Siegfried Kracauer, crítico e historiador: extraterritorialidade e falsa consciência na ascensão do nazismo1

Rafael Morato Zanatto2
UNESP – FCL Assis
rafael_zanatto@hotmail.com

A atividade de Siegfried Kracauer nos estudos de cinema pode ser delimitada inicialmente em duas fases: a primeira, marcada pela atividade crítica à época da República de Weimar (1919-1933), imersa nos acontecimentos cotidianos; e a segunda, marcada pelo distanciamento temporal e pelo exílio imposto pela ascensão do nazismo ao intelectual judeu marxista. Ao tecer considerações sobre o conjunto da obra de Kracauer, Miguel Vedda observa a evidência de “profundas discrepâncias” entre a obra ensaística e literária que o autor produziu na juventude e o que escreveu em sua maturidade, mas ao mesmo tempo indica a importância de se levantar questões sobre o que persiste nos escritos tardios da disposição ensaística do crítico cultural do Frankfurter Zeitung. Segundo Vedda, não podemos encontrar nos trabalhos de Kracauer “[...] o redator de suplemento cultural que captava seus objetos em movimento e comentava os acontecimentos do dia a dia, mas um estudioso dedicado às investigações de grande fôlego, que mantém uma maior distância a respeito da experiência imediata” (VEDDA, 2010, p. 13).
A partir das sugestões de Vedda, propomos no presente artigo demonstrar como as críticas que Kracauer dirige aos filmes A rua (Die Strasse, 1923), de Karl Grüne e O último homem (Der Letzte Mann, 1924), de F. W. Murnau são centrais, nesse primeiro momento, no delineamento da concepção cinematográfica que o autor irá desenvolver na maturidade: a concepção de uma modalidade de história do cinema psicológica e social interessada em revelar os processos psicológicos subterrâneos que levaram a nação alemã ao nazismo.

