A experiência da literatura desde a paixão materna

Luciana Abreu Jardim1
Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
lucianajardim.l@hotmail.com

Retornar à literatura desde uma perspectiva teórica implica correr o risco de dizer o que já foi dito no curso de uma herança que acumula uma longa tradição a percorrer diferentes e complexas áreas de nosso conhecimento. Dividi-la por correntes filosóficas, como está no estudo introdutório de Terry Eagleton, nos permite entrar em contato com a riqueza por ele sugerida, a ser buscada em seus pormenores conceituais, levando em conta cada momento histórico que faz dessa atividade estética também algo na direção de uma experiência cuja orientação desvela inclinações e visões de mundo; ou seja, movimentos de sentidos que podem circular no âmbito da designação que acena para o par codependente ético-estético.
Pensar sobre a literatura, sem a pretensão ontológica de defini-la, na tendência dos manuais de introdução à teoria da literatura traduzidos para a nossa língua, mas também desde a necessidade de voltar a essa paixão que, se não a situa no espaço conceitual da (im)possibilidade de encerrá-la em definições totalizantes, ao menos acena para essa a experiência ligada a afetos, desde os arcaicos, os quais acompanham a nossa trajetória de linguagem, especialmente em suas manifestações estéticas. Antes de apresentar as considerações teóricas daquela que vem de uma condição tão estrangeira e desconstruída quanto o pensador argelino, proponho um gesto de diferimento que permite iniciar um debate cujas perspectivas não se restringem ao pós-modernismo, podendo também ser pesquisadas ao longo da história da literatura e de suas distintas abordagens. Se um começo, ainda que sempre diferido, se impõe, que seja pela experiência da paixão: aquela capaz de reunir, sem apagar as heterogeneidades próprias daqueles que ousam escolher um autor, um texto, levando-se pelo fascínio da eleição de uma herança literária. Muito distante de propor uma definição para o objeto literário, o pensamento de Derrida, amplamente situado nas fronteiras entre a filosofia e a literatura, expõe-se, por meio da faculdade do gosto kantiana, ao cruzamento do universal e do particular, quando elege, entre ficção e testemunho, o relato de Maurice Blanchot, O instante de minha morte, para daí deixar-se pensar em Demorar, sobre a semântica da paixão na sua conotação. Essa perspectiva, talvez a mais literária entre as elencadas por ele, põe em cena a disponibilidade para “suportar” as experiências do mundo a partir de um limite cuja classificação (“indeterminável” ou “indecidível”) sinaliza, já que parece mesmo impossível quantificar no terreno das paixões, para a ambição desmedida da literatura. Sem a pretensão do si mesmo, não sendo, portanto, ela mesma, na ausência de uma essência, à literatura cabe o dever de “tudo sofrer ou suportar” (DERRIDA, 2015, p. 37).
Fiquemos por aqui para voltarmos àquela que vem escrevendo sobre a relação dos afetos na literatura desde La révolution du langage poétique, publicada no ano de 1974, na qual se consagra a inspeção de uma camada de infrassignificados, a modalidade linguística chamada de semiótico – da qual eclode a malha de sensações e afetos, atravessando o processo de formação da linguagem do futuro sujeito falante, de modo a retornar, posteriormente, em codependência com a modalidade do simbólico ou a linguagem propriamente dita, com relevo artístico, na linguagem poética daqueles que se dedicam a trabalhar desde a língua na sua dimensão estética. Foi sobretudo do conjunto teórico de Julia Kristeva a intenção de chamar à cena literária uma camada afetiva sobre a qual os pesquisadores das questões literárias podem tomar diversos caminhos. Os poetas escolhidos pela teórica nesse estudo basilar, Lautréamont e Mallarmé, que se destacaram por suas inovações na linguagem, constituem notáveis marcos do movimento poético de vanguarda da segunda metade do século XIX. Nota-se que a pensadora, ao reconhecer a importância de experiências biográficas, culturais e também do contexto social dos autores escolhidos, estimula nos críticos um caminho cuja expectativa de previsibilidade de aplicação conceitual padronizada se rompe ao mesmo tempo em que se abre a leituras para construções criativas nas quais as vidas fantasmais, tanto dos autores, quanto de seus intérpretes se entrecruzam, promovendo efeito de originalidade crítica.
Se a questão afetiva não pode ser dimensionada, em alguma medida, se deve ao receptáculo que permite a formação do semiótico. Trata-se da chora semiótica, cuja herança está no livro Timeu, de Platão. Em virtude de sua anterioridade a categorias como tempo e espaço, a chora aproxima-se a uma “articulação provisória” (KRISTEVA, 1974, p. 23), podendo estabelecer analogias com ritmos vocais. Kristeva mostra como essa noção se faz por processos de negação, restringindo até mesmo analogias; no entanto, não fica indiferente aos predicados platônicos que a situam no âmbito de “receptáculo”, caracterizado como “nutritivo” e “materno” (KRISTEVA, 1974, p. 25). Esboça-se, assim, em sua tese de doutorado, um dos fios da gestação que nos levará a retomar alguns aspectos de uma filosofia da maternidade, que, segundo a minha sugestão, encontra na seara da literatura o seu campo mais fecundo de pesquisas, potencializando a capacidade do par copresente pensar e sentir até zonas que esbarram em contrassensos, exigindo-nos deslocamentos para além de nossas especialidades, na tentativa de entrar em contato com o caráter eminentemente literário do “tudo suportar”.
Recuperamos, portanto, dessa impossibilidade de situá-la nas referências que modelam a nossa formação de sentido, as categorias de localização espacial e temporal, a aproximação com o terreno movediço das paixões e também aos contornos femininos desse receptáculo, especialmente o seu vínculo indireto com a maternidade. Se estamos diante das paixões, um dos caminhos possíveis e esperados, sobretudo nos estudos do feminino, é o de pensá-las desde esse aparentemente primeiro laço amoroso de todo o futuro sujeito falante, a saber, a relação mamãe-bebê. A paixão deverá problematizar esse encontro. Ao lado dessas pesquisas de base psicanalítica, que têm percorrido o eixo dos estudos de Kristeva – não apenas aqueles direcionados a questões desse campo, como também o seu entrelaçamento indissociável com a área literária –, a paixão se impõe desde o feminino.

