩
4 Embora tenha sido publicado no Brasil já no século XIX, o livro permaneceu no esquecimento por um século. As três traduções mencionadas são a de Nélia Maria Pinheiro Padilha von Tempski-Silka (2011), de Ana Paula Doherty (2017) e de Bruno Gambarotto (2018).↩
5 Pensar a Guerra Civil com uma revolução não é uma ideia nova; ela foi uma disputa por dois modelos institucionais de o que seria os Estados Unidos do futuro: uma federação com poder centralizado, pautado nos ideais democráticos da Independência Americana de 1776 (a “União” de Lincoln) ou um emaranhado de estados que gozassem de grande autonomia, ao ponto de poderem recriar a land aristocracy no modelo inglês (a tal da “Confederação” de Davis). Os primeiros a associar a Guerra Civil às demais revoluções burguesas do século XIX foram Marx e Engels em sua obra jornalística para o New York Daily Tribune e o Die Presse (1980, sobretudo p. 329-351, 551-553).↩
6 “[…] every freeman of the age of twenty-one years, having resided in the state two years next before the election, and within that time period paid a state or county tax […]”. (COMMONWEALTH OF PENNSYLVANIA 1790, Article III, Section I). Esta e as demais traduções, salvo quando indicadas, são do articulista.↩
7 Ver Eisenstark (2010, p. 26-28), Stauffer (2012, passim), DeLombard (2007, p. 199 et seq.), McNesse (2008, capítulos 3, 6, 8).↩
8 No caso específico da Pensilvânia, Latzko (2013, p. 2, 16-18) e Stauffer (2012, p. 74) oferecem argumentos adicionais para a interdição de votos: o Pânico de 1837, a crescente migração irlandesa para a região e consequente aumento de competitividade, além da massiva propaganda sulista contra a abolição das décadas de 1820 e 1830. De uma perspectiva federal, porém, o aumento de poder de representantes do Sul no Congresso teve impacto decisivo na instauração de uma crise política da União. Essa consciência, aliás, pautou os discursos da campanha de Lincoln contra Davis (ver LINCOLN, 1989, p. 16, 26-27, 35-60, cujo principalmente argumento foi: por trás da suposta defesa de Davis da “soberania dos estados” há um plano de expandir a escravidão por todo o território americano).↩
9 Embora esse direito não custasse para ser retirado mais uma vez. Em 1910, não havia um estado sulista que não voltara a fazer emendas em suas constituições para proibir o voto negro. Apenas em 1965, com o movimento dos Direitos Civis, que a décima quinta emenda à Constituição federal se efetivou (EISENSTARK, 2010, p. 35).↩
10 Ainda assim, a retórica de Frederick Douglass reteve determinadas características de sua fase inicial. Em textos tardios, de uma época em que era um abolicionista distante dos princípios pacifistas da AASS, estão entremeados pelo uso de imagens impactantes ligadas à antiga técnica da moral suasion. Em determinado ponto de Minha clausura e minha liberdade (DOUGLASS, 1855, p. 132), o autor remete gratuitamente às feridas deixadas pelo período de fuga. “Meus pés foram tão rachados pelo gelo que a caneta com que estou agora escrevendo podia ser posta dentro dos talhos”.↩
11 “Give us the facts; we will take care of the philosophy”.↩
12 “It was impossible for me to repeat the same old story month after month, and to keep up my interest in it. It was new to the people, it is true, but it was an old story to me; and to go through with it night after night, was a task altogether too mechanical for my nature. ‘Tell your story, Frederick’, would whisper my then revered friend, William Lloyd Garrison, as I stepped upon the platform. I could not always obey, for I was now reading and thinking. New views of the subject were presented to my mind. It did not entirely satisfy me to narrate wrongs; I felt like denouncing them.”↩
13 Além de ter formado um dos maiores corpora literários produzido por qualquer grupo de escravizados, criando a base tanto para a historiografia da escravidão quanto para a afro-americanística, como desenvolvem Davis e Gates Jr. (1985, p. xii-xiv).↩
14 O trecho em questão diz: “Vocês [naus na Baía de Chesapeake] estão soltas dos atracadouros, e são livres. Eu tenho as correntes apertadas em torno de mim, e sou um escravo! Vocês se movem alegremente ao vento, e eu pesaroso diante do chicote! [...] Ah, se eu fosse livre! Ah, se eu estivesse em um de seus conveses imponentes, e sob a proteção de suas asas! Mas – ai de mim! Entre nós, correm as águas revoltas. Vão, vão embora. Quem me dera ir também!” (DOUGLASS, 2018, p. 71).↩
15 Devemos a formação a John Sekora, cujo ensaio “Black message/white envelope” (1987) foi pioneiro em questionar o quanto de testemunho afro-americano resta nas narrativas de escravos. Antes de optar por um posicionamento cético e descartar todas as narrativas como falsificações, Sekora inaugura um maior rigor nos estudos da primeira prosa afro-americana, levando acadêmicos a apreciarem também a prosa de ficção auto-publicada escrita no final do antebellum como documentos preciosos da experiência negra.↩
16 O defensor mais virulento dessa posição é Yarborough (2015 [1990], p. 213), que chega a propor Listwell como uma homenagem aos abolicionistas Gerrit Smith e Lloyd Garrison. Yarborough lê no retrato de Listwell o suposto reconhecimento de Douglass de que não haveria salvação negra sem agência branca (Yarborough, 2015 [1990], p. 217). A proposta é questionável tendo em vista o desfecho da parte III e IV da novela, como veremos adiante.↩
17 “This excerpt communicates Douglass’ exposure […] of white tendencies towards voyeurism [… and] addresses the extent to which ‘authentic’ black testimony is shaped by white intervention”.↩