João Cabral de Melo Neto, poeta-crítico, crítico-poeta

André Vinicius Pessôa1
UERJ/Capes/Faperj
andreviniciuspessoa@gmail.com

Na nota biográfica de Benedito Nunes para a coleção Poetas modernos do Brasil, o crítico paraense conta que João Cabral de Melo Neto, aos 18 anos, recebeu em mãos uma antologia de versos em que figurava o poema “Não sei dançar”, de seu primo, Manuel Bandeira. O poeta, que até então apenas conhecia a literatura de cordel e alguns versos de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira contidos em antologias escolares, ficou muito impressionado com os versos de Bandeira. Este teria sido o primeiro impacto que o sensibilizara para a poesia. Porém, diz Nunes:

O que inicialmente o seduziu, no território que começava a divisar, foi o papel do crítico. A indagação sobre o fazer criativo, a compreensão da poesia realizada, lhe parecem tão ou mais importantes do que o exercício da criação e a possibilidade da poesia a realizar. Mais tarde viria a compreender que a criação e a indagação podem ser reunidas sob o foco de um ato único, abrangendo o fazer artesanal e a ideia, a exploração teórica e a prática instauradora. (NUNES, 1974, p. 11-12)

Em entrevista a Edla van Steen, publicada em livro no início dos anos de 1980, Cabral descreve o itinerário que o fez passar pelo desejo da crítica e o levou à poesia:

Eu nunca pensei em ser poeta, nem nunca me considerei (e até hoje não me considero) com temperamento de poeta. Eu tenho temperamento de crítico. Meu ideal foi sempre ser crítico literário. Ocorre que aos 17 ou 18 anos não se tem cultura nem discernimento para ser crítico. Então eu comecei a fazer poesia, apenas para produzir alguma coisa, enquanto me preparava para a crítica. Muito pouca gente notou isso, mas a minha poesia é quase sempre crítica. (MELO NETO, 1981, p. 100)

Na mesma entrevista, o poeta revela que não gosta de ler poesia e prefere a leitura de ensaios. Cabral também conta a Edla van Steen não gostar de escrever em prosa, tarefa que considera um enorme sacrifício, por não possuir a dicção adequada, fundada na escolha das palavras certas, e tampouco o ritmo de um Gilberto Freyre, cuja prosa tanto admirava. No entanto, curiosamente, diz o poeta que foi o sucesso na profissão de diplomata que lhe permitiu não abraçar a de crítico literário:

Se eu tivesse ficado no Brasil, se tivesse a possibilidade de ganhar dinheiro com literatura, talvez fosse crítico. Em geral, deve haver exceções, não sei. É raro um sujeito escrever um ensaio espontaneamente, sem ninguém ter pedido. Um sujeito que pensa “gosto muito do Graciliano”, sentar e escrever um livro sobre Graciliano. Essa seria a crítica criadora (MELO NETO, 1981, p. 102).

Em março de 1989, quando entrevistado para o terceiro número da revista 34 Letras2, Cabral voltou ao tema ao afirmar que o ideal inicial de ser crítico literário acompanhou toda a sua trajetória de poeta:

Eu nunca escrevi crítica literária, porque me dei conta com dezoito, dezenove anos, de que eu não tinha experiência nem cultura para fazer crítica literária. Como eu convivia num meio literário, lá no Recife, preponderantemente de poetas, eu comecei a escrever poesia. Mas sempre escrevi poesia como crítico. Eu me proponho a fazer um poema que o crítico João Cabral, que nunca fez crítica, aprovaria (MELO NETO, 1989, p. 14).