Um começo sem começo

No artigo “Stabat Mater”, de Histórias de amor (1983), reconhece-se que Kristeva retorna ao gérmen platônico do “receptáculo materno” em outro momento histórico, para nos mostrar que a maternidade atinge seu ápice na imagem da Virgem Maria. Essa primeira outra, que dará à luz ao Pai, habita um espaço cuja representação é controversa, sendo a mãe não fecundada e, sob outra perspectiva, também a filha do próprio filho. Apesar do jogo de tensões ao qual o nosso imaginário religioso é submetido, cabe à representação da Virgem Maria um papel de destaque para a nossa formação discursiva. Seguindo o argumento de Kristeva, não se localiza mais, depois da Virgem, em nossa sociedade secularizada, discursos sobre a maternidade (KRISTEVA, 1983, p. 326). Essa constatação nos instiga a buscar na literatura um movimento na contracorrente dessa ausência. Na rede das narrações disponíveis em nossa cultura, a recuperação do enredo da Virgem acena para o que a teórica designa sob o nome de uma Héréthique. Esse neologismo, que admite um jogo de palavras que toca a carnalidade da nossa condição perene e profana (cf. as sugestões de “ereção” e “heresia”), guarda também a sonoridade com um conceito que remete a uma condição cujo histórico tem sido o de ultrapassar a sensualidade e o limite temporal, intrínsecos a nossa condição corporal: a ética e seu vínculo espiritual com a racionalidade. A héréthique ambicionada por Kristeva, no entanto, muito distante de fortalecer a dicotomia corpo/pensamento, sem com isso apagar a carga de historicidade dessa polaridade, viabiliza repensar o par à luz de uma desconfortável copresença, mesmo para nossa experiência secularizada, que, considerando as suas heterogeneidades, procura abrir brechas para ressignificar os preconceitos advindos da perecibilidade do corpo, abrindo-se a uma densa camada de sensações e sentimentos que tornam a atividade de pensar um desafio, muitas vezes atravessado pela falta de sentido e pelos contrassensos. Por essas razões, Kristeva faz questão de estabelecer distinção entre ética e a proposta de uma héréthique. Em sua héréthique, é preciso haver separação das questões ligadas à moralidade (KRISTEVA, 1983, p. 327), com a finalidade de incluir a herança controversa da maternidade desde a Virgem até os discursos por vir, os quais estimulariam repensar o corpo, especialmente o corpo feminino e sua capacidade de dar à luz e também de pavimentar o caminho dos laços amorosos para o futuro sujeito falante – aquele que também participa indiscutivelmente da formação dos laços sociais. Caberia também à héréthique refletir sobre a nossa mortalidade, buscando valorizar a experiência da maternidade no seu ciclo de vida e morte.
Diante da recuperação do mistério sensual do corpo da Virgem, abala-se também toda a nossa relação com a possibilidade de demarcar um início, o que se assemelha com a noção derridiana de différance. Observa-se que, passadas algumas décadas da formulação da chora semiótica, em La révolution du language poétique (1974) e da retomada da Virgem Maria, em Histoires d’amour (“Stabat Mater” foi publicado em 1976), recentemente o tema retorna, relacionando a impossibilidade de alcançar o tempo e o espaço iniciais, ao corpo da Virgem – como a teórica já havia desenvolvido com a sugestão da chora. No artigo “Des madones aux nus: une représentation de la beauté féminine” (2005), Kristeva menciona “gostar de imaginar” que a imagem da Virgem Maria teria nos levado a pensar sobre o que chama de “um começo antes do começo2 (KRISTEVA, 2005, p. 154). Nessa impossibilidade do começo, o corpo da Virgem simbolizaria o que Kristeva chama, com acento filosófico, de “proto-espaço”, na ordem do “fora-do-tempo”, algo anterior ao Verbo (KRISTEVA, 2005, p. 154). Nesse ensaio, a teórica permite comparações com a chora, referindo-se às contribuições de Demócrito para o Timeu, de Platão. Esse proto-espaço, segundo os deslocamentos de Kristeva, também entra numa linha da história do pensamento filosófico que desembocará no esquema kantiano. Em literatura, os exemplos que ela elege para ilustrar esse proto- espaço podem ser localizados em “Villes”, nas Illuminations, de Rimbaud e no misticismo de Mestre Eckhart. Nesse caso, quando o místico pede para ser abandonado por Deus, o que ele almeja, na leitura de Kristeva, é ficar “virgem de Deus” [vierge de Dieu]. Essa recusa implica simultaneamente a ambição e a impossibilidade de alcançar o proto-espaço, também chamado por ela de “não-lugar” ou de um “fora impensável”. Vem desse entusiasmo, seguido de frustração, a tentativa de se aproximar do irrepresentável que subjaz ao feminino. No entanto, é preciso reconhecer que o retorno ao arcaico, a esse início sem início, não compreende a manifestação de desejo, pois, para a teórica, o começo implica já “um começo de desejo” (KRISTEVA, 2005, p. 154).