Tédio e distração em A Rua

Em 1921, Kracauer inicia sua atividade como crítico cultural no Frankfurter Zeitung, onde produz um quarto do trabalho de sua vida ao ocupar a posição de cronista, ensaísta, crítico de cinema e de arquitetura, resenhista e comentador cultural (STALDER, 2003, p. 12). Nas críticas de cinema que publica no jornal, a abordagem psicológica e social empreendida por Kracauer se manifesta no comentário ao filme A rua (1923), de Karl Grüne, nos artigos Die Strasse (KRACAUER, 2004, p. 54-56) e Ein Film (KRACAUER, 2004, p. 56-58).
No comentário ao filme A rua (1923), Kracauer entrelaça forma e conteúdo ao narrar o enredo do filme: a história de um homem casado de meia idade que abandona por uma noite o que lhe parece um claustro – o lar burguês – para desfrutar dos prazeres e acasos que a rua pode lhe reservar. Na primeira crítica ao filme, publicada em 3 de fevereiro de 1924, Kracauer afirma que A rua (1923) “[...] representa o encontro da alma definhada (schmachtender Seele)” do homem casado com o “[...] apego ao inexistente, silencioso e horripilante” dos prazeres noturnos. Segundo o crítico, momentos específicos do filme que corroboram com o encontro entre a alma definhada e o inexistente “[...] [são dados] visivelmente nos tipos, aos quais todas as pessoas se apoderam quando perdem sua realidade e neles se movimentam através de sombras iguais ao mundo fantástico” (KRACAUER, 2004, p. 54).
Após o comentário inicial, Kracauer elabora uma precisa descrição de como as técnicas participam na representação deste mundo tentador, marcado por perigos, fantasias, um mundo em que a iluminação e os símbolos atuam decisivamente na produção de significados, como na cena em que a luz e as sombras da rua incidem no teto da sala e seduzem o filisteu, que se entrega à “[...] tentadora perda de sentido da vida caótica e oscilante”, enquanto sua mulher, em “ociosa solidão”, prepara o jantar (KRACAUER, 2004, p. 54).
Ao abandonar a vida doméstica e se aventurar em uma vida de possibilidades ainda não experimentadas, Kracauer observa que Karl Grüne, o diretor do filme, representa a rua através de pinturas futuristas que evocam um “saudosismo inoportuno”, ou seja, a tendência aberta por Caligari (1920), mas pondera seu comentário ao destacar que a opção estilística é adequada, porque apenas “[...] imagens fragmentadas como sonhos se satisfazem consumindo o interior perdido”, tal como aparece nas cenas em que “[...] o homem, como um sonâmbulo e vestido à moda antiga com casaca de algodão e cartola, caminha de rua a rua, perturbado e sozinho no meio da flutuação dos transeuntes e de sucessivos automóveis” (KRACAUER, 2004, p. 54-55).
O ritmo sucessivo da cena é comparado a um atar e desatar de nós, que não é capaz de transgredir os limites da aparência, como sugere ao analisar a cena em que o homem, ao se aproximar de uma mulher parada na esquina “é o símbolo dessa negação”, quando sua face se transforma repentinamente na morte através de um jogo de sombras. A morte está em todos os lugares, os próprios seres humanos são “mortos vivos”, dispostos eles próprios como “coisas inanimadas” (unbelebten Dinge), ricas em sugestões, como quando “[...] o piscar do letreiro de neon (Lichtreklame) simula o piscar de olhos” (KRACAUER, 2004, p. 55).
Apesar dos perigos da rua que o filme apresenta, o homem casado se aproxima de outra garota, que o apresenta ao seu alcoviteiro e seu comparsa. Em uma casa noturna, um burguês de província se junta ao grupo em uma mesa de jogo, um dos perigos que a rua pode abrigar ao anoitecer. Kracauer observa que no filme nem tudo é trágico ou fora de lugar, pois apesar de dar sorte para o azar, o filisteu prospera no jogo e na condição de vencedor, é atraído para o quarto de cortiço de sua acompanhante enquanto os vigaristas assassinam o burguês provinciano, que resiste ao assalto (KRACAUER, 2004, p. 55). Deixado por alguns instantes no quarto, enquanto a mulher e seus comparsas abandonam a cena do crime, o homem casado é apontado como o principal suspeito após o corpo do burguês de província ser encontrado pelo senhor cego que ali vivia e pela menina sob seus cuidados, fruto da relação amorosa entre a moça e um dos vigaristas.
Na delegacia, desolado pelas acusações, o filisteu chega à beira do suicídio, mas é salvo ao acaso, quando a menina pergunta ao pai (assassino) porque havia saído às pressas de casa. Para os oficiais, essas informações bastaram para prender os vigaristas e devolver o filisteu à rua, agora desencantado com seus poderes de sedução exercidos pela rua e por sua vida caótica. Segundo Kracauer, a menina, “[...] que não conhecia o mundo, é o que realmente existe nessa grande confusão”, é “[...] o único acontecimento que está sem o horror do vazio e, portanto, que escapa da estrutura da cena”, enquanto que a polícia, “[...] bastante lógica em sua providência, apreende completamente a vida exterior” (KRACAUER, 2004, p. 55).
Após ser inocentado, o homem casado regressa à casa pela manhã ao transitar pela rua agora completamente deserta, repleta de “pedaços de papel girando” que sugerem, assim como nos parece o próprio homem, destroços da noite anterior. Ao chegar à casa, o marido recebe de sua mulher ainda sonolenta uma sopa requentada, e com ela senta-se na sala, olhando mais uma vez para a janela que havia propiciado sua saída na noite anterior, só que agora ele não vê mais um universo de possibilidades inexploradas, mas um mundo desencantado “[...] com o surgimento do entendimento” (KRACAUER, 2004, p. 55). Como comentário final ao filme, Kracauer considera A rua (1923) uma “proeza” de Karl Grüne e seus colaboradores, responsáveis pela execução de performances “perfeitamente teatrais”, nas quais “[...] olhos e gestos dizem tudo o que as causas expressam e se estabelecem completamente, até mesmo em uma palavra supérflua”, acentuando que “[...] obras cinematográficas deste gênero pertencem ao futuro” (KRACAUER, 2004, p. 56).