Com todo esse pendor para a análise, Cabral tornou-se um poeta-crítico que, ao optar pela “crítica criadora”, incluiu a reflexão no interior de sua obra em versos. Em paralelo, sua prosa crítica, embora tenha revelado um profícuo teórico, não possui a mesma extensão que a de outros poetas contemporâneos seus, como Manuel Bandeira e Murilo Mendes, entre tantos outros. Essa produção textual teve o seu começo em 1941 com o ensaio “Considerações sobre o poeta dormindo”, cujas ideias correspondem à poética de Pedra do Sono, seu livro de estreia então recém-publicado. Alguns anos depois, em 1950, o poeta publicou em Barcelona o livro Joan Miró, que trazia um ensaio sobre a arte do pintor catalão, com quem Cabral cultivou uma estreita amizade. A primeira impressão do livro, que saiu por uma editora local, contava com gravuras do próprio Miró. O ensaio, por sua vez, viria a ser publicado novamente pelos Cadernos de Cultura do MEC em 1952. Nesse mesmo ano, surge “Poesia e composição”, texto elaborado para uma conferência na Biblioteca de São Paulo, que discute alguns fundamentos teóricos da poética do autor. Também em 1952, Cabral publicou no Diário Carioca quatro artigos de crítica literária, nos quais colocou em debate a Geração de 45. Em 1953, foi a vez de “Esboço de panorama”, publicado na revista Flan, que ressalta a presença da poesia na literatura brasileira de então. No ano seguinte, o poeta apresentou o ensaio “Como a Europa vê a América: resposta à tese do professor Roger Bastide”, no Congresso Internacional de Escritores, e defendeu a tese “Da função moderna da poesia”, no Congresso de Poesia de São Paulo. Passado esse período, só voltaria a tornar público um texto em prosa em 1969, com o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, intitulado “O elogio de Assis Chateaubriand”. Em 1990, após outro hiato, viria a publicar “A diversidade cultural no diálogo norte-sul”, tese apresentada num colóquio em Barcelona. Nos anos de 1990, sua produção em prosa ainda contou com o discurso de “Agradecimento ao Prêmio Neustadt”, de 1992, e o “Prefácio a Antologia Poética de Marly de Oliveira”, de 1994. Todos esses textos referidos foram finalmente reunidos e publicados em 1998 pela editora Nova Fronteira, numa antologia intitulada Prosa (1998).
Dessa produção destacam-se dois ensaios que tratam de questões intrínsecas à poética do autor e que se estendem à poesia em geral: “Poesia e composição”3 e “Da função moderna da poesia”4. Ambos adensam determinadas preocupações teóricas do poeta que vão assinalar o seu pensamento em prosa crítica e ainda fornecer perspectivas de leitura e compreensão de sua obra poética.
Em “Poesia e composição”, Cabral inicia a sua exposição5 separando os poetas em dois grandes grupos, ou famílias, ou mesmo, como às vezes prefere chamar, “uns e outros”. A composição, para uns, corresponde ao “ato de aprisionar a poesia nova” (MELO NETO, 2003, p. 723); e para outros, “o de elaborar a poesia em poema” (MELO NETO, 2003, p. 723). Para uns, o poema é “o momento inexplicável de um achado” (MELO NETO, 2003, p. 723); e para outros, “as horas enormes de uma procura” (MELO NETO, 2003, p. 723).
São, portanto, para o conferencista, duas as famílias de poetas: uma, em que a composição é procura (segundo Cabral, há, inclusive, um certo pudor por parte desses poetas em revelar o que acontece quando se está só e diante do papel em branco): “essa força – é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias” (MELO NETO, 2003, p. 723). A outra família, dos poetas que “pouco têm a dizer sobre a composição” (MELO NETO, 2003, p. 723), produz poemas que são iniciativas da própria poesia e que, sem maiores explicações, se revelam, como se brotassem naturalmente. Em consequência disso, diz Cabral, “o ato de escrever o poema, que neles se limita quase ao ato de registrar a voz que os surpreende, é um ato mínimo” (MELO NETO, 2003, p. 723).
A esses grupos (ou famílias) de poetas correspondem dois sítios ideais, opostos e extremos entre si, pertencentes à literatura em geral: a inspiração e o trabalho de arte. Lembra Cabral que, essencialmente, esses dois procedimentos não se opõem. As duas soluções, a espontânea (como um presente dos deuses) ou a elaboração demorada (como uma conquista humana), “se confundem, isto é, ambas visam à criação de uma obra com elementos da experiência de um homem” (MELO NETO, 2003, p. 725). A distinção que se faz, portanto, diz respeito a como essa experiência se encarna. Na história da literatura, observa-se que há a predominância ou não de uma dessas concepções. Aproximando-se ou afastando-se, confundindo-se ou polarizando-se, diz o poeta, ambas “são determinadas pelo conjunto de valores que cada época traz em seu bojo” (MELO NETO, 2003, p. 725-726).
Os poetas que optam pelos caminhos da inspiração veem o poema como a tradução de uma experiência direta. São sentimentos de exaltação ou depressão que os compelem a escrever. O poema é o seu eco imediato. Cabe ao poeta transmitir ao leitor o teor dessa experiência iluminada e ungida pela verdade da poesia. “A experiência vivida não é elaborada artisticamente. Sua criação é anárquica porque parece reproduzir a experiência como ela se deu, ou quase. E uma experiência dessas jamais se organizará dentro das regras próprias da obra artística” (MELO NETO, 2003, p. 728), escreveu Cabral. Nesse caso, objetiva-se tão somente a reprodução da impressão sentida, como um depoimento cujo valor é concomitante à sua precisão descritiva. Com frequência, o trabalho artístico que sucede esse primeiro impulso é apenas superficial, pois “se limita a um retoque posterior ao momento da criação” (MELO NETO, 2003, p. 728) em que não se pretende atingir a estrutura do poema já produzido. O resultado vem a ser uma poesia escrita em linguagem corrente, ou seja, “poesia para ser lida mais do que para ser relida” (MELO NETO, 2003, p. 729). O tom – a entonação – lhe é essencial. A qualidade dos versos há de ser musical (e não intelectual ou plástica).
Cabral nota entre os adeptos da inspiração a incapacidade de se haver nos parâmetros de proporção e objetividade. O trabalho artístico, que possui “uma vida objetiva independente, uma validade que para ser percebida dispensa qualquer referência posterior à pessoa de seu criador ou as circunstâncias de sua criação” (MELO NETO, 2003, p. 729-730), não lhes interessa. Segundo o poeta, há por trás dessa refração um desprezo pela atividade intelectual, cujas raízes mais profundas provêm da desconfiança diante da razão. Conforme tal desprezo, qualquer interferência intelectual carregaria consigo o peso indesejável de uma intervenção humana numa ação imaginada como divina. Por isso mesmo, nesses casos, cultiva-se uma repulsa ao sentido profissional da literatura e ao poema sob encomenda. Cabral também assinala “um grande preconceito contra o poeta que se impõe um tema, contra o poeta para quem cantar tem uma utilidade e para quem cabe a essa utilidade determinar o canto” (MELO NETO, 2003, p. 731), valores esses concernentes ao trabalho de arte.
Para os adeptos da inspiração, diz Cabral, “o autor é tudo” (MELO NETO, 2003, p. 729). Foi com o advento do Romantismo, sublinha o poeta, que houve esse “deslocamento para o autor do centro de interesse da obra” (MELO NETO, 2003, p. 731). Segundo Cabral, esse foi o golpe primeiro de um fenômeno que posteriormente se agravou. A livre interpretação das normas vigentes logo transformou-se no direito da criação de normas particulares e a técnica da poesia deixou de ser “o domínio de uma ampla ciência” (MELO NETO, 2003, p. 732) para se servir de “tiques” exclusivos a cada poeta. O aspecto particular passou a ditar o valor essencial de um poema. Para Cabral, esse foi o motivo da fragmentação (ou atomização) das poéticas, proporcional ao número de poetas que conseguiram alcançar a sua expressão pessoal. “Hoje não há uma arte, não há a poesia, mas há artes, há poesias” (MELO NETO, 2003, p. 731), escreveu o poeta. Com a fragmentação e a consequente multiplicação das poéticas, seguiu-se o que Cabral chamou de “abandono da arte”.
Além disso, a ausência de um conceito padrão de literatura e de um gosto em comum, “determinados pela necessidade – ou exigência – dos homens para quem se faz a literatura” (MELO NETO, 2003, p. 724), veio a transformar a crítica “numa atividade tão individualista quanto a criação propriamente” (MELO NETO, 2003, p. 724). Sobre esse impasse, Cabral vaticina:

A crítica que insiste em empregar um padrão de julgamento é incapaz de apreciar mais do que um pequeníssimo setor das obras que se publicam – aquele em que esses padrões possam ter alguma validade. E a crítica que não se quer submeter a nenhum tem que renunciar a qualquer tentativa de julgamento. Tem de limitar-se ao critério de sua sensibilidade, e a sua sensibilidade é também uma pequena zona, capaz de apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar claramente sobre o que foi capaz de atingi-la (MELO NETO, 2003, p. 724).

Para Cabral, devido à extrema valorização da expressão pessoal e à multiplicidade de poéticas, a recepção crítica da poesia de seu tempo é marcada pela impossibilidade de estabelecer generalizações, isto é, de apresentar juízos de valor universais. Diante da dificuldade de se obter uma definição precisa da poesia moderna, dadas as inúmeras expressões pessoais coexistentes, em alguns casos antagônicas entre si, cabe ao crítico contemporâneo tão somente o trabalho de catalogação de poéticas diversas.
Cabral recua à época do teatro clássico francês, anterior ao Romantismo, para se referir a um tempo em que a crítica se pautava por padrões universais de julgamento, período em que o crítico tratava de aspectos meramente técnicos, pois havia o consentimento de uma técnica geral. Nesse contexto, sua função consistia em “verificar se a composição obedeceu a determinadas normas” (MELO NETO, 2003, p. 724) e “o artista era julgado na medida em que estritamente dentro da norma realizava sua obra” (MELO NETO, 2003, p. 731). Os padrões previamente estabelecidos proporcionavam certa impessoalidade às obras e não prejudicavam a expressão pessoal de seus autores, pois o estilo significava “a maneira de cada autor interpretar essas normas consagradas” (MELO NETO, 2003, p. 731). A poesia dessa época não almejava lutar contra as normas vigentes. Ao contrário, a aderência às normas era a condição que lhe assegurava o elo com o leitor.
Luiz Costa Lima, em “João Cabral: poeta crítico” (2002), indaga se teria sido realmente a tradição romântica que proporcionou o deslocamento do interesse do público para a vida do autor. Nesse ponto, Cabral estaria correto em parte, ao entender que o Romantismo e a sua descendência se afirmam na exaltação de um lirismo confessional, “responsável pelo culto do poeta, de sua egoidade, em detrimento aos ‘aspectos propriamente artísticos da poesia’” (LIMA, 2002, p. 112). No entanto, diz Costa Lima, se forem buscadas as fontes originárias do Romantismo, essas mostrarão justamente o contrário. Os poetas e pensadores da Escola de Iena, como Friedrich Schlegel e Novalis, defenderam a interferência crítica na construção do poema e requereram do crítico uma prática poética. Novalis, numa conhecida passagem, assim escreveu: “Quem não é capaz de fazer um poema, também só o julgará negativamente. A genuína crítica requer a aptidão de produzir por si mesmo o produto a ser criticado. O gosto por si só julga apenas negativamente” (NOVALIS, 2001, p. 122). Schlegel, por seu turno, no fragmento 117 do Lyceum der schoenen Kuenste, de 1797, cunhou:

Poesia só pode ser criticada por poesia. Um juízo artístico que não é, ele próprio, uma obra de arte, seja em seu tema, enquanto exposição da impressão necessária em seu devir, seja por meio de uma bela forma e um tom liberal no espírito das velhas sátiras romanas, não tem, em absoluto, direito de cidadania no reino da arte (SCHLEGEL, 1994, p. 91).