Estética da Encarnação

Essa falta de desejo que poderia aproximar o proto-espaço feminino proposto por Kristeva das religiões orientais e seu interesse pelo nada e pelo vazio, no pensamento da autora, dá preferência, no entanto, aos símbolos da cultura cristã.
Diante dos corpos narrados, em virtude dos possíveis discursos soterrados desde a Virgem e depois da inserção de sua influência sobre o mundo imagético, percebe-se o abalo produzido em nossa cultura visual. Localizo em dois artigos de Kristeva referências à pesquisa de Marie-José Mondzain, intitulada Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do imaginário contemporâneo, a saber, (“Une digression: économie, figure, visage”, de 1998 e “L’Europe divisée: politique, éthique, religion”, de 2005), que me parecem indispensáveis para o entendimento de uma estética da encarnação e sua dependência com a imagem de Maria. Por exemplo, no ensaio “Une digression: économie, figure, visage”, de Visions capitales (1998), Kristeva recupera alguns pontos da pesquisa de Monzain sobre os quais gostaria de tecer algumas considerações. As duas pesquisadoras partilham do sentimento crítico de perplexidade diante do excesso de imagens, sobretudo aquelas mediadas pela técnica e seus dispositivos virtuais, com os quais temos que dividir a nossa atenção e investir a nossa experiência sensível em detrimento da atividade reflexiva.
Assim como Kristeva, Mondzain demonstra interesse pelo resgate etimológico, cujo encadeamento semântico de termos pode despertar surpresa para a comunidade de nosso tempo. Ao mesmo tempo em que a pesquisadora recupera o embate entre os defensores da imagem x defensores do ícone, ela percorre as tensões subjacentes aos significados do termo economia. Essa palavra “economia”, que admite, ao longo do tempo, sentidos aparentemente tão distintos como “plano”, “desenho”, “administração”, “providência”, “mentira”, “função” (MONDZAIN, 1996, p. 27) inclui, ao lado deles, o significado que reenvia à imagem da Virgem, a saber, o sentido de “encarnação”. Assim, a Virgem participaria da economia trinitária Pai-Filho-Espírito Santo, que se evidencia com Santo Agostinho, apesar de a sua contribuição feminina ficar obscurecida entre os nomes que compõem a trindade. Mondzain reconhece que o Livro VIII, de A Trindade, de Santo Agostinho, contribui para aproximar o homem da imagem perfeita de Cristo, na medida em que a trindade participa tanto do humano, o filho, quanto do divino, o pai. No artigo “Une digression: économie, figure, visage” (1998), Kristeva refaz algumas fontes relacionadas à gênese de nossas imagens, também referidas por Mondzain. De Nicéfora à segunda parte Da Trindade, referente ao capítulo das imagens, de Santo Agostinho, passando pela homofonia que ela flagra entre oeikonomia (economia) e eikôn (imagem), a intenção da teórica sustenta-se no fortalecimento do argumento de que somos geridos, para não recusar o campo semântico também utilitário subjacente ao conceito economia, por um poder das imagens. Mondzain refere-se a uma “teocracia do visível” (MONDZAIN, 1996, p. 205) e Kristeva, sem mencionar o termo, mas se referindo às pesquisas bizantinas sobre a formação de nossas imagens e o excesso visual da atualidade, no ensaio “L’Europe divisée: politique, éthique, religion” (2005), nos incita a buscar uma alternativa para esse poder que está entranhado em nossas formas de pensar.
Suponho que a própria teórica nos oferece um caminho para liberar o pensamento. Tal caminho está alinhado com as pesquisas de Monzain, sobretudo no resgate da imagem da Virgem Maria, que, na minha leitura, seria uma resposta contra os abusos do iconocratas. Em linhas gerais, na terminologia de Mondzain, eles seriam aqueles que detém o poder imagético, influenciando tendências do que deve ser visto. Longe de propor o que poderia induzir a uma idealização da matéria, tampouco o culto da carne, o sentido de encarnação defendido por Mondzain se constrói desde o olhar de um outro em direção ao “vazio”, que representa o corpo da Virgem – o que, dessa forma, pode ser interpretado como uma espécie de desmaterialização (MONDZAIN, 1996, p. 218). Nesse sentido, a encarnação é tributária da faculdade da imaginação, sendo que esse “vazio” leva tanto os defensores dos ícones quanto das imagens a buscar alternativas para ultrapassar o que ela chama de “ausência do vazio”.