Distante de esgotar o grande conjunto de possibilidades de interpretação sugeridos pelo filme, Kracauer publica no dia seguinte, em 4 de fevereiro de 1924, o artigo Ein Film, no qual afirma que A rua (1923) “[...] é uma das poucas obras de direção de cinema modernas em que um objeto toma uma forma que apenas o filme pode conceber, realiza possibilidades que apenas por ele podem ser realizadas” (KRACAUER, 2004, p. 56).
Ao discutir a natureza das produções cinematográficas, Kracauer compreende que uma das exclusividades cinematográficas na representação dos objetos deriva da montagem, que incorpora e expõe os fragmentos do filme, “[...] desencadeando-os um após o outro [die hintereinander abwirbeln]”, unindo mecanicamente os fragmentos em “[...] um mundo mudo, no qual nenhuma palavra passa de ser humano a ser humano, mas é na incompletude de palavras que as impressões óticas falam por si mesmas”. Para Kracauer, estava evidente que quanto maior fosse a reprodutibilidade dos fragmentos representados “[...] no conjunto de impressões simultâneas”, maior é sua correspondência com sua “associação técnica” (KRACAUER, 2004, p. 56).
Para o crítico, há no filme uma profunda unidade entre forma e conteúdo, ao compreender que a montagem dos fragmentos estreita “[...] a relação com uma vida que meramente se esgota em acontecimentos externos”. Trata-se, para o crítico, de “[...] uma vida desprovida de substância, vazia como uma lata de estanho”, na qual os indivíduos não são capazes de conhecer o interior dessa associação de imagens. Conhecem apenas os “[...] acontecimentos pontualmente”, como “[...] caleidoscópicos que sempre incorporam novas séries de imagens. Apenas a superfície lhe é voltada, e na agitação existencial frouxa das larvas, na confusão da mistura atômica, ele se encontra novamente consigo mesmo” (KRACAUER, 2004, p. 56). Kracauer conclui que no filme, “[...] a rua da grande cidade é caracterizada pelo cenário tal como vida ilusória”, onde pessoas frustram-se como quer o acaso, “[...] controlam olhares e gestos e desintegram os mundos” (KRACAUER, 2004, p. 56), “[...] um caos de almas reificadas e coisas aparentemente animadas” (KRACAUER, 2004, p. 54).
No comentário à obra de Kracauer, Miriam Hansen observa que as críticas ao filme A rua (1923) “[...] dão testemunho do nascimento de sua teoria do cinema a partir do espírito de uma filosofia da história ou, mais precisamente, de uma teologia da história” (HANSEN, 2009, p. 11), afirmação que sustenta ao demonstrar como as críticas de Kracauer ao filme encontram-se diretamente relacionadas ao que o crítico havia delimitado anteriormente no texto Sociologie als Wissenschaft (Sociologia como ciência, 1922), ao compreender a rua cenográfica como expressão do caos interior do personagem, um sem-teto transcendental [tranzendentale Obdachlosigkeit] (HANSEN, 2009, p. 12-13). Segundo Jordão Machado, a expressão corresponde ao sem-teto transcendental ou ao apátrida de Teoria do romance (1916), do jovem Lukács, no qual define “[...] o personagem problemático do romance moderno envolto em meio a uma crescente falta de sentido, caracterizado pela cisão entre interior e exterior, entre eu e mundo etc.” Ao estabelecer a relação entre Lukács e Kracauer, Jordão Machado acentua que a representação do apátrida transcendental irá se repetir posteriormente na obra de Kracauer, particularmente no texto Der Detektiv-Roman (O romance policial, 1925) (MACHADO, 2007).
A partir da trilha aberta por Hansen e Machado, podemos afirmar que além dos textos Sociologia como ciência (1924), A rua (1923), Romance policial (1925) e Ornamento da massa (1927), Kracauer retrata a desintegração de um mundo que se manifesta em uma multiplicidade de fenômenos no artigo Tédio, publicado em novembro de 1924. No artigo, Kracauer explora o tema ao afirmar que o próprio mundo “[...] se ocupa de que alguém não chegue a si”, não há “um asilo permanente”, campo ideal para o florescimento do tédio, retratado pelo perambular na noite repleta de prazeres tal qual havia observado no comentário ao filme de Grüne (KRACAUER, 2009, p. 352).
No artigo, a grande similaridade entre o caso do homem casado do filme e o delineamento do conceito de tédio em relação à dissolução do mundo exterior e a suplantação desse vazio espiritual pelo asilo encontrado nos prazeres da noite, ao incitar “[...] o espírito com mil lâmpadas elétricas, das quais este se constitui e se reconstitui a si próprio em frases resplandecentes”, é tratado por Kracauer como um instrumento de massificação desse mundo de fantasias arquitetadas para ocupar o vazio existencial provocado pela dissolução do mundo exterior, no qual o indivíduo “[...] se permite a si próprio ser girado por uma manivela multiforme no cinema”, incapaz de resistir às “metamorfoses” provocadas pelas imagens de outros mundos, de fantasias e exotismos que o asilam de sua realidade, pois quando “[...] as imagens surgem uma depois da outa não há mais nada no mundo além de suas evanescências. Esquece-se de si mesmo em um processo de basbaqueamento” a partir da representação nas telas do cinema de uma vida que “não pertence a ninguém e que exaure a todos” (KRACAUER, 2009, p. 352-353). No comentário ao filme, Kracauer analisa a correspondência entre o conteúdo do filme e sua forma, entre a análise social e estético-imanente da história de um indivíduo em crise existencial, tema do filme O último homem (Der Letzte Mann, 1924), de F. W. Murnau.