Para Costa Lima, por essas e outras formulações, esses primeiros românticos não merecem estar no lugar em que Cabral coloca o Romantismo, pois foram eles justamente que, contrariando os ditames da tradição clássica, trouxeram na Modernidade a crítica para o interior da poesia. O crítico, inclusive, sublinha que a verve crítica que se une à poiesis nos fragmentos de Schlegel e Novalis é a mesma que nutre a obra poética de Cabral.
Indubitável que as teses do Romantismo alemão também tenham contribuído para realçar a ideia da expressão do sujeito individual, elemento central da tradição que Cabral tanto contesta. Porém, o elogio da subjetividade do artista por parte desses primeiros românticos não excluía a busca pelo conhecimento. A diferença em relação à absoluta sobriedade pregada por Cabral é que esses pensadores admitiam o estado de uma semi-embriaguez, como afirmou Novalis no fragmento 105, ao se referir aos escritos de Schlegel como “filosofemas líricos”: “Semi-embriagada uma obra de arte pode ser – Na embriaguez total a obra de arte se liquefaz” (NOVALIS, 2001, p. 95).
Apoiando-se no polo extremo da lucidez na conduta do artista-artesão, Cabral direciona sua simpatia a quem, ao dominar a técnica do poema, realiza suas obras como um criador sóbrio. Assim falou Cabral:

Na origem da atitude que aceita o predomínio do trabalho de arte está muitas vezes o desgosto contra o vago e o irreal, contra o irracional e o inefável, contra qualquer passividade e qualquer misticismo, e muito de desgosto, também contra o desgosto pelo homem e sua razão. Por outro lado, não se pode negar que essa atitude pode contribuir para uma melhor realização artística do poema, pode criar o poema objetivo, o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus gestos. (MELO NETO, 2003, p. 733)

Para Cabral, garantida a objetividade, não é o poema que se impõe ao poeta, mas é o poeta quem impõe o poema. “O trabalho artístico é, aqui, a origem do próprio poema. Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta” (MELO NETO, 2003, p. 733), afirmou. Quanto mais o poeta estiver enrodilhado no labor da poesia, mais terá a chance de enriquecer a sua experiência, que, por ser contínua, nunca se traduzirá por inteiro num só poema terminado. Em vez de lidar com eventos ocasionais e fortuitos, o poeta dispõe de uma vigilante experimentação com a poesia em sua materialidade própria. O trabalho exercido vem a ser a própria fonte da criação. São motivos racionais que determinam as associações de palavras a serem utilizadas. Não existe, nesses casos, o perigo de perdê-las se não forem registradas imediatamente.
Benedito Nunes assinala que a poesia de Cabral cresce “em regime de crise interna, e, numa luta consigo mesma, que reflete a própria história da poesia” (NUNES, 1974, p. 33). Para Nunes, precisamente a partir de O engenheiro, livro publicado em 1945, Cabral submete o processo criador a uma análise reflexiva e crítica influenciada pelas ideias de Paul Valéry. Nesse livro, tido por Antonio Carlos Secchin (2014) como resultante de uma “desativação onírica” e fruto de uma “postura solar”, Cabral passa a dirigir sua poética a um sentido construtivo avesso à expressão de estados subjetivos. A analogia do “engenheiro”, desde a sua epígrafe, “...machine à émouvoir...”, do arquiteto Le Corbusier, segundo o crítico, se relaciona “à mesma razão construtiva e geométrica que gera o projeto técnico de uma máquina e a planta de um edifício, traçados a lápis e a esquadro numa folha de papel” (NUNES, 1974, p. 41).
Valéry afirmara na conferência “Poesia e pensamento abstrato” (1999)6 que “um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras” (VALÉRY, 1999, p. 209). O poeta francês se refere à imagem de um poeta utilizando-se de uma série de analogias, tais como “arquiteto de poemas”, “construtor” e “engenheiro”. O poema, por sua vez, ao se equivaler a um “projeto”, por extensão é comparado à construção de uma locomotiva. Sobre suas ideias, escreveu Nunes:

Para Valéry, o ato de pensar, que se prolonga no ato de escrever, consiste numa operação de caráter voluntário. É a disciplina intelectual, que suprimindo o supérfluo, evitando o fácil, impedindo a desordem, recusando o vago, tolhendo a intromissão do inconsciente ou da efusão sentimental, impõe limites à dispersão dos fenômenos subjetivos e certa consistência à sua incessante fluidez. Em disputa com a natureza transitória dos fenômenos interiores, furtando-se à inspiração como forma romântica do entusiasmo que embriaga, o sonho que fascina e ao inconsciente que o reduziria a um “papel lamentavelmente passivo”, o poeta deve ganhar essa luta para poder construir enfim o poema como máquina da linguagem (NUNES, 1974, p. 42-43).

A “operação de caráter voluntário” de Valéry consiste em partir da desordem fecundante do estado poético originário e, através da “gênese consciente da beleza” (NUNES, 1974, p. 44-45), harmonizar música e significação verbal na composição de um poema. Som e sentido são as armas próprias dessa luta a ser vencida, os materiais próprios da construção poética conjugados nessa operação maquinal, pois, como afirma Valéry numa conhecida passagem, “o valor de um poema reside na indissolubilidade de som e sentido” (VALÉRY, 1999, p. 206). O estado poético originário, anterior à lúcida intervenção do poeta, é “perfeitamente irregular, inconstante, involuntário, frágil” (VALÉRY, 1999, p. 198), portanto, acidental. Pertence aos desígnios naturais da inspiração que apenas servem ao poeta no momento em que ele atua como um médium instantâneo. Contudo, afirma Valéry:

Se fôssemos nos deleitar desenvolvendo rigorosamente a doutrina da inspiração pura, as consequências seriam bem estranhas. Acharíamos, por exemplo, que esse poeta que se limita a transmitir o que recebe, a comunicar a desconhecidos o que sabe do desconhecido não precisa então compreender o que escreve, o que lhe é ditado por uma voz misteriosa. Ele poderia escrever poemas numa língua que ignorasse (VALÉRY, 1999, p. 207).