No resgate etimológico, o vazio atende pela designação grega kénose, que participa do que Mondzain nomeia de “economia da encarnação” (MONDZAIN, 1996, p. 49). Kristeva, no ensaio “Une digression...” (KRISTEVA, 1998, p. 61) elogia a formulação de Mondzain, reforçando o argumento da pesquisadora de que a economia de Cristo depende tanto do “ventre original” e da kénose. Kristeva agrega outros significados ao Kénos (para além do vazio, há também o “inútil”, o “vão”, o “não-ser”, o “nada”, a “nulidade”, o “insensato”, o “enganador”) (KRISTEVA, 1998, p. 61), os quais encorpam as recepções vinculadas à Virgem e o seu notório rebaixamento diante da trindade. Assim como Mondzain, a teórica reconhece no corpo da Virgem a possibilidade de a imagem do corpo do Pai se propagar pela história: “É o corpo materno que permite à imagem do Pai se distribuir na história, de entrar na carne e no visível”3 (KRISTEVA, 1998, p. 61). Nesse mesmo ensaio, Kristeva aproxima essa economia de acesso à formação das imagens a algo diferente de uma “representação plena de seu modelo” (KRISTEVA, 1998, p. 62), ou mesmo do processo mimético, o que permite, no entanto, um acesso à imagem via inscrição, sugerindo uma “grafia”, de modo a aludir, como ela mesma observa, à diferença [différence] e seu intrínseco espaçamento, sem, com isso, se referir explicitamente à différance derridiana. Se há esse espaçamento que leva a impossibilidade do acesso às coisas mesmas, características do verbo diferir, ele acontece porque – e a teórica faz questão de enfatizar –, os atributos da Virgem tornam possível esse diferimento, a saber, o “nascimento” e o “vazio” (KRISTEVA, 1998, p. 62, grifos da autora). Para dar mais corpo histórico ao seu argumento, Kristeva, no mesmo ensaio, menciona o receptáculo materno do Timeu, que compreende a chora, chamando-o de “proto-espaço”, a respeito do qual menciona já ter pensado desde La révolution du language poétique. Nessa etapa atual de reflexões sobre o que se resume sob a síntese do “começo sem começo”, ela conclui o seguinte: “O corpo da Virgem é chora” (KRISTEVA, 1998, p. 62).
Na esteira dessas investigações da economia da encarnação, encontro numa figura mitológica que, para o nosso espanto, atravessa a cena iconográfica bizantina, instaurando outras imagens desde o feminino. No ensaio “La vraie image: une sainte face” (KRISTEVA, 1998, p. 45), Kristeva nos conta sobre a sua experiência contemplativa nas igrejas bizantinas da Bulgária e o retorno dessa atmosfera sensual e misteriosa diante da imagem da Santa face de Laon, na capela de Saint Paul. Kristeva recupera as pesquisas do historiador André Grabar, levando-nos a perceber, na imagem de Cristo e seus longos cabelos encaracolados, algo que confirma a intuição da pesquisadora-psicanalista. Conforme recupera Kristeva (KRISTEVA, 1998, p. 47), seguindo Grabar, em A santa face de Laon, havia o costume, na iconografia do oriente cristão, de reproduzir as cabeças da Górgona sobre os objetos bizantinos de culto. Assim, a inscrição da medusa atuava como uma espécie de talismã naquele trânsito iconográfico. Essa semelhança entre a face de Laon e a medusa, intuída por Kristeva, se confirma com a pesquisa de Grabar, que também tece comparações entre a imagem de Cristo inscrita no mandylion, esse manto sagrado que fora levado à diocese de Laon e a representação da medusa.
No artigo “Qui est Méduse?” (1998), Kristeva revela a busca do que chama de uma “genealogia secreta”, que atravessa os séculos e encontra na representação da medusa um poder cujos reflexos estariam disponíveis na experiência estética. Nessa medida, caberia ao poder das górgonas a instauração do que a pesquisadora chama de uma “estética da encarnação” (KRISTEVA, 1998, p. 43). A Virgem Maria, na herança da medusa, participa de uma genealogia que, não sendo mais perdida pela tradição, pelo menos sua repercussão tem se revelado obliterada tanto pelo domínio falocrático como também pelo seu desdobramento iconocrático.
Observa-se que o feminino gosta de se esconder e, assim como sustenta Kristeva, não há uma essência do feminino (KRISTEVA, 2005, p. 147). Assim, a alternativa que nos resta habita, como ela defende no artigo chamado “Des madones aux nus: une représentation de la beauté feminine” (2005), as construções ao longo da história da arte, especialmente as imagens trabalhadas pela pintura. Ainda que sejam criações inspiradas pelo olhar masculino, a nossa ideia de beleza se modelou, ao mesmo tempo em que contribuiu para a construção da diferença sexual e da imagem feminina, desde o gosto masculino, considerando a sua bissexualidade psíquica. Tal gesto, no entanto, não impede movimentos de desconstrução, os quais acompanham as tendências da arte contemporânea pós-moderna em torno do corpo do imaginário feminino. Entre as novas possibilidades que eclodem a partir da desconstrução, a teórica menciona a abstração, o minimalismo, a psicose e aquela que, em literatura, vai nos conduzir à experiência de “tudo suportar”, a saber, a “ambição inicial de manifestar o amor infinito” (KRISTEVA, 2005, p. 151). Chegamos, portanto, às paixões e percebemos o seu duplo vínculo com um dos significados que o conceito “economia” pode assumir: refiro-me às acepções de “desenho” e “encarnação”. Não é à toa a seleção de Kristeva pela retratação de imagens de maternidade ao longo de ensaios cujo tema é o da paixão materna. A Virgem Maria, portanto, no centro da estética da encarnação, participa da formação de nossa subjetividade, para além de seus vínculos religiosos, dando-nos o tom do cuidado, dos discursos por vir de nossa civilização já secularizada, dos sentimentos nobres, mas também chama à cena outro lado que escapa às suas sucessoras, a saber, as mães, que circulam relativamente esquecidas pela história da literatura e até mesmo pelas questões psicanalíticas que privilegiam o corpo e seus embates com a linguagem.