Falsa consciência em O último homem

No Frankfurter Zeitung, Kracauer escreve dois artigos sobre o filme, ambos com o título Der Letzte Mann. No primeiro, publicado em 10 de fevereiro de 1925, o crítico descreve a atmosfera, visual e sonora da première, evidenciada no momento em que o público em trajes de gala reage ao barulho das cortinas que antecede a entrada de Emil Jannings, “[...] o gigantesco fenômeno cinematográfico, pequeno arquétipo (Urbild) com sua grandiosa aparência cinematográfica (Filmerscheinung), emerge tempestuosamente aplaudido”, antes de discursar brevemente sobre o filme (KRACAUER, 2004, p. 119).
Ao sintetizar o discurso do protagonista, Kracauer detém-se à discussão sobre a universalidade do arquétipo do porteiro, com o qual Jannings se sentia “interiormente habituado” e sugere que o filme se liberta, a partir da ação do romance, de “[...] esquemáticas figuras vulgares, alegrias e sofrimentos da criatura que ambiciona envolver”, como o arquétipo do envelhecido porteiro, que havia há pouco conquistado o sucesso em Nova York. Assim como a rua e o arquétipo do burguês entediado que se lança aos prazeres e perigos da noite, O último homem (1924) “aponta o caminho para o futuro”, paralelo com o qual podemos afirmar a adesão de Kracauer à concepção de Jannings sobre os personagens de cinema. Após destacar o conteúdo do discurso do ator na estreia do filme em Frankfurt, onde pode sentir “durante e após a estreia vibrantes aplausos” para esse filme notável, que se “[...] desenrolou ininterruptamente, um incrível desempenho da invenção ótica, da representação artística e da técnica” (KRACAUER, 2004, p. 119).
Ao preparar o terreno com o artigo introdutório, que apresenta ao leitor informações sobre a atmosfera da estreia, o sucesso internacional e a concepção técnica e artística do filme, Kracauer executa uma estratégia narrativa que eleva o interesse e a expectativa dos leitores de sua coluna, preparando-os para um artigo mais denso, no qual irá apresentar a história do velho porteiro do hotel Atlantic, o mais antigo funcionário e o primeiro na hierarquia. Como fica evidente com a riqueza de detalhes e adornos que carrega seu uniforme, o uniforme é a base de sua autoridade no emprego e no cortiço em que vive, onde transita altivo entre os vizinhos, para os quais distribui gracejos e continências (KRACAUER, 2004, p. 120).
Após introduzir o enredo, Kracauer enfatiza a inversão da ordem das coisas quando o orgulhoso porteiro, já castigado pela idade, encontra-se incapaz de executar as atribuições de sua função. A reificação das relações sociais de trabalho se manifesta no filme com o descenso do personagem para a última posição da hierarquia, ao ser transferido para a limpeza e assistência no banheiro do hotel. A decadência no emprego reverbera no eixo familiar e no cortiço, de onde é, pelas forças das circunstâncias, expulso, precipitando-se de volta para o úmido e escuro local de trabalho, onde apoiado em sua cadeira, adormece (KRACAUER, 2004, p. 120).
Kracauer acentua que até esse momento, o filme já havia satisfeito todos os critérios para ser considerado “genuinamente realista (Realität Wirklichkeit)”, mas não satisfeito, o autor conta um novo final com grande liberdade, que merece “admiração”, ao conceber um “esplendoroso epílogo” que oferece uma “última justiça” ao último homem, mesmo sendo “bom demais para ser verdade”, um acaso, pautado mais na providência no que nos “encadeamentos aleatórios da realidade”. Segundo o crítico, “[...] graças às providenciais intervenções dos irônicos autores o último homem torna-se o primeiro através de uma herança, elevado ao primeiro, a um Creso” (KRACAUER, 2004, p. 121). Ao descrever a atmosfera ilusória, ou o “mundo de ilusões” do hotel Atlantic, Kracauer se atém ao momento em que o porteiro novo rico, já em poder de suas posses, “[...] janta gloriosamente, cumula o substituto no banheiro com bens mundanos, distribui gorjetas aos uniformizados e com seu acompanhante corcunda, abandonam o hotel triunfantes em uma carruagem” (KRACAUER, 2004, p. 121).
Ao ser alçado à condição de herdeiro, o antigo porteiro do hotel não retorna a sua condição original como o primeiro na hierarquia dos porteiros, mas como hóspede, quando o saguão não lhe é mais que um mero ambiente de transição entre a rua e o restaurante do hotel. A mobilização da história para a esfera da imaginação, da fábula, aparece como alternativa ao final infeliz do porteiro, uma alternativa que conforte o próprio autor diante da trágica realidade de seus personagens, uma justiça final que não substitui o acontecimento, uma “poesia de imagens” que “[...] se despede na fábula ao invés de ser seu primeiro destino”, que não suplanta a realidade, o acontecimento, mas que “reside em seu interior” (KRACAUER, 2004, p. 121), ou seja, é uma história inverossímil que contempla uma última esperança, um alento para os espectadores comovidos ao extremo com o destino do personagem. Para Kracauer, a história de Carl Mayer era “[...] uma fábula que se faz sem imagem própria, que mais cedo Dostoiévski poderia ter escrito, ele que conhecia o destino das pessoas pobres – uma história da tristeza, alegria e misericórdia” (KRACAUER, 2004, p. 121).
Ao comentar o roteiro de Mayer, Kracauer acentua que a parte inverossímil da história não afasta as obras do propósito realista que se encontra presente na concepção narrativa do filme, na função universal de seu arquétipo e seu tema. Para Kracauer, “[...] o próprio desenvolvimento ótico da falta de palavras é transformado unicamente de acordo com a forma artística”, ou seja, há no filme a adequação entre a forma e o conteúdo, narrada harmoniosamente sem o auxílio das cartelas, como sugere o crítico ao demonstrar que “[...] a representação súbita da oposição do vestíbulo do hotel e do cortiço fala sua própria língua, que a arquitetura expressa sem comentários intencionais uma sucessão de situações” que obtêm “significado constitutivo” a partir das possibilidades que “apenas o filme dispõe” (KRACAUER, 2004, p. 121).
No comentário, Kracauer descreve a cena em que o velho porteiro lê sua demissão e as letras desfocam para afirmar que as imagens expressam seus sentimentos, ou quando no casamento, ao beber demais e cair no sono, sentando em uma cadeira, adormece com a música que vem da rua. O desfocar do músico e seu instrumento musical embala o sono do embriagado e o transporta para o mundo dos sonhos, no qual a arquitetura expressionista se realiza integralmente na primeira cena, quando uma transposição de imagens nos mostra a imensa porta giratória do hotel em sucessivos desfoques que nos transportam para a atmosfera irreal, na qual o porteiro, trajado com seu distinto uniforme, levanta com apenas suas forças uma imensa mala, a mesma que outros seis carregadores não haviam conseguido. Ele a levanta como se fosse um balão de ar, na qual a oscilação da câmera em travelling complementa a atmosfera onírica. Nas palavras de Kracauer, “[...] desaparecida a separação entre a contestável realidade e o comovente malabarismo da existência monárquica do velho, a vista recupera completamente o teor”, afastando o filme do conto de fadas, no qual o epílogo “irreal e divertido” deveria ser elaborado como antecipação ao mundo real (KRACAUER, 2004, p. 121).
Após mesurar os aspectos sociais e estético-imanentes do filme, Kracauer salienta que a encenação de Emil Jannings é “[...] o centro da poesia. Seu porteiro é uma figura inesquecível. Como ele corta sua barba e a remove com majestosa grandeza, como ele desmorona, quando lhe arrancam a honrosa vestimenta”, levando-o a furtá-lo para manter as aparências no dia do casamento de sua filha. Kracauer associa o andar cambaleante e miserável do personagem quando veste o uniforme ao fato de que ele não lhe pertence mais, de tal modo que parece estar vestido com “[...] uma capa estranha (in fremde Hülle)”. Assim como o homem de A rua (1923), o porteiro do filme é “[...] um exilado, que hesita despender sua vergonhosa função no banheiro e que mais tarde hospeda os companheiros em sua impotente salvação (Erlöstheit)” (KRACAUER, 2004, p. 122).
O porteiro do filme é um exilado diante da dissolução de sua falsa consciência com seu rebaixamento na hierarquia, que antes se manifestava na ostentação de seu uniforme, no respeito que gozava entre os funcionários e seus vizinhos, ou nos luxos do mundo burguês que povoam seu imaginário e que acreditava compartilhar, e que reverbera no cortiço com a crueldade dos vizinhos para com o ex-símbolo de autoridade, ao perderem como ele os laços que também os conectavam com o mundo do hotel. Rejeitado pela família e satirizado pela vizinhança, o personagem exila-se em sua solidão, torna-se ele mesmo um apátrida.
No comentário ao filme, Kracauer compreende o papel da montagem na produção de significados, ou através da oposição de cenários e situações que se unificam formalmente em uma poesia de imagens na qual o centro é o porteiro, além de mostrar que o epílogo é um conto de fadas às avessas, cuja realidade do pobre apátrida é incapaz de suplantar. Ao contrário dos happy ends dos filmes estadunidenses, o filme de Murnau é autêntico, ao desvelar a partir do declínio hierárquico do empregado a falsa consciência de classe dos estratos médios, tema que se desdobra no estudo cultural que realiza, quatro anos depois (1929) sobre a cultura dos empregados, e sua falsa consciência.