Face às instabilidades do estado poético originário, Valéry chama a atenção para “a diferença profunda que existe entre a produção espontânea através do espírito – ou melhor, através do conjunto de nossa sensibilidade – e a fabricação de obras” (VALÉRY, 1999, p. 199). O poeta francês enfatiza o trabalho do espírito que luta contra a desigualdade dos momentos da inspiração, o que inclui uma “quantidade de reflexões, de decisões, de escolhas e de combinações sem as quais todos os dons possíveis da Musa e do acaso continuariam sendo materiais preciosos em um canteiro de obras sem arquiteto” (VALÉRY, 1999, p. 208-209). Para Valéry, por esse motivo, “todos os poetas verdadeiros são necessariamente críticos de primeira ordem” (VALÉRY, 1999, p. 208). Nunes afirma que os conceitos da poética do poeta francês encontram-se explicitados em pelo menos cinco dos vinte e dois poemas que Cabral incluiu em O engenheiro: “O funcionário”; “O poema”; “A lição de poesia”; “A Paul Valéry”; e “Pequena ode mineral”. Para o crítico, esses poemas

[...] analisam a gênese da linguagem lírica a partir da transmutação dos estados vividos: a criação como ato de pensamento lúcido, que se completa no ato de escrever, ambos dirigidos no sentido do controle racional dos efeitos poéticos contra as interferências do acaso, que a inspiração e o sonho favorecem. (NUNES, 1974, p. 41-42)

A filiação de Cabral a Valéry pressupõe a valorização do trabalho de arte a ser exercido com o máximo de consciência. Costa Lima afirma que, face às desconfianças do poeta brasileiro diante das premissas que movem as gerações pós-românticas, “Valéry será basicamente o autor que permitirá a Cabral, mantendo-se crítico dela, assimilar a tradição do moderno” (LIMA, 2002, p. 123). Porém, para além das relações de proximidade entre as doutrinas de ambos, faz-se necessário mencionar uma distinção fundamental trazida por Nunes. Para o crítico paraense, se, em Valéry, o processo de composição de um poema está relacionado à “restituição de um estado poético originário” (NUNES, 1974, p. 45), em Cabral, encontrar-se-á na intenção de “dominar as regras de construção de seu poema” (NUNES, 1974, p. 45), pois o poeta-engenheiro, antes mesmo de trabalhar com a linguagem, é capaz de sonhar coisas claras. Pressupõe- se desse modo uma completa desvinculação com os desígnios originários da inspiração.
O ponto negativo do trabalho de arte, para Cabral, estaria na extrema preponderância dada ao ato de fazer, que, em alguns casos, poderia conduzir a própria elaboração a um fim em si mesma. “O trabalho se converte em exercício, isto é, numa atividade que vale por si, independentemente de seus resultados” (MELO NETO, 2003, p. 735), afirma o poeta. Por essa razão, Cabral acredita ser necessário buscar alguns ajustes para que o trabalho de arte, em vez de conduzir a poesia a horizontes mais herméticos, tenha em vista uma comunicação bem-sucedida a partir das necessidades do leitor.
A poesia moderna, contemporânea ao discurso de Cabral, segundo o próprio, substituiu a preocupação de comunicar-se pela urgência de exprimir-se. A esse fenômeno soma-se outro: a anulação da perspectiva do leitor no momento da criação. Segundo o poeta, o autor de sua época em geral trabalha “à maneira que ele considera mais conveniente à sua expressão formal” (MELO NETO, 2003, p. 724), criando a sua própria mitologia e uma linguagem pessoal, com as suas próprias leis de composição e o seu tipo de poema. “Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra, nem mesmo àquelas que em determinado momento ele mesmo criou” (MELO NETO, 2003, p. 724), escreveu Cabral. Sem um pensamento estético universal, as tendências pessoais passaram a ser superestimadas. Os conceitos de composição e de poema tenderam a se orientar pela ênfase particular que o trabalho de cada poeta é capaz de revelar. Curiosamente, atesta Cabral, tanto a inspiração quanto o trabalho de arte são defendidos ou rejeitados em nome do mesmo princípio de expressão pessoal. O valor da produção de um poeta nesse contexto passa pelo reconhecimento de sua autenticidade radical, isto é, de uma não identificação com alguma expressão já dada. “Por isso, ele procura realizar sua obra não com o que nele é comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha com todos os homens, mas com o que nele é mais íntimo e pessoal, privado, diverso de todos” (MELO NETO, 2003, p. 724), afirma o poeta.
O poeta e crítico Marcos Siscar, no texto “João Cabral e a poesia contemporânea: o drama da destinação” (2018), aponta a questão do destinatário como central no pensamento crítico de Cabral. Escreveu Siscar:

Em Cabral, como já era o caso em Mallarmé, é possível dizer que a crítica à dimensão personalista da poesia se dá em paralelo com a finalidade em relação com o público: uma poesia cujo interesse se limita à vida do poeta é uma poesia em que a dimensão coletiva do efeito literário sai prejudicada. Ela soa imediatamente como mero relato de uma experiência individual, como relação parcial e interessada, desvinculada de uma ambição de ordem histórica e artística; não atende à necessidade social à qual idealmente se destina (SISCAR, 2018, p. 613).