A paixão da maternidade

Pensar, portanto, desde a literatura pelo jogo dos afetos, implica, depois do receptáculo platônico chora e do corpo da Virgem, um retorno àquelas que tornam possível o nosso acesso à linguagem – as mães. Contudo, como pensá-las ao sabor das paixões se usualmente elas são retratadas de forma monótona, para não dizer dessexualizada? Kristeva abre o artigo chamado “La reliance, ou de l’érotisme maternel” (KRISTEVA, 2011, p. 1559), em estudo inaugural para o tema que participa de um volume dedicado aos estudos sobre a maternidade, da prestigiada Revue française de Psychanalyse, número de 2011, com a indagação que sugere que “viver e pensar o maternal como um erotismo” pode causar perplexidade (ela usa o adjetivo escandaloso) semelhante àquela despertada pelos estudos de Freud, que ousou tocar num tabu para a sociedade conservadora de sua época; no caso dele, a ousadia do pensamento foi ter reconhecido um campo de investigação desde a sexualidade infantil. É, portanto, a partir do desejo, já não mais aquele receptáculo vazio da chora semiótica, destituído de sensações, ou da recepção estética do corpo casto da virgem Maria, que o vínculo com o feminino, na sua esfera literária, será o nosso enfoque. Trata-se de dar às mães o desejo e as paixões, recalcados possivelmente pela herança da Virgem. Uma pergunta-chave se impõe: o que a teórica reconhece sob o conceito de paixões?
No ensaio “La passion selon la maternité”, apresentado no colóquio “A vida amorosa”, no ano de 2000, para a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), e, posteriormente, publicado no volume La haïne et le pardon (2005), entramos em contato com o tema das paixões desde um debate com a pesquisa de Jean-Didier Vincent a respeito do livro Qu’est-ce que l’homme?, sobre o qual a psicanalista acompanha e resume a distinção entre emoções e paixões. Kristeva apoia-se no capítulo “O homem intérprete apaixonado pelo mundo” para traçar as distinções conceituais entre esses estados heterogêneos (KRISTEVA, 2005, p. 176): enquanto as emoções participam de todos os vertebrados, ligando-se à comunicação e também à seleção natural; as paixões, por sua vez, constituem um dos próprios do homem. Agrega-se à paixão a capacidade de reflexão, que está ausente nas emoções. Essa característica significa a capacidade de refletir desde esse estado de paixão sobre a existência do outro e suas diferenças, por isso é também chamada de “consciência apaixonada” (KRISTEVA, 2005, p. 176). Por exemplo, emoções como afeição e agressividade, que podem ser encontradas nos animais, não estabelecem vínculos além daqueles que permitem a mera comunicação, o que difere de paixões tais como a dupla amor e ódio, as quais estão na base do que Kristeva reconhece sob o nome de “discurso amoroso” (KRISTEVA, 2005, p. 177). Apoiada por essa investigação, a teórica volta-se à sua formação psicanalítica para sustentar que os estados afetivos, participantes das pulsões, funcionam de acordo com o par opositivo prazer/sofrimento, sendo conduzidos pelo desejo.
Dessas reflexões, surge a proposição segundo a qual a paixão seria um “estado imaginário” (KRISTEVA, 2005, p. 179), na medida em que, por apresentar caráter reflexivo, deslocando-se para a inspeção de si mesmo e do outro (alteridade), se situa no que é reconhecido como “estado fronteiriço entre o real e o simbólico, biologia e consciência reflexiva” (KRISTEVA, 2005, p. 179). No conjunto desses argumentos, a psicanalista não deixa de aproximar a sugestão da modalidade linguística do semiótico, cujo caráter revolucionário já se evidencia no próprio título de sua tese, do processo transformador da prática analítica. Nesse ensaio, ao retomar a base dos infrassignificados que constituem o semiótico, a teórica dá como exemplo as ecolalias dos bebês. Assim, ela já prepara o terreno para o núcleo de suas pesquisas sobre as paixões, a saber, a paixão materna.
Antes de defini-la, com base nessa investigação que me parece desde o seu início em curso e passível de discussão interdisciplinar, Kristeva sintetiza o Édipo bifásico da mulher, na intenção de realçar a noção de “estranheza” [l’étrangeté] feminina, desencadeada pelo primado do falo. Em relação ao Édipo bifásico, que compreende as trocas objetais com a mãe e o pai, pouco é dito sobre essa fase4. Percebo que a investigação de Kristeva buscará, sobretudo com a noção de abjeção, em Poderes do horror (1980), tecer algumas considerações entre a relação arcaica mãe-bebê, a respeito da qual Freud parece silenciar. Voltando ao artigo específico, Kristeva busca, na troca de objeto para o pai, a relação fálica que é formada para os dois sujeitos e a identificação já simbólica com a representação psíquica do pênis, isto é, o falo. Apesar de mencionar a bissexualidade psíquica freudiana, e o fato de ela ser mais forte nas mulheres do que nos homens, que retorna especialmente em Sens et non-sens de la révolte (KRISTEVA, 1996, p. 151) e no terceiro volume do gênio feminino (KRISTEVA, 2002, p. 565), o enfoque de Kristeva nessa busca pela paixão materna recai sobre a noção de estranheza. Essa noção compreende, como o próprio termo indica, um retorno a um tema não problematizado pela teoria freudiana, no qual a relação mãe-filha, e a malha de sentidos que a circunda, abala a primazia de Édipo e de seus desdobramentos fálicos, ou seja, estremece o protagonismo masculino na nossa formação psíquica, investindo a atenção de pesquisadores nessa relação arcaica desde uma outra e também nas trocas desencadeadas por aquela que dá à luz. Para as investigações direcionadas à literatura, sugiro aproximações entre as sensações e sentimentos que se manifestam, por exemplo, entre personagens mãe-filha, pois raramente o tema constitui objeto de interesse da crítica. Pode-se, assim, analisar a escolha de metáforas, por exemplo, em discursos diretos e indiretos dessas personagens envolvidas no “começo” da cena narrativa-amorosa dos sujeitos de papel, o que reenvia à modalidade do semiótico. Obviamente, não se trata de indicar um roteiro interpretativo, mas antes apontar alguma inspiração para abordagens teóricas ainda invisibilizadas, ou mesmo rebaixadas, pelo domínio falogocêntrico.
Uma das manifestações expressivas da estranheza acontece durante a gestação, momento de intensas transformações no corpo feminino, e também ao longo da maternidade. Percebe-se que a atenção da psicanalista revela-se, sobretudo, direcionada às mudanças sofridas pela mãe (KRISTEVA, 2005, p. 184), a começar pelas incertezas que se criam em torno da relação com o pai, as quais não podem ser confundidas com base no relacionamento do casal, pois se trata de uma fase que acentua as inseguranças pelas quais eles são atravessados durante esse período de espera. A expectativa daquele que nascerá, os longos meses de gestação, somados ao que ela chama de “frustrações inevitáveis”, convivem ao lado de um sentimento que a teórica chama de um “tempo por vir”, de um “laço”, uma aposta que guarda também o risco de uma idealização frustrada e na qual se embaralha a relação das fronteiras entre sujeito e objeto. Sem romantizar a experiência da maternidade, refletindo desde a momentânea e aceitável perda de identidade materna, Kristeva supõe, na construção da maternidade, algo que sinaliza a perda ou prejuízo