Distração e falsa consciência no cinema

A partir do comentário ao filme, Kracauer aprofunda sua concepção de cinema, na qual manifesta sua clara adesão à autenticidade dos filmes e identifica nas produções cinematográficas o meio de propagação de uma cultura massificada. No texto “As pequenas balconistas vão ao cinema” (Die kleinen Ladenmädchen gehen ins Kino), publicado em março de 1927, Kracauer estabelece um retrato do público de cinema, formado basicamente por “[...] operários e pessoas simples, que conjeturam sobre as condições nos estratos superiores da sociedade”, como as inúmeras tentações e perigos que a vida noturna reserva a um homem consumido pelo tédio do casamento burguês – tema de A rua (1923), ou o declínio do velho porteiro de O último homem (1924). Kracauer compreende o cinema como um “espelho da sociedade constituída”, articulado entre o propósito de lucro das companhias produtores e o estudo do gosto do público de cinema. Estava claro que os filmes “em sua totalidade reafirmam o sistema dominante”, ao compreender que “[...] os filmes feitos para as classes mais baixas da população são sempre mais burgueses do que aqueles para o público mais refinado”. São filmes que tocam em “pontos de vista subversivos sem explorá-los”, mas que ao mesmo tempo “[...] introduzem uma forma de pensamento respeitável” (KRACAUER, 2009, p. 311).
Nem os filmes sensacionalistas ou irrealistas escapam dessa designação. São esses filmes também expressões sociais; mesmo quando “[...] pintam de rosa as instituições mais negras e borram de graxa as vermelhas”, são reflexos da sociedade: “[...] quanto mais incorretamente apresentam a superfície das coisas, tanto mais corretos eles se tornam e tanto mais claramente refletem o mecanismo secreto da sociedade”. Como exemplo, Kracauer cita “as fantasias idiotas e irreais” desses filmes como manifestação dos “[...] sonhos cotidianos da sociedade, nos quais se manifesta a sua verdadeira realidade e tomam forma os seus desejos de outro modo represados” (KRACAUER, 2009, p. 313).
Após tratar dos sonhos secretos do público de cinema como um verdadeiro “álbum de exemplos”, como o da faxineira em se casar com um empresário ou o do empregado em ser promovido, eles expressam no conjunto a estratégia da sociedade em “[...] revestir de romantismo lugares de miséria para perpetuá-los”, ao passo que tranquiliza a consciência das classes dominantes ao satisfazer seu “sentimento de compaixão”. Como resultado dessa estratégia, Kracauer afirma que “[...] a salvação de alguns indivíduos é uma via conveniente para coibir o salvamento de toda a classe”, ao inocular no público “[...] conhecimentos nunca suspeitados sobre a miséria humana e a bondade que vem do alto” (KRACAUER, 2009, p. 316-317).
A falsa consciência de classe que se dilui mediante o declínio do pobre porteiro e que se afirma com sua ascensão no epílogo irreal no filme de Murnau se manifesta no volume de filmes médios produzidos para atender o gosto do público de cinema, caracterizado em essência pelos sonhos de ascensão social característicos dos estratos médios, como compreende Kracauer em sua análise das expectativas das balconistas que vão ao cinema.
Assim como outras facetas de seu trabalho apontadas por Vedda (2008), Machado (2007) e Hansen (2009), será no livro Die Angestellten (Os empregados, 1930) que Kracauer irá harmonizar os conceitos relativos aos impactos do tédio e da distração no apátrida transcendental delineado nas críticas ao filme A rua (1923) e à falsa consciência de classe, desmascarada e fantasticamente pujante em O último homem (1924), característica que aparece destacada no prefácio da primeira edição de Os empregados (1930), escrita por Walter Benjamin, no qual afirma que Kracauer desmascara com seu livro a falsa consciência de classe, “mediada, inapropriada e tardia” dos estratos inferiores da sociedade (BENJAMIN, 2008, p. 94).
Ao analisar o livro, Vedda demonstra como Kracauer empreende um mosaico para reunir essa grande multiplicidade de elementos dispersos com o fim de revelar a “[...] índole contraditória, tal como a transitoriedade, de uma realidade abalada”. Para Vedda, “[...] a súbita confrontação de elementos dissimiles recorre Kracauer em Os empregados para fazer manifestos – a partir do estranhamento – os atributos da vida dos empregados: uma vida marcada de contraditoriedade e dispersão” (VEDDA, 2008, p. 248).
No décimo capítulo do livro, “O asilo para os sem-tetos”, Kracauer aprofunda sua análise ao comparar a consciência de classe dos empregados à dos operários: “O operário médio, o que alguns pequenos empregados habitualmente olham com altivez, está acima destes não apenas em termos materiais, mas também em termos existenciais”. Para o autor, os empregados encontravam-se “espiritualmente desamparados”, à medida que “os sentimentos burgueses” que os habitavam haviam ruído com a crise econômica, e com ela as possibilidades de ascensão social, nas quais se enraízam os fundamentos da classe dos empregados (KRACAUER, 2008, p. 205). Segundo Kracauer, os empregados padecem de uma falsa consciência que se consolida a partir da apropriação de “necessidades culturais” da cultura burguesa, como a calefação e a iluminação de suas residências, transporte, saúde, tabaco, restaurantes, acontecimentos culturais e sociais: “[...] inconscientemente, a sociedade se ocupa de que esta demanda de necessidades culturais não conduza à reflexão sobre as raízes da genuína cultura, e com ela, a uma crítica das circunstâncias graças às quais exerce poder”, ao fomentar o “impulso de viver no brilho e na distração” (KRACAUER, 2008, p. 206-207).
No comentário a Os empregados (1930), Belke afirma que ao empregar o conceito de distração (Zerstreuung), Kracauer entende que o cinema, ao distrair os espectadores, “[...] os exila. Os confina a ‘uma exterioridade do mundo aparente, muda’, na qual o espírito já não está presente e o sujeito extraviou-se a si mesmo” (BELKE, 2008, p. 22). Segundo Machado, será também no livro sobre os empregados, sobre “seu ser e sua (falsa) consciência”, que Kracauer estabelece as bases de sua “interpretação original” do nazi-fascismo que desenvolve a partir de seu exílio parisiense e que mais tarde irá culminar “[...] nos estudos sobre os filmes de propaganda de guerra e dos cinejornais nazistas elaborados nos Estados Unidos em 1942 e 1943” (MACHADO, manuscrito, p. 108).
A partir do estudo do público de cinema, de seu gosto e de sua consciência, Kracauer reflete sobre qual seria o papel do crítico diante da compreensão do cinema enquanto fenômeno social, posição já manifestada em seus primeiros trabalhos. No ensaio “Sobre a tarefa do crítico de cinema” (1932), Kracauer advoga por uma postura crítica social e estético-imanente capaz de decifrar “a substância da vida moderna [...] a partir das formas mais superficiais”. Segundo Vedda, “Kracauer entende que a verdade não se identifica com uma superfície oculta e inacessível à percepção sensorial” (VEDDA, 2008, p. 244). Tal compreensão motiva o autor a procurar respostas sobre o papel do cinema na massificação da cultura, processo no qual o filme se apresenta como uma mercadoria como as outras, que pretende ser consumida. Para tanto, Kracauer compreende que como mercadoria, o filme é realizado para dialogar e satisfazer os desejos e expectativas do público – sejam elas sensações inteiramente esclarecidas ou não (KRACAUER, 1932).
Ao compreender a relação que os filmes estabelecem com o público, Kracauer atribui importância sociológica às produções cinematográficas medianas, que apesar de não serem obras, tampouco são “[...] mercadorias indiferentes que se pode julgar de modo satisfatório a partir puramente de critérios de gosto. Pois estas produções exercem funções sociais extremamente importantes”. Para o crítico, estava evidente que quanto mais os filmes “[...] são pobres em conteúdos que mereçam um julgamento de ordem estritamente estética, mais peso adquirem do ponto de vista de seus significados sociais” (KRACAUER, 1932). Com essa posição, Kracauer acentua que a tarefa do crítico de cinema reside na análise de intenções sociais que frequentemente se afirmavam dissimuladamente nos filmes medianos, com o fim de lançar luz às intenções sociais ocultas, “por mais que elas se furtem”:

O crítico tem que mostrar, por exemplo, qual imagem da sociedade compõe os inumeráveis filmes em que uma empregadinha ascende às alturas sociais insuspeitas, ou que um grande senhor qualquer além de ser rico, é também cheio de coração. Além disso, deverá confrontar o mundo aparente dos filmes, deste gênero ou de outros, com a realidade social, e com isso revelar em que medida estes a falsificam. Resumindo, um crítico de cinema digno desse nome só é concebível como crítico da sociedade. Sua missão: desvelar as representações e ideologias sociais ocultas nos filmes medianos e, através desse ato, romper a influência dos filmes em todos os lugares onde isso for necessário. (KRACAUER, 1932)

Ao comentar os filmes, Kracauer entende que crítica e sociedade são indissociáveis, como salienta ao afirmar que o conteúdo dos filmes medianos corresponde aos anseios das massas, possuem ao mesmo tempo intenções sociais ocultas, às quais analisará sistematicamente em seu livro De Caligari a Hitler (1947), fonte para entender o processo que levou os alemães ao nazismo. Diante desta perspectiva crítica, os filmes O último homem (1924) e A rua (1923) são considerados autênticos na medida em que retratam a crise do indivíduo e a falsa consciência de classe presente na sociedade em que Kracauer se inscreve e comenta nas páginas do Frankfurter Zeitung. Trata-se de por em curso uma análise sociológica do cinema que considere, em igual medida, uma “análise estético-imanente” (KRACAUER, 1932) capaz de compreender o cinema como um fenômeno social de grande importância, que sob o nazismo alcançaria novos desdobramentos na produção de propaganda voltada a preencher o vazio com os conceitos do ideal existencial nazista.

Revendo filmes antigos

A partir da ascensão do nazismo e da perseguição ideológica e racial, Kracauer abandona a Alemanha em 1933 e parte para o exílio em Paris, onde reside até 1941, ao ser obrigado a fugir para os Estados Unidos mediante a derrota francesa e o estabelecimento do regime de Vichy. Ao examinarmos a modalidade crítica desenvolvida por Kracauer à época do Frankfurter Zeitung, percebemos como há uma clara adequação dos fundamentos críticos à tarefa do agora historiador de cinema na formulação da tese central de seu livro De Caligari a Hitler (1947). O ponto intermediário desse processo, o momento em que o crítico irá se tornar historiador, ocorre no exílio, ao redigir a série Wiedersehen mit alten Filmen (Revendo filmes antigos, 1939), publicada no jornal suíço Baseler National Zeitung. Segundo Jordão Machado, a série de sete artigos dedicados aos filmes antigos é o primeiro trabalho em que Kracauer analisa com distanciamento histórico a produção cinematográfica e acentua que o texto Der expressionistische Film, o quinto da série, publicado em 2 de maio de 1939, apresenta as linhas gerais que Kracauer irá adotar na concepção do livro De Caligari à Hitler (MACHADO, 2007, p. 200). Em O cinema expressionista (1939), Kracauer avança na definição de uma sociedade em crise, anteriormente delineada em seus estudos sobre tédio, distração e falsa consciência impactada pela dissolução do mundo exterior.
Ao examinar o contexto, Kracauer aprimora suas ideias sobre a importância do cinema como fonte de pesquisa não apenas sociológica e psicológica, mas histórica de toda uma nação. Como Kracauer sustenta já em “O ornamento da massa” (1929), “[...] o lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinado de modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas manifestações de superfície”, pois “[...] em razão de sua natureza inconsciente, garantem um acesso imediato ao conteúdo fundamental do existente” (KRACAUER, 2009, p. 91).
Diante desta constatação prévia, estava mais do que evidente para o historiador em 1939 que “[...] todos os filmes alemães dos primeiros anos após a guerra satisfazem a patologia da alma e substituem ao mesmo tempo o ambiente, tanto o habitual como o inusitado através de imagens, cada uma independente do eu”. Segundo Kracauer, ao negar o ambiente, essas imagens “[...] parecem ser elas mesmas uma monstruosidade da alma”, disseminam o medo em filmes nos quais o público sente “[...] o choque das guerras perdidas nos ossos, a guerra continua no íntimo, a inflação arruína a pequena e média burguesia, e quanto mais o inevitável cresce, mais se propaga um sentimento infernal de insegurança” diante de uma realidade com a qual não se poderia mais contar, ao compreender que as “[...] cercas firmes, a existência anteriormente limitada foi destruída. Tudo parece exterior, para que o caos seja transformado em um sonho ruim, um pesadelo sobre a população sobrecarregada”. Tal estado de ânimo é observado por Kracauer não apenas no cinema, mas também nas peças de teatro, pinturas e produções literárias à época deste “pesadelo”, demasiado intenso para que os alemães, “[...] que sentiram desde sempre pouca inclinação para a formação cultural, ficarem sóbrios para explicar a realidade social” (KRACAUER, 2004, p. 267). Ao comparar o texto de 1939 ao livro De Caligari a Hitler (1947), Jordão Machado acentua que “Kracauer utiliza não só argumentos semelhantes de sua análise cáustica de seu livro de 1947, mas frases idênticas” (MACHADO, 2007, p. 200), dada a importância dessa tese para formulação de seu livro posterior.
Kracauer estrutura a narrativa histórica de seu artigo a partir dos filmes O gabinete do dr. Caligari (1919), O golem (1920), O gabinete das figuras de cera (1924), Sombras (1923), A rua (1923) e O último homem (1924). A seleção é importante, pois os três primeiros filmes encontram-se em profundo diálogo com a pintura, expressão ortodoxa do caligarismo, enquanto, Sombras (1923), A rua (1923) e O último homem (1924) apresentam laços profundos com a realidade, a começar pelo filme A rua (1923), “[...] uma obra que já trai claramente a tendência pelo realismo”, se compreendermos, como Kracauer, que “[...] o expressionismo é o abrandamento da câmera, aliado a aspectos desconhecidos da realidade”. Dentro dessa perspectiva, os filmes A rua (1923) e O último homem (1924) exploram temas conhecidos da realidade através da montagem e do movimento de câmera. Podemos supor que são estes filmes de transição, como destacou Kracauer, ao acentuar que as “[...] imagens imaginárias tornam-se cenas dramáticas (Bühnenstaffagen) que compreendem a estilização dos gestos como espasmos”, quando após 1923, o pânico já havia sido afastado (KRACAUER, 2004, p. 267), percepção que persiste ao balizar entre Caligari e O último homem a dissolução do mundo objetivo e a retomada de assuntos reais, o sair da concha, do abrigo da distração e da falsa consciência, que no conjunto sustentam a abordagem social e psicológica do livro De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão (1947).