Siscar relaciona o que toma por “drama da destinação”, a partir da análise das formulações cabralinas, à herança das grandes utopias políticas do século XX. Contrário à ideia mestra do individualismo, com suas imprecisões e delimitações, como a dependência da inspiração e a tendência ao relato autobiográfico, Cabral clama por uma competência técnica que permita aos poetas atenderem à demanda do seu público leitor. Essa preocupação social do poeta pretende ir ao encontro da vertente “objetiva”, ou “construtiva”, e, por extensão, antissubjetivista da poesia brasileira, na qual ele próprio se insere.
Na tese “Da função moderna da poesia” (2003), Cabral reconhece na poesia moderna o caráter multiforme e o espírito de pesquisa formal como denominadores comuns. Para ele, são duas as atitudes mentais que regem os poetas de sua época: a “necessidade de captar mais completamente os matizes sutis, cambiantes, inefáveis, de sua expressão pessoal” (MELO NETO, 2003, p. 767) e “o desejo de apreender melhor as ressonâncias das múltiplas e complexas aparências da vida moderna” (MELO NETO, 2003, p. 767). Desse modo, coloca-se de um lado a ideia da subjetividade no apuro da expressão pessoal e de outro a objetividade que busca uma identificação mais precisa com o contemporâneo. Diz Cabral que as pesquisas formais de seu tempo são determinadas pelas “condições que a vida moderna, em seu conjunto, impõem ao homem” (MELO NETO, 2003, p. 767) e o poeta constata que uma realidade cada vez mais complexa “exige, para ser captada, um instrumento mais maleável e de reflexos imediatos” (MELO NETO, 2003, p. 767). Por conseguinte, face a esse real, a interioridade também tornou-se mais complexa “e passou a exigir um uso do instrumento da linguagem altamente diverso do lúcido e direto dos autores clássicos” (MELO NETO, 2003, p. 767).
Para Cabral, o aprofundamento formal, com a descoberta de novos processos e a renovação dos antigos procedimentos7, tornou a arte poética de seu tempo “em abstrato mais rica, mas nenhum poeta até agora se revelou capaz de usá-la, em concreto, na sua totalidade” (MELO NETO, 2003, p. 767). Pois mesmo com todas as conquistas formais disponíveis, não foram produzidos tipos de poemas que correspondam às exigências da vida moderna. Há, por isso mesmo, uma grande dificuldade dos leitores diante de uma poesia que exige muitas horas de recolhimento para ser compreendida, tarefa muitas vezes incompatível com o ritmo próprio exigido pela vida moderna. Lembrou Cabral em “Poesia e Composição” que essa falta de correspondência com as necessidades elementares dos leitores era algo que não ocorria, por exemplo, na literatura antiga, pois “ao autor cabia sentir essa exigência, vivendo a vida de seu leitor, identificando-se com ele, integralmente” (MELO NETO, 2003, p. 735).
Os progressos formais enumerados por Cabral em “Da função moderna da poesia” limitam-se à primeira metade do ato de escrever, que passou a contar com uma maior precisão em relação ao que se deseja dizer, mas segue “sem cuidar da sua contraparte orgânica – a comunicação” (MELO NETO, 2003, p. 769). Se, por um lado, as conquistas foram muitas, como atesta o poeta, por outro, não foi atingido o “plano da construção do poema no que diz respeito à sua função na vida do homem moderno” (MELO NETO, 2003, p. 769). Escreveu Cabral:

Apesar de os poetas terem logrado inventar o verso e a linguagem que a vida moderna estava a exigir, a verdade é que não conseguiram manter ou descobrir os tipos, gêneros ou formas de poemas dentro dos quais organizassem os materiais de sua expressão, a fim de tornarem-na capaz de entrar em comunicação com os homens nas condições que a vida social lhes impõe modernamente (MELO NETO, 2003, p. 769).

Em 1956, dois anos após a publicação de “Da função moderna da poesia”, a editora José Olympio disponibilizou ao público a antologia Duas águas, cujo título se mostrou bastante sugestivo como uma possível chave de interpretação da obra cabralina. O volume, além de reunir os poemas publicados em livros anteriores, ainda trouxe os inéditos “Uma faca só lâmina” (1954-1955) e “Morte e Vida Severina – auto de Natal pernambucano” (1954-1955). Na primeira água, figuram os poemas dos livros Pedra do sono, O engenheiro, Psicologia da composição, O cão sem plumas e Paisagem com figuras, além de “Uma faca só lâmina”. Na segunda, Os três mal-amados, O rio e o auto “Morte e Vida Severina”. Cabral redigiu um esclarecimento preliminar ao livro, no qual o poeta visava esclarecer a divisão:

Duas águas querem corresponder a duas intenções do autor e – decorrentemente – a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aproveitamento temático, quase sempre concentrado, exige mais do que leitura, releitura; de outro, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos. (MELO NETO apud NUNES, 1974, p. 74)