do outro, de sua alteridade, espécie de negação da diferença daquele que está por vir – espécie “possessão”, seguindo a palavra escolhida pela teórica. Curiosamente, essa expressão reaparece no título de um de seus romances policiais. Possessões (1996/2003), no plural, narra a história de uma mãe decapitada, Gloria Harrison, tradutora e mãe de uma criança deficiente, Jerry. Entre outros temas que exploram os infortúnios globalizados e atrozes da existência contemporânea, os quais contribuem para dar pistas sobre um crime coletivo contra uma mãe degolada, encontramos um espaço para pensar sobre a “estranheza”, numa maternidade que escapa à biologia e, no entanto, se perde, conforme a sequência desse enredo polifônico. A fonoaudióloga Pauline Gaudeau, que ocupa o lugar da mãe assassinada, no processo de aprendizagem da criança, deixa-se possuir por seu paciente. Ao chamá-lo à linguagem, desde o encontro de corpos, de suas vozes enlaçadas até a formação do sentido na conquista da língua, em camadas profundas da sua própria perda identitária, para além da loucura esperada que atravessa momentaneamente uma etapa inicial da maternidade, a “estranheza”, em Pauline, não acontece pelas alterações da gestação, mas na “encarnação” amorosa que a deixa petrificada – como um efeito da medusa. Assim, Pauline vive tanto o lado aparentemente altruísta de dar a palavra ao outro, gesto nobre de sua profissão maternal, e, por outro lado, padece os efeitos sombrios, petrificantes, de sua própria impossibilidade de superar o estágio de estranheza vindo dessa maternidade roubada5.
Relevante esclarecer que não podemos restringir a maternidade à natalidade. Em Contre la dépression nationale (1998), Kristeva sustenta que a experiência da maternidade e de cuidados envolve todos, independentemente do gênero. A teórica refere-se à “maternidade simbólica”, também chamada de “vocação materna”6.
Uma breve digressão para a seara literária pode nos levar a reconhecer o processo de estranheza em nossas escolhas literárias. No contato com os textos e autores, há também o nascimento de uma paixão, o levar-se pelas ressonâncias fantasmais que provocam uma espécie de fusão com essas escolhas, as quais, se forem genuínas e não estratégias de pertencimento fácil, já habitam o nosso imaginário desde tempos arcaicos, no plano inconsciente, desde antes das interferências da instituição literária, em memórias que podem atravessar gerações. Semelhante à estranheza que acompanha as gestantes, esse apaixonamento pelo verbo, na sua dimensão estética, se fosse estimulado desde as próprias instituições, faria irromper uma liberdade estética a despertar a revolução da linguagem poética.
Voltemos às etapas da maternidade, pois me parece que a autenticidade dessas escolhas dependerá de um cuidado que se tece já na troca com aquela que acompanha o nosso caminho de linguagem. Depois dessa etapa inicial, de apaixonamento, Kristeva observa a necessidade de autonomia do bebê, que se transformará, em seguida, num sujeito de fala. Por isso, é preciso dar espaço para o desprendimento, para o desapaixonamento desse laço, e assim o processo negativo, que compõe a teoria de Melanie Klein, sobretudo com a instauração da posição depressiva no bebê7, que permite a perda dessa mãe, o seu matricídio necessário para a chegada da linguagem. No artigo “Du dessin, ou la vitesse de la pensée” (1998), do volume dedicado a várias referências estéticas de decapitações, Visions capitales, Kristeva descreve o estágio de afastamento entre mãe e bebê como uma experiência de sofrimento, na qual o bebê padece com o desaparecimento do rosto materno – essa cabeça perdida. Valendo-se da metáfora da decapitação (KRISTEVA, 1998, p. 15), a teórica sugere que, na ausência da mãe, ou pode-se acrescentar que nessa etapa de desprendimento, o bebê alucina a mãe, o que o leva a estimular a imaginação como uma estratégia para ultrapassar esse sofrimento psíquico. Curiosamente, a faculdade da imaginação retorna numa das etapas da paixão materna, da mesma forma que esteve presente na noção de “encarnação”, segundo Mondzain e Kristeva.
Em Sol negro: depressão e melancolia (1987/1989) Kristeva transpõe essa etapa para a experiência estética. Assim, a teórica também aproveita para lançar uma das teses basilares de sua teoria. Segundo Kristeva, “não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica” (KRISTEVA, 1989, p. 13; 1987, p. 15). A despeito das diferenças psicanalíticas entre depressão e melancolia, as quais estão muito bem explicadas no ensaio do qual retiro essa tese, interessa-me especialmente perceber que a nossa condição de entrada na linguagem e, por extensão, estética, é mediada pelo sema da tristeza. A minha intenção de análise estética voltada à literatura reconhece nessa proposição um caminho para repensar o jogo afetivo entre personagens desde os índices dessas tonalidades, que podem assumir também variações eufóricas – esse outro lado da depressão. De forma mais ampla, sugiro uma busca pelas tonalidades afetivas, rastros da vida íntima de personagens, a fim de abalar, por exemplo, os juízos cristalizados pela cultura e pôr em cena, ao lado da faculdade de pensar, também a do sentir, na sua codependência e heterogeneidade.
Retornando à argumentação do desprendimento, a teórica explica que são três os fatores que o compõem, a saber, o lugar do pai, o tempo e a aprendizagem da linguagem pela criança. Assim como ela, ficarei restrita à apresentação do tempo e da aprendizagem da linguagem, visto que são aqueles que mais dialogam com os estudos por vir acerca da paixão materna.
Com relação ao tempo, Kristeva critica a tendência da filosofia ocidental cuja inspiração recai sobre a obsessão pelo tema da morte. Para a teórica (KRISTEVA, 2005, p. 191), essa tendência soa paradoxal, e ela prefere entrar em contato com as marcas temporais desde outro enfoque. Hannah Arendt, por exemplo, uma mulher, pensadora, a primeira a ter a sua vida-obra repensada pela teórica na trilogia do gênio feminino, torna-se crucial nesse ponto da pesquisa sobre a maternidade. Ainda que a filósofa não tenha sido citada nesse artigo que condensa os principais argumentos sobre o tema, o pensamento arendtiano oferece uma alternativa para repensar a nossa herança filosófica sob outro recorte temporal. Não mais o fim, a morte, o que não implica a negação do pensamento que toca o fim de um ciclo, mas o seu começo. Em A condição humana (2007), Arendt articula, na vita activa, três atividades humanas – labor, trabalho e ação. Enquanto o labor compreende atividades relacionadas ao corpo e a sua biologia; o trabalho se situa no âmbito da técnica, do que é artificial. Apesar de a pensadora não ter se dedicado ao tema da maternidade, podemos reconhecer na atividade da ação o seu vínculo com a pluralidade e o fortalecimento do sentimento da comunidade. Conforme a construção de Arendt, que instaura a natalidade na função da ação, podemos deslocá-la como inspiração para a maternidade. Assim, segundo a proposta de Kristeva: “a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém- chegado possui a capacidade de fazer algo novo, isto é, de agir” (ARENDT, 2007, p. 17).
A atividade da ação, distanciando-se das demais, é aquela que retira a experiência da maternidade do seu aspecto meramente biológico, pois