De Caligari a Hitler

O livro de história do cinema foi escrito em Nova York e reúne não apenas informações presentes nos artigos escritos à época do Frankfurter Zeitung, mas também pesquisas em livros de cinema de autores contemporâneos, depoimentos pessoais, entrevistas e críticas publicadas em jornais e revistas de cinema alemãs, inglesas, francesas e estadunidenses, ou ainda, ao rever os filmes antigos, quando possível. Ao examinar o prefácio do livro De Caligari a Hitler (1947), notamos a persistência em sua crítica histórica de um procedimento social estético-imanente articulado para revelar, a partir dos filmes, tendências presentes na psicologia social na República de Weimar que participaram da mobilização das massas e sua extraterritorialização como fundamento de sua precipitação ao nazi-fascismo. Com o livro, Kracauer pretende contribuir para os estudos sobre o comportamento das massas e para a realização de filmes que poderiam colocar efetivamente em prática os objetivos culturais das Nações Unidas. Talvez Kracauer se refira ao congresso da Unesco Media of Mass Communication Committee Documents and Meetings, realizado um ano antes do lançamento do livro, em 1946 (KRACAUER, 1988).
Logo na introdução, Kracauer comenta algumas literaturas que tratavam o cinema alemão apenas a partir da abordagem estética, como se os filmes fossem “estruturas autônomas da sociedade”. Oferece como exemplo o livro de Paul Rotha, The film till now: a survey of the cinema (1930), em que se restringe o comentário às contribuições estéticas da escola alemã, mas também limitado “[...] a um mero esquema cronológico”. A crítica de Kracauer prepara o terreno para estabelecer a máxima de seu livro: “[...] só se pode compreender totalmente a técnica, o conteúdo da história e a evolução dos filmes de uma nação relacionando-os com o padrão psicológico vigente nesta nação”. Dentre tantas as atribuições do crítico e historiador, o cinema foi escolhido para investigar a história recente da República de Weimar diante da constatação de que não apenas os filmes refletem a mentalidade dessa nação, mas também o fazem de maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico, porque o filme não é para ele um produto individual, mas coletivo, destinado ao público com o qual pretende satisfazer para alcançar ao sucesso de bilheteria (KRACAUER, 1988, p. 18).
Kracauer examina o poder do filme em mobilizar os anseios das massas e considera que, apesar das qualidades inerentes da propaganda, esta só se efetiva se os ânimos do público já tenham começado a mudar, seja por uma característica nacional profunda, seja fruto de intensiva campanha de outras mídias, como “[...] revistas populares e programas de rádio, best-sellers, anúncios, modismos na linguagem e outros produtos sedimentares da vida cultural de um povo” que poderiam fornecer ao historiador “[...] informações valiosas sobre atitudes predominantes, tendências internas difundidas. Mas o cinema excede todas as mídias”. Isso decorre do fato de que ao esquadrinhar o mundo visível, os filmes refletem dispositivos psicológicos ocultos, ou, em seus próprios termos, “[...] essas profundas camadas da mentalidade coletiva que se situam mais ou menos abaixo da dimensão da consciência” (KRACAUER, 1988, p. 18).
Ao compreender que “[...] a vida interior se manifesta em vários elementos e conglomerados da vida exterior”, Kracauer pensa historicamente o cinema em relação à sociedade, a fim de revelar elementos propositais ou involuntários de uma mentalidade coletiva, “[...] especialmente naquelas informações superficiais quase imperceptíveis que formam uma parte essencial da linguagem do cinema”, porque, ao gravar o “mundo visível”, os filmes oferecem “[...] a chave de processos mentais ocultos”, sejam eles filmes documentais ou ficcionais. Ao estabelecer considerações dessa ordem, Kracauer entende que os filmes estão repletos de “hieróglifos visíveis” que complementam as histórias e ajudam a revelar a “dinâmica despercebida das relações humanas” (KRACAUER, 1988, p. 18).
Em seu texto posterior, “Os tipos nacionais tal qual Hollywood os apresenta” (1949), Kracauer destaca que a percepção do objeto antevisto por seu produtor, assim como a recepção deste pelo espectador engendra um conjunto de signos que seriam percebidos a partir da composição sociocultural de um povo. Se tudo o que conhecemos nada mais é do que representações produzidas socialmente, “[...] percebemos todos os objetos numa perspectiva que nos é imposta não só pelo nosso meio, mas também por tradições inalienáveis” (KRACAUER, 1973, p. 303). Essas tendências latentes da opinião pública apenas se materializariam, segundo Kracauer, quando deixam seu estado de crisálidas; precisariam ser identificados e formulados para serem reconhecidos (KRACAUER, 1973, p. 322).
No texto, Kracauer pondera o alcance da abordagem científica no estudo do fenômeno cinematográfico, ao considerar que “[...] na cadeia de motivações as características nacionais” podem ser compreendidas como efeitos de ambientes naturais, experiências históricas, condições econômicas e sociais, que provocam reações psicológicas análogas em toda a parte. O crítico estava convencido de que em qualquer época, as “[...] tendências psicológicas frequentemente adquirem vida independente e, em vez de mudarem automaticamente de acordo com as circunstâncias, se tornam molas essenciais da evolução histórica”. Em uma sociedade atravessada pela crise política, econômica ou mental, estes “dispositivos coletivos” receberiam novos impulsos em casos de mudança politica radical, por compreender que “[...] a dissolução de sistemas políticos resulta na decomposição de sistemas psicológicos e, no tumulto subsequente, atitudes internas tradicionais, agora liberadas, são impelidas a se tornarem manifestas, sejam elas combatidas ou apoiadas” (KRACAUER, 1973, p. 323).
No conjunto de seu estudo, Kracauer redige uma história psicológica da sociedade alemã empregando como fonte principal os filmes produzidos à época da República de Weimar (1919-1933), nos quais podemos observar a persistência da combinação entre a análise psicológica, social e estética, um método de análise social e estético-imanente que acompanha o crítico em seu exílio e em sua dedicação ao ofício de historiador de cinema. Em De Caligari a Hitler (1947), Kracauer empreende a tarefa do crítico de cinema que se dedica à investigação histórica ao analisar obras, filmes médios e medíocres, como constatamos em suas considerações sobre a importância dos filmes medianos, capazes mesmo de apresentar, através dos seus erros e defeitos, hieróglifos destes dispositivos psicológicos ocultos – embora ao estudar o sucesso deste ou daquele filme, invariavelmente as questões propriamente artísticas se façam presentes para aplicar a adesão do público, nacional e estrangeiro, ao filme em questão.