Nas palavras de Haroldo de Campos em “O geômetra engajado” (2006), as “duas águas” de Cabral, em resumo, seriam: “Poesia crítica e poesia que põe o seu instrumento, passado pelo crivo da crítica, a serviço da comunidade” (CAMPOS, 2006, p. 84-85). Da primeira “água”, na visão de Campos, exemplar é o poema “Uma faca só lâmina”. Por sua vez, o auto “Morte e Vida Severina” constitui-se como o exemplo mais bem-acabado da segunda. Para Benedito Nunes, ao dividir o livro em duas partes, o poeta estaria se utilizando de uma “tática de comunicabilidade”: “Trata-se de um princípio pragmático, deveras importante, para quem, como João Cabral, pretende retirar a poesia moderna de seu alheamento individualista” (NUNES, 1974, p. 74).
“Poesia que põe o seu instrumento, passado pelo crivo da crítica, a serviço da comunidade”, o auto “Morte e Vida Severina” foi escrito em 1955 para o Teatro Tablado, a pedido de Maria Clara Machado. No entanto, só após ser incluído em Duas águas e ter o seu potencial comunicativo reconhecido pelo próprio autor, o texto seria encenado pelo grupo Norte Teatro Escola do Pará, com direção de Maria Sylvia Nunes, no ano de 1958. O sucesso da encenação no 1º Festival Nacional de Teatro de Estudantes, realizado na cidade de Recife, e o prêmio de Melhor Autor Teatral de 1958 recebido por Cabral foram fatos que chamaram a atenção dos meios teatrais, especialmente da Companhia Cacilda Becker. Mas foi com direção de Roberto Freire, então responsável pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA), e música de um ainda pouco conhecido Chico Buarque de Holanda, que a montagem finalmente teve êxito em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em seguida, antes de rodar o Brasil de norte a sul, foi premiada no Festival de Teatro de Nancy, na França, em 1966, ocasião em que o próprio Cabral a assistiu pela primeira vez, e ainda, no mesmo ano, encenada no Teatro Odeon de Paris. Escreveu Nunes:

Em consequência da receptividade das plateias a esse poema, sucessivas vezes editado, juntamente com outros textos do autor, e que difundiu o nome e a obra de João Cabral para além dos círculos literários, produziu-se pela primeira vez depois de 1922, um fenômeno inédito na história da moderna poesia brasileira: a consagração popular de um poeta. Como expressão quantativa de reconhecimento público, sem que isso signifique uma medida do conhecimento qualitativo da obra, a popularidade de João Cabral, embora determinada por motivos diferentes, lembra a popularidade de românticos e parnasianos. (NUNES, 1974, p. 21-22)

“Poesia crítica”, propriamente dita, foi o título de uma antologia de poemas de Cabral publicada em 1982, na qual o poeta escreveu na terceira pessoa uma breve “nota do autor”, tão curta quanto densa, sobre os seus procedimentos, ou, ao menos, como o próprio Cabral via sua poética e desejava que ela fosse vista:

Talvez possa parecer estranho que passados tantos anos de seus primeiros poemas, o autor continue se interrogando e discutindo consigo mesmo sobre um ofício que já deveria ter aprendido e dominado. Mas o autor deve confessar que, infelizmente, não pertence a essa família espiritual para quem a criação é um dom, dom que por sua gratuidade elimina qualquer inquietação sobre sua validade, e qualquer curiosidade sobre suas origens e suas formas de dar-se. (MELO NETO, 1982, p. v)

João Alexandre Barbosa, em “A poesia crítica de Cabral”, comenta que em ambas as partes do livro – “Linguagem”, em que o assunto é a criação poética, e “Linguagens”, com poemas sobre a obra ou a personalidade de criadores, sejam estes poetas ou não – o que está em jogo é a própria criação poética. O crítico, inclusive, acredita ser possível, a partir dos poemas escolhidos, “ler a engrenagem de sua machine à emouvoir” (BARBOSA, 2002, p. 294). Cabral explica, na “nota do autor”, que o volume não trata de “uma arte poética sistemática” e tampouco de “um sistema crítico”. Barbosa esclarece, porém, que essas expressões funcionam, na configuração da obra de Cabral, como “semas imantados, ainda que dispersos” (BARBOSA, 2002, p. 294). Ao se fazer a pergunta sobre “o que vem a ser uma poesia crítica” nos poemas de Cabral, o crítico chama a atenção para a definição de uma poética a partir de suas próprias manifestações concretas.
Ao delinear suas intenções poéticas, Cabral afirma que “nunca entendeu a linguagem poética como uma coisa autônoma, intransitiva, uma fogueira ardendo por si cujo interesse estaria no próprio espetáculo de sua combustão: mas como uma forma de linguagem com qualquer outra” (MELO NETO, 1982, p. v-vi). No entanto, o poeta ressalva que é possível falar de qualquer coisa desde que a qualidade poética seja preservada.
Barbosa nota no volume as ausências dos livros O cão sem plumas, de 1950, e O rio, de 1954, além do auto “Morte e Vida Severina”, de 1955, e de Dois Parlamentos, de 1961. Lembra o crítico que estão justamente nessas obras os “poemas em voz alta”, que contêm a “crítica da realidade social e histórica” (BARBOSA, 2002, p. 295). Contudo, escreveu Barbosa, “o encontro da transitividade possível, e que será o motor principal da continuidade da poesia de João Cabral, não se fez com o abandono de uma consciência poética agudizada pelos limites da intransitividade” (BARBOSA, 2002, p. 297-298). Sobre o poema “O cão sem plumas”, diz o crítico que a sua leitura

[...] é capaz de mostrar como a transitividade atingida, com toda a sua carga social e releitura histórica de um espaço e de um tempo regionais, não despreza, antes incorpora de modo bastante agudo, as conquistas de uma experiência com a linguagem poética levada ao extremo da negatividade e da abstração daí decorrente. (BARBOSA, 2002, p. 297)