a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de fazer algo novo, isto é, de agir (ARENDT, 2007, p. 17).

Apesar de reconhecer que corpo feminino não foi o enfoque de Arendt (KRISTEVA, 2002, p. 168), é também indiscutível o legado da pensadora quanto às contribuições filosóficas a respeito das tensões entre o par corpo (a experiência sensível e o mundo das aparências) e pensamento (a vida do espírito) em sua codependência e heterogeneidade. No artigo de referência sobre a maternidade, Kristeva também defende a ideia de começo como outra possibilidade de refletir filosoficamente sobre o tempo desde a sua cesura de começo, de vida. Kristeva acrescenta a essa abertura para novos começos a “lógica da liberdade”, que, para a nossa surpresa, não vem alicerçada sobre a transgressão, mas ao que se reconhece como “a capacidade de começar” (KRISTEVA, 2005, p. 191).
Estar apto à liberdade de começar e recomeçar depende, de acordo com o segundo fator elencado pela teórica, da aprendizagem da linguagem pela criança. Nessa descrição, ao menos nesse artigo, o papel da mãe se revela crucial. Enquanto a linguagem da criança depende desse vínculo apaixonado e de seu afastamento, a linguagem da mãe também se altera. Se seguirmos os argumentos de Kristeva, que tocam justamente nesses “enigmas” vindos do feminino, acontece nessa experiência uma espécie de “reconciliação com a língua materna”, que é acompanhada de uma revisão de suas relações arcaicas com a figura materna. Na minha leitura específica desse ponto, surge o efeito mais revolucionário dessa etapa, a saber, uma “desinibição do próprio imaginário”, o que desencadeia “uma linguagem sensorial pessoal” (KRISTEVA, 2005, p. 190). Suponho que aconteça um retorno acentuado, vibrante e transformador do semiótico daquelas que passam pela experiência. Percebe-se que a mãe é atravessada por uma revolução poética da linguagem, resgatando, de acordo com o autor escolhido por Kristeva para ilustrar literariamente o ponto sobre o qual ela não encontra equivalente em outras áreas do conhecimento, algo do tempo perdido proustiano. Há, portanto, uma linguagem poética que se tece entre mãe-filho para além dos necessários cuidados maternos.
Encontra-se também na literatura, no artigo “La maternité au carrefour de la biologie et du sens”8, uma saída criativa para pensar sobre uma questão que habita zonas de conhecimento e perguntas que amiúde circulam pela filosofia e psicanálise. Ao voltar-se ao que flagra como “eclosão”, segundo o uso dessa palavra pela escritora Colette, Kristeva pretende lançar uma resposta cujas alternativas disponíveis nessas outras áreas do conhecimento não permitem dar vazão à criatividade na formação de nossa linguagem. Para Kristeva, se trata de repensar a categoria do tempo a partir do vínculo entre o par amoroso – mãe e bebê – que se envolve com questões da héréthique, como a “transmissão sensível”, a “linguagem”, a “arte de viver” e com o “tempo dos começos (ou das gerações) ”. Diversamente dos caminhos usuais da filosofia e seu tempo dedicado à morte, a teórica sugere, nas eclosões colettianas, uma temporalidade criativa, permeada pela paixão que vem desse encontro afetivo sintetizado pelo sintagma “paixão materna”. Não podemos nos esquecer que essa paixão carrega ambiguidades a partir da composição de seus afetos. Assim, nesse momento, cabe uma definição, ainda que sintética, da maternidade como paixão, conforme o artigo “La passion maternelle et son sens aujourd’hui”9, de Seule une femme:

A paixão materna é uma paixão no sentido em que as emoções (de ligação e de agressividade em relação ao feto, ao bebê, à criança) se transformam em amor (idealização, projeto de vida no tempo, dedicação, etc.), com o seu correlato de ódio mais ou menos atenuado. A mãe está no cruzamento da biologia e do sentido [...]10 (KRISTEVA, 2007, p. 172-173).

A eclosão colettiana, herança literária da experiência vivida da escritora, e muito bem explicada no artigo “La passion maternelle”11, abala as concepções cristalizadas na idealização da disponibilidade do papel materno. A “mãe suficientemente boa”, na teoria de Kristeva, encontra em Sido, de Colette, uma espécie de protótipo incomum. Correndo o risco de gerar polêmica, Kristeva nos diz que a mãe colettiana “não ama ninguém em particular”, justamente porque nessa desistência, ou desligamento, ela se permite todos os laços. Sido, por exemplo, prefere “a eclosão provável de um cactus rosa” a ver a própria filha. Na leitura de Kristeva, esse gesto, que à primeira vista parece monstruoso, implica uma paixão da ordem de um “começo cósmico”, o que pode ampliar também a definição de paixão materna para sensações e sentimentos que eclodirão desde a criatividade, oriunda do distanciamento materno, que floresce especialmente da atividade literária, no cruzamento com uma espécie de escrita de resgate e de atenção às tonalidades afetivas descritas pela paixão materna. Se essa paixão materna desde agora já vem sendo escrita como um “estado de urgência pela vida”12, caberá à literatura, e a sua liberdade de pensar e sentir as alteridades poéticas que estão por vir, esse contato com a matéria vida em floração.