Considerações finais

Ao longo de nosso artigo, demonstramos como a crítica social e estético imanente fundamenta o método histórico, psicológico e social que Kracauer delineia na maturidade. No estudo de filmes e em textos sobre o público que consome os filmes, o papel do crítico e do historiador aparece comprometido com a tarefa de revelar aos leitores como a distração e a falsa consciência como resposta à dissolução do mundo exterior participa da ascensão do nazi-fascismo. Há, contudo, uma diferença fundamental entre os textos críticos e os históricos, nos quais percebemos que a análise artística de Kracauer tem seu papel reduzido diante do propósito teórico central de seu livro, ao apresentar uma resposta contra o mero esteticismo do mundo das aparências e alocar em seu lugar o fio condutor psicológico e social. Isso explica a grande redução da atenção que Kracauer dirige à linguagem e ao estilo de O último homem (1924), tratado detalhadamente em sua primeira recepção, na qual a forma do filme aparece harmonizada ao conteúdo; seu conteúdo é imanente ao estilo. Cumprindo com nossas expectativas iniciais, acreditamos ter realizado a tarefa de contribuir para o estudo do que persistiu entre os trabalhos da juventude e da maturidade de Kracauer, a partir da persistência de uma abordagem interessada em desvelar, a partir dos filmes, os fatores sociais e psicológicos que precipitaram os alemães ao abismo – lições que infelizmente não poderiam ser mais atuais.

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Resumo: O presente artigo demonstra como nos escritos cinematográficos de Siegfried Kracauer as críticas aos filmes A rua (1923) e O último homem (1924), publicadas no Frankfurter Zeitung, apresentam conceitos fundamentais para a consolidação de um método crítico e histórico, social e estético imanente com o qual Kracauer irá embasar seu estudo sobre a ascensão do nazi-fascismo em De Caligari a Hitler (1947): o tédio, a distração e a falsa consciência que tomou de assalto uma sociedade alemã em crise.
Palavras-chave: Siegfried Kracauer; história; crítica; cinema; nazi-fascismo.

Abstract: This article shows how in the cinematographic writings of Siegfried Kracauer the criticisms of the films The street (1923) and The last laugh (1924), published in the Frankfurter Zeitung, present fundamental concepts for the consolidation of an critical and historical, social and immanent-aesthetic method with which Kracauer will base his study on the rise of nazi-fascism in From Caligari to Hitler (1947): the boredom, the distraction and the false consciousness that assaulted a German society in crisis.
Keywords: Siegfried Kracauer; history; criticism; film; nazi-fascism.

Recebido em: 30/4/19
Aceito em: 07/09/19

  • 1 Dedico esse trabalho à memória do Prof. Dr. Carlos Eduardo Jordão Machado (1954-2018), de quem não faltaram incentivos. Foi sob sua orientação que iniciei minha pesquisa sobre a obra crítica e histórica de Siegfried Kracauer e a cultura cinematográfica da República de Weimar (1919-1933).

  • 2 Historiador (2010), mestre (2013) e doutor (2018) em História e Sociedade (UNESP-FCL Assis), sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Eduardo Jordão Machado. Foi pesquisador e arquivista da Cinemateca Brasileira (2012, 2013 e 2016). Com o amparo da FAPESP, realizou estágios de pesquisa na Cinémathèque Française (2012, Paris) e na Deutsche Kinemathek (2017, Berlim).