Segundo Barbosa, na “nota do autor”, mesmo estrategicamente afirmando os valores transitivos da linguagem, Cabral sublinha a tensão fundamental da poesia, que se dá entre transitividade e intransitividade. Para o crítico, a transitividade na obra cabralina é relativizada pelo elemento intransitivo, ou abstrato, encontrado no trabalho com a linguagem. Sustenta Barbosa que Cabral não abre mão da comunicação quando a intransitividade aparece como o substrato crítico de seu discurso. O crítico toma como exemplo a inclusão na antologia de um poema como “Antiode”, que “assume feições de um verdadeiro manifesto antilírico” (BARBOSA, 2002, p. 227) e situa o poeta nos parâmetros modernos de uma “poética da negatividade”. Barbosa sugere haver na antologia uma lição passada ao leitor – especificamente ao leitor-crítico – dos poemas de Cabral, de que “a sonhada transitividade do poema não se atinge sem o risco da crítica de seus termos” (BARBOSA, 2002, p. 300).
O poemas selecionados em Poesia crítica (1982), assim como outros deixados de lado pelo poeta, foram compostos ao longo de uma constante experiência com a linguagem e sob forte tensão reflexiva. Ao denotarem uma “permanente meditação sobre o ofício de criar” (MELO NETO, 1982, p. v), marcam a trajetória de uma obra em que poesia e crítica encontram-se interdependentes. Especula Barbosa que Cabral jamais percebeu como essa antologia pôde satisfazer a aspiração do poeta de ser o “crítico magistral que ele não poderia deixar de ter sido” (BARBOSA, 2002, p. 300). Resolvido ou não o “drama da destinação”, que ora se apresentou como ponto de fuga das indagações teóricas do poeta, a poesia de Cabral seguiu atada ao seu princípio – o ideal do crítico, para o qual se subordinaram o emprego laborioso de um diverso conjunto de meios e fins.

Referências bibliográficas

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VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: ______. Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1999.

Resumo: Com base na leitura dos textos em prosa crítica de João Cabral de Melo Neto escritos nos anos de 1950, “Poesia e composição” e “Da função moderna da poesia”, o artigo visa debater alguns de seus pressupostos teóricos sob a luz da tradição moderna do poeta-crítico. No caso específico de Cabral, observa-se como a sua postura crítica e reflexiva, avessa às soluções facilitadoras da inspiração, desde sempre esteve entranhada na sua poesia e tanto direcionou a construção de seus versos quanto problematizou a destinação de sua obra poética.
Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto; poesia; crítica; poeta-crítico; teoria poética.

Abstract: Based on the reading of the texts in critical prose “Poesia e composição” (Poetry and composition) and “Da função moderna da poesia” (The modern function of poetry), written by João Cabral de Melo Neto in the 1950s, the article aims at discussing some of the poet’s theoretical assumptions in the light of the modern tradition of the poet-critic. In the specific case of Cabral, one observes how his critical and reflexive posture, averse to the inspiration’s facilitating solutions, has always been embedded in his poetry and has not only conducted the construction of his verses but also problematized the destination of his poetic work.
Keywords: João Cabral de Melo Neto; poetry; criticism; poet-critic; poetic theory.

Recebido em: 06/5/19
Aceito em: 07/09/19

  • 1 Vinculado à Pesquisa de Pós-Doutorado “O poeta-crítico no Brasil: tradição e contemporaneidade – ensaísmo crítico de poetas na literatura brasileira dos séculos XX e XXI”, coordenada pelo Prof. Roberto Acízelo Quelha de Souza, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, com Bolsa de Apoio da Capes/Faperj. Mestre e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura – PPGCL, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; e Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.

  • 2 A entrevista contou com os seguintes interlocutores: o poeta Sebastião Uchoa Leite, o crítico literário Luiz Costa Lima, a historiadora Lana Lage e o artista plástico Carlito Carvalhosa.

  • 3 No ano de 1952, quando tornou pública a conferência “Poesia e composição”, Cabral já havia publicado os livros de poemas Pedra do sono (1941), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947) e O cão sem plumas (1950).

  • 4 No mesmo ano em que defendeu a tese “Da função moderna da poesia”, Cabral publicou O rio e teve disponibilizada a sua primeira antologia, Poemas reunidos, que saiu pela editora Orfeu, ligada aos poetas da Geração de 45.

  • 5 Cabral ressalta na conferência sua intenção de tratar do tema com objetividade, o que para ele consistiria numa tarefa dificílima, pois, segundo afirma, não haveria documentação suficiente sobre o assunto, posto que o “fazer poesia” geralmente é um ato solitário que acontece sem o testemunho de outrem.

  • 6 Conferência proferida na Oxford University e publicada pela mesma Universidade no ano de 1939.

  • 7 O poeta enumerou alguns aspectos do enriquecimento técnico da poesia moderna: “a – na estrutura do verso (novas formas rítmicas, ritmo sintático, novas formas de corte e enjambement); b – na estrutura da imagem (choque de palavras, aproximação de realidades estranhas, associação e imagística do subconsciente); c – na estrutura da palavra (exploração dos valores musicais, visuais e, em geral, sensoriais das palavras, fusão ou desintegração de palavaras, restauração ou invenção de palavras, de onomatopeias); d – na notação da frase (realce material de palavras, inversões violentas, subversão do sistema de pontuação); e e – na disposição tipográfica (caligramas, uso de espaços brancos, variações de corpos e famílias de caracteres, disposição sistemática dos apoios fonéticos ou semânticos)” (MELO NETO, 2003, p. 767-768).