Referências bibliográficas

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VINCENT, Jean-Didier; FERRY, Luc. Qu’est-ce que l’homme? Sur les fondamentaux de la biologie et de la philosophie. Paris: Ed. Odile Jacob, 2000.

Resumo: Levando em consideração a tensão com o primado do falo, de acordo com a herança psicanalítica de Freud, proponho analisar o conceito de maternidade desde a paixão que caracteriza essa experiência. Para tanto, busco alguns ensaios de Kristeva que pavimentam o caminho para as suas reflexões sobre a paixão materna. No cruzamento entre filosofia e literatura, esse ensaio analisará “A paixão segundo a maternidade”, do livro O ódio e o perdão, e também buscará refletir sobre a temporalidade e a criatividade, baseando-se nas contribuições de Hannah Arendt e de Sidonie Colette.
Palavras-chave: Julia Kristeva; Paixão; Literatura; Filosofia; Maternidade.

Abstract: Considering the tension over the phallus primacy, according to Freud’s psychoanalytic heritage, I propose analyzing the motherhood concept from the passion characterized by this experience. For this, I look for some essays written by Kristeva, which pave the way for her reflections on maternal passion. In the cross between philosophy and literature, this essay analyses “the passion according to maternity”, from the book Hatred and Forgiveness, and will also seek to establish reflections on the temporality and creativity, based on Hannah Arendt’s and Sidonie Colette’s contributions.
Keywords: Julia Kristeva; Passion; Literature; Philosophy; Motherhood.

Recebido em: 29/04/19
Aceito em: 07/09/19

  • 1 Professora de literatura da Unipampa e do PPG em História da Literatura da FURG.

  • 2 “un commencement avant le commencement” (KRISTEVA, 2005, p. 154).

  • 3 “C’est le corp maternel qui permet à l’image du père de se distribuer dans l’histoire, d’entrer dans la chair et dans le visible” (KRISTEVA, 1998, p. 61).

  • 4 Apesar dos poucos estudos, Freud escreveu indispensáveis ensaios sobre o tema, os quais reforçam o “enigma” do feminino, sugerindo a busca de estudos por vir: Sexualidade feminina [1931] e Feminilidade [1932-1933].

  • 5 Para acompanhar a descrição, sugiro a consulta ao romance Possessões (KRISTEVA, 1996, p. 236-237).

  • 6 Conforme Contre la dépression nationale: “Chamo de vocação materna não o trabalho nele mesmo extraordinário da geratriz ou da mãe grávida, mas essa alquimia que conduz da biologia à significação, e que passa pela modulação do desejo em ternura, depois em representação-sentido-linguagem-pensamento” (KRISTEVA, 1998, p. 84).

  • 7 Conforme o capítulo “A negatividade segundo Melanie Klein” (KRISTEVA, 2000, p. 274-287) indicado por Kristeva no segundo volume gênio feminino. Sobre a posição depressiva e sua relação com a posição esquizoparanoide, consultar p. 107-132, do mesmo volume.

  • 8 Nesse artigo, apresentado no 11º Colóquio de Medicina e psicanálise, intitulado « Le statut de la Femme dans la médecine, entre corps et psyché » ocorrido em janeiro de 2010, em Paris, Kristeva reconhece no cuidado materno a possibilidade de abertura para a criatividade, que ela chama, poeticamente inspirada por Colette, de “eclosão” (KRISTEVA, 2007, p. 172-173). A alusão à eclosão já aparece no terceiro volume do gênio feminino, com as mesmas imagens poéticas florais e sua sugestão de recomeços. Retomo a passagem citada por Kristeva: “Faire peau neuve, reconstruire, renaître, ça n’a jamais été au-dessus de mes forces” (KRISTEVA, 2002, p. 563). No artigo “La passion selon la maternité” (KRISTEVA, 2005, p. 193), a fonte colettiana da “eclosão” data de 1928, ano de publicação de La naissance du jour, e uma de suas passagens reveladoras é recuperada por Kristeva para ilustrar esse processo de sublimação, que é a condição da escrita: “O instinto materno é uma grande banalidade” (COLETTE apud KRISTEVA, 2005, p. 193).

  • 9 A definição retorna, com algumas modificações, somada à esclarecedora informação de que a maternidade não é um instinto (podendo ser vivida, na sua paixão, também na adoção, com a ajuda de mãe de aluguel ou mesmo técnicas por vir e nas práticas de educação e ensino), no site da teórica, sob o título “La passion maternelle”, disponível <www.kristeva.fr/passion_maternelle.html>. Observa-se que essa definição reaparece, ligeiramente modificada, no artigo “La passion selon la maternité” (KRISTEVA, 2005, p. 185).

  • 10 Cf. o original de “La passion maternelle et son sens aujourd’hui”, de Seule une femme: “La maternité est une passion au sens où les émotions (d’attachement et d’aggressivité au foetus, au bébé, à l’enfant) se transforment en amour (idéalisation, projet de vie dans le temps, dévouement, etc.), avec son corrélat de haine plus ou moins atténuée. La mère est au carrefour de la biologie et du sens [...]” (KRISTEVA, 2007, p. 172-173).

  • 11 Cf. <www.kristeva.fr/passion_maternelle.html>. Eis a passagem de Colette escolhida por Kristeva: “L’éclosion possible, l’attente d’une fleur tropicale suspendait tout et faisait silence même dans son cœur destiné à l’amour”.

  • 12 Cf. <http://www.kristeva.fr/passion_maternelle.html>.